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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    INSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

    OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE -

    ELEMENTOS MELANCÓLICOS

    EM LIRA DOS VINTE ANOS , DE ÁLVARES DE AZEVEDO

    Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras,como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Letras,

    na área de Literatura Brasileira.

    Aluno: Jaime Ginzburg

    Orientação: Profa. Dra. Maria do Carmo Campos

    1997

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    G493o Ginzburg, Jaime

    Olhos turvos, mente errante - elementosmelancólicos em Lira dos vinte anos , deÁlvares de Azevedo / Jaime Ginzburg. -Porto Alegre: UFRGS, Instituto de Letras,Programa de Pós-Graduação em Letras,1997.

    321 p. : il.

    Tese (doutorado) - Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, 1997.

    1. Literatura brasileira. 2. Literaturabrasileira - Crítica. 3. Literatura brasileira -Romantismo - Melancolia. 4. Literaturabrasileira - Poesia - Crítica. 5. Azevedo,Álvares de, 1831-1852. - Crítica. I. Título.

    CDU: 869.0 (81)869.0 (81).09869.0 (81)”18/19”869.0 (81)-1.09

    869.0 (81)-1.09AZEVEDOFicha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant`AnnaCRB-10/728, Biblioteca Central da UFSM

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    Para Bela e Jakob, meus pais, pelas horasem que não estive com eles.

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     Sumário

    RESUMO ................................................... ............................................................ ......................................... 7ABSTRACT .......................................................... ............................................................ ............................... 8AGRADECIMENTOS ....................................................... ........................................................... ...................... 9

    NOTA INTRODUTÓRIA ................................................... ........................................................... .................... 11

    1. LEITURAS DE ÁLVARES DE AZEVEDO .................................................................. .................... 16

    1.1. MOMENTOS DA RECEPÇÃO ................................................................................................................... 161.2. O DUALISMO .......................................................... ........................................................... .................... 331.3. A MELANCOLIA SINCERA ...................................................................................................................... 38

    2. A MELANCOLIA ................................................................................................... ............................. 47

    2.1. CONCEITO DE MELANCOLIA ....................................................... ........................................................... 472.1.1. Origens ........................................................................................................................................ 472.1.2. Caminhos ...................................................... ........................................................... .................... 542.1.3. No romantismo ............................................................................................................................ 60

    2.2. O ABSOLUTO POSSÍVEL......................................................................................................................... 712.2.1. Xerxes .......................................................................................................................................... 82

    3. ELEMENTOS MELANCÓLICOS EM LIRA DOS VINTE ANOS .................................................. 86

    3.1. OLHOS TURVOS, MENTE ERRANTE .................................................................................... .................... 863.2. A RUÍNA DO IDÍLIO ........................................................... ........................................................... ........ 101

    3.2.1. O bizarro e o cômico ................................................................................................................. 1013.2.2. A embriaguez ............................................................................................................................. 1063.2.3. Ócio, dinheiro e miséria ............................................................................................................ 1173.2.4. Homem humano ...................................................... ........................................................... ........ 1293.2.5. A falta de centro ........................................................................................................................ 141

    3.3. CREPÚSCULOS ....................................................... ........................................................... .................. 1463.3.1. Formas do crepúsculo ............................................................................................................... 146

    3.3.2. A atitude contemplativa .................................................... ......................................................... 1593.3.3. Duas paisagens ....................................................... ........................................................... ........ 168

    3.4. AMOR E RENÚNCIA .......................................................... ........................................................... ........ 1823.4.1. Figuras femininas .................................................................................................... .................. 1823.4.2. Extremos .................................................................................................................................... 200

    3.5. PERDA ................................................................................................................................................ 2083.5.1. Formas da perda ....................................................................................................................... 2083.5.2. As perdas em Azevedo ............................................................................................................... 211

    3.5.2.1. Anjinho ............................................................................................................................................... 2113.5.2.2. No túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior .......................................................... 2203.5.2.3. Tarde de outono .................................................................................................................................. 2253.5.2.4. Virgem morta...................................................................................................................................... 235

    3.6. MELANCOLIA E RELIGIÃO ................................................................................................................... 245

    3.6.1. Morte e arrependimento ............................................................................................................ 2544. PERSPECTIVAS ................................................... ........................................................... .................. 264

    ANEXOS ................................................................................................................................................. 273

    BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... ............................................... 308

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    O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essasmelancolias.

    Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

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    Resumo

    Este trabalho consiste em uma leitura de Lira dos vinte anos , livro escrito

    por Álvares de Azevedo, publicado em 1853. O propósito das reflexões é

    examinar elementos como a ilusão, o amor, a morte, a religião, o humor, as

    figuras femininas, a perda e a embriaguez. O enfoque escolhido consiste em

    observar a presença da melancolia no livro.

    O trabalho tem como ponto de partida uma revisão de estudos críticos

    importantes sobre o poeta. Em sua segunda parte, apresenta elementos de

    teoria da melancolia. Entre os autores consultados para fundamentação, estão

    Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller, Klibansky, Panofsky e Saxl.

    A terceira parte consiste na reflexão sobre alguns poemas fundamentais

    da Lira . Em Idéias íntimas , a melancolia está associada ao reconhecimento da

    falta de substancialidade das ilusões e a uma problematização da relação do

    sujeito com a realidade. Em textos como No túmulo de meu amigo João Batista

    da Silva Pereira Júnior e Virgem morta , a melancolia se manifesta como

    dificuldade de superar uma perda. Em vários textos, encontramos o interesse,

    motivado pela melancolia, por experiências extremas. E em Lágrimas de

    sangue , de teor religioso, o mundo é marcado pela presença da morte,

    constituindo uma relação complexa entre melancolia e fé.

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    Abstract

    This is a study of Lira dos vinte anos , a book written by Álvares de

    Azevedo, published in 1853. Its purpose is to understand elements like illusion,

    love, death, religion, humour, female figures, loss and drunkenness. The

    chosen approach is to observe the presence of melancholy in that book.

    The paper`s first topic is a review of essential critical studies of the poet. The

    second part presents theoretical points of view about melancholy. Some of the

    theoreticians consulted are Aristóteles, Walter Benjamin, Jean-Pierre Schaller,

    Klibansky, Panofsky and Saxl.

    The third part is a reflection on some important poems from Lira . In Idéias

    íntimas , melancholy is associated with the acknowledgement of weakness of

    illusions and the subject`s problematic relationship with reality. In texts like No

    túmulo de meu amigo João Batista da Silva Pereira Júnior and Virgem morta ,

    melancholy is associated with dificulty to overcome loss. In many cases, we can

    see a melancholy-driven interest in extreme experiences. In Lágrimas de

    sangue , which has a religious content, the world is marked by death`s

    presence, which constitutes a complex relationship between melancholy and

    faith.

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    Agradecimentos

    Há algumas pessoas e instituições a quem devo agradecer, pela

    importância que tiveram no processo de elaboração deste estudo.

    A Maria do Carmo Campos, que aceitou orientar o trabalho, acompanhou

    as etapas sempre com estímulo, falando de poesia, sendo amiga, humana,

    paciente e acolhedora.

    A Antonio Marcos Vieira Sanseverino, amigo certo, interlocutor, responsável

    por algumas idéias com que trabalhei (mas não pelos problemas), tendo

    indicado leituras e aberto caminhos.

    A Maria da Glória Bordini, que tem a capacidade de fazer a gente acreditar

    que estudar literatura tem muito sentido, pela força, pelo material emprestado,

    pela aprendizagem e pela lucidez.

    A Márcia Ivana de Lima e Silva, amiga querida, que trouxe material nas

    malas de viagem, foi carinhosa, e deu exemplo.

    A José Antonio Pasta Jr., que deu muita força, conseguiu material e

    melhorou o ânimo.

    A Profa.Dra. Maria Eunice Moreira e Prof.Dr. Flávio Wolf Aguiar, pelasobservações atentas e indicações de leitura no exame de qualificação.

    À Profa. Dra. Freda Indursky, Coordenadora do PPG-Letras, pela

    compreensão.

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      Ao meu chefe Hélio Neis, e aos colegas do Departamento de Letras

    Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria, pelo incentivo.

    Aos professores Alfredo Bosi, Regina Zilberman, Luís Augusto Fischer e

    Maria Luíza Ritzel Remédios, pelos estímulos.

    Aos amigos Vicente Saldanha, Nara Augustin Gehrke, Eunice Trevisan,

    Nina Célia e Cláudio Barros, Clarinha Glock, Maria Aparecida Simões, Pedro

    Brum Santos, Cláudio Pereira Elmir, Márcia Lopes Duarte, José Carlos

    Volcato, Marcus Mello, Carlos Petri, Luciana Santos, Cláudia Caimi, Branca

    Moellwald, Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, Almir Pedroso, Vitor Biasoli,

    Cláudio Cruz, Carla Feistauer, Jeanine Cocaro, Rubem Penz, Annete Baldi e

    Régis, Eni Celidônio e Sandra Barbosa, pelo apoio. Ao meu afilhado Ivan.

    Ao Acervo Fontes de Literatura Brasileira, do Curso de Pós-Graduação em

    Letras da PUC-RS, por ter dado acesso ao artigo raro de Joaquim Norberto de

    Sousa e Silva.

    Ao CNPQ, por ter concedido uma bolsa de estudos, durante o período de

    créditos, em 1993, fundamental para a realização do trabalho.

    Ao Canísio e à Márcia, da Secretaria do PPG, pela ajuda.

    A meus pais e irmãs, que sempre estão por perto.

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    Nota introdutória

    Se Pentesiléia é apenas uma periferia de si mesma e o seucentro está em todos os lugares, você já desistiu de saber. Apergunta que agora começa a corroer a sua cabeça é mais

    angustiante: fora de Pentesiléia existe um lado de fora?Ítalo Calvino, As cidades invisíveis  

    O tema deste estudo é o livro Lira dos vinte anos, publicado pela primeira

    vez em 1853, da autoria de Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852).

    Em sua primeira edição, fez parte de um volume intitulado Poesias , que incluía

    outros textos do escritor. A obra contém dois prefácios, sendo dividida em três

    partes. A edição utilizada como referência é a apresentada no primeiro volume

    das Obras completas  do autor, organizada por Homero Pires1.

    A Lira dos vinte anos  é um livro reconhecido pela fortuna crítica de Álvares

    de Azevedo. A produção do autor inclui outros poemas, uma peça de teatro,

    Macário , um livro de prosa, Noite na taverna , correspondência, discursos e

    estudos literários. De modo geral, é em sua poesia que os críticos encontram

    maior interesse.

    O autor é situado pela historiografia literária como um dos mais relevantes

    do romantismo brasileiro, sendo considerado exemplar na poesia lírica

    intimista. De acordo com alguns críticos, por ter morrido cedo, o autor não

    pôde desenvolver sua capacidade como escritor, tendo-se construído a

    imagem de que era uma promessa importante para as letras brasileiras.

    Inicialmente, pretendia desenvolver no doutorado uma reflexão sobre as

    relações entre Machado de Assis e o romantismo; depois de iniciar as leituras

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    de embasamento, o tema acabou sendo substituído, em razão do interesse por

    uma delas, a de Álvares de Azevedo. Na elaboração do projeto para esta tese,

    foi fixado inicialmente como corpus o conjunto da produção do escritor. No

    entanto, o andamento do estudo exigiu que ele fosse restrito, sob risco de

    inviabilizar a finalização em um prazo aceitável. Por isso, foi escolhido como

    objeto o livro Lira dos vinte  anos .

    O objetivo do trabalho é refletir a respeito de poemas da Lira , examinando

    elementos como o amor, as figuras femininas, o devaneio, o ócio, o dinheiro,

    as imagens cômicas, a atitude contemplativa, a religiosidade, a morte e a

    perda. O enfoque escolhido para abordar a obra consiste em observar seus

    elementos melancólicos. O fato de ser a Lira  o objeto de interesse central, e

    não outra parte da produção, se deve à densidade de presença desses

    elementos no livro.

    Partindo de uma compreensão do modo como Álvares de Azevedo foi lido

    pela fortuna crítica, e da posição que assumiu no cânone nacional, pretende-se

    examinar a complexidade de seu trabalho, cujas características de composição

    envolvem ambigüidades temáticas e variações formais. Embora esteja em

    sintonia com o ideário romântico, em seus textos encontramos abordagens

    temáticas que remetem a trabalhos de escritores de outros períodos.

    A escolha do enfoque se deve, em parte, ao interesse por Walter Benjamin,

    filósofo em cuja obra o conceito de melancolia é importante. Na dissertação de

    mestrado A desordem e o limite - a propósito da violência em Grande sertão:

    veredas , concluída em 1993, foi importante utilizar a Origem do drama barroco  

    1 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. 2 v.

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    alemão 2, livro que apontou alguns caminhos teóricos para pensar o conceito de

    melancolia - Aristóteles, Constantinus Africanus, Dürer. Além disso, a leitura do

    artigo de Machado de Assis sobre a Lira dos vinte anos  estimulou a convicção

    de que se tratava de um enfoque pertinente.

    É difícil definir o conceito de melancolia. Raymond Klibansky, Erwin

    Panofsky e Fritz Saxl, logo no início de Saturne et la mélancolie , alertam para

    as variações de atribuições de sentido à palavra3. Jackie Pigeaud considera a

    noção semanticamente muito vaga4. Entre os textos teóricos sobre o assunto,

    encontramos abordagens diversas, que apontam para definições nem sempre

    congruentes umas com as outras.

    A abordagem exige a revisão de elementos de teoria da melancolia. A

    intenção não é delimitar um conceito unívoco, mas levantar um repertório de

    referências. As grandes diferenças de propósitos e métodos entre Aristóteles e

    Freud, por exemplo, não foram encaradas como impeditivos para a reflexão.

    Foram observados pontos de contato entre formulações antigas e modernas.

    Este trabalho não pretende, no entanto, fixar um conceito genérico a partir

    desses aspectos comuns, por entendermos que isso diminui o alcance

    analítico das formulações. A proposta, metodologicamente, consiste em

    recorrer às diversas referências teóricas sobre a melancolia, antigas e / ou

    modernas, científicas ou não, na medida em que elas permitam avaliar a

    relevância de imagens e temas poéticos, e identificar articulações entre

    2 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.3 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. Paris: Gallimard, 1989. p. 29.4 PIGEAUD, Jackie. Présentation. In: ARISTOTE. L`homme de génie et la melancolie. Problème XXX,  1. Paris: Rivages, 1988. p.65.

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    elementos de composições de um poema, ou entre diferentes poemas, ou

    ainda entre textos de Azevedo e de outros autores. Por isso, nos permitimos

    definir de diversas maneiras as características essenciais da melancolia, em

    razão das variações de conceituação nas fontes.

    A tese não é inteiramente exaustiva, isto é, não pretende comentar todos

    os poemas do livro. Foi feita uma seleção, no sentido de contemplar textos

    representativos dos temas mais constantes do livro, que manifestassem, de

    diferentes modos, a presença da melancolia. Os textos selecionados para

    estudo mais detido foram Idéias íntimas, Crepúsculo nas montanhas, Quando

    à noite, no leito perfumado, Malva-maçã, Anjinho, No túmulo de meu amigo

    João Batista da Silva Pereira Junior, Tarde de outono, Virgem morta e

    Lágrimas de sangue, sendo feitas referências a outros. Os poemas aqui

    listados foram transcritos na tese.

    A estrutura do trabalho é a seguinte. Na primeira parte, Leituras de Álvares

    de Azevedo , é apresentada uma revisão da fortuna crítica do poeta. Esta tem

    três segmentos. O primeiro, Momentos de recepção , é genérico e aponta

    linhas de leitura do autor. O segundo e o terceiro se restringem a comentar os

    registros de identificação de dualismo e melancolia, respectivamente, em sua

    produção. A segunda parte, A melancolia , consiste na fundamentação teórica,

    e expõe idéias a respeito do conceito, detendo-se em suas relações com a

    ironia.

    A terceira parte, Elementos melancólicos em Lira dos vinte anos , apresenta

    os estudos de poemas, em que são examinados os seguintes pontos: a

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    associação entre melancolia e ironia, o grotesco e o humor, as representações

    do ócio e da miséria, as imagens de crepúsculos, as figuras femininas, as

    formas de amor, o sentimento de perda, as imagens da morte e a relação entre

    o homem e Deus. Ao final, constam em anexo os poemas da Lira  selecionados

    para estudo mais detido, algumas pinturas examinadas, e a bibliografia.

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     1. Leituras de Álvares de Azevedo

    1.1. Momentos da recepção

    A produção de Álvares de Azevedo foi submetida a avaliações severas.

    Antonio Candido, por exemplo, escreveu a seu respeito: “Mareiam a sua obra

    poemas sem relevo nem músculo, versalhada que escorre desprovida de

    necessidade artística”

    5

    . Leitores como Machado de Assis e Joaquim Norbertode Sousa e Silva foram rigorosos, chamando a atenção para deficiências

    formais nos textos do poeta romântico6. Mesmo merecendo esses juízos, sua

    poesia foi considerada, em geral, superior a seus textos em outros gêneros.

    No entanto, o que prevalece, por parte da crítica, é uma avaliação positiva.

    Alfredo Bosi o caracteriza como um escritor exemplar 7, assim como Antonio

    Candido 8. Suas opiniões estão de acordo com a tendência geral da fortuna

    crítica. Embora nesta não haja uniformidade de métodos ou propósitos, é

    possível observar uma convergência de juízos. A atitude predominante, entre

    os leitores de Álvares de Azevedo, tende a ser o elogio, embora as razões para

    gostar dele variem bastante.

    Por ter falecido jovem, o escritor foi visto como um potencial que não

    chegou a se realizar plenamente. Mesmo não tendo amadurecido, e mantido

    5 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. v.2. p.178.6  Conforme ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. In: ____. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. v.3. p. 894. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor esuas obras. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. 6 ed. t.1. p. 69-72.7 BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. 3 ed. p.110.

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    inédita a Lira dos vinte anos   até sua morte, seus trabalhos o levaram ao

    reconhecimento, e hoje Azevedo tem um lugar no cânone da literatura

    brasileira.

    Entre as preocupações da crítica, duas foram muito constantes. A

    primeira, explicar sua produção através da compreensão de sua vida. Vários

    estudiosos se ocuparam de reunir dados biográficos, e utilizá-los como base

    para justificar as escolhas temáticas e emoções representadas em sua poesia.

    A segunda, demonstrar o alcance do empenho de Azevedo em conhecer a

    literatura européia, propondo a compreensão de sua obra à luz de influências

    variadas, em especial de Lord Byron e Alfred de Musset.

    Glorificado logo após sua morte, classificado pelos historiadores da

    literatura, avaliado em jornais e trabalhos acadêmicos, submetido a muitos

    tipos de recepção crítica, Azevedo continua despertando interesse para leitura.

    Entre as questões que reaparecem ao longo de décadas, estão: o que

    representa a “binomia” de que ele fala na Lira dos vinte anos ? Como sua

    produção se relaciona com a literatura européia? Em que medida ele é

    confessional, falando de si mesmo em sua produção poética? Qual a sua

    contribuição original à literatura brasileira? Porém, algumas questões

    permanecem exigindo maior atenção. Poucas reflexões se dedicaram a

    explicar, por exemplo, a relação entre a poesia de Azevedo e a história do

    Brasil.

    No início, era a perda. As caracterizações de Álvares de Azevedo feitas

    por Joaquim José Teixeira e Joaquim Manuel de Macedo, logo após o

    8 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178.

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    falecimento do poeta, fundem o lamento de dor com a manifestação pública de

    admiração. Em 26 de abril de 1852, foram pronunciados por eles discursos de

    homenagem a Álvares de Azevedo, cuja morte ocorreu antes que completasse

    21 anos. Os textos de Teixeira e Macedo, preparados “por ocasião de dar-se a

    sepultura”, se propõem a elogiar o poeta. O primeiro salienta duas virtudes -

    religiosidade e patriotismo - e lamenta que tenha faltado tempo para

    desenvolver suas qualidades. O segundo atribui a ele “excelentes poesias”, e

    se empenha em sacralizar sua figura: “Deus tinha acendido na alma do

    mancebo aquele fogo sagrado da poesia que eleva o homem acima da terra e

    faz correr de seus lábios em cantos sonoros a linguagem do inspirado”9.

    Atitude semelhante é encontrada no artigo de Lindorf França intitulado Duas

    palavras sobre M. A. A. de Azevedo,  de 1856. O poeta brasileiro é tratado

    como figura de importância incomum, “astro” e “estrela d`alva”, e comparado a

    Byron. França opina que o país lamenta tê-lo perdido, e afirma estar “em

    nossos corações, a saudade”10.

    Os trabalhos elogiados por Macedo ganham impressão em 185311, em

    uma edição intitulada Poesias , no Rio de Janeiro. Em 1861, o português Lopes

    de Mendonça publica no Jornal do comércio , na mesma cidade, um artigo

    comentando a situação:

    9 Peças elegíacas relativas ao autor. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.117-22. A idéia de queDeus é o responsável pela capacidade de escrever do poeta remete a uma passagem de  Macário, em quese lê: “Eu sinto-o, Deus me fez poeta”. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.74.10 FRANÇA, Lindorf E. F. Duas palavras sobre M.A.A. de Azevedo. In: CASTELLO, José Aderaldo.Textos que interessam à história do romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.2.p.219-22.11  A informação está na apresentação de Homero Pires, à p.XXV, no primeiro volume das Obrascompletas.

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    “Manuel Antonio Álvares de Azevedo, poeta brasileiro, cujaspoesias póstumas viram a luz em 1853 no Rio de Janeiro,era um talento de primeira ordem, uma daquelas vocaçõesonipotentes, que revelam, desde o berço, os fecundos donsdo gênio. Morto no ano de 1852, só um ano depois é que o

    Brasil pôde deplorar a perda de uma das suas maisesperançosas ilustrações”12.

    A argumentação de Mendonça procura enfatizar a hipótese de que, se

    Azevedo tivesse permanecido vivo, sua produção futura seria de alto valor.

    Elogia a Lira dos vinte anos, e considera o desaparecimento de seu criador um

    episódio “funesto” para o “progresso das letras”. Compara-o a Gonçalves Dias,

    e defende uma comunhão entre as letras portuguesas e brasileiras.

    Machado de Assis, em 1866, dá continuidade à recepção positiva do poeta.

    Comenta seu “grande talento”, sua “seiva poderosa”, sua “imaginação

    vigorosa”. Como Mendonça, acredita que “lhe faltou o tempo”; porém,

    diferentemente do escritor português, e com maior distanciamento afetivo,

    Machado chama a atenção para imperfeições do autor examinado, entendendo

    que o tempo lhe traria as “modificações necessárias”. O teor crítico do artigo

    distingue variações de qualidade no interior da produção de Azevedo,

    preferindo a poesia à prosa, considerada confusa. Elogia os poemas

    humorísticos, mas encontra em sua produção “versos incorretos” e problemas

    formais

    13

    .Em 1873, vem a público a Notícia sobre o autor e suas obras , de Joaquim

    Norberto de Sousa e Silva, texto que desenvolve algumas das linhas de leitura

    de Machado de Assis: a falta de maturidade do trabalho poético de Azevedo; o

    12 O artigo está reproduzido em VÁRIOS. Juízo crítico. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. op.cit. p.16.

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    estabelecimento de conexões entre o poeta brasileiro e a literatura inglesa, em

    particular com Hamlet , de William Shakespeare; o reconhecimento de defeitos

    de composição formal em textos poéticos. Sousa e Silva considera a Lira dos

    vinte anos  “o que há de melhor” em seu legado14. Grande parte do trabalho do

    crítico é dedicado à apresentação de informações biográficas.

    Sílvio Romero inclui em sua História da literatura brasileira , em 1888,

    algumas páginas a respeito de Álvares de Azevedo, optando por iniciar sua

    exposição com dados sobre a vida do poeta. Quanto à produção, manifesta

    preferir a poesia aos demais gêneros. Em seu estudo, é importante a reflexão

    sobre o dualismo do autor, ponto já discutido por Sousa e Silva. Para Romero,

    a “dubiedade” de sua criação se deve à instabilidade do processo histórico em

    que ela surge: “Todo o século XIX foi uma época de lutas e fortes comoções

    intelectuais; os dogmas surgiam e tombavam, sem poder aliciar todos numa

    crença apaziguadora e universal”15.

    Outro ponto importante da leitura do crítico é a atribuição ao poeta de um

    “certo modernismo”. Romero afirma: “o tom é novo; vê-se nitidamente que se

    está a tratar com um filho do século”16. Como a argumentação não tem o

    desenvolvimento esperado, a definição de modernismo resulta imprecisa. De

    todo modo, importa salientar que o historiador reconhece em Azevedo traços

    que o distinguem favoravelmente da produção poética brasileira anterior,

    afastando-o da tradição.

    13  ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.892-4.14 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p. 61.15  ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo: o subjetivismo de Álvares de Azevedo e sua plêiada.In: ____. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. Tomo 3. p.956.

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      Em 1901, José Veríssimo publica um volume de Estudos de literatura  

    brasileira , incluindo algumas páginas a respeito de Azevedo. Veríssimo retoma

    uma das linhas de leitura de Sílvio Romero. Este, na História da literatura  

    brasileira , afirma que o poeta romântico tinha um temperamento “enfermo”17.

    Para Veríssimo, ele possuía uma “imaginação doentia, como doentio era o seu

    organismo”18. Nos dois casos, o traço doentio é vinculado à melancolia

    observada em seus textos.

    Como Sílvio Romero, José Veríssimo prefere a poesia aos textos escritos

    em outros formatos, que não mereceriam a estima que receberam. E como

    Machado de Assis, acredita que não houve tempo para o autor construir sua

    produção como poderia. O estudo de Veríssimo amplia a reflexão a respeito

    das afinidades entre Azevedo e a literatura européia, enumerando os autores

    cuja influência seria decisiva, iniciando a lista com Byron e Musset19.

    Quinze anos mais tarde, Veríssimo, na sua História da literatura brasileira ,

    propõe a segmentação da produção poética do romantismo em três gerações.

    A primeira estaria associada ao processo de independência política do país,

    sendo freqüente em suas criações um “propósito patriótico”20. A segunda teria

    “mais largo conceito estético”. Para o historiador, não havia razão para o

    mesmo grau de patriotismo da geração anterior, pois a situação do país estaria

    16  Idem. p.961.17  Idem, p.950.18  VERÍSSIMO, José. Álvares de Azevedo. In: ____. Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1977. 2a. série. p.29.19  Idem, p.28.20 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1963. cap.13. p.137-8.

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    mais estável21. Os poetas estariam agora dedicados ao “máximo de emoção”,

    e interessados em tematizar a morte, por estarem contagiados pela

    “melancolia de Gonçalves Dias”22. Quanto à terceira geração, Veríssimo

    demonstra dificuldade em unificá-la por um traço comum, mas aponta

    elementos como “feição social e humanitária” e “altiloqüência”23.

    Nesse esquema, Álvares de Azevedo é situado como representativo da

    segunda geração, sendo o primeiro a ser comentado, em um grupo contando

    com Laurindo Rabelo, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, Francisco

    Otaviano de Almeida Rosa, José Bonifácio, Aureliano Lessa, Bernardo

    Guimarães, Teixeira de Melo e José Joaquim Cândido de Macedo Jr. 24.

    O esquema proposto por Veríssimo foi importante para a fortuna crítica

    posterior. As histórias literárias de Alfredo Bosi25  e Massaud Moisés26  o

    empregam, adotando hierarquia de valores semelhante ao privilegiar Azevedo

    com relação aos demais poetas mencionados. Antonio Candido, em sua

    Formação da literatura brasileira , desenvolve sua apreciação da “segunda

    geração romântica”, em que encontra o “mal do século” e a ambivalência, a

    ”volúpia dos opostos” 27. “Mal do século” consiste em uma expressão criada

    pelos europeus para designar um conjunto de traços perceptíveis na produção

    romântica - introspecção, inconformismo, angústia metafísica, atração pela

    21  Idem, p.214.22  Idem, p.216-7.23  Idem, p.241.24  Idem, conforme capítulo 13.25 BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. op.cit. Conforme p.109.26 MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985. v.2. (O romantismo)27 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.149-51.

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    morte, desesperança 28  e, nos termos de Antonio Candido, “pessimismo,

    humor negro, perversidade”.

    A consagração do modelo proposto por José Veríssimo pode ser medida

    pelo fato de que, na bibliografia sobre literatura voltada para o ensino

    secundário no Brasil, existe um aproveitamento didático de seu esquematismo,

    com o fim de mapear de maneira organizada obras e autores. Os livros de

    Carlos Emílio Faraco e Francisco Moura, Douglas Tufano e Sérgius

    Gonzaga29, por exemplo, seguem rigorosamente o princípio das três gerações

    e, como José Veríssimo, apresentam Álvares de Azevedo como primeiro nome

    do grupo referente à segunda geração.

    O reconhecimento de historiadores da literatura como José Veríssimo,

    Antonio Candido e Alfredo Bosi levou a estabelecer a posição de Álvares de

    Azevedo no cânone brasileiro como “o poeta mais representativo da segunda

    geração romântica” 30, para lembrar uma frase de um verbete dedicado ao

    escritor em um dicionário de literatura brasileira. As caracterizações propostas

    nos livros escolares expressam o respeito a esse estabelecimento e aos

    critérios que o sustentam.

    28 Conforme BIEDERMANN, Alfred, org.  Le romantisme européen. Paris: Larousse, 1972. v.1. cap.III.BRIS, Michel de. Journal du romantisme. Genéve: Albert Skira, 1981. Cap.7. A expressão é empregada

    de modo equivalente em: DAL FARRA, Maria Lucia. Da lira ao marimbau. In: AZEVEDO, Álvares de.Lira dos vinte anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. XV. VERÍSSIMO, Erico. Minha terra tempalmeiras. In: ____.  Breve história da literatura  brasileira. São Paulo: Globo, 1995. p.50. FACIOLI,Valentim. Pátria, natureza e sentimentos. In: ___ & OLIVIERI, Antonio Carlos, orgs. Antologia de poesiabrasileira: romantismo. São Paulo: Ática, 1996. p.10-2.29 FARACO, Carlos Emílio & MOURA, Francisco Marto.  Língua e literatura. São Paulo: Ática, 1996.v.2. Unidades 3 a 7. TUFANO, Douglas. Estudos de literatura brasileira. São Paulo: Moderna, 1995.Parte III. GONZAGA, Sérgius.  Manual de literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.cap.3.30 RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Álvares de Azevedo. In: PAES, José Paulo & MOISÉS, Massaud.Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987. p.65.

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      Ainda com relação ao capítulo dedicado a Azevedo na História da  

    literatura brasileira , cabe registrar que José Veríssimo retoma o esforço de

    Joaquim Norberto de Sousa e Silva em esclarecer a biografia do poeta. Essa

    abordagem vai conseguir, mais adiante, um desenvolvimento importante na

    fortuna crítica. Além disso, insiste em pontos levantados em 1901. Comenta

    as influências do romantismo europeu, e novamente estão encabeçando a lista

    Musset e Byron31; e aponta a sua “sensibilidade doentia”, voltada para o

    desespero e o interesse pela morte 32.

    Manoel Bonfim faz um registro de interesse por Azevedo, em 1931,

    atentando para a multiplicidade de elementos contidos em sua produção;

    indiferente às discussões sobre influências, considera-o “intensamente

    brasileiro” 33. No mesmo ano, é publicado o livro de Veiga Miranda, Álvares de

    Azevedo , que tem como finalidade essencial compor o itinerário da vida do

    poeta. Traz um estudo da sua correspondência, e dedica atenção aos seus

    estudos literários, elogiando sua capacidade de relacionar literatura e história34.

    Nesse ponto, contraria frontalmente Sílvio Romero, que declarou a respeito de

    seus ensaios: “o estilo é por vezes pesado, obscuro e amaneirado e as

    contradições e obscuridades formigam”35.

    A opção metodológica de Miranda consiste na pesquisa biográfica, com o

    fim de traçar o perfil psicológico do autor, e dele derivar categorias para o

    31 VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. op.cit. p.218.32  Idem, p.219-20.33 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. In: ____. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira.Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.303-9.34 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. São Paulo: s.e., 1931. p.236.35  ROMERO, Silvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.962.

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    entendimento da obra. Ao buscar uma lógica coerente que paute a produção

    do autor, essa linha de estudo procura identificar elos de causalidade entre

    ocorrências atribuídas à sua vida e elementos textuais, reduzindo através

    dessas conexões a possibilidade de pensar as obras como elaborações

    imaginárias relativamente independentes das circunstâncias imediatas da vida

    pessoal do poeta, e sugerindo, por exemplo, que o sujeito lírico de um poema

    corresponde diretamente a seu autor, como se a obra fosse necessariamente

    expressão confessional.

    Um caso expressivo dessa tendência é Álvares de Azevedo desvendado ,

    de Vicente Azevedo, publicado em 1977 36. Ao longo de sua argumentação, o

    crítico procura traçar vínculos entre eventos da vida do poeta e passagens de

    seus escritos, explorando sistematicamente sua correspondência. O crítico,

    assim como Veiga Miranda, está ostensivamente preocupado em construir

    uma imagem tida como digna do autor; o trabalho é fundamentalmente uma

    homenagem.

    Na linha biográfica, se destaca o estudo Poesia e vida de Álvares de  

    Azevedo , de R. Magalhães Jr.37, de 1962, mais bem-sucedido do que o livro de

    Vicente Azevedo. Além de uma contribuição importante para a compreensão

    dos gêneros considerados menores em Azevedo, em especial de seu teatro, o

    biógrafo estabelece conexões importantes entre o autor e a vida cultural do

    século XIX, vinculando, por exemplo, a Noite na taverna   à pintura de

    36 AZEVEDO, Vicente. Álvares de Azevedo desvendado. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1977.37  MAGALHÃES JR., R. Poesia e vida de Álvares de Azevedo. São Paulo: Ed. das Américas, 1962.

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    Géricault38. Em 1982, Hildon Rocha publica Álvares de Azevedo: anjo e  

    demônio do romantismo, que recupera e organiza informações biográficas

    disponíveis, e estabelece conexões entre elas e passagens de obras. O livro

    retoma temas básicos da fortuna crítica - a suposta genialidade do autor, suas

    influências estrangeiras, o mal do século, o interesse pela morte39.

    Um estudo fundamental sobre Álvares de Azevedo é o ensaio Amor e

    medo , de Mário de Andrade, publicado em 1935. O método de leitura é

    basicamente biográfico; o crítico avalia a “sinceridade” dos poetas românticos,

    e examina relações entre a formação familiar de Álvares de Azevedo e seu

    modo de representar afetos. Ele defende que, em sua produção, há uma fobia

    do amor sexual, vinculada à sua convivência com a mãe e a irmã, que propicia

    uma relação incomum com a feminilidade40.

    Além da corrente biográfica, outra linha recorrente de leitura se vincula à

    literatura comparada: trata-se do levantamento de influências. A obra de

    Azevedo é tomada então como reelaboração de um modelo estético

    qualificado do romantismo europeu. Freqüentemente, a reflexão comparatista

    está associada à biográfica, como nos casos de Magalhães Jr. e Hildon Rocha.

    A perspectiva comparatista, ocupada em rastrear origens do imaginário

    38  Idem, p.125.39  ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. Rio de Janeiro: José Olympio;São Paulo: SEC, 1982.40 ANDRADE, Mário de. Amor e medo. In: ____.  Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins,1974.

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    romântico presente na produção, posiciona Azevedo no circuito das relações

    entre autores de diferentes países e estima seus interesses como leitor 41.

    Um crítico importante nessa linha é Ronald de Carvalho, que elabora uma

    caracterização da Lira dos vinte anos   pautada em uma série de autores

    europeus: Byron, Musset, Shelley, Leopardi, Heine42. Seu trabalho motivou a

    polêmica, estimulando Vera Pacheco Jordão a discutir em que medida, de fato,

    Álvares de Azevedo é um byroniano, reclamando que esse conceito

    “popularizou-se tanto que passou a constituir um chavão”43. Fausto Cunha

    também registrou a presença de Byron e Musset em Azevedo, mas defende

    que sua relação com o segundo é dúbia: “enquanto poeta, Azevedo é um eco

    da estética de Musset; enquanto crítico, é um adversário dessa mesma

    estética”44.

    Nos anos 50, a fortuna crítica de Álvares de Azevedo se amplia com

    estudos de Brito Broca, Eugênio Gomes e Antônio Cândido. O interesse de

    Broca pela vida literária no período romântico o levou a redigir vários artigos

    sobre o escritor, comentando sua leitura de Byron, suas representações da

    41  Em certos casos, essa perspectiva restringe a atenção às especificidades do autor, o que se observasobretudo em textos panorâmicos. Conforme, por exemplo: CITELLI, Adilson.  Romantismo. São Paulo:Ática, 1986. p.58.42 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. In: ____. Pequenahistória da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1955. p.224-5.43 JORDÃO, Vera P. Maneco, o byroniano. In: ____.  Maneco, o byroniano. Rio de Janeiro: MEC, s.d.p.3. Por exemplo, encontramos a expressão “byroniano Álvares de Azevedo” em CASTELLO, JoséAderaldo. Apresentação. In: ___, org. Textos que interessam à história do romantismo . São Paulo:Conselho Estadual de Cultura, 1960. v.1. p.9.44 CUNHA, Fausto. Álvares de Azevedo ou a contradição criadora. In: ___. O romantismo no Brasil. DeCastro Alves a Sousândrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. p.115.

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    tristeza, suas fontes e sua recepção45. Neste último, afirma preferir a poesia do

    escritor à sua prosa46, entrando em acordo com Machado de Assis.

    Tanto Eugênio Gomes como Antonio Candido estão mais preocupados com

    as características da produção textual de Álvares de Azevedo do que em

    organizar dados biográficos ou apontar influências estrangeiras. O primeiro

    publicou um estudo sobre o individualismo romântico, incluído na coleção A

    literatura no Brasil , de Afrânio Coutinho, e os artigos Álvares de Azevedo,

    Álvares de Azevedo e o ópio da leitura e Machado de Assis e Álvares de

    Azevedo . Entre os tópicos que desenvolve em sua compreensão do poeta,

    estão: a freqüência esporádica de apresentação de marcas da realidade

    nacional em seus textos; as diferenças entre a produção poética e a

    ensaística; o recurso da ironia; o comportamento de Azevedo como leitor;

    analogias entre Macário  e Memórias  póstumas de Brás Cubas  47.

    Antonio Candido, depois de dedicar a Azevedo um capítulo da Formação  

    da literatura brasileira , foi responsável por outros trabalhos que contribuíram

    para a valorização do escritor. Interessou-se pelo humorismo, pelas

    representações da mulher, e particularmente pelo tema do sonho e pelas

    imagens da noite. Desenvolveu a leitura de Mário de Andrade, discutindo a

    representação do medo de amar; e retomou a abordagem biográfica, ao eleger

    45 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. São Paulo: Polis / INL, 1979.46  Idem, p.320-1.47  GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. In: COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986. v.3. ____. Álvares de Azevedo. In: ___. Prata dacasa. Rio de Janeiro: A Noite, s.d. ____. Álvares de Azevedo e o ópio da leitura. In: ____. Visões erevisões. Rio de Janeiro: INL, 1958. ____. Machado de Assis e Álvares de Azevedo. In: ____. Machadode Assis. Rio de Janeiro: São José, 1958.

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    a adolescência como referência psicológica fundamental para compreender o

    autor 48.

    Uma das contribuições importantes do crítico está no emprego da categoria

    “experiência-limite”, referente a elementos como o “incesto, a necrofilia, o

    fratricídio, o canibalismo, a traição, o assassínio”, presentes na Noite na

    taverna. De acordo com Candido, a experiência-limite mostra “os abismos

    virtuais e as desarmonias da nossa natureza, assim como a fragilidade das

    convenções” 49 . Com essa argumentação, o crítico supera o preconceito

    imposto por Sílvio Romero e José Veríssimo, que compreendiam a imaginação

    de Azevedo como doentia. Esse juízo supunha um padrão de normalidade de

    pensamento e ação afastado das imagens criadas pelo escritor. Ao utilizar o

    pronome “nossa”, Candido aponta para um conceito de condição humana que,

    envolvendo o leitor e também ele mesmo, inclui entre as possibilidades do

    comportamento humano as que estão representadas por Azevedo.

    A reflexão estética sobre Álvares de Azevedo cresceu com os trabalhos de

    Alfredo Bosi. Em sua História concisa da literatura brasileira , o crítico renova a

    discussão das influências e caracteriza a produção do autor formal e

    tematicamente. Além disso, situa Azevedo com relação à política brasileira do

    século XIX. Em um estudo sobre as imagens do romantismo no Brasil, explica

    48  CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. ____. Apresentação. In: AZEVEDO,Álvares de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1994. ____. A educação pela noite. In: ____.  Aeducação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. _____. Cavalgada ambígua. In: ____.  Nasala de aula. São Paulo: Ática, 1986. ____ & CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literaturabrasileira: das origens ao realismo. São Paulo: DIFEL, 1985.49 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.17.

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    sua produção com categorias filosóficas e examina a originalidade de seu

    humor50.

    Em trabalhos recentes de cunho acadêmico, outros críticos têm dado

    continuidade aos questionamentos anteriormente levantados. Paulo Franchetti,

    no estudo panorâmico A poesia romântica , discute a imagem de Álvares de

    Azevedo instituída pela fortuna crítica. Recupera e valoriza José Veríssimo, e

    opina que o cosmopolitismo do autor, que tanto interessou a leitores como

    Ronald de Carvalho, é vantajoso por trazer coloquialismo à linguagem poética.

    Ele acredita, recuperando Machado de Assis, e em sintonia com Bosi, que se

    deva reconhecer a importância de seu humor, obscurecida por leituras

    interessadas em outros pontos51. Alcides Villaça, em seu prefácio a uma

    edição da Lira dos vinte anos , retoma uma série de pontos discutidos por

    outros leitores, como a linguagem poética, a ironia, o interesse pela morte e,

    em acordo com Franchetti, o humor e os elementos cotidianos52.

    O escritor romântico tem sido objeto de estudos pautados em

    fundamentações teóricas muito diversas. O comparatismo foi renovado por

    Maria Alice de Oliveira Faria, em um livro que levanta semelhanças e

    diferenças entre Álvares de Azevedo e Musset53. O livro de Angélica Soares

    Ressonâncias veladas da lira   propõe Heidegger como fundamento para

    50  BOSI, Alfredo.  História concisa da literatura brasileira. op.cit. _____. Imagens do romantismo noBrasil. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.51  FRANCHETTI, Paulo. A poesia romântica. In: PIZARRO, Ana, org.  América Latina: palavra,literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Unicamp, 1994. v.2. Em especial p.200-1.52  VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. In: AZEVEDO, Álvares de. Lira dos vinte anos. SãoPaulo: FTD, 1994.53  FARIA, Maria Alice. Astarte e a espiral.Um confronto entre Álvares de Azevedo e Musset. São Paulo:CEC, 1970. 

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    compreender o intimismo na produção do autor54. Outras abordagens se

    voltam para o conceito de fantástico55, o espaço urbano56 e a noção de pós-

    moderno57.

    Trabalhos de pós-graduação dedicados a Álvares de Azevedo nesta década

    retomam pontos de leitura levantados pela fortuna crítica. Risos entre pares ,

    de Vagner Camilo (1993), centra-se no poema Idéias íntimas , analisa sua

    composição e examina a “binomia” de Azevedo à luz da teoria da mistura de

    contrários, de Vitor Hugo. O sistema poético dual de Álvares de Azevedo , de

    Cilaine Alves Cunha (1994), utiliza idéias de Schiller, entre outros, para

    examinar também o dualismo, dedicando-se à análise das representações do

    amor. Macário e Noite na taverna: um estudo de recepção  literária , de Teruco

    Spengler (1996), aponta para ligações entre o autor brasileiro e a literatura

    alemã. O ponto em comum mais destacado entre os três trabalhos é o fato de

    que neles encontramos reflexões a respeito do dualismo na produção do

    escritor 58.

    O dualismo e a melancolia, caracterizados por Benedito Nunes como

    traços comuns no romantismo59, são aspectos constantemente retomados na

    54 SOARES, Angélica. Ressonâncias veladas da lira. Álvares de Azevedo e o poema romântico-intimista.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.55  JEHA, Julius. Claudius Hermann: o fantástico em Álvares de Azevedo. O eixo e a roda. BeloHorizonte: UFMG, jun. 1983. v.1. n.1.56 CARONE, Modesto. Álvares de Azevedo: um poeta urbano.  Remate de males. Campinas: Unicamp,1987. n.7.57 MOISÉS, Carlos Felipe. Álvares de Azevedo pós-moderno. Jornal da tarde. 9/12/89.58  CAMILO, Vagner.  Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. Campinas:Unicamp, 1993. Dissertação de mestrado. CUNHA, Cilaine. O sistema poético dual na obra de Álvaresde Azevedo. São Paulo: FFLCH-USP, 1994. Dissertação de mestrado. SPENGLER, Teruco.  Macário e

     Noite na taverna: uma leitura de recepção literária. Santa Maria: UFSM, 1996. Dissertação de mestrado.59  Conforme NUNES, Benedito. A visão romântica. In: GUINSBURG, Jacó, org. O romantismo. SãoPaulo: Perspectiva, 1978. p.52.

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    fortuna crítica. Essa freqüência indica que o modo particular como o poeta os

    elaborou merece atenção. Embora possam ser observadas variações de

    abordagem nos trabalhos dos comentadores, por diferenças de método de

    leitura, a constância é importante, e por isso cabe registrar, a seguir, as

    menções a esses tópicos. Elas ajudaram a criar uma imagem do poeta como

    uma figura ambígua e instável, causadora de certa estranheza.

    Lygia Fagundes Telles redigiu uma crônica discutindo a imagem dúbia de

    Álvares de Azevedo, entre a boemia e a pureza. Em certo ponto, incerta

    quanto à precisão dos dados biográficos, lançou um desafio ao saber

    acumulado sobre o poeta: “(...) nesse ponto, suspendo o juízo: o que a gente

    sabe sobre o próximo? E sobre um próximo assim distante? A gente sabe tão

    pouco (...)”. A romancista sugere que a figura de Azevedo seja essencialmente

    enigmática 60. A mesma provocação surge, por outro caminho, em uma crônica

    de Ana Cristina Cesar a respeito de sinceridade e fingimento. Ela parte de uma

    idéia de Vicente Azevedo - nas cartas, o escritor é sincero; nos poemas, ele

    finge. E conclui que o poeta romântico está à espera de quem tome seus

    textos “como matéria-prima para outros escritos”61.

    60 TELLES, Lygia Fagundes. To die, to sleep no more. In: _____.  A disciplina do amor . Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1980. p.79.61 CESAR, Ana Cristina. O poeta é um fingidor. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro: 30/4/77.

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    1.2. O dualismo

    Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não temfim.Guimarães Rosa, O espelho  

    Em alguns dos estudos sobre Álvares de Azevedo, atentos para

    especificidades de sua produção, na medida em que se impõe a necessidade

    de uma percepção mais abrangente, e é procurada uma visão de conjunto de

    seus escritos, recorre-se a expressões como paradoxo, ambigüidade,

    contradição.

    Eugênio Gomes vê em Álvares de Azevedo "dois lados antagônicos, o da

    "saturnal" e o da "candura" 62. Brito Broca o considera “um exemplo de

    ambivalência”63. É "paradoxo" o termo que Antonio Soares Amora emprega em

    sua avaliação da relação entre lubricidade e idealismo na poesia de Azevedo

    64. Sílvio Romero reconhece a presença de um dualismo na lírica de Azevedo,

    descrevendo-o nos seguintes comentários.

    “Às vezes é um lirismo idílico e todo confiante, maspuramente ideal; outras vezes é a amargura de quem nãoencontrou ainda um coração que o compreendesse, ou apintura de alguma cena lasciva. Outro dualismo dá-se nasopiniões, crenças e doutrinas do poeta.”65 

    “(...) dualismo de ideal e ironia, de sinceridade e sarcasmo,de pureza e grosseria que também se depara em seusversos. Esse dualismo de outra espécie era

    62 GOMES, Eugênio. Álvares de Azevedo. op.cit.63 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118.64 AMORA, Antonio Soares. O romantismo. São Paulo: Cultrix, 1993.65 ROMERO, Sílvio. Terceira fase do romantismo. op.cit. p.951.

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    conscientemente praticado, era sistemático e tinha algumacousa de artificial.”66 

    Antonio Candido, em estudo célebre, Álvares de Azevedo, ou Ariel e

    Caliban , qualificou a obra de Azevedo como adolescente, por identificar em

    sua produção traços que atribui à psicologia adolescente: divisão,

    ambigüidade, reunião de ternura e perversidade, e de idealização e

    lubricidade. Definiu a personalidade literária de Azevedo como dotada de

    "natureza contraditória" 67.

    Joaquim Norberto de Sousa e Silva assim o descreveu:

    “A dúvida embalava-o entre a crença e a descrença.Duvidava ora do que cria, ora do que descria. Era a luta docorpo e da alma, da vida e da morte, entre o céu e a terra(...)”68 

    Esses registros de paradoxo, ambigüidade, contradição, são autorizados

    pelo próprio Álvares de Azevedo, que em seu prefácio à segunda parte da Lira

    dos vinte anos , afirma:

    "a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almasque moram nas cavernas de um cérebro pouco mais oumenos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalhade duas faces" 69.

    A passagem encontra ecos em um trecho de Noite na taverna  que define a

    vida em termos paradoxais, como complexo de “crimes e virtudes”70, e no

    modo de falar do personagem Macário, na peça de teatro do mesmo nome, em

    que, diante da pergunta “E amaste muito?”, responde: “Sim e não. Sempre e

    66  Idem, p.955.67 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.178-80.68  SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.55.69 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.1. p.127.

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    nunca.”71. Álvares de Azevedo, intencionalmente, ao longo de sua produção,

    exercita a representação de um pensamento dúbio, apontando para a

    concorrência de interesses, valores e sentimentos opostos.

    Alcides Villaça, em seu comentário sobre a Lira dos vinte anos , defende a

    idéia de que o livro se organiza de maneira dúplice, oscilando entre ternura e

    sarcasmo, entre flores e roupa suja72. Veiga Miranda afirma que Álvares de

    Azevedo transitava entre o cômico e o patético, sendo formada uma "mistura

    de tintas". Miranda percebe em Azevedo a presença do "paradoxal" 73. Hildon

    Rocha, por sua vez, declara que o autor “era variável e múltiplo”,

    “contraditório”74, e "sempre alternava entre as reações e manifestações mais

    contraditórias e antagônicas, padecendo as tensões de sua própria mobilidade,

    de sua surpreendente instabilidade" 75. Para Vera Pacheco Jordão, em

    Azevedo coexistem “duas personalidades”76. Antonio Carlos Secchin entende

    que a antítese é uma figura fundamental na Noite na taverna 77. Os estudos

    recentes de Vagner Camilo, Cilaine Alves Cunha e Teruco Arimoto Spengler,

    valorizando a noção de “binomia”, também elaboram reflexões sobre dualismos

    presentes na produção do autor78.

    70 Idem. v.2. p.131.71 Idem. p.20.72 VILLAÇA, Alcides. Na intimidade romântica. op.cit. p.14.73 MIRANDA, Veiga. Álvares de Azevedo. op.cit. p.183.74 ROCHA, Hildon. Álvares de Azevedo: anjo e demônio do romantismo. op.cit. p.59.75 Idem. p.82.76 JORDÃO, Vera Pacheco. Maneco, o byroniano. op.cit. p.3.77 SECCHIN, Antonio Carlos. Noite na taverna: a transgressão romântica. In: ___. Poesia e desordem:escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.178.78 Conforme CAMILO, Vagner. Risos entre pares. Poesia e comicidade no romantismo brasileiro. op.cit.p.26, 30, 34 e 42. CUNHA, Cilaine Alves. O sistema poético dual na obra de Álvares de Azevedo . op.cit.Em especial, p.89. SPENGLER, Teruco Arimoto.  Macário e Noite na taverna: uma leitura de recepçãoliterária. op.cit. Em especial, p.100.

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      A noção de dualismo, constantemente apontada em Álvares de Azevedo,

    era fundamental também em Goethe.

    Vivem-me duas almas, ah! no seio,Querem trilhar em tudo opostas sendas;Uma se agarra, com sensual enleioE órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;A outra, soltando à força o térreo freio,De nobres manes busca a plaga etérea.79 

    A fala de Fausto descreve “duas almas”, uma voltada para o terreno, outra

    para o etéreo. A divisão interna desnorteia o personagem, que procura uma luz

    que o conduza. Essa problemática está em aliança com o dilema descrito porVitor Hugo, a respeito do homem cristão. O escritor francês, em sua reflexão

    teórica sobre o amadurecimento da humanidade ao longo da história, explica

    que, quando surge o cristianismo, o homem descobre sua duplicidade

    essencial: “ele tem duas vidas que deve viver, uma passageira, a outra imortal;

    uma da terra, a outra do céu (...) ele é duplo como o seu destino, que nele há

    um animal e uma inteligência, uma alma e um corpo”80. A representação cristã

    do homem, elaborada pelo poeta francês, corresponde ao dilema do

    personagem de Goethe.

    Em outra passagem de Fausto , Mefistófeles enuncia:

    Traz prazer dor, dor prazer traz.81

     

    A associação entre prazer e dor, cara a Wordsworth82 e Keats83, apreciada

    por Macário84, aparece aqui como formulação demoníaca. Além das

    79 GOETHE. Fausto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. p.64.80 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 1988. p.21.

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    manifestações de seus personagens, também o aforismo serve a Goethe para

    enunciar a idéia de que “estupidamente contraditório é o ser humano”85.

    Em Fausto, falar em  “duas almas” diz respeito a uma dificuldade de

    estabelecer critérios para decidir como governar a própria vida. No prefácio à

    segunda parte da Lira , a imagem de “duas almas” expressa uma

    indeterminação estética, responsável pelos contrastes internos do livro.

    A oposição goetheana entre apego à matéria e ao etéreo existe em

    Azevedo. Ela se apresenta como um confronto entre a realidade e o devaneio,

    a precariedade e os ideais, em “uma oscilação entre ser e não-ser”86.

    Considerando a Lira dos vinte anos em sua totalidade, a tensão entre

    representações contrastantes, que motivou os críticos a empregarem

    terminologias referentes a duplicidades para descrever a obra, é uma das

    bases de sustentação de seu interesse.

    81 GOETHE. Fausto. op.cit. p.136.82 WORDSWORTH, William. Prefácio às Baladas Líricas. In: LOBO, Luiza, org. Teorias poéticas doromantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. op.cit. p.178.83  KEATS. Ode à melancolia. In: GUIMARÃES, Fernando, org. Poesia romântica inglesa. Lisboa:Relógio d`água, 1992. p.69-70.84 O personagem diz, em uma passagem da peça de teatro: “Não é porventura essa comoção íntima denossa alma com tudo que nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?...”.AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. v.2. p.62.85 GOETHE. Máximas e reflexões. Lisboa: Guimarães, 1992. p.47.86 SCHELLING. A essência da liberdade humana. Petrópolis: Vozes, 1991. p.46.

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    1.3. A melancolia sincera

    Não, não seja a vida sempre assimComo um luar desesperadoA derramar melancolia em mimPoesia em mim

    Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, Modinha  

    A identificação da presença de melancolia na lírica de Álvares de Azevedo

    é antiga e remonta a Machado de Assis, em seu comentário sobre a Lira dos

    vinte anos  de 1866.

    A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos aspoesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinteanos raras vezes escreve uma página que não denuncie ainspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vagaaspiração. Os belos versos que deixou impressionamprofundamente; “Virgem morta”, “À minha mãe”,“Saudades”, são completas neste gênero. (...) Que poesia eque sentimento nessas melancólicas estrofes!” 87 

    O adjetivo “sincera” aponta para uma conexão profunda entre os sujeitos

    líricos criados pelo poeta e sua própria condição pessoal. A idéia de uma

    “essência melancólica” do autor foi sugerida por Joaquim Norberto de Sousa e

    Silva e Brito Broca. Comentando sua formação, Norberto afirma que Azevedo

    “tornou-se melancólico na mocidade”, atingido pela solidão88. Embora

    reconheça seus momentos de “expansividade”, Broca afirma que em suas

    87 ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. op.cit. p.893-4.88 SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. op.cit. p.39.

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    cartas há uma “profunda melancolia”  89, e comenta, a respeito do modo de

    representação do espaço em Macário , que “a melancolia de Álvares de

    Azevedo, projetando-se na paisagem, tornava tudo cinzento e lúgubre”90.

    Para Sílvio Romero, em Azevedo havia uma “melancolia inata”91. Em sua

    História da literatura brasileira , define o poeta como “um melancólico (...) que

    enfermou o espírito”, e propõe que a origem de sua melancolia não está em

    “injustiças sofridas” ou “traição de amantes nem de amigos”, mas

    essencialmente na “vacilação de suas idéias” 92.

    Romero apresenta algumas citações de um crítico, Edmond Scherer, a

    respeito da melancolia, com o propósito de definir seu ponto de vista a respeito

    de Álvares de Azevedo. Para Scherer, a condição melancólica é caracterizada

    por elementos como desequilíbrio, incompletude, nervosismo, delicadeza e

    fragilidade. Após as citações, Romero afirma que as idéias de Scherer

    “aplicam-se perfeitamente ao nosso poeta”93.

    Ronald de Carvalho vê Azevedo como expressão exemplar do “mal do

    século”, e assinala a presença da melancolia na Lira dos vinte anos 94 . Entre

    os críticos de Azevedo, Antonio Candido se destaca pela constância com que

    reconheceu a presença da melancolia em sua produção. Ele a aponta

    89 BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. op.cit. p.118.90  Idem. p.207.91 ROMERO, Sílvio. p.950.92 Idem, p.952.93 Idem, p.958.94 CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. op.cit. p.224 e 226.

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    genericamente95, e destaca o traço em alguns poemas - Idéias íntimas 96 ,

    Lembrança de morrer 97 - e na Noite na taverna 98.

    Em Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira , de Paulo Prado,

    além de referências à melancolia no romantismo brasileiro, a Álvares de

    Azevedo e à Noite na taverna, é apresentada a interpretação de que existiria

    uma homologia entre a poética do período e a situação do país, agredido por

    uma história de valores degradados - “melancolia do povo, melancolia dos

    poetas”99. Parte do raciocínio foi reelaborada por Jamil Haddad, que situa

    Azevedo numa São Paulo melancólica100.

    Enquanto, por um lado, em Carvalho, a presença da melancolia em

    Azevedo serve como argumento para integrá-lo aos moldes da literatura

    européia, por outro, em Prado e Haddad, ela manifesta um mal-estar da

    sociedade brasileira. A interpretação desse tópico não é o único aspecto em

    que a crítica se divide com relação à brasilidade   de Álvares de Azevedo.

    Encontramos a compreensão de que “sua poesia não revela nenhuma

    impregnação afetiva e enfática da realidade nacional ou do momento histórico

    em que surgiu. Esporádicas ou meramente circunstanciais as manifestações

    do instinto de nacionalidade que o arrebataram momentaneamente do

    95  CANDIDO, Antonio. Cavalgada ambígua. op.cit. p.44. CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit.p.15.96 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190.97 CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.14.98 CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.18.99  PRADO, Paulo. Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio,1962. Conforme, especialmente, páginas 141-3 e 148-50.100 HADDAD, Jamil Amansur. Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança. São Paulo: CEC, 1960. p.79-80.

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    subjetivismo lírico em que encontrava o clima ideal”101. Manoel Bonfim, por

    sua vez, observa um vínculo profundo entre a produção de Azevedo e a “alma

    do Brasil”102. Em uma de suas frases, além de defender o poeta, traça uma

    conexão profunda entre ele e o país: “Os próprios exageros e erros de

    ingenuidade, o Brasil reconhecerá como caracteres seus”103. Em um caminho

    diferente do trilhado por Paulo Prado, Bonfim também pretende ver em

    Azevedo marcas essenciais da nação.

    Alguns estudos comparatistas levam a crer que, embora suscetível a

    influências, e interessado em modelos europeus, Azevedo não se comportava

    como reprodutor passivo. Tanto Maria Alice de Oliveira Faria, discutindo as

    relações do poeta brasileiro com Musset, como Onédia Célia Barboza,

    avaliando a leitura de Byron feita por Azevedo, apontam para a idéia de que

    este tinha uma elaboração com características próprias de idéias, temas e

    imagens extraídos dos autores europeus. No primeiro caso, por exemplo, a

    autora explica que as representações da sexualidade, em Musset, têm traços

    realistas, ao passo que em Azevedo têm acento onírico. O estudo de Barboza

    revela que Azevedo se propôs a traduzir o poema Parisina  de Byron e, ao fazê-

    lo, através da seleção lexical e da disposição das imagens, “tornou-o muito

    mais sombrio” 104.

    101 GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. op.cit. p.746. Conforme também TORRES, AlexandrePinheiro. Álvares de Azevedo. In: ____, org.  Antologia da poesia brasileira: do Padre Anchieta a JoãoCabral de Melo Neto. Porto: Chardron, Lello e Irmão, 1984. v.1. p.921-2.102 BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. op.cit. p.309.103 Idem, p.304. A argumentação de Bonfim não desenvolve este ponto específico, de modo que os termosda homologia não ficam conceitualmente determinados.104  Conforme FARIA, Maria Alice de Oliveira.  Astarte e a espiral. op.cit. Em especial, por exemplo,p.150. BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho.  Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974.p.161-3.

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      Álvares de Azevedo, ao assimilar propostas desses autores para o interior

    da cultura brasileira, reforçou ligações entre as idéias estéticas nacionais e

    estrangeiras. No entanto, além disso, interferiu na dinâmica interna do sistema

    de idéias do país. O negativismo de Azevedo destoa, de acordo com Dante

    Moreira Leite, de uma tendência de representação da “grandeza da natureza

    tropical” no Brasil, levada à condição de estereótipo105. Em uma passagem de

    Macário , comentada por Leite106, o personagem principal contesta a

    representação positiva da natureza brasileira, afirmando que “tudo isto é

    sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade!”107.

    Para aceitar, em termos metodológicos, as idéias de Manoel Bonfim sobre

    o poeta, seria preciso aceitar a premissa de que exista uma “alma brasileira”,

    homogênea e bem caracterizada, uma unidade que represente a identidade

    nacional em sua essência, a realidade em seu conjunto. Essa premissa é

    inviável, e sua fragilidade fica mais exposta diante da importância assumida na

    produção do país, em vários autores, de um “conceito agonístico de nação”,

    que ressalta tensões e impasses, explicado por Alfredo Bosi 108.

    Dentro dessa linha de raciocínio, para propor uma homologia entre a

    estética de Azevedo e a realidade brasileira, uma mediação consistente seria

    um texto de Augusto Meyer, que defende que, no romantismo, “o paradoxo era

    uma conseqüência inevitável das condições de desterro cultural em que

    105 LEITE, Dante Moreira. Romantismo: a independência e a formação de uma imagem positiva do Brasile dos brasileiros. In: ____. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983. p.181.106 Idem, p.182.107 AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. op.cit. v.2. p.66.108 BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. In: V.V.A.A. Eurípedes Simões de Paula: in memoriam. São

    Paulo: FFLCH-USP, 1983. Em especial, p.41 e 44.

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    vivíamos”. A presença de elementos estrangeiros em nossa literatura foi

    explicada por ele do seguinte modo.

    “Tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade da

    nossa consciência nacional, sem lastro de tradiçõessedimentadas, capaz de alimentar a obra literáriaprescindindo do arrimo de influências peregrinas [ em umaterra em que ] tudo ainda é conjetural, problemático econjugado no futuro”109.

    Os trabalhos de Faria e Barboza, ao apresentarem a relação ambivalente

    de Azevedo com Musset e Byron, respectivamente, expondo que o poeta

    brasileiro assimilava elementos mas não os reproduzia passivamente, sugerem

    que o autor, mesmo vinculado aos modelos externos, guardava

    especificidades. Essa ambivalência estaria relacionada ao “desterro cultural”

    de que fala Meyer, resultante de contradições políticas e econômicas da

    sociedade brasileira oitocentista.

    Álvares de Azevedo não chegou a formular um conceito bem determinado

    de nacionalismo, e não pretendeu assumir compromisso nesse sentido.

    Elaborou uma reflexão, incipiente e metodologicamente imprecisa, a respeito

    dos critérios de definição de nacionalidade em literatura. Dessa reflexão, cabe

    resgatar um ponto.

    Em uma passagem de Hispania , parte de seu estudo Literatura e

    civilização em Portugal, o poeta escreve que acredita em uma necessária

    integração entre língua e literatura - “sem língua à parte não há literatura à

    109  MEYER, Augusto. Nota preliminar. In: ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro:Aguilar, 1958. v.2. p.22-4.

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    parte”110. Esse argumento poderia funcionar como premissa da idéia de que as

    literaturas portuguesa e brasileira constituiriam um único sistema. Não é bem

    isso o que Azevedo pensa. O curso de seu raciocínio encaminha para dois

    desdobramentos. O primeiro, polemizar a respeito da “brasilidade” de autores

    como Santa Rita Durão, Alvarenga, Basílio da Gama e Tomás Antônio

    Gonzaga. Diz ele: “os heróis do Uraguai e do Caramuru eram portugueses.

    Não há nada nesses homens que reslumbre brasileirismo”111.

    O conceito de “brasileirismo”, estritamente, não está definido. Isso permite

    a Azevedo um segundo desdobramento: a possibilidade de assimilação para

    nossa literatura de autores portugueses.

    “(...) por causa de Durão, não podemos chamar Camõesnosso; por causa, por causa de quem?... (de Alvarenga?)nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos deBocage!”112 

    Nas páginas que dedica a Bocage, Azevedo ressalta, como qualidades, os

    traços melancólicos do autor. Caracteriza-o como “bem infeliz”113, solitário,

     jogado na ausência de luz, “sofrendo da dor no coração”114, marcado pela

    saudade115, ébrio, incerto, desesperado116, dotado de “imaginação ardente”117,

    autor de poesia “tão pura em sua melancolia”118. Ele acredita que em Bocage

    “traduz-se uma era inteira. É o espelho onde passa com sua flutuação de luz e

    sombra no roxo crepuscular de uma nação a hora turva em que tudo se agita

    110 AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.2. p. 339.111  Idem, p.341.112  Idem, p.340.113  Idem, p.385.114  Idem, p.377.115  Idem, p.383.116  Idem, p.379.117  Idem, p.381.

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    lugubremente, como por um enterro ou um nascer doloroso (...) Portugal se

    mergulhara no crepúsculo”119. A premissa da argumentação de Azevedo

    consiste em que traços essenciais de um país podem ser encontrados em sua

    literatura. O mal-estar da civilização portuguesa, suas frustrações, seu

    “crepúsculo”, estariam traduzidos na melancolia de Bocage.

    As idéias de Azevedo sugerem que Camões e Bocage mereçam ser

    reconhecidos como “nossos”, isto é, como brasileiros, mais do que Alvarenga

    ou Durão, e não como “estrangeiros”. Seus comentários sobre Camões são

    mais curtos, e não autorizam especulações tanto quanto as idéias sobre

    Bocage. Na medida em que a melancolia deste, acentuada insistentemente

    por Azevedo, traduz o “crepúsculo” português, e se Bocage não merece ser

    tratado como “estrangeiro”, temos um caminho aberto para a analogia.

    Uma das razões de Álvares de Azevedo valorizar tanto esse poeta

    português está em que nele encontra elementos de seus próprios interesses

    estéticos, e de sua melancolia. Um desdobramento natural dessas afinidades

    eletivas estaria em uma expectativa teórica, por parte de Azevedo, de que sua

    produção traduzisse, de algum modo, a situação brasileira.

    Não há dados textuais suficientes para afirmar, com segurança, que

    Azevedo aplicaria esses pressupostos a si próprio, com uma consciência

    minuciosa a respeito das implicações estético-políticas de sua produção.

    Podemos apenas supor, a partir dos comentários sobre literatura portuguesa,

    que, mesmo não discutindo diretamente, na maioria de seus textos, temas

    118  Idem, p.382.119  Idem, p.387.

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    cruciais da época, mesmo passando ao largo de questões como o escravismo

    e a desigualdade social, acreditava que a melancolia de sua produção, tal

    como a de Bocage, traduzisse, de algum modo, o mal-estar de sua sociedade.

    Seus dualismos estariam, nesse sentido, ligados ao “paradoxo” descrito por

    Augusto Meyer. Se aceitas essas premissas, a leitura que Azevedo sugeriria

    de sua própria produção, através de sua compreensão do poeta português,

    estaria associada a uma idéia cara ao romantismo alemão: o olhar mimetiza o

    objeto; para apreender uma realidade contraditória, é necessário ter uma

    atitude de percepção ambivalente 120. O dualismo e a melancolia de Azevedo

    seriam, para essa perspectiva de leitura, historicamente motivados.

    120  Conforme a teoria da ironia exposta em WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo:EDUSP/Herder, 1967. v.2. p.13.

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    2. A melancolia

    And I miss youlike the deserts miss the rain

    Tracey Thorn, Missing

    2.1. Conceito de melancolia

    A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, comaquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, naverdade.Guimarães Rosa, A terceira margem do rio  

    2.1.1. Origens

    A criação do conceito de melancolia é atribuída a Hipócrates, que a define,

    em um aforismo, como um estado de tristeza e medo  de longa duração121. Ele

    se refere aos melancólicos afirmando que “seu estado mental é perturbado”122.

    Essas formulações tiveram um desdobramento importante na obra de

    Constantinus Africanus, autor árabe medieval estudado por Klibansky,

    Panofsky e Saxl123 e Walter Benjamin124. No início de seu livro De melancholia ,

    lê-se:

    “Os acidentes que a partir dela [da melancolia] sucedem naalma parecem ser o medo e a tristeza. Ambos são péssimosporque confundem a alma.Com efeito, a definição de tristeza é a perda do muitointensamente amado.

    121 Trata-se do Aforismo 23 do livro VI de seus Aforismos. “Se o medo e a tristeza duram muito tempo, talestado é próprio da melancolia”. Conforme PIGEAUD, Jackie. Présentation. op.cit. p.58. e CORDÁS,Táki Athanássios. Do mal-humorado ao mau humor. In: ____ et alii.  Distimia.  Porto Alegre: ArtesMédicas, 1997. p.15.122 HIPÓCRATES, apud TELLENBACH, Hubertus. La mélancolie. Paris: PUF, 1979. p.24.123 KLIBANSKY, PANOFSKY & SAXL. Saturne et la mélancolie. op.cit. p.143-9.124 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. op.cit. p.168-9.

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    O medo é a suspeita de que algo ocasionará dano.”125 

    A noção de tristeza em Constantinus é desenvolvida como uma teoria da

    perda. Melancólicos são, entre outros, os “que perderam seus filhos e amigos

    mais queridos, ou algo precioso que não puderam restaurar”126. Como se

    observa, o melancólico estaria numa espécie de ponto-chave tenso, a partir do

    qual vê com sofrimento o passado, em razão das perdas, e se perturba com o

    futuro, pelo medo de um possível dano.

    A partir dessa base, Constantinus elabora uma série de reflexões de cunho

    médico, para estabelecer relações de causa e efeito entre problemas físicos e

    emocionais. O livro tem como propósito identificar as características essenciais

    do comportamento melancólico, mas o autor relativiza sua própria

    argumentação afirmando que qualquer melancolia é difícil de curar, e que nada

    é pior do que uma mente perturbada127. De acordo com Constantinus, apoiado

    em Rufus de Éfeso, “os acidentes melancólicos são incompreensíveis”128.

    Tanto em Hipócrates como em Constantinus, a melancolia é apresentada

    como uma doença129. Para o primeiro, a formação da melancolia, com a bile

    negra, decorre de uma degradação do sangue130, de uma putrefação, que