Godboy: O Garoto Deus - Amostra 1 - Episódio 1

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Imagine o que você seria capaz de realizar se sua vida fosse a história de um livro. Em uma ficção não há limites e você poderia ser tudo que você quisesse... se o autor da sua história assim permitisse. Assim é a vida do protagonista deste livro, um garoto que possui poderes ilimitados para fazer tudo o que já está escrito. Cuidado: este livro pode te causar confusão mental, desorientação e a sensação de que sua vida não passa de um amontoado de palavras em algum livro cujo leitor está noutro plano de existência.

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episódio 1

— Eu estava pensando em escrever um outro livro – diz o garoto.

— Também de ficção? – diz o amigo.

— Mais ou menos... Um livro sobre um garoto que está escrevendo

um livro sobre um garoto que pode fazer tudo o que quiser, como

se fosse Deus. Mas eu não sei o que escrever, nem como terminar.

Mal inventei um nome para o protagonista.

— Ah... Ele podia usar seus poderes, depois ver que alguma coisa

que fez não é certo, apesar de ser Deus.

— É... Podia até ser... Mas eu queria fazer algo que falasse sobre

tudo. Sem a pretensão de ser original e que a tudo fizesse

referência. Essa própria ideia inicial me faz lembrar o filme

adaptação.

— É... E esse lance de ser Deus também já foi usado em vários

filmes.

— Sim, mas ele não iria ser Deus porque Deus lhe teria concedido

seus poderes, ou porque acharia um artefato mágico, coisa e tal…

— E como iria ser?

— Ele iria ser Deus pelo simples fato de acreditar que pode fazer

tudo.

O garoto toma mais um gole do suco e continua:

— A gente sabe que na vida real isso seria estranho, apesar de ser

virtualmente possível. Mas, a gente não consegue acreditar de

verdade. Acreditar mesmo! Sabe?

— Sei... – diz o outro com um pouco de comida na boca.

— Então ele, o personagem do meu livro, pensa: “E se minha vida

fosse a história de um livro?”... Como num livro tudo é possível,

ele pode fazer o que quiser, pois a realidade dele é apenas a ideia

de alguma outra pessoa que está escrevendo sua história.

— É, parece legal... Você deve escrever mesmo.

— Se é que já não existe alguém escrevendo essa história por

mim... Escrevendo a minha vida.

— Você acha que nossa vida pode ser simplesmente um livro? Que

autor teria a capacidade de criar um mundo todo como o nosso?

Tão cheio de relações e detalhes?

— Primeiro: nossa vida pode ser um livro. Segundo: Deus não seria

o autor? E terceiro: se o livro estivesse começando agora, o

escritor não teria tido tempo de descrever todo nosso mundo e,

para ele, existiriam apenas nós dois.

— Bom... Esse papo tá muito legal, apesar de eu não acreditar que

estava conversando sobre esse tipo de viagem, mas tudo bem... Eu

tenho que ir, senão vou chegar atrasado pra aula.

— Beleza... Falou!

O amigo se levanta e paga sua conta. E, enquanto isso, o garoto

termina sua refeição. Fica um tempo pensando, como se seus

pensamentos fossem palavras lidas por alguém. Como se ele fosse o

narrador de uma história, para um leitor curioso ou desocupado que,

dentre tantas histórias para serem lidas, escolheu logo esta.

* Como acreditar que posso tudo? De onde vem essa certeza do

extraordinário? Como fazer para aceitar que posso voar, assim como é

possível existir este vidro de vinagre? Só a existência deste frasco já é

uma coisa inacreditável! Mas nós nos acostumamos a aceitar que ele

existe. Por que não nos acostumarmos com a ideia de que podemos de

repente sumir e... Ou dar um beijo naquela gatinha que vai passando e

que nunca verei de novo? *

O garoto limpa a boca, levanta-se, põe a mochila nas costas, paga

sua conta e pega o caminho do ponto de ônibus. Andando um pouco

avoado, por estar com essa ideia fixa de ser Deus, ele fita o chão, ou o

céu, tentando acreditar que seria possível fazer tudo o que desejasse,

simplesmente por querer.

Invadindo as profundezas dos seus embolados monólogos mentais

um crescendo de um grito ridiculamente agudo e persistente chama-lhe a

atenção e quando ele olha calmamente para sua direita vê um carro em

alta velocidade vindo em sua direção. No para-brisa ele enxerga seu

reflexo e dentro de seus olhos refletidos no vidro ele continua se vendo

infinitamente.

Aquela seria sua última chance de poder acreditar em algo, seria a

prova final. Serenamente ele estica o seu braço e, com o punho direito

firmemente cerrado, leva a mão em direção ao capô do carro. Como se

percebesse que os outros na rua achavam aquilo absurdo insistiu apenas

pelo gosto da contradição.

Quando ocorre o impacto uma orquestra de metais se retorcendo

brindam aquele momento tão inesperado. O garoto não se mexe um

milímetro e o carro empina a traseira. O vidro se racha aos poucos e se

estilhaça enquanto a motorista do carro o atravessa sendo lançada ao ar.

Tudo acontece muito devagar, como nas cenas em câmera lenta utilizadas

até a exaustão pelos cineastas. O garoto se pergunta por que se colocaria

uma descrição dessas em seu livro a não ser por modismo, já que, para

fins dramáticos, o autor poderia escrever de outro modo. Mas aconteceu

assim, porque parecia mais instintivo, pois as coisas aconteciam mais

como se fossem uma memória emergente do que um fato real. E, neste

momento, ele percebeu que podia: ele podia tudo!

Os cacos do vidro e os pedaços da lataria voam contra ele. A

motorista voa sobre sua cabeça. Para evitar que ela se estatelasse no

chão, ele agarra seu braço com a mão esquerda e, por alguns segundos,

ela ondula lentamente, como uma bandeira resistindo ao arrasto do

vento.

Com as rodas dianteiras quase enterradas no asfalto, o carro

continua empinando, cada vez mais lentamente. O capô se dobra para

abraçar o garoto e as rodas dianteiras se entortam para fora atirando as

calotas para longe, rodopiando com um zunido grave. Os cabos e

mecanismos do motor cedem ao impacto e começam a estourar. Uma

nuvem de fumaça é expelida com um forte chiado e começa a cobrir todo

o local. Em poucos segundos nada mais pode ser visto.

Só é possível ouvir um clangor e um pouco da fumaça se dispersa.

O carro havia caído para trás. Em meio às nuvens de fumaça é possível

ver dois vultos: o do garoto e o da motorista, que ainda pairava no ar. Ele

a desce lentamente, como se fosse uma pluma e a deita no chão.

Pessoas se aproximam e o garoto a abraça. Muito ferida e

ensanguentada, ela abre os olhos com dificuldade e olha para ele.

— Deixe-me morrer – ela diz com dificuldade — Por favor.

— Sim... Entendo – responde o garoto.

Ela desfalece. E ele, sem um pingo de remorso, levanta-se e

continua caminhando em direção ao ponto de ônibus.

— Espere! – gritam as pessoas.

— Como fez isso?

— Ela está bem?

— Quem é você?

Lentamente o garoto para, olha por cima do ombro esquerdo,

esboça um sorriso maroto e diz com uma voz baixa, quase rouca:

— Eu tudo posso, ela está morta e… podem me chamar de Godboy.

j.r.daher/2004

publicado no Kindle/2014

Ilustrações: Amanda Yoshiizumi e Danilo Casacurta