HÁBITO E MEMÓRIA: RELAÇÕES ENTRE TOMÁS DE AQUINO … · especialmente em relação a outros...
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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015
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HÁBITO E MEMÓRIA: RELAÇÕES ENTRE TOMÁS DE AQUINO E A NEUROCIÊNCIA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
BOVETO, Lais
OLIVEIRA, Terezinha
Aspectos introdutórios da pesquisa
Na pesquisa realizada para a obtenção do título de mestre, analisamos o conceito
de hábito norteados pela perspectiva de Aristóteles (384-322 a.C.) e Tomás de Aquino
(1225-1274). Verificamos que as fontes históricas, sejam imagens ou escritos,
demonstram condições da existência humana, visto que podem, por um lado, indicar
novos hábitos – que ainda não foram desenvolvidos naquele momento histórico – ou,
por outro, reforçar hábitos existentes e que subsistirão por várias gerações. Isso denota a
indissociabilidade entre as ações individuais e o formato que a sociedade apresenta.
Em nosso estudo, foi possível assimilar o hábito como algo que permite que o
homem desenvolva habilidades e qualidades estáveis, que só podem ser modificadas ou
eliminadas com muita dificuldade, não se tratam, assim, somente de ações irrefletidas,
ou involuntárias. Os hábitos indicam características de cunho individual, visto que se
formam na memória de cada pessoa, mas, que quando são colocadas em prática,
tornam-se parte do ‘corpo’ social. A formação dos hábitos de cada pessoa principia no
nascimento, entretanto, fundamenta-se naqueles já desenvolvidos pelas gerações
precedentes. Assim, a cultura, os costumes, os valores, as ciências conservam-se e
sofrem transformações que ficam impressas em nossa mente. Além de constituir a
memória individual, os hábitos constituem – e são constituídos – pela cultura, pelos
valores e costumes sociais, ou pelo que muitos autores denominam memória coletiva. É
possível observar, portanto, que há uma importante relação entre os conceitos de hábito
e de memória. A partir dessa observação, e de um primeiro contato com a biologia do
cérebro, buscamos verificar as possibilidades de conjugar, no campo da história da
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educação, um estudo abrangente que, para além dos aspectos culturais, econômicos e
políticos, destacasse o desenvolvimento das ciências que visam explicar o
funcionamento da mente humana. Acreditamos que essas ciências podem oferecer um
caminho para o entendimento da educação, especialmente no que concerne à
compreensão dos mecanismos de memória e, por conseguinte, de aprendizagem.
Ao desenvolvermos hábitos, abrimos espaço para que nosso intelecto desenvolva
novas formas de pensar e agir, para constituir novas memórias. Muitas vezes,
atribuímos a esse novo formato o surgimento de algo completamente novo, sem
precedentes, desvinculado das formas anteriores. Contudo, na história é possível
observar que tanto o desenvolvimento mental quanto o material dependem do acúmulo
de conhecimentos e do processo de transmissão desses conhecimentos para as gerações
subsequentes.
Para Aristóteles, aquilo que é formado pelos hábitos dificilmente é modificado
por argumentos. Assim, se um jovem aprendeu desde cedo a agir segundo suas paixões,
é improvável que compreenda o raciocínio de alguém que tente convencê-lo a agir com
a razão. “[...] a alma do discípulo tem que ser previamente preparada através do cultivo
de hábitos, de maneira que ele saiba e possa gostar do que é certo e desgostar do que é
errado [...].” (ARISTÓTELES, 2009, p. 314). Isso revela o caráter estável que o hábito
confere às nossas práticas cotidianas. O modo como agimos na sociedade depende, em
grande medida dos hábitos que desenvolvemos, pois as ações longamente refletidas,
pensadas, elaboradas são muito menos utilizadas no dia a dia do que aquelas que
realizamos por hábito.
Concordante com a concepção aristotélica, Tomás de Aquino considera que não
é suficiente ao homem ter muita instrução para ser virtuoso; a ação repetida é que
formará o hábito e, com ele, a virtude (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 131-132). A
nosso ver, o mestre medieval aponta uma descrição da natureza humana que não é
idealizada, porém, é absolutamente otimista. Não é idealizada, pois admite que o
homem nem sempre agirá de acordo com a reta razão, mesmo possuindo muito
conhecimento. É otimista, pois atribui ao homem a capacidade de se aperfeiçoar sempre
e cada vez mais. A natureza do homem pressupõe esse embate e equilíbrio de forças
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contrárias que nos confere liberdade, por meio desses processos é que escolhemos como
agir, diferenciando o certo do errado e optando por um caminho ou outro na vida.
Em nossa pesquisa inicial, verificamos que a neurociência tem procurado
conjugar as pesquisas psicológicas com as pesquisas fisiológicas. A observação do
comportamento foi incorporada à análise da anatomia do cérebro, o que provocou
grande avanço no entendimento dos mecanismos de memória e aprendizagem. No
entanto, ainda que a filosofia apareça como um coadjuvante importante destas
pesquisas, normalmente, não há um aprofundamento na relação entre as questões
filosóficas sobre a mente e as descobertas atuais da biologia cerebral. No âmbito da
educação, esta lacuna é muito evidente, pois os estudos são realizados ou no campo da
psicopedagogia, com ênfase em aspectos funcionais; ou no campo dos fundamentos
educacionais, com mais destaque a aspectos culturais, políticos e econômicos. De certo
modo, isso reflete a dissociação entre a teoria e a prática tão frequente nessa área e que
proporciona poucos avanços à compreensão e da educação.
Dessa maneira, defendemos a ideia de que nossos estudos podem convergir para
a harmonização entre as questões clássicas da filosofia e as atuais descobertas a respeito
do funcionamento do cérebro. O enquadramento do tema na área da História da
Educação se deve, justamente, a essa necessidade de uma abordagem ampla dos
conceitos de hábito e memória. Por meio do entendimento de que a História é
multidisciplinar (BLOCH, 2001), uma vez que trata da produção mental e material da
humanidade, pretendemos analisar como os conceitos de hábito e de memória se
desenvolveram em campos como a Filosofia e a Biologia/Neurociência. Essas grandes
áreas têm contribuído com a educação há muito tempo, porém, como já afirmamos,
geralmente, os estudos ficam circunscritos a apenas uma delas. Por esse motivo,
consideramos relevante para a Educação que essa análise seja realizada por meio da
História, pois esta, a nosso ver, possibilita visualizar as ações humanas de maneira
ampla e não, necessariamente, delimitadas a uma ou outra área do conhecimento. Pela
mesma razão, optamos por analisar conceitos que evidenciam a relação teoria e prática
como aspectos indissociáveis na sociedade.
Para que essa tarefa seja possível, pretendemos nos concentrar na abordagem de
Tomás de Aquino, na Suma Teológica, sobre os conceitos de memória e de hábito –
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mais especificamente, nas questões 49 a 55 do volume IV e questões 47 a 49 do volume
V. Nas formulações do mestre medieval temos a possibilidade de lidar com as questões
clássicas da filosofia sobre a mente, a memória e o comportamento humanos. O
contraponto será estabelecido por meio do estudo da obra Em busca da memória de Eric
Kandel, na qual o autor apresenta a história de sua própria vida entrelaçada à história da
busca pelo entendimento científico da mente. Assim, Kandel parte da psicanálise e dos
estudos da psicologia comportamental – ele mesmo iniciou suas pesquisas como
psicanalista – para adentrar na biologia e alcançar o feito de explicar os mecanismos
neurais responsáveis pela formação da memória – o que lhe rendeu o prêmio Nobel em
Medicina em 2000.
Esclarecemos que o propósito dessa pesquisa é avaliar em que medida a
compreensão da memória e da aprendizagem depende de uma reflexão que vai além das
descobertas mais atuais da ciência. A contribuição dos autores clássicos, como Tomás
de Aquino, é importante na medida em que permite o acesso a um conjunto de reflexões
que não pertencem somente ao mestre medieval, mas, também, a autores que antes dele
já buscavam respostas para grandes indagações sobre a natureza humana. As novas
descobertas da ciência foram historicamente constituídas por meio dessas reflexões, e é
com essa deferência pelo conhecimento produzido pela humanidade que pretendemos
encaminhar nosso trabalho.
Motivação, justificativas e objetivos para o estudo dos conceitos
O interesse por esse tema surgiu ainda na graduação no curso de Pedagogia, o
estudo dos autores antigos e medievais despertou reflexões sobre o comportamento
humano, sobre moralidade e ética e, especialmente, sobre o papel do conhecimento na
educação. Nesta ocasião, era possível vislumbrar a relação entre os textos clássicos e,
principalmente, as teorias psicológicas, porém, era necessário desenvolver maturidade
intelectual para executar a análise. Desde então, dedicamo-nos ao estudo do conceito de
hábito, procurando tratá-lo conforme sua natureza interdisciplinar.
Recentemente, em março de 2013, foi lançado no Brasil o livro Subliminar:
como o inconsciente influencia nossas vidas, do físico Leonard Mlodinow. A obra
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apresenta um conjunto de pesquisas da neurociência, intercruzadas com as teorias da
psicologia. O autor indica que, hoje, a comunidade científica possui evidências de que
nossas ações são governadas predominantemente pelo inconsciente.
A leitura da obra Subliminar foi, desse modo, um estímulo para a continuação da
pesquisa sobre o conceito de hábito, pois o hábito é justamente o desenvolvimento
dessas ações que julgamos automáticas, provenientes do inconsciente. Desde o
funcionamento dos nossos órgãos, até a direção de um veículo, o cérebro despende
muito mais energia em processos inconscientes, do que nos processos conscientes. Este,
entre outros fatores, levam os pesquisadores a atribuir cada vez menos funções à
consciência que só funciona em relação de dependência com o inconsciente. Segundo
Mlodinow (2013) a neurociência ainda está somente ‘arranhando’ a superfície do
cérebro, há muito ainda por se compreender. Como desconsiderar essas descobertas ao
tentar compreender os processos educacionais e, especialmente, a memória?
Atualmente, há pesquisas que aproximam os estudos histórico-filosóficos (de
diferentes períodos) das pesquisas da neurociência. No caso específico dos estudos
sobre hábito, encontramos dissertações que tratam indiretamente do conceito,
especialmente em relação a outros conceitos aristotélicos como justiça, amizade,
felicidade e ética na área da filosofia. Uma dissertação (O papel do habitus na teoria do
conhecimento: entre Aristóteles, Descartes, Hume, Kant e Bourdieu de Arthur Meucci)
trata diretamente do conceito de habitus, porém com o objetivo de compreender o
habitus científico na Teoria do Conhecimento.
Em relação ao conceito de memória, há muitos trabalhos na área da educação,
em sua maioria tratam de aspectos da memória coletiva recente por meio da recuperação
de instrumentos de aprendizagem (como manuais, imagens, documentos e cadernos
escolares). Algumas teses são direcionadas à compreensão das dificuldades de
aprendizagem e memória, tanto na área das biológicas, quanto na área da educação
especificamente.
Dessa maneira, as finalidades aqui propostas podem se tornar uma importante
contribuição no campo da história da educação. Tanto a relação entre os conceitos de
hábito e de memória, quanto os vínculos entre o pensamento tomasiano e as descobertas
de Kandel, constituem-se em formulações que comumente não são realizadas tendo por
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base a história. Disso decorre a motivação para o projeto, pois é necessário,
especialmente para a compreensão da educação, que tanto as considerações metafísicas,
quanto as descobertas empíricas sejam analisadas à luz da história.
Nesse sentido, é relevante que estes conceitos (hábito e memória) sejam
investigados sob o olhar da história da educação, especialmente, pelo caminho da
totalidade e da longa duração. Consideramos essencial associar as pesquisas no campo
das Ciências Humanas com outros campos do conhecimento, para que possamos
formular um pensamento cada vez mais próximo da totalidade. O homem, como o
‘animal social’ definido por Aristóteles, conjuga em sua existência todas as ciências que
ele próprio desenvolveu. Nossas características individuais estão atreladas às sociais e,
por isso, é importante, como afirmou Cícero (106-43 a.C.), ‘juntar o dividido, unir
futuro e presente, até abraçar todo o quadro da vida’ (CÍCERO, 2005, p. 54).
Base teórica
Marc Bloch afirmou que “Os fatos históricos são, por essência, fatos
psicológicos.” (BLOCH, 2001, p. 157). Com isto, buscou demonstrar que mesmo que os
acontecimentos sofram interferências do mundo físico, a maneira pela qual o homem
atua e estabelece suas relações sociais é que, em última análise, orienta os fatos. Como
exemplo, aponta a Peste Negra que despovoou a Europa, cuja proliferação não ocorreu
senão pelas condições sociais e mentais em que os homens viviam. Desse modo, Bloch
fundamentará nossa análise, tendo em vista que seu entendimento sobre a história
perpassa os conceitos de hábito e memória. Segundo este historiador, a história só pode
ser compreendida de forma inter ou multidisciplinar, uma vez que a atuação do homem
ocorre dessa maneira.
Outro historiador em que nos basearemos é Fernand Braudel (1902-1985). Para
argumentar a favor da longa duração, esse autor aponta que existem ideias permanentes,
‘insistentes’, que se repetem no decorrer da história, atravessam diferentes sociedades e
reverberam sua essência muito tempo depois. Como exemplo, cita a ideia da Cruzada,
que se apresenta essencialmente no século XIV, mas, “[...] toca com um último reflexo
os homens do século XIX.” (BRAUDEL, 1978, p. 51).
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O entendimento útil deveria fazer-se (digo-o e repito-o insistindo) sobre a longa duração, essa estrada essencial da história, não a única mas que coloca por si só todos os grandes problemas das estruturas sociais, presentes e passadas. É a única linguagem que liga a história ao presente, convertendo-a em um todo indissolúvel. (BRAUDEL, 1978, p. 8-9).
Vemos que a longa duração, segundo Braudel, é o caminho para compreender as
estruturas sociais e, portanto, também a educação. Entendemos que, dessa maneira,
aproximamo-nos dos conceitos em diferentes períodos, mas, não deixamos de lado a
noção de que é sempre no – e para o – presente que realizamos nossas formulações.
Ocorre que o tempo presente é aquilo que vivenciamos e somos, e o estudo do passado,
conforme apreendemos com Durkheim (2002, p. 19-20), tem o propósito de aperfeiçoar
o entendimento sobre a natureza e/ou a condição humana. Sendo o aprendizado da
humanidade cumulativo, a complexidade dos processos relativos à formação de hábito e
à memória não pode ser entendida senão por meio de uma perspectiva teórica da
totalidade e da longa duração.
Ainda em relação à metodologia, consideramos relevante reforçar que optamos
por essa abordagem (da totalidade e da longa duração), pois, acima de tudo, percebemos
a educação como parte inseparável das transformações ocorridas no decorrer da história.
Entendemos que não se pode compreender o processo histórico senão com base em sua totalidade, considerando-se tanto as condições de existência dos homens quanto sua consciência. Os homens não fazem a história sem uma base material e sem uma explicação do universo social em que vivem. Seria impensável, por exemplo, a Revolução Francesa sem a Fisiocracia e o Iluminismo, formas da consciência pelas quais os franceses tomaram conhecimento das questões de sua época e explicaram o mundo em que viviam. Mais do que isso, uma e outro constituíram uma espécie de diretriz para a ação dos franceses de então. (MENDES, 2010, p. 471).
De acordo com Mendes, a consciência – as ideias – não está desvinculada das
condições de existência dos homens. Formulações unilaterais da história, que
consideram as condições materiais como reflexos das ideias, ou o contrário, as ideias
como produto das condições materiais, tendem a simplificar a história. Conforme o
autor, “[...] a consciência deve ser entendida como parte integrante da totalidade social
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e, por isso mesmo, indissociável desse todo.” (MENDES, 2010, p. 471). Com isso, a
perspectiva de educação, produção cultural e dos conceitos de hábito e de memória que
assumimos se apoia nessas premissas.
Com efeito, a história sob esta perspectiva possibilita a comunicação entre
diferentes disciplinas, o que, a nosso ver, contribui para compreensão de questões
relativas à educação. Entendemos, assim, que a divisão entre as ciências, ou mesmo da
própria história, deve ser pensada como a divisão de um todo e, novamente, cada parte
só possui sentido na medida em que não perdemos de vista a totalidade. Evidentemente,
temos a consciência de que essa abordagem não simplificará nosso trabalho, mas, é
justamente isso que nos motiva ao estudo.
Assim, a necessidade de memorizar comportamentos e conhecimentos é
primordial para que nossa vida tenha continuidade e não recomece a cada novo
aprendizado. A história da humanidade se apresenta como algo dinâmico que depende
da ação de cada indivíduo. Por outro lado, a existência de cada pessoa só possui sentido
na vida em comum.
Nesse sentido, prosseguimos com a nossa fundamentação teórica em relação aos
conceitos a serem tratados. É possível observar que em vários períodos históricos há
pensadores que se preocuparam em compreender a aquisição de conhecimentos pelo
homem, tanto em termos intelectuais, quanto em termos morais.
Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente, intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto produzida quanto ampliada pela instrução, exigindo, conseqüentemente, experiência e tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito, sendo seu nome derivado, com uma ligeira variação da forma, dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito. Por exemplo, é da natureza da pedra mover-se para baixo, sendo impossível treiná-la para que se mova para cima, [...]. As virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra a natureza. A natureza nos confere a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é aprimorada e amadurecida pelo hábito. (ARISTÓTELES, 2009, p. 67).
Como vemos, o filósofo expressava que a virtude moral não nos é concedida
pela natureza. Recebemos a potência para desenvolver as virtudes morais, mas a
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capacidade de agir de acordo com elas só pode ser adquirida pelo hábito. Ao contrário
das capacidades sensitivas, como a visão, por exemplo, as virtudes morais só podem ser
desenvolvidas pelo exercício constante. Assim, Aristóteles afirma que as ações
determinam a qualidade das disposições, ou seja, “[...] homens se tornam construtores
construindo casas e se tornam tocadores de lira tocando lira. Analogamente, nos
tornamos justos realizando atos justos, moderados realizando atos moderados, corajosos
realizando atos corajosos [...]” (ARISTÓTELES, 2009, p. 68). O hábito pressupõe,
também, a escolha de agir de determinada forma, de acordo com uma disposição.
Constitui-se, assim, no meio pelo qual o homem tem a possibilidade de desenvolver o
equilíbrio entre seus instintos e sua capacidade de utilizar a razão. Depreende-se, assim,
que não nascemos com estas qualidades desenvolvidas e, portanto, é necessário
aprendê-las e praticá-las, até que se tornem hábitos retidos em nossa memória.
Por esse motivo, na percepção de sociedade de Aristóteles, a educação ocupa
uma função central, por meio dela os homens adquirem condições de desempenhar seu
papel social. Junto com a política, a educação visa o bem comum e propicia harmonia
entre os homens – que são, por essência, diferentes. A questão não é torná-los iguais,
mas, fazê-los agir em prol de uma finalidade coletiva (ARISTÓTELES, 1999, p. 178).
A essência da percepção aristotélica de hábito subsiste por muitos séculos, sendo
ainda contemplada na contemporaneidade. Sabemos que muitos outros autores trataram
direta ou indiretamente desse conceito – como Agostinho, Hugo de São Vitor, Anselmo
de Bec, Pedro Abelardo, entre outros –, para a finalidade a que nos propomos, optamos
pela abordagem de Tomás de Aquino. Nele, encontramos não só a reafirmação do
conceito desenvolvido por Aristóteles, mas, a relação entre este e outros escritos antigos
e medievais. Resulta das análises de Tomás de Aquino, uma minuciosa descrição
daquilo que o hábito representa para o homem enquanto ser essencialmente racional e
social. Assim como os demais temas tratados na Suma Teológica, por meio da
abordagem escolástica, o hábito é esquadrinhado e explicado em cada uma de suas
partes.
Tomás de Aquino aponta o hábito como uma qualidade necessária a seres cuja
natureza possui potência e ato, como é o caso do homem, que nasce com
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potencialidades que se tornarão ou não atos, ou seja, realizar-se-ão ou não. Desse modo,
é algo que o homem possui (habere) por meio de ações racionais e de forma duradoura.
Por isso o Filósofo define o hábito como uma “disposição segundo a qual alguém se dispõe bem ou mal”, e no livro II da Ética, diz que “é segundo os hábitos que nos comportamos em relação com as paixões, bem ou mal”. Quando, pois, é um modo em harmonia com a natureza da coisa, então tem a razão de bem; e quando em desarmonia, tem a razão de mal. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 41-42).
Ao retomar o conceito aristotélico, considera que, sendo a natureza humana
racional, o hábito para ser bom deve, também, obedecer à razão. Em relação a ser uma
disposição, entendia que o homem poderia tê-la dirigida tanto para ser favorável à
natureza, quanto contrária. O uso da razão é potencial e, portanto, a formação de hábitos
faz-se necessária justamente para dirigir a disposição para o bem, ou seja, para ações
com base na racionalidade.
QUANTO AO 3º, deve-se dizer que essa diferença, dificilmente removível não distingue o hábito das outras espécies da qualidade, e sim da disposição. Disposição tem dois sentidos: no primeiro é o gênero do hábito, por isso o livro V da Metafísica afirma a disposição na definição do hábito. No segundo, é algo contraposto ao hábito. É a disposição propriamente dita, que se contrapõe ao hábito de duas maneiras: uma, como o perfeito e o imperfeito na mesma espécie: assim a disposição, conservando o nome comum, está inerente ao sujeito imperfeitamente, e por isso, facilmente se perde: enquanto o hábito está inerente perfeitamente, de modo que não se perde com facilidade. Assim, as disposições se tornam hábitos, como a criança em adulto. [...] É por esse motivo que ele [Aristóteles], para provar essa distinção, invoca o linguajar comum, segundo o qual as qualidades que por sua razão são facilmente móveis, se por algum acidente se tornam dificilmente móveis, se chamam hábitos. O contrário sucede com as qualidades que são por natureza dificilmente móveis: pois se alguém domina imperfeitamente uma ciência, a ponto de poder perdê-la com facilidade, diz-se antes estar disposto à ciência do que ter a ciência. Donde se vê que o nome de hábito implica uma certa durabilidade; mas a disposição, não. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 42-43).
Vê-se que, embora o hábito implique em uma disposição, esta não
necessariamente implicará em um hábito. A característica essencial deste é ser
dificilmente removível (difficile mobile), é permitir que o homem faça uso ‘daquilo que
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possui’ quando necessário, seja uma ciência ou uma virtude. Portanto, se a ciência ou a
virtude ainda não estiverem sob o domínio da razão, não se pode dizer que o homem as
possui e, por conseguinte, ainda não se pode denominá-las hábito. Para que haja
harmonia com a natureza, a racionalidade deve estar presente e, também, para que esta
de fato se manifeste, a ação é fundamental. “[...] diz Agostinho ‘É pelo hábito que algo
é realizado quando é preciso’. E diz o Comentador: ‘É pelo hábito que alguém age
quando quer’”. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 44). Nota-se, assim, que o hábito é
uma disposição que se torna estável, por meio da qual é possível agir espontaneamente.
Para refletir sobre a necessidade do hábito, Tomás de Aquino parte da ideia de
que ele não seria necessário, uma vez que a potência já é ordenada bem ou mal ao ato.
No entanto, afirma que a potência visa ao ato, mas, o hábito visa à natureza da coisa.
QUANTO AO 3º, deve-se dizer que não é o mesmo hábito que está para o bem e para o mal, como mais adiante se verá. Mas é a mesma potência que está para o bem e para o mal. Por isso são necessários os hábitos para que as potências sejam determinadas para o bem. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 47).
Assim, o hábito é necessário ao homem justamente porque, potencialmente, ele
poderá agir bem ou mal. Mas, como o hábito se ordena em relação à natureza humana,
então, para que as potências sejam direcionadas para as virtudes, é necessário
disposições perfeitamente desenvolvidas. Dessa maneira, o hábito é imprescindível ao
homem, pois este possui uma natureza suscetível à modificação, pode escolher entre
coisas e ações distintas; para que escolha bem, de forma que seja um ser humano
excelente em relação à sua natureza, é preciso desenvolver hábitos de acordo com as
disposições virtuosas.
Aristóteles e Tomás de Aquino apresentam uma concepção de hábito na qual o
homem é provido de qualidades que o diferenciam dos demais animais na natureza. A
necessidade de desenvolver a razão para a vida em comum é destacada nas
considerações desses autores. Ambos reconhecem que as virtudes não são inatas e
precisam ser exercitadas para que adquiram a estabilidade de um hábito. De fato, a
necessidade de desenvolver hábitos virtuosos é direcionada ao convívio social, pois este
depende tanto do acúmulo de conhecimentos, quando das transformações decorrentes. É
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possível afirmar que, por desenvolver hábitos e ser capaz de memorizar, o homem pode
pensar historicamente, tanto em termos individuais quanto sociais.
É mais comum considerar-se a memória uma faculdade propriamente individual – ou seja, que aparece numa consciência reduzida a seus únicos recursos, isolada dos outros, e capaz de evocar, por vontade ou por acaso, os estados pelos quais passou antes. No entanto, como não é possível questionar o fato de que freqüentemente reintegramos nossas lembranças em um espaço e em um tempo sobre cujas divisões nos entendemos com os outros, de que nos situamos também entre datas que não têm sentido senão em relação aos grupos de que fazíamos parte, admitimos que seja assim mesmo. Entretanto, esta é uma espécie de mínima concessão que, no espírito daqueles que a consentem, não poderia atingir a especificidade da memória individual. (HALBWACHS, 2006, p. 76).
Halbwachs (1877-1945) atenta para a relação entre a memória autobiográfica e a
memória histórica, a primeira pessoal e a segunda social. Uma está atrelada a outra, não
teria sentido possuirmos uma memória pessoal sem que esta estivesse ligada à história
do grupo. Para o autor, os acontecimentos só adquirem o caráter histórico após algum
tempo decorrido, por isso, demoramos em associar cada fase de nossa vida aos
acontecimentos sociais. Basicamente, o tempo coletivo se impõe a todas as memórias
individuais, “[...] precisamente porque não têm origem em nenhuma delas.”
(HALBWACHS, 2006, p. 75). Assim, novamente, a história da humanidade se
apresenta como algo dinâmico que depende da ação de cada indivíduo, porém, a
existência e a história/memória de cada pessoa só possui sentido na vida em comum.
O entendimento sobre a memória possibilita a apreensão da principal função que
torna os seres humanos capazes de acumular conhecimentos e tradições e de pensar
sobre a história – pessoal ou coletiva.
A memória é essencial não apenas para a continuidade da identidade individual, mas também para a transmissão da cultura e para a evolução e a continuidade das sociedades ao longo dos séculos. Embora o tamanho e a estrutura do cérebro humano não tenham mudado desde o surgimento do Homo sapiens no leste da África há aproximadamente 150 mil anos, a capacidade de aprendizagem dos seres humanos e sua memória histórica cresceram ao longo desse período por meio da aprendizagem partilhada – isto é, da transmissão da cultura. A evolução cultural, um modo de adaptação não biológico,
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atua paralelamente à evolução biológica como meio de transmitir o conhecimento do passado e o comportamento adaptativo de geração em geração. Todas as conquistas humanas, desde a Antiguidade até os dias do hoje, são produtos de uma memória partilhada acumulada durante séculos, seja por intermédio dos registros escritos ou de uma tradição oral cuidadosamente preservada. (KANDEL, 2009, p. 24-25).
Na obra Em busca da memória, Kandel amarra sua história pessoal à história das
ciências. O autor menciona fatos de sua vida em Viena no final da década de 1930
(pouco antes de iniciar a Segunda Guerra Mundial) que permaneceram impressos em
sua memória e foram decisivos para que ele constituísse sua personalidade e
direcionasse seus interesses. Os questionamentos sobre o comportamento humano sob o
regime nazista foram motivação para muitos pesquisadores buscarem explicações para
compreender a agressividade e a degeneração. “Como foi possível que uma sociedade
esclarecida abraçasse políticas punitivas e ações enraizadas no desprezo por todo um
povo?” (KANDEL, 2009, p. 44). A conclusão ‘perturbadora’ a qual Kandel chega é que
o avanço cultural não é um elemento capaz de liberar as pessoas de preconceitos e
pensamentos baseados em necessidades primitivas de destruir quem não pertence a seu
grupo. Evidentemente, essa predisposição genética não ocorre sem um conjunto de
circunstâncias favoráveis – no caso do nazismo, o oportunismo daqueles que não
suportavam o sucesso financeiro dos judeus e o antissemitismo racial que ocupou o
lugar do antissemitismo cultural, ou seja, não havia possibilidade de ‘converter’ os
judeus em ‘verdadeiros austríacos’; eles precisavam ser eliminados para a purificação
da raça.
Todos esses fatos, ocorridos quando Kandel tinha 9 anos, determinaram sua
formação e seus interesses nos estudos. Entender como o homem lembra, tornou-se seu
principal objetivo e, para tanto, conjugou estudos na psicanálise, na psicologia e na
biologia. A base biológica da memória passou a ser mais bem compreendida a partir de
suas conclusões. Kandel apresentou da seguinte forma a diferença entre memória
explícita e implícita:
O que usualmente entendemos como memória consciente é chamada, hoje em dia, seguindo a proposição de Squire e Shacter, de memória explícita (ou declarativa). A memória explícita é a recordação
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consciente de pessoas, lugares, objetos, fatos e eventos [...]. A memória inconsciente é chamada atualmente de memória implícita (ou procedural). Essa é a memória que subjaz à habituação, à sensibilização e ao condicionamento clássico, assim como às habilidades motoras e perceptuais, como andar de bicicleta [...]. (KANDEL, 2009, p. 151).
Kandel concentra suas pesquisas, primeiramente, na memória inconsciente,
implícita, que resulta das formas mais simples de aprendizagem: a habituação, a
sensibilização e o condicionamento clássico. Essas aprendizagens geram uma memória
que não é recuperada conscientemente e é responsável por habilidades motoras simples
e rotineiras, mas, também, por movimentos precisos como aqueles envolvidos na
maioria dos esportes. A memória explícita, por sua vez, é mais complexa, é evocada
conscientemente e expressa por meio da linguagem, por imagens ou palavras. Segundo
Kandel, ela é extremamente individual (2009, p. 308), uma vez que para algumas
pessoas ela está sempre presente, para outras, nem tanto. Assim, “[...] a memória
explícita torna possível que nos lancemos no espaço e no tempo e evoquemos eventos e
estados emocionais que desapareceram no passado, mas, continuam de algum modo a
viver em nossas mentes.” (KANDEL, 2009, p. 309). Compreender essa memória passa
a ser a finalidade do trabalho do pesquisador.
Desse modo, por meio das considerações desses autores, pretendemos
compreender a memória e o hábito como meios pelos quais encaminhamos nossos
interesses e escolhas. Sob este aspecto, Aristóteles, Tomás de Aquino e Kandel, em
tempos históricos distintos, apresentam certa convergência. Cada qual procura
estabelecer uma base racional para a compreensão do comportamento humano. Kandel
(2009, p. 23) observa que a junção das teorias psicológicas com a neurociência e a
biologia molecular gerou uma nova ciência da mente que busca, por meio da pesquisa
experimental, responder às grandes questões filosóficas, que fazem parte dos debates de
grandes pensadores há milênios. Para todos os autores citados, a memória e o hábito nos
tornam aquilo que somos, portanto, no campo da educação é essencial a compreensão
de conceitos que são fundamento para a prática educacional (formal ou não).
Referências
Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015
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ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores).
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