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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015 1 HÁBITO E MEMÓRIA: RELAÇÕES ENTRE TOMÁS DE AQUINO E A NEUROCIÊNCIA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BOVETO, Lais OLIVEIRA, Terezinha Aspectos introdutórios da pesquisa Na pesquisa realizada para a obtenção do título de mestre, analisamos o conceito de hábito norteados pela perspectiva de Aristóteles (384-322 a.C.) e Tomás de Aquino (1225-1274). Verificamos que as fontes históricas, sejam imagens ou escritos, demonstram condições da existência humana, visto que podem, por um lado, indicar novos hábitos – que ainda não foram desenvolvidos naquele momento histórico – ou, por outro, reforçar hábitos existentes e que subsistirão por várias gerações. Isso denota a indissociabilidade entre as ações individuais e o formato que a sociedade apresenta. Em nosso estudo, foi possível assimilar o hábito como algo que permite que o homem desenvolva habilidades e qualidades estáveis, que só podem ser modificadas ou eliminadas com muita dificuldade, não se tratam, assim, somente de ações irrefletidas, ou involuntárias. Os hábitos indicam características de cunho individual, visto que se formam na memória de cada pessoa, mas, que quando são colocadas em prática, tornam-se parte do ‘corpo’ social. A formação dos hábitos de cada pessoa principia no nascimento, entretanto, fundamenta-se naqueles já desenvolvidos pelas gerações precedentes. Assim, a cultura, os costumes, os valores, as ciências conservam-se e sofrem transformações que ficam impressas em nossa mente. Além de constituir a memória individual, os hábitos constituem – e são constituídos – pela cultura, pelos valores e costumes sociais, ou pelo que muitos autores denominam memória coletiva. É possível observar, portanto, que há uma importante relação entre os conceitos de hábito e de memória. A partir dessa observação, e de um primeiro contato com a biologia do cérebro, buscamos verificar as possibilidades de conjugar, no campo da história da

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HÁBITO E MEMÓRIA: RELAÇÕES ENTRE TOMÁS DE AQUINO E A NEUROCIÊNCIA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

BOVETO, Lais

OLIVEIRA, Terezinha

Aspectos introdutórios da pesquisa

Na pesquisa realizada para a obtenção do título de mestre, analisamos o conceito

de hábito norteados pela perspectiva de Aristóteles (384-322 a.C.) e Tomás de Aquino

(1225-1274). Verificamos que as fontes históricas, sejam imagens ou escritos,

demonstram condições da existência humana, visto que podem, por um lado, indicar

novos hábitos – que ainda não foram desenvolvidos naquele momento histórico – ou,

por outro, reforçar hábitos existentes e que subsistirão por várias gerações. Isso denota a

indissociabilidade entre as ações individuais e o formato que a sociedade apresenta.

Em nosso estudo, foi possível assimilar o hábito como algo que permite que o

homem desenvolva habilidades e qualidades estáveis, que só podem ser modificadas ou

eliminadas com muita dificuldade, não se tratam, assim, somente de ações irrefletidas,

ou involuntárias. Os hábitos indicam características de cunho individual, visto que se

formam na memória de cada pessoa, mas, que quando são colocadas em prática,

tornam-se parte do ‘corpo’ social. A formação dos hábitos de cada pessoa principia no

nascimento, entretanto, fundamenta-se naqueles já desenvolvidos pelas gerações

precedentes. Assim, a cultura, os costumes, os valores, as ciências conservam-se e

sofrem transformações que ficam impressas em nossa mente. Além de constituir a

memória individual, os hábitos constituem – e são constituídos – pela cultura, pelos

valores e costumes sociais, ou pelo que muitos autores denominam memória coletiva. É

possível observar, portanto, que há uma importante relação entre os conceitos de hábito

e de memória. A partir dessa observação, e de um primeiro contato com a biologia do

cérebro, buscamos verificar as possibilidades de conjugar, no campo da história da

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educação, um estudo abrangente que, para além dos aspectos culturais, econômicos e

políticos, destacasse o desenvolvimento das ciências que visam explicar o

funcionamento da mente humana. Acreditamos que essas ciências podem oferecer um

caminho para o entendimento da educação, especialmente no que concerne à

compreensão dos mecanismos de memória e, por conseguinte, de aprendizagem.

Ao desenvolvermos hábitos, abrimos espaço para que nosso intelecto desenvolva

novas formas de pensar e agir, para constituir novas memórias. Muitas vezes,

atribuímos a esse novo formato o surgimento de algo completamente novo, sem

precedentes, desvinculado das formas anteriores. Contudo, na história é possível

observar que tanto o desenvolvimento mental quanto o material dependem do acúmulo

de conhecimentos e do processo de transmissão desses conhecimentos para as gerações

subsequentes.

Para Aristóteles, aquilo que é formado pelos hábitos dificilmente é modificado

por argumentos. Assim, se um jovem aprendeu desde cedo a agir segundo suas paixões,

é improvável que compreenda o raciocínio de alguém que tente convencê-lo a agir com

a razão. “[...] a alma do discípulo tem que ser previamente preparada através do cultivo

de hábitos, de maneira que ele saiba e possa gostar do que é certo e desgostar do que é

errado [...].” (ARISTÓTELES, 2009, p. 314). Isso revela o caráter estável que o hábito

confere às nossas práticas cotidianas. O modo como agimos na sociedade depende, em

grande medida dos hábitos que desenvolvemos, pois as ações longamente refletidas,

pensadas, elaboradas são muito menos utilizadas no dia a dia do que aquelas que

realizamos por hábito.

Concordante com a concepção aristotélica, Tomás de Aquino considera que não

é suficiente ao homem ter muita instrução para ser virtuoso; a ação repetida é que

formará o hábito e, com ele, a virtude (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 131-132). A

nosso ver, o mestre medieval aponta uma descrição da natureza humana que não é

idealizada, porém, é absolutamente otimista. Não é idealizada, pois admite que o

homem nem sempre agirá de acordo com a reta razão, mesmo possuindo muito

conhecimento. É otimista, pois atribui ao homem a capacidade de se aperfeiçoar sempre

e cada vez mais. A natureza do homem pressupõe esse embate e equilíbrio de forças

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contrárias que nos confere liberdade, por meio desses processos é que escolhemos como

agir, diferenciando o certo do errado e optando por um caminho ou outro na vida.

Em nossa pesquisa inicial, verificamos que a neurociência tem procurado

conjugar as pesquisas psicológicas com as pesquisas fisiológicas. A observação do

comportamento foi incorporada à análise da anatomia do cérebro, o que provocou

grande avanço no entendimento dos mecanismos de memória e aprendizagem. No

entanto, ainda que a filosofia apareça como um coadjuvante importante destas

pesquisas, normalmente, não há um aprofundamento na relação entre as questões

filosóficas sobre a mente e as descobertas atuais da biologia cerebral. No âmbito da

educação, esta lacuna é muito evidente, pois os estudos são realizados ou no campo da

psicopedagogia, com ênfase em aspectos funcionais; ou no campo dos fundamentos

educacionais, com mais destaque a aspectos culturais, políticos e econômicos. De certo

modo, isso reflete a dissociação entre a teoria e a prática tão frequente nessa área e que

proporciona poucos avanços à compreensão e da educação.

Dessa maneira, defendemos a ideia de que nossos estudos podem convergir para

a harmonização entre as questões clássicas da filosofia e as atuais descobertas a respeito

do funcionamento do cérebro. O enquadramento do tema na área da História da

Educação se deve, justamente, a essa necessidade de uma abordagem ampla dos

conceitos de hábito e memória. Por meio do entendimento de que a História é

multidisciplinar (BLOCH, 2001), uma vez que trata da produção mental e material da

humanidade, pretendemos analisar como os conceitos de hábito e de memória se

desenvolveram em campos como a Filosofia e a Biologia/Neurociência. Essas grandes

áreas têm contribuído com a educação há muito tempo, porém, como já afirmamos,

geralmente, os estudos ficam circunscritos a apenas uma delas. Por esse motivo,

consideramos relevante para a Educação que essa análise seja realizada por meio da

História, pois esta, a nosso ver, possibilita visualizar as ações humanas de maneira

ampla e não, necessariamente, delimitadas a uma ou outra área do conhecimento. Pela

mesma razão, optamos por analisar conceitos que evidenciam a relação teoria e prática

como aspectos indissociáveis na sociedade.

Para que essa tarefa seja possível, pretendemos nos concentrar na abordagem de

Tomás de Aquino, na Suma Teológica, sobre os conceitos de memória e de hábito –

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mais especificamente, nas questões 49 a 55 do volume IV e questões 47 a 49 do volume

V. Nas formulações do mestre medieval temos a possibilidade de lidar com as questões

clássicas da filosofia sobre a mente, a memória e o comportamento humanos. O

contraponto será estabelecido por meio do estudo da obra Em busca da memória de Eric

Kandel, na qual o autor apresenta a história de sua própria vida entrelaçada à história da

busca pelo entendimento científico da mente. Assim, Kandel parte da psicanálise e dos

estudos da psicologia comportamental – ele mesmo iniciou suas pesquisas como

psicanalista – para adentrar na biologia e alcançar o feito de explicar os mecanismos

neurais responsáveis pela formação da memória – o que lhe rendeu o prêmio Nobel em

Medicina em 2000.

Esclarecemos que o propósito dessa pesquisa é avaliar em que medida a

compreensão da memória e da aprendizagem depende de uma reflexão que vai além das

descobertas mais atuais da ciência. A contribuição dos autores clássicos, como Tomás

de Aquino, é importante na medida em que permite o acesso a um conjunto de reflexões

que não pertencem somente ao mestre medieval, mas, também, a autores que antes dele

já buscavam respostas para grandes indagações sobre a natureza humana. As novas

descobertas da ciência foram historicamente constituídas por meio dessas reflexões, e é

com essa deferência pelo conhecimento produzido pela humanidade que pretendemos

encaminhar nosso trabalho.

Motivação, justificativas e objetivos para o estudo dos conceitos

O interesse por esse tema surgiu ainda na graduação no curso de Pedagogia, o

estudo dos autores antigos e medievais despertou reflexões sobre o comportamento

humano, sobre moralidade e ética e, especialmente, sobre o papel do conhecimento na

educação. Nesta ocasião, era possível vislumbrar a relação entre os textos clássicos e,

principalmente, as teorias psicológicas, porém, era necessário desenvolver maturidade

intelectual para executar a análise. Desde então, dedicamo-nos ao estudo do conceito de

hábito, procurando tratá-lo conforme sua natureza interdisciplinar.

Recentemente, em março de 2013, foi lançado no Brasil o livro Subliminar:

como o inconsciente influencia nossas vidas, do físico Leonard Mlodinow. A obra

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apresenta um conjunto de pesquisas da neurociência, intercruzadas com as teorias da

psicologia. O autor indica que, hoje, a comunidade científica possui evidências de que

nossas ações são governadas predominantemente pelo inconsciente.

A leitura da obra Subliminar foi, desse modo, um estímulo para a continuação da

pesquisa sobre o conceito de hábito, pois o hábito é justamente o desenvolvimento

dessas ações que julgamos automáticas, provenientes do inconsciente. Desde o

funcionamento dos nossos órgãos, até a direção de um veículo, o cérebro despende

muito mais energia em processos inconscientes, do que nos processos conscientes. Este,

entre outros fatores, levam os pesquisadores a atribuir cada vez menos funções à

consciência que só funciona em relação de dependência com o inconsciente. Segundo

Mlodinow (2013) a neurociência ainda está somente ‘arranhando’ a superfície do

cérebro, há muito ainda por se compreender. Como desconsiderar essas descobertas ao

tentar compreender os processos educacionais e, especialmente, a memória?

Atualmente, há pesquisas que aproximam os estudos histórico-filosóficos (de

diferentes períodos) das pesquisas da neurociência. No caso específico dos estudos

sobre hábito, encontramos dissertações que tratam indiretamente do conceito,

especialmente em relação a outros conceitos aristotélicos como justiça, amizade,

felicidade e ética na área da filosofia. Uma dissertação (O papel do habitus na teoria do

conhecimento: entre Aristóteles, Descartes, Hume, Kant e Bourdieu de Arthur Meucci)

trata diretamente do conceito de habitus, porém com o objetivo de compreender o

habitus científico na Teoria do Conhecimento.

Em relação ao conceito de memória, há muitos trabalhos na área da educação,

em sua maioria tratam de aspectos da memória coletiva recente por meio da recuperação

de instrumentos de aprendizagem (como manuais, imagens, documentos e cadernos

escolares). Algumas teses são direcionadas à compreensão das dificuldades de

aprendizagem e memória, tanto na área das biológicas, quanto na área da educação

especificamente.

Dessa maneira, as finalidades aqui propostas podem se tornar uma importante

contribuição no campo da história da educação. Tanto a relação entre os conceitos de

hábito e de memória, quanto os vínculos entre o pensamento tomasiano e as descobertas

de Kandel, constituem-se em formulações que comumente não são realizadas tendo por

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base a história. Disso decorre a motivação para o projeto, pois é necessário,

especialmente para a compreensão da educação, que tanto as considerações metafísicas,

quanto as descobertas empíricas sejam analisadas à luz da história.

Nesse sentido, é relevante que estes conceitos (hábito e memória) sejam

investigados sob o olhar da história da educação, especialmente, pelo caminho da

totalidade e da longa duração. Consideramos essencial associar as pesquisas no campo

das Ciências Humanas com outros campos do conhecimento, para que possamos

formular um pensamento cada vez mais próximo da totalidade. O homem, como o

‘animal social’ definido por Aristóteles, conjuga em sua existência todas as ciências que

ele próprio desenvolveu. Nossas características individuais estão atreladas às sociais e,

por isso, é importante, como afirmou Cícero (106-43 a.C.), ‘juntar o dividido, unir

futuro e presente, até abraçar todo o quadro da vida’ (CÍCERO, 2005, p. 54).

Base teórica

Marc Bloch afirmou que “Os fatos históricos são, por essência, fatos

psicológicos.” (BLOCH, 2001, p. 157). Com isto, buscou demonstrar que mesmo que os

acontecimentos sofram interferências do mundo físico, a maneira pela qual o homem

atua e estabelece suas relações sociais é que, em última análise, orienta os fatos. Como

exemplo, aponta a Peste Negra que despovoou a Europa, cuja proliferação não ocorreu

senão pelas condições sociais e mentais em que os homens viviam. Desse modo, Bloch

fundamentará nossa análise, tendo em vista que seu entendimento sobre a história

perpassa os conceitos de hábito e memória. Segundo este historiador, a história só pode

ser compreendida de forma inter ou multidisciplinar, uma vez que a atuação do homem

ocorre dessa maneira.

Outro historiador em que nos basearemos é Fernand Braudel (1902-1985). Para

argumentar a favor da longa duração, esse autor aponta que existem ideias permanentes,

‘insistentes’, que se repetem no decorrer da história, atravessam diferentes sociedades e

reverberam sua essência muito tempo depois. Como exemplo, cita a ideia da Cruzada,

que se apresenta essencialmente no século XIV, mas, “[...] toca com um último reflexo

os homens do século XIX.” (BRAUDEL, 1978, p. 51).

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O entendimento útil deveria fazer-se (digo-o e repito-o insistindo) sobre a longa duração, essa estrada essencial da história, não a única mas que coloca por si só todos os grandes problemas das estruturas sociais, presentes e passadas. É a única linguagem que liga a história ao presente, convertendo-a em um todo indissolúvel. (BRAUDEL, 1978, p. 8-9).

Vemos que a longa duração, segundo Braudel, é o caminho para compreender as

estruturas sociais e, portanto, também a educação. Entendemos que, dessa maneira,

aproximamo-nos dos conceitos em diferentes períodos, mas, não deixamos de lado a

noção de que é sempre no – e para o – presente que realizamos nossas formulações.

Ocorre que o tempo presente é aquilo que vivenciamos e somos, e o estudo do passado,

conforme apreendemos com Durkheim (2002, p. 19-20), tem o propósito de aperfeiçoar

o entendimento sobre a natureza e/ou a condição humana. Sendo o aprendizado da

humanidade cumulativo, a complexidade dos processos relativos à formação de hábito e

à memória não pode ser entendida senão por meio de uma perspectiva teórica da

totalidade e da longa duração.

Ainda em relação à metodologia, consideramos relevante reforçar que optamos

por essa abordagem (da totalidade e da longa duração), pois, acima de tudo, percebemos

a educação como parte inseparável das transformações ocorridas no decorrer da história.

Entendemos que não se pode compreender o processo histórico senão com base em sua totalidade, considerando-se tanto as condições de existência dos homens quanto sua consciência. Os homens não fazem a história sem uma base material e sem uma explicação do universo social em que vivem. Seria impensável, por exemplo, a Revolução Francesa sem a Fisiocracia e o Iluminismo, formas da consciência pelas quais os franceses tomaram conhecimento das questões de sua época e explicaram o mundo em que viviam. Mais do que isso, uma e outro constituíram uma espécie de diretriz para a ação dos franceses de então. (MENDES, 2010, p. 471).

De acordo com Mendes, a consciência – as ideias – não está desvinculada das

condições de existência dos homens. Formulações unilaterais da história, que

consideram as condições materiais como reflexos das ideias, ou o contrário, as ideias

como produto das condições materiais, tendem a simplificar a história. Conforme o

autor, “[...] a consciência deve ser entendida como parte integrante da totalidade social

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e, por isso mesmo, indissociável desse todo.” (MENDES, 2010, p. 471). Com isso, a

perspectiva de educação, produção cultural e dos conceitos de hábito e de memória que

assumimos se apoia nessas premissas.

Com efeito, a história sob esta perspectiva possibilita a comunicação entre

diferentes disciplinas, o que, a nosso ver, contribui para compreensão de questões

relativas à educação. Entendemos, assim, que a divisão entre as ciências, ou mesmo da

própria história, deve ser pensada como a divisão de um todo e, novamente, cada parte

só possui sentido na medida em que não perdemos de vista a totalidade. Evidentemente,

temos a consciência de que essa abordagem não simplificará nosso trabalho, mas, é

justamente isso que nos motiva ao estudo.

Assim, a necessidade de memorizar comportamentos e conhecimentos é

primordial para que nossa vida tenha continuidade e não recomece a cada novo

aprendizado. A história da humanidade se apresenta como algo dinâmico que depende

da ação de cada indivíduo. Por outro lado, a existência de cada pessoa só possui sentido

na vida em comum.

Nesse sentido, prosseguimos com a nossa fundamentação teórica em relação aos

conceitos a serem tratados. É possível observar que em vários períodos históricos há

pensadores que se preocuparam em compreender a aquisição de conhecimentos pelo

homem, tanto em termos intelectuais, quanto em termos morais.

Sendo a virtude, como vimos, de dois tipos, nomeadamente, intelectual e moral, a intelectual é majoritariamente tanto produzida quanto ampliada pela instrução, exigindo, conseqüentemente, experiência e tempo, ao passo que a virtude moral ou ética é o produto do hábito, sendo seu nome derivado, com uma ligeira variação da forma, dessa palavra. E, portanto, fica evidente que nenhuma das virtudes morais é em nós engendrada pela natureza, uma vez que nenhuma propriedade natural é passível de ser alterada pelo hábito. Por exemplo, é da natureza da pedra mover-se para baixo, sendo impossível treiná-la para que se mova para cima, [...]. As virtudes, portanto, não são geradas em nós nem através da natureza nem contra a natureza. A natureza nos confere a capacidade de recebê-las, e essa capacidade é aprimorada e amadurecida pelo hábito. (ARISTÓTELES, 2009, p. 67).

Como vemos, o filósofo expressava que a virtude moral não nos é concedida

pela natureza. Recebemos a potência para desenvolver as virtudes morais, mas a

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capacidade de agir de acordo com elas só pode ser adquirida pelo hábito. Ao contrário

das capacidades sensitivas, como a visão, por exemplo, as virtudes morais só podem ser

desenvolvidas pelo exercício constante. Assim, Aristóteles afirma que as ações

determinam a qualidade das disposições, ou seja, “[...] homens se tornam construtores

construindo casas e se tornam tocadores de lira tocando lira. Analogamente, nos

tornamos justos realizando atos justos, moderados realizando atos moderados, corajosos

realizando atos corajosos [...]” (ARISTÓTELES, 2009, p. 68). O hábito pressupõe,

também, a escolha de agir de determinada forma, de acordo com uma disposição.

Constitui-se, assim, no meio pelo qual o homem tem a possibilidade de desenvolver o

equilíbrio entre seus instintos e sua capacidade de utilizar a razão. Depreende-se, assim,

que não nascemos com estas qualidades desenvolvidas e, portanto, é necessário

aprendê-las e praticá-las, até que se tornem hábitos retidos em nossa memória.

Por esse motivo, na percepção de sociedade de Aristóteles, a educação ocupa

uma função central, por meio dela os homens adquirem condições de desempenhar seu

papel social. Junto com a política, a educação visa o bem comum e propicia harmonia

entre os homens – que são, por essência, diferentes. A questão não é torná-los iguais,

mas, fazê-los agir em prol de uma finalidade coletiva (ARISTÓTELES, 1999, p. 178).

A essência da percepção aristotélica de hábito subsiste por muitos séculos, sendo

ainda contemplada na contemporaneidade. Sabemos que muitos outros autores trataram

direta ou indiretamente desse conceito – como Agostinho, Hugo de São Vitor, Anselmo

de Bec, Pedro Abelardo, entre outros –, para a finalidade a que nos propomos, optamos

pela abordagem de Tomás de Aquino. Nele, encontramos não só a reafirmação do

conceito desenvolvido por Aristóteles, mas, a relação entre este e outros escritos antigos

e medievais. Resulta das análises de Tomás de Aquino, uma minuciosa descrição

daquilo que o hábito representa para o homem enquanto ser essencialmente racional e

social. Assim como os demais temas tratados na Suma Teológica, por meio da

abordagem escolástica, o hábito é esquadrinhado e explicado em cada uma de suas

partes.

Tomás de Aquino aponta o hábito como uma qualidade necessária a seres cuja

natureza possui potência e ato, como é o caso do homem, que nasce com

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potencialidades que se tornarão ou não atos, ou seja, realizar-se-ão ou não. Desse modo,

é algo que o homem possui (habere) por meio de ações racionais e de forma duradoura.

Por isso o Filósofo define o hábito como uma “disposição segundo a qual alguém se dispõe bem ou mal”, e no livro II da Ética, diz que “é segundo os hábitos que nos comportamos em relação com as paixões, bem ou mal”. Quando, pois, é um modo em harmonia com a natureza da coisa, então tem a razão de bem; e quando em desarmonia, tem a razão de mal. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 41-42).

Ao retomar o conceito aristotélico, considera que, sendo a natureza humana

racional, o hábito para ser bom deve, também, obedecer à razão. Em relação a ser uma

disposição, entendia que o homem poderia tê-la dirigida tanto para ser favorável à

natureza, quanto contrária. O uso da razão é potencial e, portanto, a formação de hábitos

faz-se necessária justamente para dirigir a disposição para o bem, ou seja, para ações

com base na racionalidade.

QUANTO AO 3º, deve-se dizer que essa diferença, dificilmente removível não distingue o hábito das outras espécies da qualidade, e sim da disposição. Disposição tem dois sentidos: no primeiro é o gênero do hábito, por isso o livro V da Metafísica afirma a disposição na definição do hábito. No segundo, é algo contraposto ao hábito. É a disposição propriamente dita, que se contrapõe ao hábito de duas maneiras: uma, como o perfeito e o imperfeito na mesma espécie: assim a disposição, conservando o nome comum, está inerente ao sujeito imperfeitamente, e por isso, facilmente se perde: enquanto o hábito está inerente perfeitamente, de modo que não se perde com facilidade. Assim, as disposições se tornam hábitos, como a criança em adulto. [...] É por esse motivo que ele [Aristóteles], para provar essa distinção, invoca o linguajar comum, segundo o qual as qualidades que por sua razão são facilmente móveis, se por algum acidente se tornam dificilmente móveis, se chamam hábitos. O contrário sucede com as qualidades que são por natureza dificilmente móveis: pois se alguém domina imperfeitamente uma ciência, a ponto de poder perdê-la com facilidade, diz-se antes estar disposto à ciência do que ter a ciência. Donde se vê que o nome de hábito implica uma certa durabilidade; mas a disposição, não. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 42-43).

Vê-se que, embora o hábito implique em uma disposição, esta não

necessariamente implicará em um hábito. A característica essencial deste é ser

dificilmente removível (difficile mobile), é permitir que o homem faça uso ‘daquilo que

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possui’ quando necessário, seja uma ciência ou uma virtude. Portanto, se a ciência ou a

virtude ainda não estiverem sob o domínio da razão, não se pode dizer que o homem as

possui e, por conseguinte, ainda não se pode denominá-las hábito. Para que haja

harmonia com a natureza, a racionalidade deve estar presente e, também, para que esta

de fato se manifeste, a ação é fundamental. “[...] diz Agostinho ‘É pelo hábito que algo

é realizado quando é preciso’. E diz o Comentador: ‘É pelo hábito que alguém age

quando quer’”. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 44). Nota-se, assim, que o hábito é

uma disposição que se torna estável, por meio da qual é possível agir espontaneamente.

Para refletir sobre a necessidade do hábito, Tomás de Aquino parte da ideia de

que ele não seria necessário, uma vez que a potência já é ordenada bem ou mal ao ato.

No entanto, afirma que a potência visa ao ato, mas, o hábito visa à natureza da coisa.

QUANTO AO 3º, deve-se dizer que não é o mesmo hábito que está para o bem e para o mal, como mais adiante se verá. Mas é a mesma potência que está para o bem e para o mal. Por isso são necessários os hábitos para que as potências sejam determinadas para o bem. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 47).

Assim, o hábito é necessário ao homem justamente porque, potencialmente, ele

poderá agir bem ou mal. Mas, como o hábito se ordena em relação à natureza humana,

então, para que as potências sejam direcionadas para as virtudes, é necessário

disposições perfeitamente desenvolvidas. Dessa maneira, o hábito é imprescindível ao

homem, pois este possui uma natureza suscetível à modificação, pode escolher entre

coisas e ações distintas; para que escolha bem, de forma que seja um ser humano

excelente em relação à sua natureza, é preciso desenvolver hábitos de acordo com as

disposições virtuosas.

Aristóteles e Tomás de Aquino apresentam uma concepção de hábito na qual o

homem é provido de qualidades que o diferenciam dos demais animais na natureza. A

necessidade de desenvolver a razão para a vida em comum é destacada nas

considerações desses autores. Ambos reconhecem que as virtudes não são inatas e

precisam ser exercitadas para que adquiram a estabilidade de um hábito. De fato, a

necessidade de desenvolver hábitos virtuosos é direcionada ao convívio social, pois este

depende tanto do acúmulo de conhecimentos, quando das transformações decorrentes. É

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possível afirmar que, por desenvolver hábitos e ser capaz de memorizar, o homem pode

pensar historicamente, tanto em termos individuais quanto sociais.

É mais comum considerar-se a memória uma faculdade propriamente individual – ou seja, que aparece numa consciência reduzida a seus únicos recursos, isolada dos outros, e capaz de evocar, por vontade ou por acaso, os estados pelos quais passou antes. No entanto, como não é possível questionar o fato de que freqüentemente reintegramos nossas lembranças em um espaço e em um tempo sobre cujas divisões nos entendemos com os outros, de que nos situamos também entre datas que não têm sentido senão em relação aos grupos de que fazíamos parte, admitimos que seja assim mesmo. Entretanto, esta é uma espécie de mínima concessão que, no espírito daqueles que a consentem, não poderia atingir a especificidade da memória individual. (HALBWACHS, 2006, p. 76).

Halbwachs (1877-1945) atenta para a relação entre a memória autobiográfica e a

memória histórica, a primeira pessoal e a segunda social. Uma está atrelada a outra, não

teria sentido possuirmos uma memória pessoal sem que esta estivesse ligada à história

do grupo. Para o autor, os acontecimentos só adquirem o caráter histórico após algum

tempo decorrido, por isso, demoramos em associar cada fase de nossa vida aos

acontecimentos sociais. Basicamente, o tempo coletivo se impõe a todas as memórias

individuais, “[...] precisamente porque não têm origem em nenhuma delas.”

(HALBWACHS, 2006, p. 75). Assim, novamente, a história da humanidade se

apresenta como algo dinâmico que depende da ação de cada indivíduo, porém, a

existência e a história/memória de cada pessoa só possui sentido na vida em comum.

O entendimento sobre a memória possibilita a apreensão da principal função que

torna os seres humanos capazes de acumular conhecimentos e tradições e de pensar

sobre a história – pessoal ou coletiva.

A memória é essencial não apenas para a continuidade da identidade individual, mas também para a transmissão da cultura e para a evolução e a continuidade das sociedades ao longo dos séculos. Embora o tamanho e a estrutura do cérebro humano não tenham mudado desde o surgimento do Homo sapiens no leste da África há aproximadamente 150 mil anos, a capacidade de aprendizagem dos seres humanos e sua memória histórica cresceram ao longo desse período por meio da aprendizagem partilhada – isto é, da transmissão da cultura. A evolução cultural, um modo de adaptação não biológico,

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atua paralelamente à evolução biológica como meio de transmitir o conhecimento do passado e o comportamento adaptativo de geração em geração. Todas as conquistas humanas, desde a Antiguidade até os dias do hoje, são produtos de uma memória partilhada acumulada durante séculos, seja por intermédio dos registros escritos ou de uma tradição oral cuidadosamente preservada. (KANDEL, 2009, p. 24-25).

Na obra Em busca da memória, Kandel amarra sua história pessoal à história das

ciências. O autor menciona fatos de sua vida em Viena no final da década de 1930

(pouco antes de iniciar a Segunda Guerra Mundial) que permaneceram impressos em

sua memória e foram decisivos para que ele constituísse sua personalidade e

direcionasse seus interesses. Os questionamentos sobre o comportamento humano sob o

regime nazista foram motivação para muitos pesquisadores buscarem explicações para

compreender a agressividade e a degeneração. “Como foi possível que uma sociedade

esclarecida abraçasse políticas punitivas e ações enraizadas no desprezo por todo um

povo?” (KANDEL, 2009, p. 44). A conclusão ‘perturbadora’ a qual Kandel chega é que

o avanço cultural não é um elemento capaz de liberar as pessoas de preconceitos e

pensamentos baseados em necessidades primitivas de destruir quem não pertence a seu

grupo. Evidentemente, essa predisposição genética não ocorre sem um conjunto de

circunstâncias favoráveis – no caso do nazismo, o oportunismo daqueles que não

suportavam o sucesso financeiro dos judeus e o antissemitismo racial que ocupou o

lugar do antissemitismo cultural, ou seja, não havia possibilidade de ‘converter’ os

judeus em ‘verdadeiros austríacos’; eles precisavam ser eliminados para a purificação

da raça.

Todos esses fatos, ocorridos quando Kandel tinha 9 anos, determinaram sua

formação e seus interesses nos estudos. Entender como o homem lembra, tornou-se seu

principal objetivo e, para tanto, conjugou estudos na psicanálise, na psicologia e na

biologia. A base biológica da memória passou a ser mais bem compreendida a partir de

suas conclusões. Kandel apresentou da seguinte forma a diferença entre memória

explícita e implícita:

O que usualmente entendemos como memória consciente é chamada, hoje em dia, seguindo a proposição de Squire e Shacter, de memória explícita (ou declarativa). A memória explícita é a recordação

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consciente de pessoas, lugares, objetos, fatos e eventos [...]. A memória inconsciente é chamada atualmente de memória implícita (ou procedural). Essa é a memória que subjaz à habituação, à sensibilização e ao condicionamento clássico, assim como às habilidades motoras e perceptuais, como andar de bicicleta [...]. (KANDEL, 2009, p. 151).

Kandel concentra suas pesquisas, primeiramente, na memória inconsciente,

implícita, que resulta das formas mais simples de aprendizagem: a habituação, a

sensibilização e o condicionamento clássico. Essas aprendizagens geram uma memória

que não é recuperada conscientemente e é responsável por habilidades motoras simples

e rotineiras, mas, também, por movimentos precisos como aqueles envolvidos na

maioria dos esportes. A memória explícita, por sua vez, é mais complexa, é evocada

conscientemente e expressa por meio da linguagem, por imagens ou palavras. Segundo

Kandel, ela é extremamente individual (2009, p. 308), uma vez que para algumas

pessoas ela está sempre presente, para outras, nem tanto. Assim, “[...] a memória

explícita torna possível que nos lancemos no espaço e no tempo e evoquemos eventos e

estados emocionais que desapareceram no passado, mas, continuam de algum modo a

viver em nossas mentes.” (KANDEL, 2009, p. 309). Compreender essa memória passa

a ser a finalidade do trabalho do pesquisador.

Desse modo, por meio das considerações desses autores, pretendemos

compreender a memória e o hábito como meios pelos quais encaminhamos nossos

interesses e escolhas. Sob este aspecto, Aristóteles, Tomás de Aquino e Kandel, em

tempos históricos distintos, apresentam certa convergência. Cada qual procura

estabelecer uma base racional para a compreensão do comportamento humano. Kandel

(2009, p. 23) observa que a junção das teorias psicológicas com a neurociência e a

biologia molecular gerou uma nova ciência da mente que busca, por meio da pesquisa

experimental, responder às grandes questões filosóficas, que fazem parte dos debates de

grandes pensadores há milênios. Para todos os autores citados, a memória e o hábito nos

tornam aquilo que somos, portanto, no campo da educação é essencial a compreensão

de conceitos que são fundamento para a prática educacional (formal ou não).

Referências

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ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os pensadores).

______. Ética a Nicômaco. 3. ed. Bauru, SP: Edipro, 2009.

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