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BRIAN DILLON HIPOCONDRIA: NOVE VIDAS ATORMENTADAS

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BRIAN DILLON

HIPOCONDRIA: NOVE VIDAS ATORMENTADAS

Para Felicity Dunworth

«O meu corpo é aquela parte do mundo que os meus pensamentos conseguem mudar.»

Georg Christoph Lichtenberg, The Waste Books

ÍNDICE

Introdução: Uma História da Hipocondria . . . . . . . . . . . . . . 13

1. A doença inglesa de James Boswell . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

2. Charlotte Brontë: Uma pequena questão de nervos . . . . . . 69

3. Acerca da expressão da emoção: Charles Darwin . . . . . . . 101

4. Florence Nightingale e o privilégio do descontentamento . 129

5. A exaltação de Alice James . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161

6. Os delírios de Daniel Paul Schreber . . . . . . . . . . . . . . . . . 199

7. Marcel Proust e o senso comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

8. Glenn Gould: Não deste mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

9. A doença mágica de Andy Warhol . . . . . . . . . . . . . . . . . . 293

Posfácio: Os dois corpos do rei . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329

Notas acerca das fontes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355

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Introdução

Uma História da Hipocondria

Estava bem há um minuto e agora está mal. Num momento inesperado de solidão, os seus sintomas surgiram e, com eles, o medo. Talvez você e o seu corpo estivessem sozinhos na casa de banho, com tempo de sobra para examinar a pele nua, com tempo suficiente para os seus dedos encontrarem um alto onde não deveria existir alto algum, para o espelho sem vapor revelar uma alergia ou para a sua mão parar quando ia pegar no sabo-nete, com uma pontada obscura a martirizar-lhe as entranhas. Ou talvez tenha acontecido à noite, enquanto estava sozinho ou quando o seu companheiro ou companheira dormia: pouco antes de adormecer, teve uma sensação repentina de alguma coisa a mudar no interior, um despertar lento na escuridão quando uma dor incómoda se intrometeu nos seus sonhos, ou, já madrugada dentro, uma sensação mais difusa de que a mortalidade estava próxima. Talvez fosse de dia, no meio da rotina diária – uma conversa sobre o recente diagnóstico de um colega ouvida por acaso; uma entrevista de rádio com a vítima de uma doença rara e debilitante; um artigo de jornal, lido durante o tempo morto da viagem diária para o emprego, onde reconheceu o seu regime alimentar pobre e os seus hábitos sedentários.

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Independentemente de como a desconfiança se insinuou, nos dias seguintes parece agudizar-se na sua mente. Os seus sintomas parecem apontar para uma doença específica: talvez seja a doença que temeu a vida inteira, ou nos últimos anos; a doença de que um dos seus progenitores faleceu. Os seus primeiros receios come-çam a condensar-se em certezas não menos assustadoras. Sente uma grande necessidade de investigar a sua doença. Sem pensar, ou pensando com demasiada antecedência, insere num motor de busca os seus sintomas e o nome da doença que teme e, inevita-velmente, existem centenas de entradas. Ocupa todo o tempo que tem disponível a analisar os sítios relevantes na Internet; se o seu estilo de vida permitir, muitas horas, e até dias inteiros, poderão escoar-se assim. Tudo começa a rodear os seus sintomas. Por vezes, consegue distrair-se: a dor desaparece, a mancha ou alto parecem menos densos do que no dia anterior. Mas os seus pensamentos não têm a ligeireza ou velocidade necessárias para escapar à força gravitacional do seu medo.

A alteração ainda é invisível para as pessoas que o rodeiam, mas a sua vida mudou para sempre. Em segredo, começa a datar tudo em relação ao momento em que percebeu que algo estava errado. A sua existência anterior parece agora idílica e ilusória, manchada retrospectivamente pelo que estava para vir. No entanto, apesar de tudo ter mudado, não deixa de ser bastante familiar. Já esteve aqui antes, sentiu o mesmo desânimo doentio da descoberta, o mesmo horror a instalar-se lentamente quando a verdade surgiu diante dos seus olhos. E, no entanto, tem a certeza de que desta vez, é diferente. Desta vez, as provas são irrefutáveis.

Porquê, então, esta estranha ponta de esperança quando por fim, passados dias, semanas ou até meses de sofrimento solitário, está na sala de espera do consultório de um médico, a ensaiar a história dos seus sintomas, a preparar-se para expor o seu corpo ao olhar firme e ao veredicto implacável do profissional? No consultório, com o

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rosto ruborizado e o coração a bater rapidamente – a medição da tensão arterial será falseada pela sua ansiedade –, observa o médico a pousar a sua ficha em cima da secretária, ou a ler as notas no computador, e, como um penitente no confessionário, começa a recitar os seus sintomas. Digamos que o problema é no seu pescoço. Ou talvez – como nesta altura o enredo já poderá ter-se ramificado em inúmeras direcções, como uma cultura de bactérias num microscópio – seja o seu peito que o preocupa ou o seu abdó-men. Poderá sentir rigidez nas articulações, dores nos músculos, dormência inexplicável nas extremidades. É muito provável que as entranhas estejam afectadas: talvez tenha crises de indigestão, ata-ques de gases, desconforto ou diarreia. É possível que tenha uma alergia ou comece a sentir comichão ou picadas, apesar de não ser visível qualquer lesão ou erupção. Diz que o coração parece bater com uma força ou rapidez alarmantes; a respiração é superficial ou dolorosa. Dói-lhe a cabeça permanentemente, ou apenas de forma intermitente, sempre em sítios diferentes, ou sempre no mesmo sítio, insistentemente. Curiosamente, sejam quais forem os sinto-mas que apresenta – e poderá ou não ter reparado neste facto –, eles parecem estar concentrados no lado esquerdo do seu corpo. Em resposta a uma pergunta do médico, você admite que a dor não é forte e que não tem a certeza se está a piorar. No entanto, compreendendo agora o terror que o trouxe aqui, diz que pensou que seria importante ver o que se passava.

O tempo – o tempo passado com medo e o tempo que imagina que lhe resta – pareceu contrair-se neste breve inter-lúdio: o encontro crucial entre médico e paciente. No entanto, enquanto o médico faz uma pausa para considerar o que você acabou de descrever e olha novamente de relance para a sua ficha antes de iniciar o exame físico, parece-lhe uma vez mais que o tempo se tornou elástico e se estende à sua volta no consultório, repleto de incerteza.

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No intervalo antes de o médico falar ou pousar as mãos na sua pessoa trémula, você poderá pensar que se esqueceu de referir o seu sintoma mais forte, que é o seguinte: desde que suspeitou de que o seu corpo o traiu, começou a viver na orla da sua própria vida, a afastar-se para um estado de espírito ao mesmo tempo alerta e sonolento. Numa espécie de transe, está constantemente à escuta de comunicações do seu corpo; é como se se tivesse tor-nado médium e os seus órgãos fossem um grupo de fantasmas inquietos, a sussurrar as suas mensagens do outro lado. Na sua vida quotidiana, os entes amados, amigos e colegas começaram a reparar que você está muito ausente. Misteriosos sinais ocasionais dizem-lhes que você não está bem, mas você reparou que essa realidade não parece ter-se registado nas suas mentes. São eles que lhe parecem distraídos, nada perturbados com os sinais cada vez mais óbvios da sua doença. Há muito que você está acostumado a tentar controlar o seu corpo, a neutralizar antecipadamente a sua natureza imprevisível e insubmissa. Agora, parece que tem de cuidar das outras pessoas: tem de persuadi-las, amigos e família, de que há alguma coisa errada. Consegue sentir toda a certeza a desvanecer-se quando o rosto do seu médico, como o rosto do último amigo ou amado a quem confidenciou o seu receio, não evidencia uma expressão de segurança firme. Ultimamente, parece-lhe que ninguém o tem levado, a si ou aos seus sintomas, a sério; agora parece que ninguém, nem sequer o seu médico (que o conhece tão bem), lhe dará a resposta directa de que você necessita tão desesperadamente.

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O que é que este paciente – a que estamos quase a cha-mar hipocondríaco, com tudo o que a palavra implica relativa-mente à realidade dos sintomas e ao género de pessoa que pode

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Introdução

apresentá-los – parece perante o médico ou os familiares, amigos, empregados e colegas que já ouvem há algum tempo a mesma litania de dor ou desconforto, os mesmos medos debatidos, o mesmo egocentrismo transmitido com tédio? Esta não é uma questão que preocupe o hipocondríaco no auge do seu medo. Eu próprio não me lembrei de a colocar no final da adolescência nem na casa dos 20 anos, quando o falecimeto prematuro dos meus pais me levou a acreditar que eu seria o próximo a morrer e comecei a interpretar todos os desconfortos ocasionais como um sinal da temida doença que me levaria. (Agora não consti-tui surpresa descobrir na literatura sobre hipocondria que uma criança que cresce muito perto de doença e morte tem muito mais probabilidades de desenvolver tendências hipocondríacas quando jovem adulto.) E a questão ainda não me ocorre nas ocasiões – estão a tornar-se mais raras à medida que vou enve-lhecendo, embora pense que a meia-idade depressa trará algu-mas preocupações que se manterão – em que a fadiga, o stress ou um longo período de trabalho improdutivo parecem trazer de volta os velhos medos e eu deslizo com demasiada facilidade para os hábitos de pensamento, apreensão e procura de segu-rança que descrevi acima. Só mais tarde, quando as consultas com o médico terminam, com o fim do recital monótono dos meus sintomas e, uma vez mais, com um diagnóstico insignifi-cante, é que penso que figura terei feito perante as pessoas que me rodeiam. Provavelmente, não gostaria de ouvir a resposta.

O hipocondríaco é bem conhecido de todos nós em termos anedóticos. (Isto foi confirmado em cada vez que mencionei que estava a escrever um livro sobre hipocondria: todos conhecemos pelo menos um.) Enquanto estereótipo, o hipocondríaco é uma pessoa bastante desonrosa, uma pessoa que esgota a capacidade de paciência e empatia de todos com as suas simulações de doença, na pior das hipóteses, um parasita dos recursos escassos do sistema de saúde.

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Os hipocondríacos são quase sempre outras pessoas: poucos de nós admitimos os níveis de ilusão e egoísmo que censuramos na personalidade do hipocondríaco. Neste aspecto, comportamo--nos como se a fronteira entre a vigilância sensata ou precaução e a preocupação ou medo patológicos fosse perfeitamente clara, o que não é verdade. Segundo as definições dominantes de um estado de espírito há muito conhecido como hipocondríase, e mais recentemente rebaptizado com o nome de «ansiedade pela saúde», o hipocondríaco é aquela pessoa que suspeita de que uma doença orgânica está presente no seu corpo – ocasionalmente, a desconfiança relaciona-se com doença mental ou até com a própria hipocondria – quando não existem provas médicas para confirmar essa opinião. Mais do que isto, o hipocondríaco terá estabelecido um padrão dessas desconfianças, quase uma carreira. O hipocondríaco tem em comum com o palhaço (pois o hipo-condríaco também é uma figura de diversão) a tendência para repetir o mesmo comportamento, para cometer os mesmos erros, apesar de todas as indicações de que devia desistir. O paciente, que com o tempo não se limita a desconfiar mas se convence finalmente de que está doente, não reagirá à tranquilização pro-fissional dada pelo médico.

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É claro que o carácter hipocondríaco tem muitas outras bizar-rias, algumas das quais podem sugerir a razão pela qual o paciente é tão exasperante para a profissão médica, enquanto outras são um indício das origens possíveis da doença hipocondríaca. (Como veremos, a hipocondria é agora, como tem sido, ela própria, desde há muitos séculos, um diagnóstico.) Por exemplo, o médico fica com a impressão de que o paciente se limitou a exagerar algumas sensações corporais normais: o batimento cardíaco, especialmente

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Introdução

porque ele se sobrepõe a tudo quando temos a cabeça pousada na almofada pela calada da noite; o avanço peristáltico dos alimentos no esófago, os ruídos do estômago ou o movimento de gases nos intestinos; sensações perfeitamente normais de tonturas, fadiga ou fraqueza. O hipocondríaco imagina que a boa saúde é uma condição neutra em que não só nada sinistro ocorre no interior ou à superfície do corpo como nada acontece ao próprio corpo. (Também existe uma espécie de hipocondria que consiste em imaginar que o corpo é um vazio, evacuado por doença ou por forças sobrenaturais.) O paciente pode ter interpretado mal um determinado assunto de conhecimento médico, estatísticas ofi-ciais ou conjecturas dos órgãos de informação, aumentando exa-geradamente um risco insignificante. Pode ter problemas que são bastante reais, quer físicos quer psicológicos, que não pode nem quer abordar, e, em vez disso, sentiu sintomas diferentes. Ou, numa tendência que parece calculada para enfurecer os profissio-nais médicos, pode ser que o paciente, apesar de declarar, por um lado, uma preocupação excessiva com um conjunto de possíveis sintomas, adopte uma atitude descuidada noutros aspectos: dieta, por exemplo, ou hábitos de fumo e bebida. Os hipocondríacos não são mais propensos que o resto da população a cuidarem de si mesmos, a evitarem riscos desnecessários ou até a seguirem um conselho médico. E, em mais uma reviravolta, o profissional pode ficar com a impressão de que o hipocondríaco não procura conse-lho nem tratamento médico, nem sequer pretende que lhe asseve-rem que está bem; procura, sim, uma certeza irrefutável. Pode até parecer que para o hipocondríaco a solidez de uma doença real é preferível ao nevoeiro do optimismo e incerteza que, para a maior parte de nós, quase sempre, é sinal de boa saúde.

As causas destas atitudes e acções não são claras e este livro não pre-tende responder definitivamente à pergunta: «O que é preciso para se ser um hipocondríaco?» Segundo teorias apresentadas no último

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quarto de século, a hipocondríase existe num contínuo com outras patologias que são conhecidas como distúrbios de ansiedade. Tem muito em comum – obsessão, alheamento, repetição, uma recusa em aceitar respostas «racionais» para a situação que é apreendida como difícil – com doenças como a anorexia, o transtorno dismór-fico corporal, o distúrbio obsessivo-compulsivo e o transtorno gene-ralizado como ansiedade. Os hipocondríacos poderão reagir bem a uma forma de psicoterapia, a terapia cognitivo-comportamental, que procura corrigir padrões erróneos de pensamento e acção em vez de abordar uma narrativa de vida profundamente perturbadora ou um conflito inconsciente. A hipocondríase também parece acalmar com um regime de medicação antidepressiva. Segundo esta corrente de pensamento, o que está em questão é a ansiedade em si mesma. O medo do hipocondríaco é fundamentalmente um engano, um erro na sua percepção do corpo e na sua relação com o mundo. A lógica parece evidente: retirar o medo do paciente, deixá-lo fun-cionar não perturbado pela dúvida, equivale, sem dúvida, a curar a hipocondria dessa pessoa. Mas também se está a relegar prematura-mente o hipocondríaco, e o que ele sabe, ou pensa que sabe, para o reino da doença, quando a questão que o hipocondríaco coloca é precisamente esta: como é que sabemos, qualquer um de nós, quando estamos doentes e quando estamos bem?

Esta pergunta suscita uma série de outras questões. Como é possível isolarmos o conhecimento que temos dos nossos corpos da experiência que temos deles? Como podemos ter a certeza desse conhecimento quando o corpo parece mudar todos os dias, a todas as horas? O que seria uma atitude racional ou um nível prático de vigilância relativamente a essas mudanças? A saúde física é, de facto, uma questão de conhecermos os nossos corpos ou de os ignorarmos e nos mantermos alheios aos pro-cessos exactos que funcionam dentro de nós? Mais perturbador: como podemos reflectir sobre a perspectiva da nossa morte, o

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que acontecerá seguramente à medida que a vida avança, e ao mesmo tempo evitar o medo que se apodera do hipocondríaco e o paralisa? Até que ponto devemos deixar, nas nossas vidas quotidianas e nas nossas relações com os outros, que o facto ou o medo da morte se intrometa? Somos pessoas mais saudáveis, ou pessoas melhores, ou pessoas mais criativas, por a reconhe-cermos ou por a ignorarmos?

*

Não somos os primeiros a colocar estas questões. As origens da nossa noção moderna de hipocondria podem ser encontradas em duas correntes de pensamento e sentimento histórico. A primeira é o medo universal da doença e da morte. Nos séculos xvi e xvii, uma série de escritores analisaram esse medo de uma forma par-ticularmente perspicaz, relacionando-o com a fé religiosa, com o conhecimento médico actual e com as capacidades assustadoras da imaginação humana. No seu ensaio Acerca do Poder da Imagi-nação, o aristocrata francês Michel de Montaigne descreve a sua própria susceptibilidade perante a doença e a crise que ela causou na sua experiência do seu corpo:

Sou uma daquelas pessoas que sentem mais fortemente os

golpes poderosos da imaginação. Todos são atingidos por eles,

mas alguns são derrubados. A imaginação causa uma grande

impressão dentro de mim: a minha habilidade consiste em evitá-

-la, não em resistir a ela. Preferia viver entre pessoas que fossem

saudáveis e alegres: a visão de outro homem a sofrer produz

sofrimento físico em mim e a minha sensibilidade apropriou-se

muitas vezes indevidamente dos sentimentos de outra pessoa.

Uma pessoa que tosse persistentemente provoca comichão nos

meus pulmões e na minha garganta.

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Montaigne escreve que a sugestionabilidade da mente e do corpo está bem estabelecida na história e na sua própria experiên-cia. Ouviu falar, por exemplo, num homem que ia ser enforcado e que, apesar de ter sido perdoado no último instante, expirou no cadafalso, «atingido unicamente pela sua imaginação». Leu sobre um rei italiano que depois de assistir a uma luta de tou-ros com cães sonhou a noite inteira com chifres na cabeça: «em consequência disso cresceram-lhe chifres na testa pela pura força da sua imaginação». E o próprio Montaigne, em Vitry, França, conheceu um homem chamado Germane que até aos 22 anos tinha sido uma mulher chamada Marie: «Ele disse que estava a tomar balanço para saltar quando os seus órgãos masculinos apareceram de repente.» Montaigne escreve que é provável que transformações tão espontâneas do corpo humano também afec-tem as pessoas que tentam o destino fingindo que estão doentes. No seu ensaio Acerca de Não Fingir Que Se Está Doente, ele conta histórias de advertência de pessoas que ficaram cegas, coxas ou corcundas devido a estas doenças falsas. O poder da imaginação provoca doença e constitui, em si mesmo, uma espécie de pato-logia. Todavia, o problema da imaginação não pode ser resolvido simplesmente através da adopção de uma atitude mais realista perante o nosso corpo: aparentemente, o corpo é capaz de ardis e enganos, por isso nunca podemos ter a certeza de que o que vemos nele, ou sentimos em nós, é real.

A duplicidade do corpo é um dos temas abordados pelo poeta John Donne no seu extraordinário livro Devotions upon Emergent Occasions (Devoções para ocasiões emergentes), de 1624. Escrito enquanto Donne estava perigosamente doente com uma «febre recorrente» (possivelmente tifo), Devotions descreve a doença desde o seu início, «o primeiro resmungo da doença», passando pelas suas crises e remissões, até à eventual recuperação do autor. Num sentido, é uma obra literalmente devota, pontuada por orações à