Historia da Historiografia

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História da Historiografia revista eletrônica quadrimestral 13 dezembro • 2013

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Historia da Historiagrafia

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  • Histria da

    Historiografiarevista eletrnica quadrimestral

    13dezembro 2013

  • Histriada Historiografia

    issn 1983-9928

  • Conselho Executivo Arthur Alfaix Assis (UnB . Braslia . DF . Brasil)Fabio Wasserman (UBA . Buenos Aires . Argentina)Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropdica . RJ . Brasil)Rodrigo Turin (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)

    Conselho EditorialArthur Alfaix Assis (UnB .Braslia . DF . Brasil)Claudia Beltro (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Durval Muniz de Albuquerque (UFRN . Natal . RN . Brasil) Fabio Wasserman (UBA . Buenos Aires . Argentina)Helena Mollo (UFOP . Mariana . MG . Brasil)Julio Bentivoglio (UFES . Vitria . ES . Brasil)Lucia Maria Paschoal Guimares (UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Pedro Meira Monteiro (Princeton University . Princeton . Estados Unidos)Pedro Spinola Pereira Caldas (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Raquel Glezer (USP . So Paulo . SP . Brasil)Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropdica . RJ . Brasil)Ricardo Salles (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Rodrigo Turin (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Srgio da Mata (UFOP . Mariana . MG . Brasil)Temstocles Cezar (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)Tiago C. P. dos Reis Miranda (Universidade Nova de Lisboa . Lisboa . Portugal)Valdei Lopes de Araujo (UFOP . Mariana . MG . Brasil)

    Conselho ConsultivoAstor Diehl (UPF . Passo Fundo . RS . Brasil) Carlos Fico (UFRJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Carlos Oiti (UFG . Gois . GO . Brasil) Cssio Fernandes (UNIFESP . Guarulhos . SP . Brasil)Chris Lorenz (VU University Amsterdam . Amsterd . Holanda)Denis Bernardes - in memoriam (UFPE . Recife . PE . Brasil)Edgar De Decca (UNICAMP . Campinas . SP . Brasil) Eliana Dutra (UFMG . Belo Horizonte . MG . Brasil)Estevo de Rezende Martins (UnB . Braslia . DF . Brasil) Ewa Domanska (Adam Mickiewicz University . Pozna . Polnia) Fbio Franzini (UNIFESP) . Guarulhos . SP . Brasil)Fernando Catroga (Universidade de Coimbra . Coimbra . Portugal)Fernando Nicolazzi (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)Francisco Murari Pires (USP . So Paulo . SP . Brasil) Franois Hartog (EHESS . Paris . Frana)Frederico de Castro Neves (UFC . Fortaleza . CE . Brasil)Guillermo Zermeo Padilla (Colegio del Mxico . Cidade do Mxico . Mxico) Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University . Stanford . Estados Unidos)Hayden White (Stanford University . Stanford . Estados Unidos) Iris Kantor (USP . So Paulo . SP . Brasil)Jos Carlos Reis (UFMG . Belo Horizonte . MG . Brasil) Jrn Rsen (KI/ UWH . Witten . Alemanha) Jurandir Malerba (PUC-RS . Porto Alegre . RS . Brasil)Keila Grinberg (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Luiz Costa Lima (PUC-Rio/UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil) Manoel Salgado Guimares - in memoriam (UFRJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil) Marco Morel (UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)Marlon Salomon (UFG . Goinia . GO . Brasil)Pascal Payen (Universit de Toulouse II - Le Mirail . Toulouse . Frana)Sanjay Seth (University of London . Londres . Reino Unido)Srgio Campos Matos (Universidade de Lisboa . Lisboa . Portugal)Silvia Petersen (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)

    Secretaria Flvia Florentino Varella (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)

  • Editorao, reviso tcnica e capaFlvia Florentino Varella (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)Joo Carlos Furlani (UFES . Vitria . ES . Brasil)

    RealizaoSociedade Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia (SBTHH)Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Estadual Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO)Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

    ContatoRua Fernandes Vieira, 597/602 Porto Alegre - RS 90035-091 Brasilwww.historiadahistoriografia.com.br [email protected] (31) 3557-9400

    MissoHistria da Historiografia publica artigos, resenhas, entrevistas, textos e documentos historiogrficos de

    interesse para os campos da histria da historiografia, teoria da histria e reas afins. Tem por misses divulgar

    textos de teoria da histria e histria da historiografia, e promover o intercmbio de ideias e resultados de

    pesquisas entre investigadores dessas duas reas correlatas. Num momento em que, no cenrio brasileiro, o crescimento do nmero de peridicos cientficos apenas espelha (se bem que de forma algo distorcida) a

    ampliao dos programas de ps-graduao, consenso que o prximo passo a ser dado o da verticalizao e especializao do perfil das publicaes. HH foi fundada em 2008 exatamente a partir desse diagnstico, e pretende estabelecer-se como uma referncia para os estudiosos das reas de teoria da histria e histria da historiografia no mundo de lngua portuguesa. O peridico uma publicao da Sociedade Brasileira de Teoria e Histria da Historiografia, do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto.

    Ficha Catalogrfica

    Histria da Historiografia. Ouro Preto / Edufop, 2013, nmero 13, dezembro, 2013, 281 p.

    QuadrimestralISSN 1983-9928

    1. Histria - PeridicosCDU 930(05)

  • EDITORIALEDITORIAL

    DOSSIDOSSIER A histria em questo: dilogos com a obra de Manoel Luiz Salgado GuimaresHistory in question: dialogues with the work of Manoel Luiz Salgado Guimares

    ApresentaoIntroduction Temstocles Cezar e Rodrigo Turin Aristteles e a histria, mais uma vezAristotle and History Once MoreFranois Hartog

    Indagaes sobre um mtodo acima de qualquer suspeitaDoubts on a method beyond suspicionFrancisco Murari Pires

    Compilao e plgio: Abreu e Lima e Melo Morais lidos no Instituto Histrico e Geogrfico BrasileiroCompiling and plagiarizing: Abreu e Lima and Melo Morais in the reading of the Brazilian Historical and Geographical InstitutePedro Afonso Cristovo dos Santos

    O historiador enquanto leitor: histria da historiografia e leitura da histria The historian as a reader: history of historiography and the reading of historyFernando Nicolazzi

    Histria da historiografia e memria disciplinar: reflexes sobre um gneroHistory of historiography and disciplinary memory: reflections on a genreRodrigo Turin

    A lio da pedra: usos do passado e cultura materialThe lesson of the stone: uses of the past and material cultureFrancisco Rgis Lopes Ramos e Aline Montenegro Magalhes

    Dilogos histricos e historiogrficos: sculos XIX e XXHistorical and historiographical dialogues: 19th and 20th centuriesMarcia Naxara

    Historiografia, memria e ensino de histria: percursos de uma reflexo Historiography, memory and history teaching: pathways of a reflectionMaria da Glria de Oliveira

    Um Mestre de Rigor: Manoel Luiz Salgado Guimares e a delimitao do campo de estudos de historiografia no BrasilOne Master of Rigor: Manoel Luiz Salgado Guimares and the delimitation of the field of studies in historiography in the BrazilDurval Muniz de Albuquerque Jnior

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  • ARTIGOSARTICLES

    Desarraigo e irona al filo de las nuevas historias: ltimos das coloniales en el Alto Per (1896) de Gabriel Ren MorenoUprooting and irony on the edge of new stories: Gabriel Ren Morenos ltimos das coloniales en el Alto Per (1896)Sergio Meja

    Causa diz-se em quatro sentidos: sobre a hermenutica droyseana e a teoria da causalidade aristotlicaThe four meanings of cause: on Droysens Hermeneutics and Aristotles Theory of CausalityRenata Sammer

    Um debate sobre a descontinuidade temporal: Fernand Braudel, Gaston Bachelard, Gaston Roupnel e Georges GurvitchA polemic on temporal discontinuity: Fernand Braudel, Gaston Bachelard, Gaston Roupnel and Georges GurvitchAndr Fabiano Voigt

    A escrita da histria em Terra Sonmbula de Mia Couto The writing of history in the novel Sleepwalking Land, by Mia CoutoFlavia Renata Machado Paiani

    RESENHASREVIEW ESSAYS

    Questionamentos historiografia do cordel brasileiroQuestioning the historiography of Brazilian cordel literature LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma histria crtica do cordel brasileiro. Rio de Janeiro; So Paulo: Edies Adaga; Luzeiro, 2012, 96 p.Geraldo Magella de Menezes Neto

    Jacques Rancire, cenografias polticasJacques Rancire, political scenographiesRANCIRE, Jacques. La mthode de lgalit: entretien avec Laurent Jeanpierre et Dork Zabanyan. Paris: Bayard, 2012, 333 p.Marlon Salomon

    Lzaros de papel: sobre a arte de reviver manuscritosLazarus of paper: on the art of reviving manuscriptsGREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo moderno. So Paulo: Companhia das Letras, 2012, 291 p.Marcos Antnio Lopes

    Notas sobre a dissimulao honestaNotes on truthful dissimulationMSSIO, Edmir. A civilidade e as artes de fingir: a partir do conceito de dissimulao honesta de Torquato Accetto. So Paulo: EDUSP, 2012, 245 p. Cleber Vinicius do Amaral Felipe

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  • Afinal, para que serve a histria?After all, what is history for?NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender com a histria? O passado e o futuro de uma questo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, 256 p.Joo Couvaneiro

    A Universidade e os muitos caminhos da HistriaThe University and the many paths of HistoryROIZ, Diogo da Silva. Os caminhos (da escrita) da histria e os descaminhos de seu ensino: a institucionalizao do ensino universitrio de Histria na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo (1934-1968). Curitiba: Appris, 2012, 266 p.Fbio Franzini

    Luis de Gusmo contra a hybris tericaLuis de Gusmo against the theoretical hybrisGUSMO, Luis de. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento terico na investigao social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012, 258 p.Srgio da Mata

    Debates historiogrficosHistoriographical debatesHAHN, Fbio Andr; MEZZOMO, Frank Antonio; MYSKIW, Antnio Marcos. Ensaios historiogrficos: temas, tendncias e interpretaes. Campo Mouro: Editora da FECILCAM, 2010, 226 p.Surama Conde S Pinto

    PARECERISTAS DESTE NMEROREVIEWERS OF THIS ISSUE

    NORMAS DE PUBLICAOEDITORIAL GUIDELINES

    DIRETRIZES PARA AUTORESGUIDELINES FOR AUTHORS

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  • Editorialeditorial

  • 8hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 8-9

    A Histria da Historiografia promove neste novo nmero a recordao da vida e da obra de Manoel Luiz Lima Salgado Guimares (1952-2010). Nos seus cinco anos de existncia, a primeira vez que na revista se consagra um espao to revelante a um nico indivduo. Para quem porventura no tenha tido o privilgio de conhec-lo pessoalmente, as contribuies aqui reunidas sob a segura coordenao de Temstocles Cezar e Rodrigo Turin do bem a ideia de um profissional exemplar, que marcou os seus pares tanto pelos escritos inovadores, criteriosos e empenhados na reflexo sobre o papel social da histria, como pela intensa atividade de docncia e orientao de jovens talentos. Pouco mais de duas dcadas bastaram-lhe para formar cerca de 30 mestres e 22 doutores. Uma parte desses discpulos e alguns candidatos de provas que avaliou comparecem agora a prestar-lhe tributo e valorizar o seu rico legado.

    A natureza de semelhante operao poderia ser ela prpria enunciada entre os motivos do texto de Rodrigo Turin em torno das proposies de Peter Szondi. , no entanto, Durval Muniz de Albuquerque Jnior que, num quase depoimento, se encarrega de resumir os diversos aspetos de toda a herana de Manoel Salgado, sublinhando que nela se deve buscar estmulo para outros trabalhos. Assim justamente procedem Francisco Rgis Lopes Ramos e Aline Montenegro Magalhes, Maria da Glria de Oliveira, Pedro Afonso Cristovo dos Santos, Marcia Naxara e Fernando Nicolazzi, em artigos que ora procuram um dilogo direto com algumas das mais marcantes proposies do homenageado sobre a cultura material, o ensino e a escrita da histria, ora se servem de breves insights ou sugestes, para propor abordagens originais na releitura de autores menos citados. Completam o dossi a traduo de um texto recente de Franois Hartog a propsito das diferentes presenas da Retrica e da Potica de Aristteles nas obras de Paul Ricoeur e Carlo Ginzburg, e um muito instigante trabalho de Francisco Murari Pires acerca dos fundamentos de autoridade sobre o afamado paradigma indicirio: contributos que se iluminam mutuamente e reavivam a vontade de frequentarmos com maior insistncia a lio dos clssicos greco-romanos. Tendo em conta os argumentos esgrimidos, apetece, alis, recordar, com Hans-Georg Gadamer, que Aristteles chegou a referir de passagem a tripartio da philosophia em terica, prtica e potica. Por esse caminho, talvez se consiga recuperar de uma maneira menos polmica, para a velha estirpe da histria, a centralidade da hermenutica. provvel que Manoel Salgado no se opusesse.

    Dentre os artigos que compem a seco de contribuies genricas, volta a haver um encontro com Aristteles, e curiosamente, tambm, por via alem, no trabalho de Renata Sammer. Andr Fabiano Voigt prefere convidar o leitor a uma reflexo ancorada em autores franceses, que antes e depois de Braudel debateram o problema da descontinuidade do tempo, to fecundo em implicaes de cunho poltico. Sergio Meja surpreende a mudana de um paradigma historiogrfico continental na obra do boliviano Gabriel Ren Moreno. Por fim, Flavia Renata Machado prope-se a interpretar o romance Terra Sonmbula do moambicano Mia Couto como uma voz alternativa da historiografia sobre o perodo da guerra que se seguiu independncia de Portugal. Quatro propostas

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    que avanam para alm do Brasil, compreendendo trs continentes e, com eles, trs oceanos.

    A seco de resenhas prossegue a tendncia para a apresentao e anlise de livros que, no seu todo, extrapolam os limites estritos da histria e da historiografia, para se abrirem literatura, filosofia e s cincias da sociedade. Muito embora a maioria dos ttulos escolhidos seja nacional, voltam aqui a no estar ausentes os estrangeiros, pelos olhos de Marlon Salomon e Marcos Antnio Lopes. O primeiro debrua-se sobre uma recente entrevista que Jacques Rancire concedeu a Dork Zabunyan, estudioso de cinematografia, e Laurent Jeanpierre, professor de Cincia Poltica. O segundo apresenta a traduo brasileira do mais recente grande livro de um dos fundadores do chamado New Historicism: Stephen Greenblatt. Nessa nova histria do Renascimento, d-se lugar de destaque a Gian Francesco Poggio Bracciolini, homem de letras, acadmico e humanista que no seu tempo se notabilizou pela redescoberta de manuscritos antigos em institutos monsticos do Sacro Imprio Romano-Germnico, do reino da Frana e da Confederao Helvtica. No mundo de lngua portuguesa, seria igualmente interessante relembrar que se trata do autor do mais expressivo elogio erudito de que foi alvo o filho terceiro do fundador da dinastia de Avis, infante D. Henrique, mais conhecido como O Navegador, por patrocinar a explorao da costa africana ao sul das Canrias, desde o cabo Bojador at Serra Leoa. Afinal, to criticvel como o nacionalismo acadmico ser certamente o seu reverso, travestido de cosmopolita.

    A partir de 2014, os dossis temticos da Histria da Historiografia restringir- -se-o ao ltimo nmero de cada ano. O prximo, sob o ttulo Historicidade e Literatura, organizado por Henrique Estrada Rodrigues (PUC-Rio) e Vernica Tozzi (UBA), tem chamada j disponvel, com prazo de entrega de manuscritos at ao dia 3 de Agosto. Renova-se entretanto o convite para a submisso de propostas de artigos, resenhas, entrevistas, textos e documentos historiogrficos que respeitem o tema geral da revista, no esquecendo as propostas de leitura que regularmente se publicitam na sua pgina eletrnica.

    Pelo Conselho Editorial

    Tiago C. P. dos Reis Miranda (CHAM/ FCSH-UNL)

  • Dossidossier

    A histria em questo: dilogos com a obra de Manoel Luiz Salgado GuimaresHistory in question: dialogues with the work of Manoel Luiz Salgado Guimares

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    hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 11-13

    Dossi

    Apresentao

    Introduction

    Temstocles [email protected] associadoUniversidade Federal do Rio Grande do SulAv. Bento Gonalves, 9500 - AgronomiaCaixa-postal: 9150197091509-900 - Porto Alegre - RSBrasil Rodrigo [email protected] adjuntoUniversidade Federal do Estado do Rio de JaneiroEscola de HistriaAv. Pasteur, 458 - Urca22290-240 - Rio de Janeiro - RJBrasil

    O tempo entre o sopro e o apagar da velaPaulo Leminski (1976, p. 23).

    Which is to say, I guess, that in the end I come back to Aristotles insight that history without poetry is inert, just as poetry without history is vapidHayden White (2010, p. XI).

    Aquele probleminha que Aristteles causou a alguns historiadores durante muito tempo em decorrncia do que escreveu no captulo IX de a Potica a ideia de que a poesia era superior histria por tratar do geral enquanto a histria tratava apenas do singular no afetava muito nosso Manoel. At onde sabemos nunca perdeu o sono por causa disso. Ao contrrio, seus escritos e aulas revelavam um professor e pesquisador aberto s formas eruditas de existncia, nas quais os gneros ficcionais e a histria conviviam, como se no tivessem sido afetadas pelo antema aristotlico, muito menos pelo estatuto cientifico da histria adquirido no sculo XIX.

    Manoel Luiz Lima Salgado Guimares (1952-2010) foi um exemplo de incentivo diferena, respeito pluralidade temtica e tolerncia terica. De muitos foi professor, e de muitos se tornou amigo. Daqueles com os quais podamos contar. Desde o emprstimo de um livro difcil de se conseguir na biblioteca at o conselho solidrio e maduro. Manoel foi um parceiro intelectual de primeira hora. Acima de tudo um acadmico rigoroso, que acreditava na pesquisa e em certa capacidade regenerativa do conhecimento histrico. Expliquemos: Manoel acreditava que a histria poderia ser til para alguma coisa: para a crtica constante de sua prpria evidncia; e para a vida!

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    hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 11-13

    _________________________________________________________________________________Temstocles Cezar e Rodrigo Turin

    Nesse esprito de um pensamento histrico ainda capaz de se lanar para o futuro, alimentando-se da abertura que s o dilogo constante proporciona, o objetivo deste dossi no apresentar um balano de sua diversificada produo ainda que apontamentos a este respeito no estejam ausentes dos artigos , mas antes potencializar, reverberando, os ecos de suas investigaes e ensinamentos na historiografia contempornea dedicada a pensar a historicidade da escrita da histria e seus desdobramentos.

    Dentro do escopo de reflexes que orientavam a produo de Manoel Salgado a respeito da escrita da histria, duas questes, essencialmente interligadas, se mostravam centrais: as diferentes linguagens atravs das quais o passado podia se tornar visvel ao presente, seus efeitos e constrangimentos, assim como a problematizao do alcance e dos limites da crtica histrica erudita em suas diferentes tradies e configuraes intelectuais. Estas duas questes se fazem aqui presentes nos artigos de dois de seus interlocutores: Franois Hartog e Francisco Murari Pires. O primeiro analisa certos desdobramentos na disciplina histrica da chamada virada lingustica, centrando-se nas distintas apropriaes mediadas pela reao a Hayden White que Ginzburg e Ricur realizaram da obra aristotlica. J o texto de Murari Pires concentra-se em desvelar as aporias e as artimanhas que se dissimulam nas consideraes de Ginzburg a respeito do mtodo histrico e seu carter indicirio, tambm apontando para as apropriaes que este realiza de autores (ou auctoritas) como Tucdides e Lorenzo Valla.

    Na continuidade, essa reflexo sobre o papel e a historicidade das prticas eruditas na representao historiogrfica se verticaliza na anlise realizada por Pedro Afonso Cristvo dos Santos acerca dos debates envolvendo as noes de plgio e de compilao no oitocentos brasileiro. A partir da sugesto de Manoel Salgado de seguir as diferentes disputas acerca do passado e dos modos de escrita da histria, o autor resgata o confronto entre distintos protocolos envolvendo o modo de leitura e as formas de exposio dos documentos no texto historiogrfico. Leitura que tambm o foco do artigo de Fernando Nicolazzi, cuja cuidadosa anlise do tratado setecentista de Claude-Franois Menestrier revela como a escrita da histria, entendida em sua pluralidade, demanda, antecipa e s se realiza, efetivamente, no encontro com seus leitores.

    Investigar a historicidade da escrita da histria, como ensinou Manoel Salgado, implica problematizar a prpria forma na qual essa investigao se realiza. o que procura desenvolver Rodrigo Turin em seu ensaio, explorando o alcance da noo de memria disciplinar, cara a Manoel Salgado, para o entendimento dos constrangimentos sedimentados historicamente na histria da historiografia. E pensar uma histria da historiografia atenta aos diferentes dispositivos atravs dos quais o passado pode se fazer visvel o tema dos artigos de Francisco Rgis Lopes Ramos, Aline Montenegro Magalhes e Mrcia Naxara, seja investigando os usos e as formas da cultura material na elaborao de uma histria nacional, seja resgatando os projetos de fundao de uma identidade histrica que, para alm da dimenso textual, tambm se fazia valer da cartografia como forma de espacializar o tempo da nao.

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    Apresentao_________________________________________________________________________________

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    As inquietaes e reflexes que Manoel explorava em suas pesquisas no se limitavam a ser expressas em artigos e captulos de livros, indicadores mais visveis e valorizados hoje na produo acadmica, mas tambm na experincia de sala de aula, de cuja intensidade os seus ex-alunos foram, ao mesmo tempo, testemunhas e cmplices. Essa ntima relao que Manoel nutria entre a reflexo sobre a escrita da histria e a experincia docente explorada no artigo de Maria da Glria de Oliveira, abordando o ensino da histria nos desdobramentos de suas proposies tericas sobre a historiografia. Por fim, Durval Muniz relembra Manoel, justamente, como um mestre do rigor: atento, crtico e generoso nas diversas searas intelectuais nas quais transitou e cujos ecos, como os artigos aqui reunidos evidenciam, ainda reverberam fortemente em nosso meio acadmico.

    Finalmente, o dossi guarda algo da frmula atravs da qual Paulo Knauss e Temstocles Cezar, na apresentao verso em portugus da tese de Manoel, procuraram sintetizar sua vida e obra: um historiador-viajante (2011). Mas comporta tambm um pouco do que Durval Muniz, em outro momento, chamou de a amizade como mtodo de trabalho historiogrfico. O certo que entre o sopro e o apagar da vela o tempo de Manoel ficou entre ns.

    Referncias bibliogrficas

    GUIMARES, Manoel Salgado. Historiografia e Nao no Brasil (1838-1857). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.

    LEMINSKI, Paulo. Quarenta clics em Curitiba (1976). In:______. Toda poesia. Companhia das Letras: So Paulo, 2013.

    WHITE, Hayden. The fiction of narrative: essays on history, literature and theory (1957-2007). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2010.

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    hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 14-23

    Aristteles e a histria, mais uma vez*

    Aristotle and History Once More

    Franois [email protected] des Hautes tudes en Sciences Sociales Bureau 544190-198, avenue de France, 75244 Cedex 13 - Paris France

    ResumoO objetivo deste artigo o de analisar algumas questes e desdobramentos para a escrita da histria provenientes da chamada virada ligustica na histria. Mais do que reconstituir os percursos que caracterizam essa virada, ou delimitar seus contornos, nos propomos a observar o ponto de oscilao ou o contra-ataque brusco marcados pela publicao, em 1992, do livro Probing the Limits of Representation, editado por Saul Friedlnder, colocando em paralelo os estudos mais recentes de Paul Ricur e Carlo Ginzburg e destacando suas respectivas leituras das obras clssicas de Aristteles, a Potica e a Retrica, mediadas pela leitura de Hayden White.

    Palavras-chaveGiro lingustico; Historiografia; Escrita da histria.

    AbstractThis article aims to analyze some questions and developments for the writing of History stemming from the so-called linguistic turn in History. More than re-establishing the paths which define this turn, or circumscribing its outlines, we propose to observe the unsteadiness or the harsh counter-attack indicated in the publication of the book Probing the Limits of Representation, edited by Saul Friedlnder in 1992, by making a parallel with recent works of Paul Ricoeur and Carlo Ginzburg, and to emphasize their own readings of the classic pieces of Aristotle, the Poetics and the Rethoric, mediated by Hayden Whites reading.

    Keywords Linguistic turn; Historiography; History writing.

    Recebido em: 27/11/2013Autor convidado

    * Entre o Brasil, a Alemanha e a Frana, Manoel Salgado circulava. Ele soube, no espao de alguns anos, tecer fortes laos. Durante suas estadas em Paris, ele passava pelo meu seminrio, e sua conversa simples e amigvel muito me ensinou sobre a histria do Brasil e no Brasil. Quando eu estive no Rio, na UFRJ, para um workshop com doutorandos, ele soube fazer deste encontro um belo momento de camaradagem intelectual. A ltima vez que o vi, foi em So Paulo. Ele estava cheio de entusiasmo, de sorrisos e de projetos. Depoimento de Franois Hartog. Paris, 22 de outubro de 2013. Este artigo foi publicado originalmente em Critique, Paris, juin-juillet, 2011, p. 540-552. Agradecemos ao professor Hartog e aos editores da revista a autorizao para a presente traduo, realizada por Eliane Misiak (FURG). Agradecemos tambm a Eliete Lcia Tiburski pela formatao final e ajuste do texto s normas, e a Marina Arajo pela traduo do resumo. Agradecemos, finalmente, Direo do IFCH da UFRGS pelo financiamento que viabilizou a traduo. Reviso tcnica de Temstocles Cezar.

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    Aristteles e a histria, mais uma vez_________________________________________________________________________________

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    O linguistic turn is over.1 Desde quando? Ainda se discute. Certos historiadores diro, inclusive, que ele jamais comeou! Como havia constatado Pguy em Clio: obstinamo-nos com uma questo durante quinze ou vinte anos e, de repente, damos as costas. No sabemos mais do que falvamos. H pouco tempo, foi-me relatado que, atualmente, nas universidades americanas, os jovens estudantes de histria no sabem mais do que se trata, enquanto que seus professores lhes falam somente de arquivos. Seja como for, recentemente, duas historiadoras, interrogando-se sobre o estado de suas disciplinas, constatam seu refluxo, como uma onda que acaba de se retirar antes que a prxima quebre. Em seu discurso sobre o estado da histria, Gabriele Spiegel, presidente da American Historical Association no ano de 2009, comea lembrando que o termo (linguistic turn) aparece em 1965, com o filsofo Richard Rorty, antes de avaliar qual foi seu impacto e de se interrogar sobre o que resta dele nos questionrios e nas maneiras de trabalhar dos historiadores hoje (SPIEGEL 2009). Do mesmo modo, Caroline Baynum, professora de histria medieval do Instituto de Estudos Avanados de Princeton, dedica-se a um rpido inventrio de todos os turns e returns propostos ou proclamados desde o primeiro da srie, aquele da lingustica dos anos 1960 (BYNUM 2000).

    Como no faz parte do meu propsito reconstituir os percursos dessas viradas, nem delimitar seus contornos, limitar-me-ei a observar este ponto de oscilao ou este contra-ataque brusco marcados pela publicao, em 1992, do livro Probing the Limits of Representation, editado por Saul Friedlnder (FRIEDLNDER 1992). O objetivo era o de interrogar as consequncias do relativismo ps-moderno e de indagar os equvocos que ele mantm sobre a questo do real e da verdade histrica, a respeito deste acontecimento limite que foi o Holocausto. nessa ocasio que Carlo Ginzburg conduz o ataque final contra as posies de Hayden White, contra quem Arnaldo Momigliano havia, pela primeira vez, iniciado as hostilidades em 1981 (MOMIGLIANO 1984). Apesar de seus esforos, Hayden White no poder sair das aporias de sua posio tropolgica, de seu pantropologismo e, em pouco tempo, Paul Ricur, pouco suspeito de desconfiana em relao s abordagens narrativistas, concluir por um impasse e pela suspeita legtima quanto capacidade dessa teoria retrica de traar uma linha limite entre narrativa histrica e narrativa de fico (RICUR 2000, p. 328).

    Para falar a verdade, essa questo dita, frequentemente, da histria e da fico apenas uma expresso local e relativamente tardia de um movimento muito mais amplo, nem simples, nem unvoco, mais dramtico tambm, e iniciado bem mais cedo, de interrrogaes sobre esta que a mais nobre e mais misteriosa faculdade do homem, a linguagem (BENVENISTE 1966, p. 45). Iniciado, pelo menos na Frana, com Mallarm e Rimbaud, continuado por Maurice Blanchot (leitor de Kafka e amigo de Levinas), em cuja obra tantos fios se entrelaam, ele se estendeu sobre um sculo aproximadamente e tomou formas

    1 A virada lingustica acabou. Todas as expresses em lnguas estrangeira seguem de acordo com o original (Nota do revisor).

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    diversas at o estruturalismo dos anos 1960 e os ps- que se seguiram. Ainda que os principais protagonistas distanciem-se rapidamente dessas apelaes, subsiste que a linguagem, essa linguagem que sempre escapa, permanece no centro.

    O que fez com que, na Europa, a linguagem tenha sido metdica e apaixonadamente escrutada? O que fez com que, aps a publicao do Curso de Saussure, em 1916 (em plena guerra), a lingustica, com a distino entre lngua e fala, tenha se tornado, progressivamente, a cincia piloto das cincias humanas? Celebrando Saussure, em 1963, por ocasio do cinquentenrio de sua morte, mile Benveniste sublinhava o alcance desse princpio do signo instaurado como unidade da lngua [...]. Ora, vemos agora se propagar esse princpio para fora das disciplinas lingusticas e penetrar nas cincias do homem, que tomam conscincia da sua prpria semitica. No a lngua que se dilui na sociedade, a sociedade que comea a reconhecer-se como lngua (BENVENISTE 1966, p. 43). O que fez ainda com que, aps 1945, a linguagem, sempre ela, tenha sido tida por quase tudo, sem deixar de ser associada falta, ausncia, ao silncio e morte? Aquilo que no se pode dizer, preciso calar, dizia Wittgenstein, (no) preciso calar, corrige Jacques Derrida (PEETERS 2010, p. 204). A essas colocaes fazem eco as ltimas palavras de Blanchot, em Aprs coup, mesmo sobre a morte sem frases, ainda preciso meditar, talvez sem fim, at o fim (BLANCHOT 1983, p. 100). Responder a tais questes, arriscar-se apenas, excederia no apenas o espao de um artigo, mas tambm minhas capacidades. Entretanto, creio que ao negligenciar esse movimento profundo, complexo, corre-se o risco de, como dizia Pguy, no mais compreender do que se falava, quando Roland Barthes, por exemplo, escrevia que o fato tem to somente uma existncia lingustica. Caso contrrio, o propsito, retirado de seu contexto, oscila entre trivialidade e absurdidade (BARTHES 1984).

    Narrativa, retrica, histriaPara retornar histria e as suas formas de negociar a virada lingustica,

    pode ser esclarecedor traar um paralelo entre duas abordagens, certamente bem diferentes, mas que possuem em comum o fato de interrogar, no curso dos anos 1980, os poderes da narrativa. Paul Ricur publica Tempo e Narrativa entre 1983 e 1985. A partir de 1984, Carlo Ginzburg engaja-se em um combate, jamais abandonado, contra aqueles que ele chama, desde ento, de cticos.2 Nada de equvoco: o nico objetivo dessa projeo o de convidar a considerar suas dmarches como duas maneiras de apreender uma conjuntura e de replic-la, de modo algum de associ-las, e menos ainda de op-las: o defensor do realismo face ao advogado da narrativa!

    Com relao histria, um deles um outsider. Ele traa seu caminho filosfico, e aprofunda a enquete sobre as capacidades da narrativa, no por complacncia com uma moda, mas por preocupao em aproximar ao mximo possvel as aporias do tempo e experimentar, simultaneamente, os limites da narrativa. Ele mobiliza, torna til esse saber renovado e recente, em plena

    2 Ver seu prefcio Natalie Zemon Davis, Le retour de Martin Guerre, reeditado em anexo em Le fil et les Traces.

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    elaborao, com vistas a explorar as potencialidades da narrativa. Ele tambm o outsider que mais se aproximou da histria. Ele leu os historiadores, no para anex-los ou para fazer filosofia da histria pelas suas costas, mas com vistas a, graas a eles, aprofundar seu questionrio filosfico. Se verdadeiro que o tempo pensado somente existe quando narrado, imperativo demostrar que mesmo a histria, que pretende ter rompido com a narrativa, aquela dos Annales (para resumir), conservou, se observarmos de perto, um elo, ainda que tnue, com ela. Tal o caso deste manifesto que o Mediterrneo de Braudel. Bastava ousar diz-lo para que isso se tornasse evidente.

    O outro um insider: no corao da disciplina, historiador da poca moderna, ele, rapidamente, encontrou-se em posio de falar por ela. Com esta particularidade: ele est longe de ser o inimigo da narrativa. Realista, sim, mas em nada positivista. Tivesse sido ele um historiador preocupado sobretudo em enumerar, teria tido, verdade, menos razes para inquietar-se com as formas de ler. Em seus livros e artigos, ele, de fato, no cessou de confrontar-se com a questo da narrativa, quer se trate da questo da forma de interrogar suas fontes (os arquivos dos processos de feitiaria), de delimitar aquilo que ele chama, em Histria noturna: decifrando o sab, de ncleo narrativo elementar que acompanhou a humanidade durante milnios (GINZBURG 1992, p. 284). Persistentemente, ele se pretende atento s possibilidades cognitivas de qualquer narrativa, incluindo-se todas as formas de historiografia. A respeito de A educao sentimental, ele se dedica a valorizar a riqueza cognitiva da obra de Flaubert (GINZBURG 2003, p. 97); ou, estudando uma Histoire des les Mariannes, publicada, em 1700, por um jesuta, ele observa que os textos tm fendas das quais se pode ver sair o real e que falar de realidades situadas fora do texto seria uma ingenuidade positivista (GINZBURG 2003, p. 82). Mais ainda, e, desta vez, colocando-se antes do texto acabado, ele estima que um lugar deve ser dado s interaes entre dados empricos e restries narrativas no interior do processo de pesquisa (GINZBURG 2003, p. 95). Se considerarmos a forma de conceber seu papel de historiador, o prprio ttulo de seu ltimo livro o exprime: O fio e os rastros. Por fio preciso compreender, claramente, precisa o autor, o fio da narrativa. Procuro contar, servindo-me dos rastros, histrias verdadeiras (que s vezes tm como objeto o falso) (GINZBURG 2010, p. 7).

    Ricur leu Ginzburg. Este ltimo est presente em dois momentos de A memria, a histria, o esquecimento: na parte consagrada epistemologia histrica e naquela dedicada condio histrica. O paradigma indicirio, o prefcio a Lorenzo Valla (sobre retrica e filologia), O Juiz e o historiador (com a questo da prova) e, finalmente, o impasse tropolgico de Hayden White, so todos elementos que possuem lugar na reflexo do filsofo. A recproca se verifica? No meu entender, no. O historiador no menciona e no discute os trabalhos de Ricur.3 O que um direito seu. Em todo caso, trata-se de um indcio de que ele no precisou desse filsofo que, durante aproximadamente

    3 Uma meno ambiciosa obra de P. Ricur, Temps et rcit (GINZBURG 2010, p. 459). Trata-se do prefcio obra Le retour de Martin Guerre, publicado em 1984.

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    vinte anos, interrogou-se sobre a inquietante estranheza da histria (HARTOG 2011, p. 65).

    Tanto um quanto outro se deparam com a questo da representao, aquela da lancinante interrogao sobre a relao entre o passado real e o conhecimento histrico, aquela sobre a qual a frmula de Ranke, mil vezes repetida, do wie es eigentlich gewesen terminou por dispensar a reflexo. Ricur detm-se longamente sobre ela em Tempo e Narrativa; Ginzburg consagra-lhe um artigo: Representao, a palavra, a ideia, a coisa, primeiramente publicado nos Annales, em 1991. Questionar o uso da palavra e todos os jogos de espelho que ela permite entre ausncia e presena, em um momento em que se exige uma histria das representaes, particularmente nos Annales e volta, , evidentemente, apropriado. Segue um percurso virtuoso que, em poucas pginas, conduz o leitor ignorante da primeira apario da palavra no Dictionnaire de Furetire, no qual representao empregado no contexto dos funerais reais (para designar seja um manequim do rei defunto, seja um leito funerrio vazio e simplesmente recoberto por uma mortalha), at as interrogaes sobre os efeitos da presena real na eucaristia, passando pelo Colosso grego (GINZBURG 1998, p. 73-88). Insatisfeito, por sua vez, com o conceito de representao, Ricur forja um outro, o de representncia, que ele reconhece ser difcil. Para abordar essa relao, que ele qualifica de enigma, ele recorre, sucessivamente, s categorias do Mesmo, do Outro e do Anlogo, que so trs maneiras de decompor e, depois, de sintetizar a visada do discurso histrico em relao a seu vis--vis terminado, qualificado de alusivo e imperioso simultaneamente (RICUR 1985, p. 269). Pois se o historiador um mestre de intrigas, ele , ao mesmo tempo, um servidor da dvida para com os mortos.

    Pelos caminhos que levam do Mesmo ao Outro, ao Anlogo, Ricur encontra, inevitavelmente, Hayden White, o mestre s tropos, cujo livro, rapidamente famoso, Metahistory, qualificado por ele de potica da historiografia. Para White, leitor de Vico, a retrica , com efeito, o ncleo da criatividade da linguagem e o troping , diz ele, a alma do discurso. Sua Metahistory poderia intitular-se igualmente Pre-History, na medida em que o recurso a um ou outro tropo prefigura uma narrativa possvel, de modo que da disperso daquilo que ainda no foi narrado emerge uma forma e um sentido: uma narrao e uma explicao. O nico ponto que gostaria de evidenciar aqui que, fazendo isso, White engloba a potica na retrica ou faz da potica a alma da retrica. O que, do ponto de vista da narrativa histrica, tem por primeira consequncia ignorar a velha interdio colocada por Aristteles, para quem a histria, no sendo uma arte mimtica, no pertence poiesis.

    Para Ginzburg, o encontro se faz por meio do artigo de Momigliano The History of Rhetoric and Rhetoric of History: on Hayden Whites Tropes que, em 1981, abriu seus olhos para as consequncias das posies do autor de Metahistory. Pouco me importa, diz, basicamente, Momigliano, se tais historiadores usam a metonmia ou a sindoque, pois a nica coisa que conta que suas histrias devem ser verdadeiras (MOMIGLIANO 1984, p. 51).

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    Quanto s relaes entre retrica e histria, se elas iniciaram com Iscrates, seria necessrio, pelo menos, considerar o fato de que elas foram ambivalentes ao longo da Antiguidade e que, em um certo momento, na poca moderna, elas foram cortadas. Em resumo, sem o apoio de uma histria sria da retrica, as consideraes sobre retrica e histria permanecem muito etreas. Em todo caso, a associao entre Hayden White e a retrica sai ainda fortalecida por sua inscrio em uma linhagem que inicia com Iscrates. Mais do que de uma virada lingustica, dever-se-ia falar de virada retrica, prope ento Ginzburg.

    Aristteles, mais uma vezSem que seja necessrio estender-me mais sobre as posies de Hayden

    White, sobre a leitura rigorosa feita por Ricur ou sobre as crticas reiteradas de Ginzburg, o leitor ter compreendido que o White de Ricur est mais do lado da potica, enquanto que aquele de Ginzburg est, primeiramente, do lado da retrica. Nesse ponto, o leitor tambm ter compreendido que aquele que, desde o incio, encontra-se no plano de fundo e que, de fato, torna possvel (e espero pertinente) o paralelo esboado no outro seno Aristteles, como autor da Potica, naturalmente, mas tambm da Retrica.

    Ambos, de fato, cedem-lhe lugar, mas eles no se dirigem ao mesmo Aristteles. Ricur reconhece, imediatamente, que o impulso inicial de Tempo e Narrativa veio da Potica. O que, de maneira alguma, evidente, visto que na Potica no se tratava diretamente da questo do tempo! Por outro lado, retm toda a sua ateno a composio da intriga promovida por Aristteles posio de categoria dominante na arte de compor obras que imitam uma ao. o que lhe permite extrair da Potica o modelo de composio da intriga que ele se propor a estender a toda composio que chamamos narrativa (RICUR 1983, p. 61, 317). Incluindo, portanto, a histria. Quanto a Ginzburg, se ele conhece, evidentemente, as anotaes da Potica sobre a histria, ele est mais interessado na Retrica. Por qu? Por duas razes ao menos. Primeiramente, porque White, aps Roland Barthes, reabre, de forma ruidosa, a questo dos laos entre retrica e histria. Depois, porque ao lado da retrica de Iscrates, existe aquela de Aristteles, para quem a questo da prova central. Em outras palavras, a) contrariamente ao que imaginam os cticos e outros ps-modernos, a retrica no se reduz arte de persuadir,4 b) retrica e provas podem estar e estiveram estreitamente ligadas. Porque se demonstra com o auxlio do entimema, que o silogismo da retrica, e o entimema , para Aristteles, o corpo da prova (Aristteles, Rhtorique 1354a, 15) .

    Tal ponto atingido, que se aparenta um pouco a um puxo do tapete sob os ps do adversrio (ainda que Hayden White no recorra retrica de Aristteles), Ginzburg vai, nitidamente, mais longe. Em Aristteles e a histria, mais uma vez, ele procura mostrar que a arqueologia (no sentido dos primeiros captulos de Tucdides) e a retrica (no sentido de Aristteles) partilham a mesma

    4 Procurei mostrar que o sentido da palavra [retrica] em Aristteles era muito diferente do que entendemos hoje pelo termo retrica (GINZBURG 2003, p. 52).

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    preocupao com a prova e recorrem ao entimema, de modo que retrica, histria e prova esto estreitamente ligadas na Grcia do sculo IV (GINZBURG 2003, p. 51). Quando, como continuador de Hppias (o sofista zombado por Plato), ao estabelecer uma primeira lista de vencedores olmpicos, Aristteles faz-se epigrafista e compila uma lista de vencedores nos jogos pticos, ele pratica a arqueologia (essa histria posteriormente ser nomeada antiquria). Em sua arqueologia, Tucdides serviu-se, vrias vezes, desse modo de conhecimento que recorre a entimemas. Se [portanto] supormos que a dimenso arqueolgica da obra de Tucdides pode ter suscitado o interesse de Aristteles, a atitude desse ltimo com relao histria poderia ser reexaminada luz das aluses a um conhecimento inferencial do passado presentes na Retrica (GINZBURG 2003, p. 51). A Retrica poderia, assim, permitir revisar o julgamento (aparentemente definitivo) da Potica sobre a histria. Pode, ento, surgir a concluso (que no deixaria de surpreender o leitor que teria perdido o que precede): a obra em cuja qual Aristteles fala mais detidamente da historiografia (ou, ao menos, de seu ncleo fundamental), no sentido em que a entendemos, no sua Potica, mas sua Retrica (GINZBURG 2003, p. 43) .

    Detenhamo-nos, ento, um instante sobre os primeiros captulos de Tucdides, que ocupam um lugar importante no raciocnio. De fato, eles lembram uma proeza, na medida em que eles so, ao mesmo tempo, a tentativa mais refletida e acabada de reconstruir os tempos antigos da Grcia e a demonstrao definitiva que uma histria cientfica (para empregar um termo moderno) do passado , de fato, impossvel. Baseando-se em indcios (semeia), reunindo e confrontando elementos de prova (tekmria), o historiador pode suprimir o falso, circunscrever o mtico (muthdes), encontrar fatos e, o melhor, chegar a uma convico (pistis), mas no a um conhecimento claro e distinto. Ora, as coisas anteriores e mesmo as que eram ainda mais antigas era impossvel descobrir com clareza, em vista da grande distncia temporal, mas, a partir do que sou levado a crer, examinando os indcios de um longussimo perodo, no considero que foram grandes nem com relao a guerras, nem com relao a mais nada (HARTOG 1999, p. 59).

    O objetivo perseguido por essa reconstruo , portanto, duplo: provar que em comparao guerra presente que Tucdides, imediatamente, estimou como devendo ser a maior , todos os conflitos do passado so inferiores (estamos no registro da amplificao, cuja Retrica de Aristteles tornar o trao caracterstico do discurso epiddico); convencer por meio do exemplo que somente a histria contempornea importa realmente, porque ela a verdadeira cincia poltica.5 Acrescentemos ainda que o modelo, que serve de padro para a reconstruo dos tempos distantes, o da potncia (dunamis) ateniense atual, com seus trs componentes (o dinheiro, a frota e as muralhas). De Agammnon at Polcrates, o tirano de Samos, passando pelo rei Minos, trata-se de uma mesma histria de dinheiro, frota e muralhas, compreendendo-se que o imprio

    5 Tucdides no emprega a palavra historia nem no sentido de Herdoto nem no sentido que ser aquele de Aristteles.

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    ateniense representa a sua verso mais acabada. Atenas o telos: vai-se do presente ao passado (inferior), revelando um modelo de inteligibilidade que depende mais de uma teoria do poder do que de uma histria antiquria.

    O entimema, definido como o cerne da prova, suficiente para ligar a histria e a retrica a ponto de sustentar que na Retrica que Aristteles fala mais prolongadamente de histria? primeira vista, entretanto, ele no lhe atribui nenhum lugar especfico. Os discursos se repartem, com efeito, em trs gneros, o deliberativo, o judicirio e o epiddico. Cada um visa um ouvinte, que se encontra em posio de juiz. O deliberativo est voltado para o futuro, o judicirio, para o passado e o epiddico inscreve-se no presente. Mais tarde, a histria tender a ser inspirada pelo epiddico (veremos Polbio batalhar contra e Luciano sustentar que uma muralha separa a histria do elogio, enquanto outros proporo um quarto gnero para a histria).

    A enquete de tipo histrica aparece, todavia, na Retrica, por ocasio do exame dos temas sobre os quais se delibera e para os quais til munir-se de argumentos. Assim, em matria de receitas da cidade, necessrio estender sua experincia conduzindo uma enquete histrica sobre o que se praticou em outro lugar (Aristteles, Rhtorique 1359b, 32). Do mesmo modo, naquilo que concerne guerra e paz, necessrio ter examinado (therein) as guerras conduzidas pela cidade mas tambm pelas outras (Aristteles, Rhtorique 1360a, 4). No que diz respeito, finalmente, constituio e s leis, no somente til ter um conhecimento terico desses assuntos, mas tambm ter conduzido enquetes de campo no estrangeiro. As relaes de viagem so, assim, evidentemente teis para a legislao [...] como as enquetes (historiai) daqueles que escrevem sobre as aes humanas o so para as deliberes polticas (Aristteles, Rhtorique 1360a, 33-37). Eis a parte reconhecida a essas enquetes, concebidas como coletas de dados e destinadas a fornecer premissas, permitindo argumentar corretamente no mbito das deliberaes da assemblia. E, a Aritteles, concluir com esta preciso, que no desprovida de importncia. Mas tudo isso (essas enquetes), assunto da poltica, no da retrica (Aristteles, Rhtorique 1360a, 37). Elas visam fornecer premissas instrudas com o objetivo de formular conselhos, que so a prpria finalidade do gnero deliberativo. Estamos, portanto, longe de Herdoto, mas tambm longe de Tucdides, no francamente na arqueologia, mas muito prximo, por outro lado, da coleo das cento e cinquenta e oito constituies coletadas por Aristteles e por seus alunos.

    Para Ricur, o texto central de sua meditao sobre a narrativa e, portanto, sobre a histria, , certamente, a Potica, na qual ele v o modelo de composio da intriga que ele se prope a estender a toda composio narrativa, como vimos, quer se trate de histria ou de fico. Essa extenso seu direito mais estrito. Mas ele infringe, ao mesmo tempo (assim como Hayden White), a interdio aristotlica. Pois Aristteles (e limitar-me-ei aqui unicamente a esses pontos) indica, da maneira mais clara possvel, que a histria, a dos historiadores (historikoi), no ascende nem poiesis nem mimesis, reservadas ao poeta. No esqueamos que a histria no est aqui por ela mesma, mas apenas como

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    vis--vis, para exaltar a tragdia. poeta no tanto aquele que se expressa em versos, mas aquele que compe narrativas (muthoi), intrigas (traduz Ricur): claro, a partir do que foi dito, que no obra do poeta dizer o que aconteceu, mas o que poderia acontecer , e o possvel conforme o verossmel ou o necessrio (HARTOG 1999, p. 109). Seguramente, no se deve esperar nada assim do historiador: ele diz e somente pode dizer aquilo que se passou. Ele diz os fatos (legei ta genomena) da melhor maneira, em sua sucesso. Como ele poderia faz-los (poiein ta genomena)? Naturalmente, no no sentido de forj-los totalmente, mas no sentido de compor uma narrativa representando uma ao nica e que forma um todo, do qual no se pode mover nem retirar nenhum elemento?

    Aristteles apresenta uma prova suplementar dessa separao ao imaginar o seguinte caso. Suponhamos que um poeta efabule o que aconteceu, nem por isto menos poeta, pois nada impede que algumas coisas que aconteceram sejam tais que tenham sido verossmeis e possveis. por isso que ele poeta (Aristteles, Rhtorique 1451b, 29-33).6 Aristteles escreve exatamente um poeta fazendo genomema. O que importa no que os acontecimentos tenham ocorrido, mas que eles respondam s exigncias (inegociveis) do verossmel e do possvel. Alguns comentadores servem-se dessa passagem para sugerir que a poiesis no completa nem definitivamente interditada para a histria. Eu no creio nisso. Aristteles est preocupado com o poeta e no com o historiador, e aquilo que vale para um no vale, no sentido contrrio, para o outro. Por certo, o poeta no est interessado no que aconteceu, mas apenas na medida em que se reconhece nisso uma organizao de acordo com o verossmel e o possvel, enquanto que o historiador requisitado, primeiramente, por aquilo que aconteceu (que isso seja da ordem do verossmel ou do possvel, ou mesmo necessrio, no , literalmente, seu problema). Para Aristteles, o historiador no um mestre de intrigas e, no sculo II de nossa era, Luciano de Samsata o repetir, a sua maneira: as nicas questes s quais ele deve responder so aquelas da escolha dos genomenas e da maneira de diz-los.

    Evidentemente, outra a direo de Ricur. Pois, para validar sua grande hiptese, segundo a qual o tempo pensado somente existe quando narrado, ele deve provar o carter, em ltima anlise, narrativo da histria, comeando por examinar essa histria que pretendia, de forma um pouco precipitada, ter renunciado narrativa. Ele no pode, portanto, partir da separao inicial de Aristteles que, ao excluir a histria da mimesis e da poiesis, resolvia brutalmente a questo. Ele conceder, assim, histria toda a poiesis que for possvel, sem, entretanto, comprometer o primado de sua inteno referencial. Aqui est todo o desafio do conceito de representncia.

    6 Diferentemente da citao anterior da Potica de Aristteles, Hartog no se serve aqui da traduo de M. Casevitz, mas da traduo de R. Dupont-Roc e J. Lallot, publicada pela Editora Seuil, em 1980. Para a citao em portugus de a Potica nos servimos tanto nessa passagem quanto na anterior, bem como da citao de Tucdides, da traduo brasileira da obra de Hartog, A histria de Homero a Santo Agostinho, realizada por Jacyntho Lins Brando, publicada em 2011 pela Editora da UFMG (Nota do revisor).

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    Partindo do linguistic turn, fomos conduzidos a sugerir um paralelo entre Ricur e Ginzburg, que nos levou mais uma vez a Aristteles. Talvez esse percurso entre retrica e potica possa ter uma utilidade, ainda que, dos modernos aos antigos e dos antigos aos modernos, ainda faltem algumas etapas?

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    SPIEGEL, Gabrielle M. The task of the historian. American Historical Review, vol. 114, n 1, fv. 2009, p. 1-15.

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    Indagaes sobre um mtodo acima de qualquer suspeita*

    Doubts on a method beyond suspicion

    Francisco Murari [email protected] titularUniversidade de So PauloAv. Prof. Lineu Prestes, 33805058-900 - So Paulo - SPBrasil

    ResumoEste ensaio coloca algumas indagaes questionando a inconsistncia da trama argumentativa porque Carlo Ginzburg concebeu os fundamentos de sua proposio do paradigma indicirio. Um primeiro movimento reflexivo dessa interpelao questionadora intriga a explorao de algumas consideraes porque o espectro da bibliografia crtica avaliou a tese de Ginzburg. Consequente a ele, desdobra-se o segundo movimento porque a reflexo crtica toma por foco o eventual dilogo da proposio epistemolgica de Ginzburg com o congnere conceito, originalmente tucidideano, de indiciamento (tekmrion) como procedimento metodolgico de veracidade factual, dilogo este, seno totalmente silenciado, efetivamente elidido pela (des)considerao com que Ginzburg o irreleva.

    Palavras-chaveCarlo Ginzburg; Tucdides; Metodologia da histria.

    AbstractThis essay casts some doubts on the consistency of the argumentative plot on which Carlo Ginzburg founded his evidentiary paradigm. A first moment of this reflective questioning will address the way Ginzburgs thesis was assessed by the critical literature. A second step will then focus on the interrelations between Ginzburgs epistemological considerations and the Greek notion of indictment (tekmrion), as originated in Thucydides work. For Thucydides, as also for Ginzburg, indictment is the methodical procedure that guarantees the factual accuracy in historiography. The essay suggests that Ginzburg disregarded his dialogue with Thucydides, not simply by being entirely silent about it, but rather by eliding it.

    KeywordsCarlo Ginzburg; Thucydides; Methodology of history.

    Recebido em: 7/11/2013Aprovado em: 16/12/2013

    * O ttulo presta homenagem ideia do filme de Elio Petri protagonizado por Gian Maria Volont: Indagine su un cittadino al di sopra di ogni sospetto.

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    No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho (Carlos Drummond de Andrade).

    Manoel Luiz Salgado Guimares, in memoriam: rememorao do esprito de uma conversa

    7 de setembro de 2007, sesso de encerramento do I Simpsio Antigos e Modernos: dilogos sobre a (escrita da) Histria. Porque a iniciativa ento inaugurada tivesse significativa marca identitria, coincidentemente prevista a realizao do Evento justo na Semana da Ptria, destaque foi dado anlise da Historiografia Brasileira para que seu aporte de reflexo crtica o encerrasse. A participao de Manoel Luiz Salgado Guimares ancorava a excelncia da proposta. Ao ensejo das circunstancialidades da data, sua conferncia historicizava o debate em torno de uma histria nacional no Brasil oitocentista, tendo por foco nuclear de anlise o que Manoel Salgado categorizou como textos de fundao, assim atinentes proposio instituinte do IHGB. Em meio sua exposio, uma referncia singular a uma passagem do texto de Raimundo Jos da Cunha Matos (Dissertao acerca do sistema de escrever a Histria Antiga e Moderna do Imprio do Brasil) ressoou em nosso esprito ecos que maravilhosamente reverberavam o esprito que inspirava e promovia o evento. Por uma intrigante frmula, Cunha Matos nomeava, em conjugao figurativa de cor local, a prxis historiogrfica de estabelecimento de veracidade de textos por o escalpelo da boa crtica (GUIMARES 2008, p. 409). Uma fagulha livre em nosso esprito fez pensar alguma similaridade de irreverncia com a clebre declarao provocativa de afirmao de identidade brasileira por Oswald de Andrade: Tupy or not tupy, that is the question. Tanto mais que o deslocamento identitrio promovido pelo conceito indigenista (cor)respondia com certa preciso condizente reverso ou antdoto aos nexos da teorizao original de matriz europeizante. Por um lado, a acuidade crtica da cincia mdica: operao cirrgica a extirpar o mal que atacava o texto, apurando e depurando sua verdade histrica. Por outro, ainda mais (im)pertinente, podia-se aventar uma similitude com veneranda criao historiogrfica de congnere matriz, esta de marca tucidideana: a crtica de veracidade categorizada por basanizo. Em sentido primrio, testar a falsidade da moeda de ouro pelo risco da pedra de toque (o basalto) que denunciasse sua corrupo por material vil. E tambm, em sentido derivado, torturar o escravo porque declarasse a verdade do que soubesse de um acontecimento criminoso sob investigao. Pelos (pre)conceitos do imaginrio aristocrtico grego antigo, o escravo, ser inferior, era dado a mentir, (des)razo ideolgica porque ento se justificasse legalmente subtrair-lhe por violncia a revelao da verdade a que naturalmente no estava afeito. No s, pois, cincia mdica, mas tambm afinidades policiais rondam a crtica de veracidade porque responde, por exemplo, a prxis historiogrfica do indiciamento, o tekmrion originalmente tucidideano. Mas agora, pela irreverncia do escalpelo, alguma aspirao porque se combata o jogo de papis contaminado por vicissitudes histricas de passado colonial mais avatares recentes de dominao ideolgica, quer de ultramar alm Atlntico, quer por certo lugar no Continente ao Norte.

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    Aspiraes de uma Teoria da Histria no Brasil e do Brasil, sem descair por atavismos nacionalistas nem degeneraes de ignorncia xenfoba. Que Manoel Luiz Salgado Guimares nos seja o emblema de tal esprito!

    Mais de dois milnios depois de Tucdides ter proposto o indiciamento como procedimento metodolgico de reconstituio dos acontecimentos passados, assim tambm props similar mtodo um outro historiador, este, entretanto, paradoxalmente desleixando (ou escamoteando) justo a considerao desse acontecimento histrico de ponderao tucidideana.

    Paradigma indicirioPelo ltimo quarto do sculo XX adentrando a primeira dcada do

    novo milnio, Carlos Ginzburg elaborou, em uma srie de artigos e ensaios, proposies de teses porque intentasse dar uma resoluo a um velho dilema, algo fantasmagrico, que h bom tempo j assombra a (des)confiana na histria: comporta essa modalidade de conhecimento respeitante aos modos porque atuam os homens no mundo diferenciados e especficos fundamentos metodolgicos que lhe assegurem singular estatuto de (alguma) cientificidade? A atualidade do velho dilema vinha de ser (re)ativada pelos ento recentes ares epistemolgicos ps-modernistas que instigaram atualizadas intrigas de mazelas querelantes. Intrigas agora mais graves porque, ao que argumentaram Arnaldo Momigliano e Carlo Ginzburg na sua esteira, insuflavam teses de revisionismo histrico, especialmente agudas por (re)avivarem as chagas do holocausto em renhidas disputas e debates por quem ideologiza preservar a realidade viva dessa memria contra quem ideologiza, em contrapartida, dissipar o espectro oportunista de sua (cor)respondente politizao; uns a promover a viso horrorizada daquele fenmeno em estigma da II Guerra Mundial, outros a cegarem. Como se a questo fosse, ao que induz a perorao de Carlo Ginzburg contra os por ele ditos cticos relativistas, ditar o imperativo de que a todo historiador se impe o dever de decidir qual o certo, qual o errado, quem virtuoso, quem vicioso: ps-modernismo por histria-literatura-fico x modernismo da histria de (in)certa cientificidade ... Ginzburg x Derrida ... Momigliano x Hayden White ... e ainda politizaes de sionismo x revisionismo histrico? A perversidade do procedimento assim reclamado descai1 por imperativo (alegado como de ordem moral ou tica) maniquesta de quem proclama falar em nome de alguma cincia e da verdica realidade factual porque se arvora a nos impor mais outro mandamento, agora historiogrfico, como se dez j no nos bastassem!

    No ensaio que inaugura a investida reflexiva de Ginzburg Sinais: razes de um paradigma indicirio (GINZBURG 1989, p. 143-179) , o historiador busca identificar o procedimento metodolgico que, mais especialmente conceitualizado no domnio das cincias humanas na modernidade (fins do sculo XIX a incios do XX), atravessara e acompanhara como prxis investigativa toda a histria humana, tendo suas razes em tempos primordiais, desde as

    1 Os desvios e deslizes mais equvocos porque descai a reflexo nos termos em que a perpetra Ginzburg so agudamente clarificados pela crtica argumentada por Jacques Rancire em seu ensaio (2011, p. 476-484).

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    sociedades de caadores do Neoltico. Tal modalidade de atuao inquiridora, ao que argumenta Ginzburg, perpassa inmeros campos da atividade humana: perseguies de caa, artes divinatrias, prticas mdicas, imaginrios literrios de romances policiais e detetivescos, percias eruditas de connoisseurs de obras de arte, saber psicanaltico freudiano, tcnicas grafolgicas, exegese de crtica textual histrico-filolgica, vindo a alcanar, ainda, os procedimentos burocrticos de identificao do indivduo na sociedade burguesa contempornea. Reconhece-se, assim, ao longo de toda essa histria, o paradigma epistemolgico que lhe corresponde sob distintas nomenclaturas: ou indicirio ou venatrio ou divinatrio ou semitico.

    Enquanto categoria de discurso epistemolgico, o paradigma decantara conceitualmente, ao que detecta a anlise de sua gnese por Ginzburg, pelo findar do sculo XIX (GINZBURG 1989, p. 143), ento articulado em trs agenciamentos sucessivos, seno mesmo conexos. Primeiro, entre 1874 e 1876, por Giovanni Morelli (sob o pseudnimo de Ivan Lermolieff) em proposta de mtodo por que intentava regrar procedimentos de anlise de quadros capazes de identificar a autoria dos mesmos por meio do reconhecimento de detalhes pictricos reveladores de traos idiossincrsicos de determinado pintor (GINZBURG 1989, p. 143-145). A seguir, por Conan Doyle por fins dos anos 1880 (GINZBURG 1989, p. 145-146), que operava o paradigma na criao de suas novelas detetivescas, figurando-o pela arte indiciadora de crimes porque primava a arguta percia de Sherlock Holmes. E tambm por Sigmund Freud em torno de 1898 a 1901, quando arquitetava os fundamentos da tcnica psico-analtica de desvendar segredos e verdades ocultas a partir de resduos negligenciados, de que o mtodo morelliano, ao que o prprio Freud apontou anos depois, provera-lhe manancial inspirador (GINZBURG 1989, p. 146-149).

    Por todos os trs, ao que ajuza Ginzburg, perpassa a mesma provenincia fundamentadora do mtodo paradigmtico: o modelo de semitica mdica de alcance diagnstico que identifica a doena por meio do (re)conhecimento perspicaz de traos ou pistas infinitesimais que, desconsiderados seno negligenciados pelo olhar comum como triviais, superficiais, irrelevantes ou insignificantes, no obstante indiciam a realidade patolgica oculta, inapreensvel pela observao direta que a perde porque extraviada, desatenta daquele preciso foco extraordinrio de percepo to inteligente quo (im)pertinente. Modelo de metodologia mdica que, por sua vez, supunha e remetia, precisamente na dcada de 1870-1880, diz Ginzburg, ao paradigma indicirio que ento se afirmava no horizonte das cincias humanas baseado justamente na semitica (GINZBURG 1989, p. 150-151).

    Apreciando a conjugao cumulativa das operaes definidoras do paradigma indicirio por Morelli, Sherlock Holmes mais Freud, Ginzburg (re)compe o complexo de atributos que caracterizam sua distintiva natureza, conferindo-lhe identidade metodolgica. Jogos de contraposies marcam a ambgua (des)qualificao da natureza do indcio (traos, pistas) enquanto objeto que embasa o mtodo por axiologia de revertida hierarquia (historiogrfica): pequeno ou minsculo (mesmo infinitesimal) versus grande; detalhe versus

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    importante; trivial versus fundamental; parte versus todo; individual versus social; menosprezado versus eleito; restos versus proveito; baixo versus alto; inferior versus superior; marginal versus central; oprimido versus poderoso; tangvel, concreto versus imaterial, formal; opaco versus transparente; observvel versus invisvel; manifesto versus oculto; evidente versus latente; ciente versus inconsciente; reprimido versus idealizado, sublimado; superficial versus profundo; subterrneo versus celeste; trevoso versus brilhante; infernal versus divino. Jogo expresso em retrica de paradoxos ambguos porque se proclama a capacidade cognitiva de mtodo eficiente em detectar, alcanar e apreender a realidade histrica maior a partir da menor.2

    O motto virgiliano da Eneida em epgrafe do tratado freudiano emblematiza tal retrica de definio do mt-hodos dizendo a via ou caminho porque essa categoria epistemolgica responde por sua prpria etimologia definidora: Flectere si nequeo Superos, Acheronta movebo.3 Uma nomenclatura conceitual, transitando dos antigos aos modernos, divinatio, especialmente articula as virtudes singulares dessa modalidade metodolgica de conhecimento que opera por indiciamento na reconstituio de realidade histrica factual apurada e depurada por argumentos de veracidade.

    Detalhes A epgrafe com que Ginzburg encima a reflexo do ensaio Sinais por

    que aponta o sentido sinttico de seu alcance cognitivo diz: Deus est nos detalhes (GINZBURG 1989, p. 143). Marco Bertozzi, em comentrio ao ensaio de Ginzburg, contrape-lhe o aforisma atribudo a Karl Kraus que reconhecia que nos detalhes, o diabo que se esconde. Pelo que Bertozzi nos adverte:

    Mas ao entrar nos detalhes, corremos o risco de ser o joguete de algum pequeno diabo divertindo-se s nossas costas. Nossos ancestrais diziam, quando alguma coisa escapava de suas mos e no conseguiam agarr-la: Olhe! o diabo que joga... A investigao cansativa, no chegamos sempre ao final na primeira tentativa. Os detetives e os sbios, na busca do culpvel, na busca da verdade relativa sua investigao, enroscam-se com frequncia em falsas pistas: a presa no se deixa facilmente ser apanhada (BERTOZZI 2007, p. 29).4

    Que seja! caa indiciria do diabo pela trilha de (alguns) detalhes ginzburgianos!

    2 No deixa de ser irnico que a pretenso de operar a interpretao mais axiologia metodolgica proclamando-a pela hierarquia invertida a assim apreender a histria pelo lado do baixo, inferior, marginalizado como o declaram as proposies ginzburgianas tenham encontrado estranhamentos, seno rejeies, justo da parte dos agentes e sujeitos mesmos que ativam as razes dos oprimidos: vejam-se as manifestaes do revolucionrio mais as da feminista a esse respeito, plenas naquele e parciais nesta, ambas integradas no artigo de Stephanie Jed (JED 2001, p. 372-384).3 Se no posso mover os deuses superiores, moverei o Acheronte.4 No original: Mais en entrant dans les dtails, nous risquons notre tour dtre le jouet de quelque petit diable aimant se moquer de nous derrire notre dos. Nos anctres disaient, quand quelque chose leurs filai des mains et quils ne parvenaient pas lattraper: Regardez! cest le diable qui joue ... Lenqute est fatigante, on ne parvient pas toujours au but du premier coup. Les dtectives et les savants, qui dans la recherche du coupable, qui celle de la vrit relative leur enqute, sembrouillent souvent dans de fausses pistes: la proie ne se laisse pas facilement piger.

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    H algo de ilusionismo oportunista seno mistificao protica5 que transparece das argumentaes discursivas com que Ginzburg trama as intrigas de suas teses, espcies de (dis)simulados icebergs de que se mostram apenas a ponta visvel acima da gua,6 a vagar soltos, desgarrados da geleira narrativa da micro- porque atravessem o oceano epistemolgico da histria.

    Peter Burke comentando em resenha a Miti, emblemi, spie a vasta bibliografia mais extensas temticas que alimentam o livro, aponta algo sucintamente: Ginzburg um leitor voraz (BURKE 1990, p. 108). Desse ambguo cumprimento por que se sada o historiador italiano a aludir quer sua sede de conhecimentos quer pressa com que avidamente os sorve, dizem similarmente outros comentadores por formulaes de crticas algo ambiguamente (dis)simuladas. O prprio Burke acresce: os leitores so levados a acabar cada ensaio com a cabea repleta de questes no respondidas (BURKE 1990, p. 110).7 Assim tambm o faz David Herlihy: os ensaios tm um alcance to vasto, so to ricos e provocativos, que uma reviso completa acabaria por ser mais longa que o prprio livro (HERLIHY 1991, p. 502).8 J Tony Molho d sinais crticos mais claros: gostaramos que Ginzburg tivesse adicionado algumas pginas a mais a fim de clarificar os obscuros, ainda indefinidos aspectos de sua formulao. Ele aventurou-se nessa questo em incurses posteriores. Mas, se formos julgar pelas respostas de alguns de seus crticos, no o fez satisfatoriamente (MOLHO 2004, p. 137).9 E Perrine Simon-Nahum refere j a idiossincrasia como estigma das leituras: Carlo Ginzburg despeja um saber que no pertence seno a ele, ousando analogias e ligaes cujos detalhes fortuitos mascaram a erudio prodigiosa sobre a qual repousam (SIMON-NAHUM 2011).10 Ambguos cumprimentos que ponderam a conjugao virtuosa/viciosa com que Ginzburg argumenta proposies reflexivas to ricas de desafios quo insatisfatrias de (des)entendimentos.

    Mais contundentemente o ajuza James Elkins:

    5 Emblemtico o pargrafo no prefcio do livro Sinais em que, apresentando espcie de mimesis de daimon socrtico dada guisa de argumento, o Autor intriga (con)fuso de (ir)reflexo (dis)simulada de autocrtica com sua negligncia (GINZBURG 1989, p. 10-11).6 Para indicaes das partes submersas que descobrem as insuficincias mais deficincias pontuais das argumentaes de Ginzburg porque se possa suprir aquelas e concertar estas, confiram-se: VEGETTI 1980, p. 8-10; VATTIMO 1980, p. 23-24; ROVATTI 1980, p. 36-37; VALERI 1982, p. 141-143; HARTOG 1982, p. 25; LaCAPRA 1985, p. 45-69; BURKE 1990, p. 108, 110; DUMZIL 1985, p. 985-989; ZAMBELLI 1985, p. 983-999; BLACK 1986, p. 67-71; CARRIER 1987, p. 76-77; BARTLETT 1991; MARTIN 1992, p. 613-626; SCHUTTE 1992, p. 576; STRUEVER 1995, p. 1203; BUTTI de LIMA 1996, p. 8-9; UZEL 1997, p. 28, 31-32; EGMOND-MASON 1999, p. 241, 244-245, 247-250; AYA 2001, p. 151-152; JED 2001, p. 372, 373-374; COHEN 2003, p. ix; HARTOG 2005, p. 228-229; BORGHESI 2006, p. 110-111, 114, 118-119, 121-126; THOUARD 2007, p. 12-13, 16-17; BERTOZZZI 2007, p. 33; MOST 2007, p. 63, 65, 67-68, 70, 73; HAMOU 2007, p. 190-194; COHEN 2007, p. 222-223; DOJA 2007, p. 93-94); PAPE 2008, p. 1; OGAWA 2010; SIMON-NAHUM 2011, p. 2; VOUILLOUX 2011, p. 2-3, 4, 6, 7-8, 9-10; RANCIRE 2011, p. 474-484; HARTOG 2011, p. 540-552; BOULAY 2011.7 No original: Readers are likely to finish each essay with their heads full of unanswered questions. If such abundance is a fault, it is one which is all too rare in historical writing today.8 No original: The essays are so far-ranging, so rich, and so provocative that a full review would likely be longer than the book itself.9 No original: One wishes Ginzburg had added a few more pages to clarify the dark, still undefined sides of his formulation. He ventured into this issue in subsequent forays. But, if one were to judge by the response of some of his critics, he did not do so satisfactorily. 10 No original : Carlo Ginzburg daploie un savoir qui nappartient qu lui, osant des analogies et des rapprochements dont les dehors fortuits masquent la prodigieuse rudition sur laquelle elles reposent.

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    Existem muitos problemas neste ensaio, o qual tem sido, ao mesmo tempo, muito usado e pouco criticado; podemos questionar a sufocante voz autobiogrfica ao longo do ensaio, na qual o autor implcito torna-se ele mesmo um detalhe desprezado e seus trabalhos tornam-se mais exemplos inconscientes do mtodo baixo do que propriamente aplicaes controladas dele; e somos levados a querer indagar sobre o sentido da curiosa, no cientfica tentativa de Ginzburg em excluir do domnio da cincia o que ele descreve como a inteno de observar sem teorizar (ELKINS 1996, p. 279-280).11

    Por quais alternativas de prediletas exemplificaes de indiciamento na reconstituio de fatos avana a argumentao por que Ginzburg (com)prove sua efetividade operacional? Pelos inmeros indiciamentos bibliogrficos referidos por Ginzburg, alguns especiais relatos ilustram a maravilhosa eficincia do mtodo indicirio em revelar a verdade, todavia oculta, de um acontecimento passado, justo apenas a inferindo a partir da concatenao das pistas e indcios subsistentes.

    Assim o conto dos Trs prncipes de Serendip que, ajuizando com argcia e percia de discernimento o complexo de marcas deixadas pela trilha de um animal ao longo da estrada, so capazes de descrev-lo com preciso rigorosa de detalhes apesar de jamais o terem visto: um camelo coxo (pelas marcas de passos de trs patas ntidas contra apenas uma outra arrastada), cego de um olho (pela falta de grama por ele comida apenas de um dos lados da estrada, entretanto ali menos verde), falto de um dente (pelas bolotinhas de grama semi-mastigada deixadas cair da largura de um), levando uma mulher (pelas marca de um calado associadas s de um camelo ajoelhado deixadas junto a uma poa de urina feminina identificvel por odor mais gosto) grvida (pelas marcas de mos ao lado da poa porque apoiasse o esforo de se levantar) mais cargas de mel de um lado (pelas moscas atradas para uma borda da estrada pelo que ali respingara) e de manteiga de outro (pelas formigas para a outra) (MSSAC 2011, p. 37-46). Similarmente ocorre em um dos contos integrados por Voltaire em Zadig, certamente inspirado nos originais orientais, com o decifrador de pegadas animais agora conseguindo reconhecer a passagem ou de uma cadela ou de um cavalo, por ele ento descritos em mincias e detalhes, no obstante jamais t-los visto.

    Tem-se por tais contos, acrescenta Ginzburg, a origem ou embrio das novelas policiais que narram histrias de crimes misteriosos maravilhosamente descobertos por engenhosos detetives, tais como Dupin, na criao de Edgar Allan Poe, e sobretudo Sherlock Holmes, pela de Conan Doyle, este ltimo justamente figurando como uma das instncias reflexivas porque se decanta a formulao conceitual do paradigma indicirio por fins do sculo XIX.

    Sim, certamente, nenhum dos trs prncipes de Serendip nem Zadig haviam visto anteriormente e por isso conheciam ou aquele camelo ou aquela cadela

    11 No original: There are many problems with the essay, which has arguably been overused and undercritiqued: one might question the stifling of the autobiographical voice throughout the essay, so that the implied author himself becomes a despised detail and his works become unreflective examples of the lower method rather than controlled applications of it; and one might want to inquire into the meaning of Ginzburgs curious, unscientific attempt to exclude from the domain of science what he describes as the intention to observe without theorizing.

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    que to maravilhosamente descreveram em abundantes detalhes. Tampouco Sherlock Holmes presenciara os crimes que to inteligentemente descobre. E, no entanto, assim se representa ficcionalmente apenas o que o autor desses contos e histrias de princpio sabia plenamente, tendo imaginado ou a viso daqueles animais12 ou o presenciamento destes crimes, de que a configurao de atos e decises cognitivas atribudas a seus personagens confunde a iluso. Pois, se Zadig no viu a cadela e o cavalo, Voltaire os viu, j que os (re)criou.13 E se Sherlock no testemunhou o crime, Conan Doyle14 o fez, tendo-o imaginado.

    Ginzburg ilude por demonstrao comprovadora da eficincia metodolgica do paradigma indicirio, decifrador de realidade factual, a razo invertida da operao lgica implicada: d por inferncia conclusiva do acontecimento passado supostamente desconhecido, operada por meio da concatenao dos indcios identificados como o que dele restou e existe presentemente manifesto, o que tramado por intriga de decomposio em indcios produzidos a partir do acontecimento ficcionalmente dado e conhecido de incio, de modo que aquela inferncia conclusiva de apreenso do acontecimento reconstitudo reduz sua validade lgica a uma tautologia. No h equivalncia de transitividade lgica entre as duas vias, pois o todo mais do que a soma das partes por supor justo a modalidade de razo ou nexo que as estrutura univocamente ou que, pelo contrrio, as desestrutura pluralmente. E a decomposio em indcios dispe pluralidade de concatenaes de verses de diferenciadas semnticas de percepo (re)constituidora.15

    Os exemplares de indiciamentos configurados por esses contos orientais16 em que se fundamenta a argumentao de Ginzburg comportam a natureza fantasiosa correspondente s obras de relatos maravilhosos que os integram. Eles se ordenam na estruturao narrativa do conto por um gradiente progressivo de fantasias que imaginam (ir)realidades (menos ou mais) maravilhosas tendo por desgnio simular provas de (menor ou maior) perspiccia com que se defrontam e resolvem a inteligncia e percia superlativa dos protagonistas a, pois, apresent-los por estatura heroica. Num primeiro nvel mais elementar de nexos indicirios se os escalonam quer pelas formas distintivas de pegadas das patas (do camelo ou do cavalo ou da cadela), quer dos gneros de alimentos por eles preferidos (gramneas para camelos, aucarados para moscas, gordurosos

    12 Alis diversamente (re)criados de modo a conjugar diferenas de indcios assinalados conforme as variantes dos contos narrados correspondentes aos nexos imaginativos que distinguem cada verso (MSSAC 2011, p. 37-46).13 Afinal, algum viu o animal (na origem cognitiva da codificao categorizadora de suas pegadas) pois quem seria capaz de identificar pegadas de animal que jamais foi visto?14 A (con)fuso Sherlock Holmes por Conan Doyle ou indireta ou alusivamente apontada j pelos comentrios de Marcelo Truzzi: a grande maioria das inferncias de Sherlock no resiste a um exame lgico. Ele as conclui satisfatoriamente pelo simples motivo que o autor das histrias o permite (1991, p. 79) e de Umberto Eco: Como ele [Sherlock Holmes] tem o privilgio de viver em um mundo construdo por Conan Doyle que, adequadamente, se encaixa em suas necessidades egocntricas, ento, ele no carece de provas imediatas de sua perspiccia (1991, p. 241). Considere-se ainda o que diz Umberto Eco sobre a estrutura teleolgica do juzo operado por Zadig ao partir do princpio de que os dados indicirios em que se baseia fossem harmoniosamente relacionados (ECO 1991, p. 236), assim os sendo justo pela deciso criativa de Voltaire.15 Emblemtico nesse sentido a reflexo proposta em Rashomon de Akira Kurosawa/Ryunosuke Akutagawa. Confira-se ainda a crtica que Robert Bartlett dirige ao mtodo associacionista de alegados indcios operado por Ginzburg em Ecstasies (BARTLETT 1991).16 Confiram-se os relatos apresentados por Roger Mssac (2011, p. 37-46).

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    para formigas), quer de alguns de seus distintivos modos de comportamento (o espalhamento das fezes pela cauda na defecao do camelo contra sua concentrao em bloco na do boi). Tais so os tipos de indcios a que se apegam as argumentaes quer de Mssac, quer de Voltaire, e nessa esteira tambm Ginzburg, assim redutoramente condizentes com o foro de racionalidade factual mais plausvel17 porque as conjecturas divinatrias ganhem aspecto comprovatrio de realidade. Pois, eles silenciam, elidem o prosseguimento da histria memorizada pelos contos orientais, as quais progridem aventando indiciamentos bem mais audaciosos e inauditos: a vinha (ou o trigo) plantada sobre um sepulcro de que fora fabricado o vinho (ou o po) porque seu gosto inspira pensamentos fnebres; o cordeiro que foi amamentado por uma cadela porque sua carne tinha tal paladar, ou o cabrito assim aleitado porque sua carne concentrava o depsito de gordura junto ao osso; o sulto que no passa de um bastardo, filho de pai escravo e me adltera, porque afeito a comportamento indigno de bisbilhotar escondido as conversas de seus hspedes.

    Contos maravilhosos enquadrados, pois, por contextualizaes tpicas de histrias de sucesso rgia porque se memorizava a ideologia antiga de legitimao do poder monrquico, figurando as virtudes e mritos superlativos do rei porque heri. Memrias histricas que afirmam a arte da divinatio por sobreposies cumulativas de registros literrios e cientficos que as acompanham ao longo dos sculos de seu percurso pela histria da civilizao humana, assim configurando cdigos categorizadores de indiciamentos. Percurso, pois, milenar, porque a disponibilidade do nosso mtodo indicirio encontra-se bem longe de qual remota origem paleoltica o tivesse inaugurado. Que o mtodo, ento, remeta perspectiva do olhar da histria pelo lado social inferior, marginal ou oprimido operando por intuio baixa contraposta alta, cientfica, responde antes pelos vezos da retrica ilusionista ginzburgiana, seja l a qual fantasia de oportunismo ideolgico ela satisfaa.18

    Condizente com a metodologia da microhistoria19 de que Ginzburg figurava como seu proponente mais famoso e destacado, a formulao do paradigma indicirio tanto a fundamenta em termos mais imediatos de proposio de uma disciplina historiogrfica particular, quanto almeja conferir-lhe alcance de projeo modelar porque se generalize por essa modalidade de mtodo a distintiva virtuosidade cognitiva da histria. Figurao metodolgica especialmente apropriada para o conhecimento histrico que arvora capacidade de compor discurso assegurado por modos argumentativos estruturadores de declaraes providas de referencialidade factual. E, todavia, da casustica ampliada e extensa porque Ginzburg mapeia o espectro emprico comprovador da realidade histrica do paradigma, percorrendo assim praticamente todo o percurso da histria humana, a indicao do procedimento particularmente

    17 Confira-se o comentrio de Mssac (2011, p. 39).18 Confira-se, similarmente, a crtica de Dominick LaCapra ao livro de Ginzburg (O queijo e os vermes), introduzida por alusiva referncia ao methodological populism como uma tendncia presente em variantes da historiografia dos anos 1980 (LACAPRA 1985, p. 45-69).19 Os nexos que imbricam o ensaio Sinais com as proposies da microhistria so apontados pelo prprio Ginzburg no texto de 2007 Reflxions sur une hypothse vingt-cinq ans aprs (GINZBURG 2007, p. 37-47).

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    Indagaes sobre um mtodo acima de qualquer suspeita_________________________________________________________________________________

    hist. historiogr. ouro preto n. 13 dezembro 2013 p. 24-44

    experienciado no domnio prprio da escrita da histria, que no esse singular hors concours da microhistria, no se encontra pelo ensaio do historiador italiano qualquer evidenciamento exemplificador. Tanto mais paradoxal lapso por elipse ou esquecimento que, entretanto, as pistas aproximadoras de suas lembranas afloram pelos argumentos ento explorados.

    Peter Burke, em singular declarao de crtica expressa ao ensaio de Ginzburg, estranha que ele d a divination como sendo o mtodo da prxis historiogrfica, quando antes apenas constitui um de seus procedimentos operacionais.20 O comentrio de Harry C. Paine aponta na mesma direo pois, ao se referir especificidade operacional da divinatio em termos de instinct, insight, intuition, assimila o conceito pela ideia de gnio como era definida por fins do sculo XVIII.21 O que Payne assim alude apenas em termos genricos, comporta identificao mais precisa e singularizada, pois foi precisamente como divinatio que Barthold Georg Niebuhr,22 por incios do sculo XIX, nomeou sua proposio de mtodo histrico-filolgico enquanto fundamento de uma histria de pretenso cientfica. A mesma nomenclatura comparece igualmente em Leopold von Ranke ainda por essa mesma poca. Em ambos, Niebuhr e Ranke, a instncia modelar por que respondesse a proposio do mtodo histrico, qual seja, Tucdides, justamente figurada como o gnio d