HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA

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EVOLUÇÃO DA CARDIOLOGIA

As intensas transformações socioeconômicas que a humanidadevivencia desde o final do século XIX, caracterizadas especial-mente pela industrialização e pela urbanização das populações,continuam a agir como mola propulsora das modificações doshábitos de alimentação, da redução do grau de atividade física edo aumento do estresse emocional. Estas mudanças ocorreramsimultaneamente ao controle das doenças infecto-contagiosas eas doenças cardiovasculares passaram, portanto, a ser a principalcausa de morte no mundo, especialmente no Ocidente.

Além disso, o grande progresso tecnológico em geral e da tec-nologia da informação, especialmente nos últimos anos, bene-ficiaram grandemente a especialidade, que hoje se encontramais preparada para enfrentar os desafios representados pelaampla prevalência destas doenças. Por isso é natural que a espe-cialidade, atualmente, alcance tamanho destaque na medicina eem toda a mídia leiga. Contudo, o interesse pelo funcionamen-to do coração tem raízes mais antigas. Povos e civilizações pro-curaram estudar este órgão que sempre despertou a investiga-ção e inspirou mitos.

LINHA DO TEMPO

A história da Cardiologia inicia-se com o interesse em aprofun-dar os conhecimentos sobre a circulação. No papiro de Smith,atribuído a Imhotep, encontra-se uma descrição do coração eda sua ligação com os vasos sangüíneos – naquele documentochamados de canais –, os quais se distribuíam pelo corpo. Estepapiro, com datação estimada em 3000 a.C., já demonstravatambém que havia o conhecimento da existência da pulsação.

Os chineses, cerca de 2300 anos atrás, também descreveram osfundamentos da anatomia do sistema circulatório e ainda adi-cionaram à sua investigação o dado de que havia movimentodo sangue no interior destes vasos.

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Já na Grécia Clássica, os conheci-mentos médicos foram significa-tivamente enriquecidos em con-seqüência do desenvolvimentode métodos de pesquisa racio-nais, com destaque especial à ob-servação criteriosa, e das primei-ras formas de estruturação dopensamento humano. Assim, Pla-tão já afirmava que o coração erao órgão central da circulação eque o sangue se encontrava emconstante movimento. Hipócra-tes ensinava aos seus discípulosque o coração era dividido emcavidades, algumas delas separa-das por válvulas e que a colora-ção do sangue diferia nas cavida-des direitas e esquerdas. Hipó-crates também caracterizava o

coração como um órgão tão nobre que seu adoecimento seriaincompatível com a vida. Hipócrates descreveu as veias comoos vasos que conduziam o sangue, mas ensinava que as artériaseram os canais responsáveis pela distribuição do ar no organis-mo. Na mesma ilha de Cós, onde Hipócrates praticava a medi-cina, Praxágoras ensinou que o exame atento do pulso poderiadar informações importantes sobre muitos tipos de doença. Noentanto, o avanço da medicina grega foi beneficiado tambémpela intensa atividade dos filósofos, dentre os quais se destacaAristóteles, que descreveu em detalhes a aorta e já afirmava queo coração era o último órgão a morrer, o que acontecia quandosuas batidas cessavam. Herófilo, no III século a.C., descreve adiástole, a sístole, além de quatro aspectos fundamentais dopulso: freqüência, amplitude, força e ritmo – sendo o primeiroestudioso a analisar as arritmias. Erasitato aprofunda os conhe-cimentos hipocráticos e descreve as valvas aórtica e pulmonar,além de anunciar, contrariando os preceitos do mestre de Cós,

Imagem da 19ª dinastiatebana, do Livro dosMortos de Hunefer (c.1300 a.C.), representandoAnúbis, que possuicabeça de chacal,segurando o ataúde quecontém o corpoembalsamado de Huneferdiante da família que opranteia e de sacerdotesexecutando a cerimôniade “Abertura da Boca”,que prepara o falecidopara a vida após a morte.Extraído de Medicine: anillustrated history, 1978,Harry N. Abrams, Inc.

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que as artérias também continham sangue e que secomunicavam com as veias.

A medicina romana apresentava caráter peculiar,pois recebeu muitas influências gregas, mas admitiatambém práticas advindas de regiões mais longín-quas do Império, principalmente de onde era ado-tado o latim como língua cotidiana. Contudo, foium profissional que chegou a ocupar o cargo demédico pessoal do imperador Marco Aurélio o res-ponsável pelo maior desenvolvimento dos conheci-mentos sobre anatomia em geral e, também, sobrea anatomia do coração. Trata-se de Cláudio Galeno.Ele angariou a maior parte de seus conhecimentosa partir da prática diária de dissecções em animais,as quais realizava com o objetivo principal de aper-feiçoar sua técnica cirúrgica. Além disso, Galeno eraum fiel seguidor da ciência grega e indicava a obser-vação sistemática e rigorosa como a melhor formapara fazer avançar o conhecimento da medicina. Todavia, a con-tribuição mais conhecida de Galeno foi a de descrever a existên-cia e a fisiologia de três “espíritos” no corpo, sendo o coração asede do espírito vital, segundo o médico romano.

Durante a Idade Média e o início da Idade Moderna quase nãohouve avanços no conhecimento médico que, durante quaseum milênio, mantinha como base os ensinamentos de Hipócra-tes, Aristóteles e Galeno, além de lançar mão de um vasto arse-nal de práticas empíricas e supersticiosas. Foi com o advento daRenascença que avanços científicos voltaram a acontecer, e maisuma vez a medicina foi beneficiada. Não seria possível, nessecontexto, desprezar os conhecimentos trazidos pelos trabalhosde Leonardo da Vinci. Este pontificou em diferentes áreas doconhecimento e trabalhou com sistemática na investigação daanatomia humana. O notável homem das artes e das ciências sededicou com afinco à realização de dissecções, muitas delas fei-tas em indivíduos recém-falecidos. Seus esquemas e desenhos

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Médico examinandopaciente pela medida dapulsação, talvez a maisimportante característicado diagnóstico médico naChina antiga. Cortesia deWellcome Trustes,Londres. Extraído deMedicine: an illustratedhistory, 1978, Harry N.Abrams, Inc.

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trouxeram ao conhecimen-to da humanidade a exis-tência do endocárdio, doaparato valvar incluindo osmúsculos papilares e o sacopericárdico. Leonardo daVinci caracterizou o mús-culo cardíaco como sendoo mais potente do corpohumano e, por ter exami-nado cadáveres de pessoasjovens e idosas, fez descri-ção pioneira da ateroscle-rose, relatando e desenhan-do muitas modificaçõesque comprometem os va-sos arteriais com o progre-dir da vida.

As publicações de Andreas Vesalius, que editou De Humani Fa-brica Corporis, foram os trabalhos, ainda durante o Renasci-mento, que mais impulsionaram o conhecimento da anatomiahumana. Porém, o pesquisador que realizou a maior contribui-ção individual no período foi William Harvey.

Este médico inglês, nascido em 1578 no condado de Kent, estudouna Universidade de Pádua. Harvey tornou-se médico pessoal dosreis James I e Charles I da Inglaterra. No ano de 1628, publicou seu trabalho fundamental Exercitatio Anatomica De Motu Cordis et Sanguinis in Animalibu (Exercício Anatômico Relacionado aoCoração e à Circulação em Animais), que revolucionou o conhe-cimento do sistema circulatório corrigindo e superando os ensi-namentos de Galeno e outros de seus predecessores. Suas con-clusões também foram fruto de intensas pesquisas baseadas emautópsias, as quais esclareceram a verdadeira natureza da circu-lação, das funções das valvas e demonstraram que não há fluxoatravés do septo do coração, mas sim que a corrente sangüínea

Homem ferido sendocolocado na biga para serremovido do campo debatalha. Detalhe de urnaetrusca que tambémrepresenta o perito emMedicina, Aquiles,cuidando de Patroclus.Museu Arqueológico,Florença. Extraído deMedicine: an illustratedhistory, 1978, Harry N.Abrams, Inc.

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atravessa o parênquima pulmonar. William Harvey esclare-ceu também a passagem do sangue dos átrios para os ven-trículos e seus feitos são ainda mais notáveis se lembrarmosque ele os realizou sem a ajuda do microscópio. Na verdade,suas conclusões eram tão revolucionárias que somente fo-ram aceitas integralmente pela medicina por volta de 1827.O reconhecimento dos seus esforços, porém, faz com quehoje muitos o considerem o fundador do moderno métodode aplicação da medicina e como o pai da fisiologia. WilliamHarvey, no entanto, não conseguiu determinar como o san-gue passava das artérias para as veias, mas os vasos capilaresforam descritos ainda no século XVII por Malpighi. Por suavez, Giovanni Battista Morgagni publicou De Sedibus etCausis Morborum que relatava, dentre outros achados denecropsia, diversas doenças do sistema cardiovascular, taiscomo rupturas cardíacas, aneurismas da aorta, valvopatias eda doença isquêmica do coração. Contudo, (talvez) um deseus relatos mais impressionantes certamente seja aquele re-ferente à presença de pulso bradicárdico (22 batimentos porminuto) num paciente portador de síndrome de Stoke-Adams que apresentou convulsões durante o exame físicorealizado por Morgagni. A acurácia da descrição das irregulari-dades do pulso e a importância da associação entre os dois acha-dos impressionam ainda hoje.

Ainda no curso do século XVIII, Raymond de Vieussens aper-feiçoou os conhecimentos sobre a anatomia cardíaca, em espe-cial descobrindo bandas musculares e peculiaridades da circu-lação arterial e venosa coronária, com enfoque particular nasestruturas do lado direito do coração.

No campo da prática clínica, nesse mesmo século, foi feita ain-da uma das mais notáveis descrições de uma doença, realizadapor William Heberden, médico inglês que também deixou seunome ligado a pacientes com artrite. Heberden foi um brilhan-te acadêmico, mas se destacava por apresentar perspicácia e in-tensa disciplina intelectual. Durante toda a sua carreira tomou

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Esboço de Leonardo daVinci, mostrando adistribuição das veias docoração. (c. 1475 d.C).

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nota, em latim, das principaisqueixas relatadas pelos pacien-tes e procurou associar doençasa achados anatômicos, buscan-do sinais que fossem úteis paraauxiliar no esclarecimento diag-nóstico. Escreveu sua principalobra já em idade avançada enela fez brilhante descrição daangina, termo que ele mesmoutiliza no seu trabalho original.Neste, Heberden caracteriza aapresentação da angina, sua lo-calização, irradiação, os sinto-mas que a acompanham, talcomo a sensação de morte imi-nente e, de modo muito espe-cial, a associação entre o sinto-ma e a realização de atividadesfísicas.

No mesmo século tivemos a introdução do digital (digitalispurpurea) por William Whitering, que publicou trabalho em1753 descrevendo com acurácia a utilização deste medicamen-to, até hoje parte fundamental do arsenal terapêutico da Car-diologia. Antes disso, em 1711, houve o estabelecimento dosprincípios de dois procedimentos fundamentais para o futuroda Cardiologia feitos por Stephen Hales, que estudou profun-damente a hidrostática da circulação e pela primeira vez mediua pressão sangüínea. Para alcançar este feito, Hales realizou ocateterismo cardíaco em três cavalos, sendo, portanto, pioneirotambém neste tipo de intervenção em animais vivos.

A partir do século XIX, observam-se avanços na área da prope-dêutica e o primeiro fato notável a ser citado é a invenção do es-tetoscópio por René Teophyle Hyacinthe Laennec, médico fran-cês nascido em 1781 que pontificou em diversas áreas, tendo

São Benedito, fundadorda ordem dos Beneditinos(c. 529), em afresco porSpinello Aretino (c. 1378).São Benedito encorajavaseus monges a cuidar dosdoentes, mas proibia oestudo da Medicina poracreditar que as curassomente eram possíveispela intervenção divina.San Miniato al Monte,Florença. Extraído de Amedicina e sua história,1989, EPUC.

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Hipócrates, comoimaginado por umaartista bizantino doséculo XIV, tornou-se omais famoso nome daantiga Medicina Grega eera associado a umaexpressiva coleção detextos chamada “CorpusHippocraticum”. DoMuseu Grego (c. 1342)2194, f. 10v., BibliotèqueNationale, Paris. Extraídode A medicina e suahistória, 1989, EPUC.

sido o primeiro a tentar associar sinais e sintomas de doençascom achados de necropsia. Laennec, que era também flautista,observou crianças brincando com tubos longos que eram utili-zados para transmitir sons para outras crianças e considerouque o mesmo princípio poderia ser utilizado para investigar, deforma mais profunda, os sons dos órgãos do tórax – análise queaté sua época era feita pela ausculta direta, isto é, com a coloca-ção da orelha do médico diretamente sobre o tórax do pacien-te. A primeira aplicação deste novo método foi feita pelo pró-prio autor para examinar uma mulher jovem, tendo como umdos objetivos evitar o contato direto do médico com a sua pa-ciente, devido ao recato da época. Contudo, Laennec relata quedescobriu com “espanto e satisfação” que a percepção auditivados sons do tórax era muito mais clara com o auxílio de sua in-venção do que era até então e o novo aparelho ganhou o usoamplo que até hoje o caracteriza. Tão grandes foram as suascontribuições para a prática médica que seus trabalhos foramcomparados aos de Hipócrates e assim ele passou a ser conhe-cido como o pai da medicina torácica.

Com o início do século XX, a humanidade começou a atraves-sar o período das mais intensas, rápidas e dramáticas mudançasjá observadas ao longo de toda a história. A tecnologia passou aavançar de modo extremamente veloz, influenciando a vida daspessoas, mudando seus hábitos e implicando profundas altera-ções dos padrões de vida. Testemunhou-se o fenômeno da ur-banização que passou a ser de tal modo acentuado que, a partirdo ano de 2007, pela primeira vez na história da humanidade,havia mais pessoas vivendo nas cidades do que nos campos. Osistema de saneamento básico, a vacinação, o desenvolvimentodos antibióticos, o melhor tratamento da água distribuída paraa população e o controle mais adequado das doenças infeccio-sas e parasitárias trouxeram inúmeros benefícios para o ser hu-mano, reduzindo a mortalidade infantil e aumentando a expec-tativa de vida. Todavia, a passagem rápida do ser humano paraum hábitat e um padrão de vida que não lhe eram habituaisacabou por impor um ônus.

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O conceito de Galeno dosistema circulatório.Extraído de A medicina esua história, 1989, EPUC.

O PULSAR DAS METRÓPOLES

A vida na cidade é mais sedentária do que aquela do campo,além do que o padrão alimentar tende a incluir grande quanti-dade de gorduras, carboidratos refinados e de fácil digestão.Também há maior facilidade de se adquirir o hábito de fumar ede alcançar o etilismo. A vida na sociedade industrial, e em es-pecial no mundo moderno, mantém níveis constantes de com-petitividade e estresse que causam malefícios perpétuos para oser humano. Todos estes fatores contribuem para a obesidade, amaior prevalência de aterosclerose, da hipertensão arterial e dediabete melito. Conseqüentemente, houve grande aumento naprevalência das doenças cardiovasculares, que há décadas man-têm-se como a maior causa de morte no mundo, tendo sidoresponsável por um terço dos óbitos em todo o planeta nosanos de 2002 a 2005, segundo dados da Organização Mundialda Saúde.

A importância epidemiológica assumida pelas doenças cardio-vasculares, associada aos avanços tecnológicos, fez que a Car-diologia experimentasse seus maiores avanços e chegasse atransformar-se, nos últimos 70 anos, numa das mais avançadasespecialidades médicas.

O SÉCULO DOS CIRURGIÕES

Logo no início do século XX, Willem Einthoven introduziu oeletrocardiograma, método propedêutico que revolucionou o exame do coração e que ocupa, até hoje, papel de destaque nalinha de frente da avaliação cardiológica. Ele iniciou com o usoclínico do galvanômetro de fita e foi capaz de estabelecer o pa-drão de diferentes arritmias, além da associação da inversão daonda T com a angina e a aterosclerose, publicados em 1910.Einthoven foi agraciado com o Prêmio Nobel em virtude de suaimportante contribuição para a saúde das pessoas.

Em 1912, James B. Herrick, iniciando a fase das enormes con-tribuições norte-americanas para o progresso da Cardiologia,

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fez importantes observações para o estudo da anemia falcifor-me. No campo das doenças cardíacas, contudo, sua contribui-ção mais importante foi a de associar a aterosclerose com a pre-sença de locais de necrose miocárdica e sua elaboração de umateoria para explicar o mecanismo do infarto do miocárdio.Herrick foi um grande incentivador do uso do recém-inventa-do eletrocardiograma para estudar os fenômenos ligados ao in-farto do miocárdio. Sociedades americanas ligadas à Cardiolo-gia mantêm até hoje premiações e palestra com o nome desteimportante médico, reconhecendo desta forma o vulto de suascontribuições.

No século XX, que também já foi chamado de o “século dos ci-rurgiões”, fizeram-se muitos progressos também nesta área, taiscomo a realização da primeira cirurgia cardíaca pelo america-no Robert E. Gross e a criação de próteses sintéticas para a subs-tituição da valva aórtica por Charles Hufnagel.

A primeira cirurgia cardíaca a céu aberto foi feita por F. JohnLewis que, em 1953, realizou o primeiro fechamento de umacomunicação interatrial com sucesso, numa criança de 5 anosde idade, empregando o método de hipotermia profunda queWilfred Bigelow havia desenvolvido em animais em 1949.

O desenvolvimento da máquina coração-pulmão por John H.Gibbon permitiu que ele e seu grupo realizassem, mais umavez, o fechamento de uma comunicação interatrial, um feito ce-lebrado por todos os cirurgiões cardíacos.

Walton Lillehei iniciou a era da operação sob visão direta paratratar uma anormalidade da valva mitral, prática que logo ga-nhou ampla aceitação.

As técnicas cirúrgicas de tratamento da doença coronária têmseus princípios no trabalho de dois pioneiros. Claude Beck, queem 1939 sugeriu que um segmento do músculo peitoral aplica-do sobre o coração pudesse aprimorar a oferta de sangue parao miocárdio isquêmico. E Arthur Vinenberg, que em 1946 rea-

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lizou o implante direto da ar-téria torácica interna numa re-gião do miocárdio compro-metida pela redução do fluxode sangue, procedimento queganhou ampla aceitação, ten-do sido feita em mais de 5 milcasos. Mais tarde, Vasilii Ko-lessov e Robert Goetz realiza-ram anastomoses da artériamamária interna com a artériadescendente anterior, o pri-meiro fazendo a ligação entreos vasos por meio de suturastradicionais e o segundo pormeio de um anel metálico es-pecialmente desenhado paraeste fim. René Favaloro des-creveu a técnica da revascula-rização cirúrgica com ponte

de veia safena para tratar uma obstrução na artéria coronáriadireita e Dudley Johnson ampliou o uso desta técnica tambémpara o território da artéria coronária esquerda. Hoje este tipode cirurgia transformou-se numa das mais utilizadas modali-dades de tratamento para a cardiopatia isquêmica.

CATETERISMO

Outra técnica importante que ganhou amplo uso no séculopassado foi a do cateterismo cardíaco. A despeito do trabalhopioneiro de Hales, mencionado anteriormente, foi apenas em1929 que o cateterismo das câmaras cardíacas foi realizado emseres humanos vivos por Werner Forssman. Este pesquisadorimplantou uma sonda de vias urinárias em sua própria veiabraquial e se dirigiu até o departamento de radiologia onde do-cumentou o posicionamento do cateter no seu átrio direito. Poreste feito, ele recebeu o Prêmio Nobel em 1956 em conjunto

A Aula de Anatomia doDr. Tulp (1632), deRembrandt, demonstra aimportância da anatomiano ensino médico doséculo XVII, uma herançado Renascimento.Mauritshuis, The Hague.Extraído de Medicine: anillustrated history, 1978,Harry N. Abrams, Inc.

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com Cournand e Richards que, em 1941, utilizaram cateterespara medir o débito cardíaco de seres humanos vivos. MasonSones, um cardiologista pediátrico, logrou opacificar as artériascoronárias in vivo, utilizando contraste iodado. Paralelamente,Charles Dotter, em 1964, obteve sucesso no tratamento percu-tâneo de artérias obstruídas por ateromatose, nos membrosinferiores. Baseado no trabalho destes pioneiros, AndréasGruentzig, um angiologista suíço, levou a técnica de tratamen-to percutâneo até as artérias coronárias e apresentou no con-gresso do American Heart de 1976 o relato de seus primeiroscasos em animais. Esta técnica foi aplicada pela primeira vez,com sucesso, em um ser humano vivo em setembro de 1977.Esta forma de tratamento revolucionou a abordagem da insufi-ciência coronária e logo ganhou enorme aceitação. Vários tra-balhos e registros internacionais documentaram seu sucesso,mas chamaram também a atenção para a possibilidade de re-torno da obstrução, o que estimulou a continuação das pesqui-sas, mesmo após a trágica e prematura morte de Gruentzig emoutubro de 1985.

Em 1986 e 1987, Sigwart, Puel, Palmaz-Schatz e J. Eduardo Sou-sa introduzem um novo sistema de tratamento percutâneo, osstents coronários, que se revelaram ser uma evolução neste tipode intervenção. Os stents trouxeram maior segurança ao proce-dimento e reduziram as taxas de reestenose que, contudo, con-tinuaram a ameaçar os pacientes submetidos à esta modalidadede intervenção.

Devido a isto, em 1999, J. Eduardo Sousa realizou, no Brasil, oprimeiro implante de stents farmacológicos, os quais liberammedicamentos após seu implante nas artérias coronárias. Estesstents reduziram dramaticamente as taxas de reestenose. Estetrabalho pioneiro apresentou enorme impacto na prática car-diológica e logo ganhou ampla aceitação e utilização em todosos centros do mundo, por representar uma opção segura e efi-caz no manejo intervencionista da insuficiência coronária.

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Anúncio colorido doséculo XIX de remédiosou panacéiaspatenteados, de umaépoca semregulamentaçãogovernamental deingredientes ouverificação de queixas.Coleção William Helfand,Nova York. Extraído deMedicine: an illustratedhistory, 1978, Harry N.Abrams, Inc.

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Os últimos 100 anos foram pródigos tambémna descoberta e elucidação de diversos meca-nismos de doença, as quais permitem a me-lhor compreensão e, conseqüentemente, omelhor tratamento dos pacientes. Assim, Ig-natowski, em 1908 na Rússia, sugeriu que po-deria haver uma ligação entre alimentos ricosem gorduras e o desenvolvimento da ateros-clerose, termo introduzido em 1904 por FelixMarchand. Diversos outros autores contribuí-ram nesta investigação, mas Konrad Bloch eFeodor Lynen receberam Prêmio Nobel em1964 por seu trabalho relativo ao metabolis-mo do colesterol e dos ácidos graxos. Este fei-to foi repetido em 1985 por Michael Brown eJoseph Goldstein que descobriram o receptordo LDL e a via metabólica desta fração do co-lesterol total. Tais descobertas possibilitaram odesenvolvimento de terapias voltadas para omanejo do colesterol, o qual ocupa lugar dedestaque na moderna Cardiologia.

O maior conhecimento do mecanismo dasdoenças e a importância do conhecimento docomportamento populacional fizeram que aCardiologia procurasse desenvolver estudosde grande porte voltados para o esclarecimen-to dos mecanismos das doenças e da eficáciados métodos de prevenção. Dentre estes tra-

balhos, tem destaque o estudo de Framingham que introduziuo conceito de estudo numa comunidade e que trouxe e traz inú-meros ensinamentos aos cardiologistas.

Após o estabelecimento, em 1980 por Richard Wood, da relaçãocausal entre trombose coronária e infarto agudo do miocárdio,a abordagem desta entidade passou por enormes modificações.Objetivando a recanalização da artéria relacionada ao infarto,

Xilogravura usada por WilliamHarvey para demonstrar sua

prova de circulação sangüíneaem De Motu Cordis… (1628), um

dos livros mais importantes demedicina e biologia. World

Health Organization, Geneva.Extraído de Medicine: an

illustrated history, 1978, HarryN. Abrams, Inc.

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desenvolveu-se a terapia trombolítica, consagrada em estudoscomo ISIS e GISSI, posteriormente aperfeiçoada com a desobs-trução mecânica da artéria ocluída. Este procedimento, associa-do ao uso das unidades coronárias introduzidas em 1961 porGaston Bauer e Malcom White e consagradas no relato de Tho-mas Killip e John Kimball em 1967, permitiu expressiva redu-ção na mortalidade na fase aguda desta entidade, que aindaapresenta enorme importância epidemiológica.

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The Agnew Clinic (1889), deThomas Eakins, reflete ocrescente prestígio dasescolas de Medicina norte-americanas. No entanto,ainda demorou mais vinteanos para que os novospadrões fossem reconhecidos.University of Pennsylvania,School of Medicine, Filadélfia.Extraído de Medicine: anillustrated history, 1978,Harry N. Abrams, Inc.

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A realização do primeiro transplante cardíacono mundo, em 1967, pelo cirurgião sul-afri-cano Christian Barnard, e repetida mais tardeno Brasil por cirurgiões como Zerbini e Jate-ne, dentre outros, trouxe nova perspectiva eesperança aos portadores de insuficiência car-díaca avançada, representando um importan-te recurso terapêutico.

O tratamento das arritmias passou a ser abor-dado de modo mais efetivo, com a introduçãodos marcapassos e dos desfibriladores auto-máticos, sendo estes últimos também conside-rados fundamentais no tratamento de pacien-tes com alguns tipos de insuficiência cardíaca.

Não poderíamos deixar de mencionar os sig-nificativos avanços no campo do diagnóstico,os quais compreendem desde a introdução daradiografia por Conrad Roentgen, da Dop-pler-ecocardiografia por Inge Edler e Hell-muth Hertz, da ressonância magnética porEdward M. Purcell e Felix Bloch e da tomo-grafia computadorizada por Geoffrey Houns-field. Estes métodos permitem a realização dediagnósticos cada vez mais complexos e segu-ros, os quais oferecem aos cardiologistas mui-

tas informações fundamentais para a melhor condução dos ca-sos de seus pacientes. Na verdade, o progresso destas tecnolo-gias possibilita hoje a sua utilização também com a finalidadede se realizar a prevenção de doenças cardíacas.

O DESENVOLVIMENTO CARDIOLÓGICO NO PAÍS

No Brasil, a Cardiologia como especialidade estabelece-se a partirde 1941 com o Dr. Dante Pazzanese, que organizou o primeiroserviço especificamente voltado para o diagnóstico e tratamento

Ilustrações de catálogo(1880) de vários tipos deestetoscópios. NationalLibrary of Medicine,Bethesda. Extraído deMedicine: an illustratedhistory, 1978, Harry N.Abrams, Inc.

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das doenças do coração e, ao mesmo tempo, passou a ministrarcursos para a formação de profissionais, cursos estes que persis-tem até hoje. A instituição fundada pelo Dr. Dante transformou-se no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, entidade públicaque apresenta excelência no atendimento a pacientes com dife-rentes formas de doença cardíaca e local onde foram desenvolvi-dos inúmeros avanços no tratamento das cardiopatias, em espe-cial na área da cirurgia cardíaca e da cardiologia intervencionista.

A cirurgia cardíaca brasileira também é responsável por gran-des e expressivas contribuições para a Cardiologia mundial, deinício com o trabalho de médicos como o Dr. Eurícledes de Je-sus Zerbini, que deu impulso à especialidade em nosso país.Trabalhador incansável e entusiasta da cirurgia cardíaca, Zerbi-ni foi fundamental, ao lado de cardiologistas como Luiz De-court, Radi Macruz, Fúlvio Pillegi, dentre outros, no desenvol-vimento do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina daUniversidade de São Paulo, um centro destacado na realizaçãode pesquisas clínicas e epidemiológicas e que promove a medi-cina brasileira em todo o mundo.

Diversos cardiologistas, como Jairo Ramos, Silvio Carvalhal,Mendonça de Barros, Cantídio Moura Campos, dentre outros,foram fundamentais para o progresso da Cardiologia no Brasil.Jairo Ramos e Dante Pazzanese trabalham juntos na fundaçãoda Sociedade Brasileira de Cardiologia, entidade-mãe da Car-diologia brasileira. Contudo, não se pode esquecer das contri-buições prestadas por J. Eduardo de Sousa, já mencionadas naárea da cardiologia intervencionista, e por Adib Jatene no cam-po da cirurgia cardíaca. Dotado de espírito desbravador, este úl-timo introduziu técnicas cirúrgicas que se transformaram noprocedimento de primeira escolha para o tratamento de doen-ças como a transposição das grandes artérias, que ficou conhe-cida como cirurgia de Jatene e para a reconstrução geométricado ventrículo esquerdo. Estes profissionais dão orgulho a todosnós e já fazem parte da nossa história.

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Como pode ser depreendido dos últimosparágrafos, grande parte dos avanços daCardiologia brasileira aconteceu dentro doEstado de São Paulo. Este, com sua vocaçãopioneira que data da época dos bandeiran-tes, sempre acolheu com alegria e hospitali-dade os migrantes e imigrantes de diferentespartes do Brasil e do mundo, servindo deberço, além de fomentar o progresso cientí-fico. Ao longo das décadas de 1950, 1960 e1970, São Paulo experimentava grandesmudanças no seu perfil, na composição desua população, nas atividades aqui exerci-

das. A capacidade de trabalho dos habitantes do Estado de SãoPaulo tornou a região responsável por grande parte do produ-to interno bruto do Brasil e por uma expressiva parcela de suaprodução artística, intelectual e científica. Assim, a Cardiologiapaulista encontrava-se madura já no início da década de 1970,fazendo milhares de cirurgias cardíacas, de cateterismo cardía-co e tratando inúmeros pacientes com diferentes tipos de doen-ças cardíacas.

Sentindo a oportunidade e os cônscios do dever, um grupo decardiologistas une-se nos anos de 1976 e 1977 para criar a Socie-dade de Cardiologia do Estado de São Paulo, a nossa SOCESP,que agora completa 30 anos de atividade.

Este livro é uma obra que tem por objetivo homenagear e reco-nhecer o trabalho dos que contribuíram para a história desta so-ciedade, perpetuando a sua memória para as gerações futuras.

DR. IBRAIM MASCIARELLI FRANCISCO PINTO

O impressionante avanço doconhecimento aliou-se às novastecnologias permitindo que oscardiologistas possam contar comsofisticadas técnicas diagnósticas querevelam o coração de modos nuncaantes imaginados. Estes exames,associados ao acúmulo deconhecimento clínico, epidemiológicoe farmacológico, fazem possível quepara cada paciente se possa escolhero melhor procedimento terapêutico.Estes avanços encontram-sedisponíveis no Brasil, onde acardiologia alcançou patamares de excelência.

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