Homilética e Hermenêutica

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Indaial – 2021 HOMILÉTICA E HERMENÊUTICA Prof. Roney Cozzer 1 a Edição

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Indaial – 2021

Homilética e Hermenêutica

Prof. Roney Cozzer

1a Edição

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Copyright © UNIASSELVI 2021

Elaboração:

Prof. Roney Cozzer

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

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apresentaçãoSeja bem-vindo ao Livro Didático Homilética e Hermenêutica. Neste

livro didático, estudaremos duas disciplinas em conjunto que são muito importantes para os estudos teológicos e bíblicos: Hermenêutica Bíblica e Homilética. E não apenas isso: elas são fundamentais, também, para a vida Ekklesia, isto é, da Igreja, em suas variadas manifestações denominacionais.

E pode ser que você esteja já se perguntando: afinal de contas, por que estudar duas disciplinas da Teologia, com suas especificidades, num mesmo livro? A razão é que essas duas disciplinas, Hermenêutica e Homilética, “conversam” muito entre si e mantêm uma importante relação. Alguns autores, raramente, é verdade, mas há casos, chegam a denominar essa correlação de “Hermelética”.

É interessante pensar a relação entre a Homilética e a Hermenêutica nos seguintes termos: a Homilética, de certo modo, utiliza-se dos resultados do trabalho da Hermenêutica. É que enquanto a Hermenêutica preocupa-se e ocupa-se do estudo da adequada interpretação do texto bíblico, a Homilética se preocupa e se ocupa do estudo de como comunicar a mensagem desse texto bíblico de modo contextualizado e leal às Escrituras Sagradas.

Este livro é estruturado em três unidades, em que abordaremos os aspectos conceituais da Hermenêutica e da Homilética. Começaremos refletindo sobre as bases bíblicas e teológicas da pregação cristã, tanto com base no Antigo Testamento como com base no Novo Testamento.

Nas unidades dois e três, discorreremos sobre a origem e o desenvolvimento da Hermenêutica Bíblica e a interpretação bíblica. Por fim, na unidade três, trabalharemos com alguns conceitos e princípios essenciais a uma boa interpretação do texto bíblico. São temas comuns e amplamente abordados pelos diversos autores que se debruçam sobre os estudos em Hermenêutica Bíblica. Questões como a dos distanciamentos em Hermenêutica e a sua importância, as figuras de linguagem da Bíblia e os hebraísmos, bem como a Hermenêutica na pós-modernidade.

Agora, mãos à obra. E vamos nos aprofundar nessas disciplinas maravilhosas, Homilética e Hermenêutica.

Boa leitura e bons estudos!

Prof. Roney Cozzer

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Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi-dades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra-mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida-de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun-to em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

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Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen-tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

LEMBRETE

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sumário

UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA ..................................................................... 1

TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO............... 31 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 32 BASES ANTIGOTESTAMENTÁRIAS ............................................................................................ 43 BASES NEOTESTAMENTÁRIAS .................................................................................................... 84 A PREGAÇÃO NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO: BREVE EXCURSÃO ....................... 155 BASES BÍBLICO-TEOLÓGICAS DA PREGAÇÃO .................................................................... 20RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 22AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 23

TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO ................................................................. 251 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 252 A IMPORTÂNCIA DE CONHECER A ESTRUTURA DE UM SERMÃO ............................. 273 O TEMA E A INTRODUÇÃO DO SERMÃO .............................................................................. 354 O DESENVOLVIMENTO DO SERMÃO...................................................................................... 385 A CONCLUSÃO DO SERMÃO ...................................................................................................... 396 O APELO: É PARTE DO SERMÃO? .............................................................................................. 407 REFERENCIANDO BIBLIOGRAFICAMENTE O SERMÃO ................................................... 41RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 42AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 43

TÓPICO 3 — A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL .................................... 451 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 452 O SERMÃO EXPOSITIVO............................................................................................................... 453 O SERMÃO TEMÁTICO ................................................................................................................. 474 O SERMÃO TEXTUAL ..................................................................................................................... 485 AFINAL DE CONTAS, QUAL O MELHOR? ............................................................................... 49LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 50RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 52AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 53

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 55

UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA .......................... 57

TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS ................................................................. 591 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 592 DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA ........................................................................................................ 603 DEFINIÇÃO TEOLÓGICA .............................................................................................................. 614 TRÊS PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS NA HERMENÊUTICA BÍBLICA .................... 67RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 72AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 73

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL ........ 751 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 752 A ESCOLA DE ALEXANDRIA ....................................................................................................... 773 A ESCOLA DE ANTIOQUIA .......................................................................................................... 804 A HERMENÊUTICA NA IDADE MÉDIA .................................................................................... 825 A HERMENÊUTICA NA REFORMA PROTESTANTE ............................................................. 836 A HERMENÊUTICA NA MODERNIDADE ................................................................................ 847 A HERMENÊUTICA NA PÓS-MODERNIDADE ...................................................................... 86RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 88AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 89

TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE ..................................... 911 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 912 O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO ............................................................................................ 923 O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL ................................................................................. 934 O LIBERALISMO TEOLÓGICO .................................................................................................... 955 A REAÇÃO ORTODOXA ................................................................................................................ 96LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 101RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 105AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 106

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 108

UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA .......................................................................... 111

TÓPICO 1 — O ABISMO CULTURAL, LITERÁRIO E GRAMATICAL ................................. 1131 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1132 O QUE SÃO OS DISTANCIAMENTOS EM HERMENÊUTICA .......................................... 1163 A IMPORTÂNCIA DOS DISTANCIAMENTOS ...................................................................... 1194 COMO DIMINUIR OS DISTANCIAMENTOS ........................................................................ 123RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 126AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 127

TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM ............................................................................ 1291 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1292 O QUE SÃO AS FIGURAS DE LINGUAGEM NA BÍBLIA .................................................... 1303 AS FIGURAS DE COMPARAÇÃO E AS DE RELAÇÃO ........................................................ 1344 AS FIGURAS DE DICÇÃO ............................................................................................................ 1355 AS FIGURAS DE CONTRASTE ................................................................................................... 1366 AS FIGURAS DE ÍNDOLE PESSOAL ......................................................................................... 1397 OS HEBRAÍSMOS ........................................................................................................................... 140RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 142AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 143

TÓPICO 3 — A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE ....................................... 1451 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 1452 HERMENÊUTICAS PÓS-MODERNAS ...................................................................................... 1493 HERMENÊUTICA E O AUTOR .................................................................................................... 1504 HERMENÊUTICA E O LEITOR CONTEMPORÂNEO ........................................................... 1515 O PROBLEMA DO “ANACRONISMO HERMENÊUTICO” ................................................. 1526 CONCLUSÃO ................................................................................................................................... 154

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LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 155RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 160AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 161

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 163

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UNIDADE 1 —

HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À

PREGAÇÃO BÍBLICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• conhecer os fundamentos históricos e teológicos da pregação cristã;• compreender o que é a Homilética;• entender como o sermão deve ser estruturado;• estruturar o sermão, conhecendo adequadamente cada uma das partes

que o constitui;• referenciar bibliograficamente um sermão, dando a ele bom aporte teó-

rico-teológico;• saber diferenciar os três tipos clássicos de sermão, a saber: expositivo,

temático e textual.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

TÓPICO 2 – PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

TÓPICO 3 – A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1 — UNIDADE 1

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E

TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, neste tópico, o primeiro de nosso livro, “conversaremos” sobre os fundamentos históricos e, também, teológicos da pregação. Essa reflexão é fundamental para entender a pregação, sua natureza, seu propósito e, claro, sua fundamentação bíblica, histórica e teológica.

A partir da compreensão dos elementos anteriormente mencionados, pode-se refletir sobre a grande importância que a pregação tem para a vida das diferentes comunidades de fé cristãs. É por meio da pregação que se comunica vida, esperança, otimismo, o Evangelho. Todavia, a pregação, mal compreendida e mal utilizada, dá lugar a conceitos que empobrecem os nossos discursos de fé e que, longe de “elevarem” as pessoas, contribuem para apequenar a vida cristã.

A pregação deve ser usada fundamentalmente para a proclamação do Evangelho. O púlpito cristão deve ter como destinação maior e prioritária a exposição bíblica pura. E o pregador deve ter consciência de que o espaço de que dispõe, perante a congregação, deve ser usado com essa finalidade.

Dito isso, prosseguiremos, então, considerando fundamentos que são encontrados no Antigo Testamento, no Novo Testamento e noções teológicas sobre a pregação desenvolvidas e afirmadas ao longo da história do cristianismo. Devemos lembrar que estamos na ponta de uma longa tradição Homilética e, nesse sentido, vale muito a pena “ouvir” vozes antigas e o que elas entenderam da pregação cristã.

Prezado acadêmico, adiante você encontrará um quadro contendo algumas definições muito úteis sobre a Homilética. Essas definições são contribuições de importantes teólogos cristãos que auxiliam na compreensão do objeto de estudo da Homilética e da sua contribuição prática para a Igreja. O quadro está disponível no Tópico 2, quando discorreremos sobre as partes que compõem o sermão.

ESTUDOS FUTUROS

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

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Em nosso contexto, os fundamentos ou bases significam muito, pois é o conhecimento dos fundamentos elementares de uma disciplina que permite ao estudante articulá-la com a prática, entendendo-a de modo adequado. Não é possível começar uma casa pelo telhado. É preciso primeiro construir as bases, isto é, os fundamentos. Quando pensamos isso em relação a uma disciplina teológica ou não, podemos concluir que primeiro é necessário entender sobre quais conceitos principais ela se assenta e é construída (elaborada). É justamente o que se faz aqui. Vejamos, a seguir, alguns desses fundamentos para a Homilética.

2 BASES ANTIGOTESTAMENTÁRIAS

FIGURA 1 – FUNDAMENTOS

FONTE: <https://shutr.bz/2Yydo6s>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Começaremos este subtópico com uma pergunta provocadora: “Não seria uma espécie de anacronismo buscar no Antigo Testamento bases para a Homilética e, por extensão, para a pregação cristã?”

O que ocorre é que a pregação como nós a conhecemos hoje, evidentemente, não acontece nos tempos do Antigo Testamento. Todavia, isso significa dizer que não se pode encontrar bases para a prática da pregação nesse conjunto de livros que constituem o Antigo Testamento? Respondemos a isso afirmando que não, necessariamente.

É possível, porém, uma fundamentação da Homilética e da pregação cristã a partir do Antigo Testamento sem incorrer em anacronismo. Porém, inicialmente, é preciso conceituar o termo “pregação” (com seus cognatos), o objeto de estudo da Homilética. Qual o seu significado? Consideremos os sentidos de pregação na perspectiva teológica e etimológica.

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TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

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FONTE: <https://shutr.bz/3AoDNRz>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Do ponto de vista etimológico, a palavra “pregação” pode ser definida pelo menos a partir de três línguas que interessam aqui em nosso estudo: o hebraico (língua em que foi escrito o Antigo Testamento), o grego (língua em que foi escrito o Novo Testamento) e o latim.

Em grego, a palavra mais comum é kerusso e ela ocorre sessenta vezes aproximadamente em toda a extensão do Antigo Testamento. Kerusso significa “proclamar como um arauto”. E há uma segunda palavra muito importante, que ocorre aproximadamente cinquenta vezes, euaggelizomai, que enfatiza a boa qualidade da mensagem e das boas-novas do Evangelho (PFEIFFER; HOWARD; REA, 2007, p. 1589).

O estudo em torno desses termos a partir das línguas bíblicas nos remete a outra questão de grande importância: qual o conteúdo da pregação cristã? Com efeito, a Homilética não se preocupa apenas com o como se deve pregar, mas, também, com o conteúdo da pregação. No Dicionário Bíblico Wycliffe (2007), pode-se ler o seguinte:

A natureza da pregação bíblica depende de seu conteúdo específico e da audiência à qual ela é dirigida. Considera-se que, normalmente, o conteúdo da pregação das epístolas seja o “evangelho” (Rm 1.15; 15.20; 1 Co 1.17) com algumas variações, como “Cristo” (1 Co 15.12), “Cristo crucificado” (1 Co 1.23) ou a “palavra da fé” (Rm 10.8), que são mensagens para o mundo não cristão (PFEIFFER; HOWARD; REA, 2007, p. 1589).

Devemos levar em conta, ainda, a palavra latina praedicare, que significa basicamente “proclamar”. O teólogo pentecostal Claudionor Corrêa de Andrade articula o significado da palavra “pregação” com praedicare, afirmando o seguinte:

“pregação” vem do latim praedicare e significa “proclamação da Palavra de Deus”, visando a divulgação do conhecimento divino, a conversão dos pecadores e a consolação dos fiéis. A pregação deve ter

FIGURA 3 – BASES BÍBLICAS

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

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um caráter bíblico, evangélico e profético. Além de ter a Bíblia como base, há de mencionar a obra salvífica de Cristo, e mover o pecador a arrepender-se de seus pecados (ANDRADE, 2010, p. 303).

A pregação cristã, com efeito, assume esse sentido genérico de proclamar,

de anunciar e de comunicar uma mensagem, e em seu caso, naturalmente, a mensagem de Jesus. Pode-se afirmar que desde os tempos do Novo Testamento, como temos descrito no Livro de Atos de Apóstolos, a pregação cristã vem cumprindo esse papel e vai se desenvolvendo na medida em que a atividade missionária dos discípulos aumenta, alcançando diversos lugares do Império Romano. Adiante, consideraremos um pouco mais esse desenvolvimento, quando refletirmos sobre as bases neotestamentárias para a pregação.

Todavia, que outros fundamentos bíblicos podemos identificar para a pregação cristã, no Antigo Testamento? Já mencionamos anteriormente que não podemos, de fato, encontrar muitos textos antigotestamentários que nos permitam afirmar que a pregação encontra sua forma atual nesses textos. Seria impróprio, sem dúvida. Porém, também vimos que, de modo embrionário, encontramos bases bíblicas para a pregação no Antigo Testamento. Já foi apresentada uma definição de natureza etimológica e agora serão considerados alguns aspectos bíblicos e teológicos.

O ato de profetizar no Antigo Testamento evoca a ideia de comunicar uma mensagem que vem de Deus. O pregador também é entendido como alguém que foi vocacionado para comunicar uma mensagem que não é dele próprio, mas do Senhor, o Evangelho. Werner Kaschel e Rudi Zimmer (2005, p. 129) definem a pregação da seguinte forma: “anúncio da mensagem divina, tanto no Antigo Testamento (Is 53.1) como no Novo Testamento (1 Co 1.21)”.

Em Isaías 53.1, encontra-se a palavra hebraica sh^emuw ( ), que signi-fica “notícia, novas, rumor; notícia, novidades, novas; menção” (STRONG, 2002, H08052). O profeta, no Antigo Testamento, era aquele que anunciava a mensa-gem que recebia de Iavé. Em Ezequiel 3, o profeta é comparado a uma atalaia, outra imagem importante para a pregação cristã. Ali, pode-se ler o seguinte: “ Fil-ho do homem, eu te dei por atalaia sobre a casa de Israel; da minha boca ouvirás a palavra e os avisarás da minha parte” (BÍBLIA, 1993, Ez. 3,17).

Na atualidade, e também na História da Igreja, essas imagens, a do profeta e a da atalaia, têm servido para alimentar o sentido do papel do pregador cristão. Todavia, é preciso ter claro que são contextos diferentes. Na verdade, a Igreja incorpora essas imagens, mas adaptando-as a sua própria realidade. Stott (1989), no entanto, procura demonstrar que a imagem do profeta, usada para definir o papel do pregador, é imprópria, ao menos no sentido bíblico do termo “profeta” no Antigo Testamento. Ele entende que a imagem mais adequada para o pregador é a do despenseiro, uma imagem presente no Novo Testamento, na epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios, que exploraremos adiante.

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TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

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Stott, em seu livro O Perfil do Pregador (1989), oferece excelente contribuição no sentido de definir a missão do pregador. Mas a despeito da recusa de Stott quanto à imagem do profeta, no Antigo Testamento, aplicada ao pregador, é fato que a Igreja sempre fez essa associação: o pregador é visto como um profeta, mas também é visto pela imagem da atalaia.

Nosso entendimento é que essas comparações são importantes para evidenciar os fundamentos da pregação cristã no Antigo Testamento. Elas demonstram que Deus sempre se preocupou, no sentido de que seu povo recebesse sua mensagem. Pode-se notar, na verdade, que todo o Antigo Testamento é perpassado por essa comunicação. Deus fala com Adão e Eva, com os patriarcas, com reis pagãos, com as tribos de Israel em Josué e Juízes, com os reis de Israel e de Judá e com os repatriados, depois do cativeiro babilônico. O autor da Epístola aos Hebreus reflete esse processo comunicacional: “Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas [...]” (BÍBLIA, 1993, Hb. 1,1).

Dessas duas imagens – profeta e atalaia – aplicadas ao pregador, pode-se chegar a alguns pressupostos fundamentais para a pregação cristã. Tanto a imagem do profeta como a da atalaia sinalizam para o fato de que o pregador é portador de uma mensagem que é anterior a ele próprio, e que o transcende, mensagem que ele deve transmitir, levar adiante. Não é exatamente essa convicção que se encontra no apóstolo Paulo? Ele escreve: “ Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho!” (BÍBLIA, 1993, 1Co. 9,16).

FIGURA 4 – RETRATAÇÃO DO PROFETA EZEQUIEL

FONTE: <https://shutr.bz/3lsQPZM>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Essa expressão evidencia um elemento que, de certo modo, também é visto nos profetas do Antigo Testamento e com muita força: uma espécie de compulsão divina. O teólogo batista Russell P. Shedd afirma que “atrás de toda pregação

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

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autêntica, há uma compulsão divina” (SHEDD, 1997, p. 1617). O profeta dos tempos bíblicos, do Antigo Testamento, falava também por inspiração. Era muito comum a expressão “assim diz o Senhor”. Essa expressão é tão recorrente que aparece 2.800 vezes em toda a extensão da Bíblia (COZZER, 2020, vol. 1, p. 289). E ela é entendida como uma espécie de autenticação da origem da mensagem que o profeta comunicava, e essa origem era o próprio Iavé.

Ainda que não se deva encarar a pregação cristã sob esse mesmo entendimento, paralelos úteis são traçados na sua Teologia. O pregador, assim entende-se, é também inspirado a comunicar com alegria a mensagem do evangelho, não nos moldes do profetismo do Antigo Testamento, mas como portador de boas-novas de salvação, em Cristo Jesus.

3 BASES NEOTESTAMENTÁRIAS

O Livro de Atos dos Apóstolos é muito importante para a Teologia da pregação. Nele encontra-se aquela que podemos considerar a primeira pregação cristã de que se tem registro, em seu segundo capítulo, pregação que foi proferida pelo apóstolo Pedro no dia de Pentecostes.

FIGURA 5 – O NOVO TESTAMENTO

FONTE: <https://shutr.bz/3ludNjn>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Ao ler aquele sermão proferido por Pedro, pode-se encontrar aportes fundamentais para a prática do sermão, nas comunidades de fé cristãs. E há outros textos em Atos dos Apóstolos que registram outros sermões proferidos, inclusive por Paulo, em outras ocasiões. Também no corpus paulinum encontram-se diversos aportes teológicos para a pregação aos quais devemos recorrer para aprofundar nossa compreensão do tema.

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TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

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O apóstolo Pedro destaca-se como pregador em Atos. Nesse livro, encontram-se registrados pelo menos cinco grandes sermões pregados por ele: do lado de fora da casa onde o Espírito Santo havia enchido os primeiros cristãos (BÍBLIA, 1993, At. 2,14-40), no pórtico de Salomão (BÍBLIA, 1993, At. 3,11-26), perante as autoridades e dos anciãos do povo (BÍBLIA, 1993, At. 4,8-12), diante do Sinédrio (BÍBLIA, 1993, At. 5,29-32) e diante de Cornélio e seus convidados (BÍBLIA, 1993, At. 10,34-43). Outro “sermão” notável que precisa ser destacado é o que foi proferido por Estêvão, diante do Sumo Sacerdote e do Sinédrio, registrado em Atos 7. Há outros discursos registrados nesse livro que, com efeito, pode ser considerado o livro mais homilético do Novo Testamento.

Como fundamento bíblico para a pregação a partir de Atos, podemos destacar o fato de que a pregação cristã precisa ser cristocêntrica. Ao ler o sermão de Pedro, no dia de Pentecostes, que está registrado em Atos 2, fica evidente a sua ênfase na pessoa de Jesus. Note que quando se fala desse aspecto cristológico da pregação, isso implica referir-se ao conteúdo da pregação. E esse conteúdo precisa abordar a vida e a obra de Jesus.

Após a experiência do Pentecostes, o relato bíblico registra que Pedro colocou-se de pé perante os presentes, juntamente com os onze, e dirigiu-lhes a palavra afirmando que aqueles que haviam sido cheios do Espírito Santo não estavam embriagados, mas que estava se cumprindo, naquele dia e naquelas pessoas, a promessa feita pelo profeta Joel, a respeito do derramar do Espírito (BÍBLIA, 1993, At. 2,22-24).

O próprio conteúdo da pregação cristã é o Senhor Jesus. Infelizmente, em nossos dias, tornou-se muito comum que a pregação cristã se confunda com discursos de autoajuda, de violência contra o próximo e de autoafirmações que denotam arrogância religiosa e até mesmo teológica. O centro da pregação, contudo, precisa ser a vida e obra do Senhor Jesus Cristo e daquilo que diz respeito, de fato, à vida cristã genuína.

Mais adiante, no livro de Atos, encontram-se outras pregações, como a que é registrada no capítulo 17, por ocasião da estada de Paulo na cidade de Atenas. No versículo 18, pode-se ler o seguinte: “e alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele, havendo quem perguntasse: que quer dizer esse tagarela? E outros: parece pregador de estranhos deuses; pois pregava a Jesus e a ressurreição” (BÍBLIA, 1993, At. 17,18). Note que o que gerava contenda da parte dos filósofos epicureus e estoicos com Paulo era, na verdade, a pessoa do Senhor Jesus e a ressurreição dos mortos.

Esse conteúdo cristocêntrico da pregação dos primeiros cristãos é recorrente em todo o livro de Atos. Devemos recordar que já em Atos 9, por ocasião do chamamento de Saulo de Tarso, o discípulo Ananias ouviu do Senhor a seguinte afirmação a respeito de Saulo: “vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel” (BÍBLIA, 1993, At. 9,15).

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Reiteramos que o centro da pregação cristã precisa ser a vida e obra do Senhor Jesus Cristo e daquilo que diz respeito de fato à vida cristã genuína, no seguimento desse Cristo que nos amou e rendeu sua vida por nós. Essa conclusão de que a pregação precisa ser essencialmente cristocêntrica pode ser feita não apenas com base em Atos dos Apóstolos, mas também em outros textos do Novo Testamento. Nos Evangelhos, Mateus, Marcos, Lucas e João, a ênfase é no Reino de Deus. São diversos os textos em que se anuncia a chegada do Reino de Deus, inclusive por Jesus. O assunto do Reino de Deus é relativo ao próprio Cristo e ao discipulado cristão. O evangelista Lucas registra: “Interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus, Jesus lhes respondeu: Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós” (BÍBLIA, Lc. 17,20-21).

Essa compreensão do que é o Reino de Deus e do que é Evangelho é fundamental à pregação. Constitui aquela que consideramos ser a principal base neotestamentária para a pregação cristã. E sem essa compreensão, a pregação fica comprometida, como de fato está hoje. Basta acessar as pregações disponíveis na internet, em sites como o YouTube, por exemplo, para perceber isso. Pouco ou quase nada se fala sobre o Evangelho, de fato.

FIGURA 6 – PALAVRA DE DEUS

FONTE: <https://shutr.bz/302S6yv>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Outra importante base teológica neotestamentária para a pregação é a compreensão paulina a respeito das boas-novas. E por qual razão destacar a perspectiva paulina? Uma razão possível para esse interesse, e muito coerente, é o volume de material disponível no Novo Testamento que é atribuído ao apóstolo Paulo.

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TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

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FONTE: <https://shutr.bz/3oPKn1i>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Todo esse volume literário é chamado de corpus paulinum. Cozzer (2020) descreve, de maneira bem sucinta, a maneira como o Novo Testamento é organizado e o conteúdo desse conjunto de textos do Novo Testamento chamado de corpus paulinum:

Epístolas

Esta seção do Novo Testamento é também chamada de doutrina; é a seção epistolar, pois é constituída somente de epístolas. Ela está subdividida em três partes principais:

1) Epístolas Paulinas, que são as epístolas escritas por Paulo e daí receberem esse nome; essas, por sua vez, podem ser catalogadas em quatro partes:

a) primeiras epístolas; b) grandes epístolas; c) epístolas da prisão, e d) epístolas pastorais;

2) Epístola aos Hebreus, endereçada a crentes judeus que passavam por aflições; esta carta aparece de forma destacada por seu conteúdo ser bem distinto das demais; e,

3) Epístolas Gerais ou Universais, escritas por autores diversos, endereçadas a todos os cristãos, indistintamente. São também chamadas de Epístolas Católicas [...].

Profecia

Esta última seção em que está dividido o Novo Testamento também se constitui de um livro apenas, o Apocalipse [...]. (COZZER, 2020, vol. 1, p. 293-295).

Com relação ao corpus paulinum e sua utilização do termo (e do conceito) a respeito do evangelho, Wright (2012, p. 227-237) comenta que leu todo o corpus paulinum em busca de entender como “Paulo pensava e falava acerca do evangelho”. A partir dessa extensa pesquisa, ele discorre a respeito de pelo menos seis abreviações que foram utilizadas por Paulo e que refletem a compreensão desse apóstolo a respeito do evangelho. Vejamos uma síntese a seguir a respeito de cada uma dessas abreviações delineadas por Wright.

FIGURA 7 – BOA-NOVA DO EVANGELHO

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

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Prezado acadêmico, observe que os comentários que se seguem nesse diálo-go com a obra de Wright (2012), fornecem ao pregador uma série de subsídios para produ-zir sermões. Por isso é importante que você já inicie a leitura dos subtópicos a seguir com esta noção em mente, a fim de fazer melhor aproveitamento do conteúdo que se segue.

• O evangelho é a história de Jesus à luz das Escrituras.

O Evangelho deve ser entendido como uma mensagem que está ancorada em fatos históricos sobre Jesus. E esse Jesus histórico esteve na Terra para realizar uma obra de salvação prometida no Antigo Testamento e cumprida nele. Wright (2012, p. 227) co-menta que “[...] o evangelho é um relato dos acontecimentos da morte e da ressurreição de Jesus, entendido à luz das Escrituras do Antigo Testamento. A boa-nova é o que Deus prometeu na Escritura e, depois, concluiu em Jesus”.

Essa compreensão do Evangelho como história é fundamental para que se com-preenda a expressão do Novo Testamento que afirma em termos de “recepção do evan-gelho”, como em 1 Coríntios 15.1: “Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado, o qual também recebestes e no qual também permaneceis” (BÍBLIA, 1993, 1Co. 15,1).

Por que a palavra “recebestes”? Justamente porque esse Evangelho não foi uma criação de Paulo, que havia trabalhado entre os coríntios por um período de dezoito me-ses. Com a palavra “recebestes” ele estava indicando que o Evangelho era anterior a ele mesmo e constitui uma mensagem que registra eventos que ocorreram factualmente en-volvendo Jesus. Paulo prossegue, em 1 Coríntios 15, afirmando o seguinte:

Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras, e que foi visto por Cefas e depois pelos doze. Depois, foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois, foi visto por Tiago, depois, por todos os apóstolos e, por derradeiro de todos, me apareceu também a mim, como a um abortivo (BÍBLIA, 1993, 1Co. 15,3-8).

Note que Paulo alude a testemunhas oculares: Jesus “[...] foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos, dos quais vive ainda a maior parte [...]”. (BÍBLIA, 1993, 1Co. 15,6). Seria absurdo ele aludir a testemunhas oculares e afirmar aos seus leitores que grande par-te delas estavam vivas ao tempo em que ele escreve seu texto, se ele não cresse realmente que os eventos que haviam sido testemunhados por essas pessoas não fossem factíveis. Logo, o Evangelho está assentado sobre fatos. E é nessa perspectiva que Paulo opera, em grande medida.

Wright (2012, p. 228) afirma que o “[...] evangelho de Paulo, portanto, está arrai-gado nas Escrituras e é moldado pelo reino de Deus. Ele é constituído da consumação de Jesus como Messias, cumprindo as Escrituras e encarnando o Messias”. Wright prossegue afirmando que a “[...] boa-nova é que o reino de Deus, prometido e definido nas Escrituras, agora é chegado na pessoa e na obra do Messias Jesus”. (WRIGHT, 2012, p. 228).

ATENCAO

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TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E TEOLÓGICOS DA PREGAÇÃO

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• O evangelho é uma nova humanidade redimida, uma única família de Deus.

A mensagem do Evangelho é para todas as nações, para o mundo inteiro. O Evangelho cumpre, de certo modo, o plano divino no sentido de abençoar, em Abraão, todas as nações da Terra. Como afirma Wright, os acontecimentos relativos ao anúncio do Evangelho e da vida de Jesus “[...] tinha também raízes profundas no Antigo Testamento” (WRIGHT, 2012, p. 228).

Isso rompe com paradigmas muito profundos nos tempos bíblicos, sejam os an-teriores à Era Cristã, sejam os do primeiro século depois de Cristo. Os judeus sempre nu-triram um profundo nacionalismo, e esse é um dos paradigmas que marcam a história dos hebreus. Wright comenta:

As nações, ao que parecia, estavam completamente alienadas e fora do centro da família de Deus. Deus havia entrado em aliança com Israel, redimindo-os e dando-lhes sua Lei, havia lhes dado promessas e esperança, havia descido e feito sua morada entre eles. As nações, ao contrário, poderiam ser precisamente descritas por Paulo da seguinte maneira: Portanto, lembrai-vos de que, no passado, vós, gentios por natureza, chamados incircuncisão pelos que se chamam circuncisão, feita pela mão de homens, estáveis naquele tempo sem Cristo, separados da comunidade de Israel, estranhos às alianças da promessa, sem esperança e sem Deus no mundo. (Ef 2.11,12) (WRIGHT, 2012, p. 229).

Com Jesus Cristo, contudo, as barreiras caíram. Cristo é quem une a todos e nivela todos os homens. Em Colossenses (3,11), pode-se ler que nessa nova vida em Cris-to “[...] já não há diferença entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre, mas Cristo é tudo e está em todos” (BÍBLIA, 2021, Cl. 3,11). O Evangelho, portanto, acaba com esse estado de separação entre povos, judeus e gentios, entre senhor e servo, entre livres e escravos e entre homem e mulher. O texto de Efésios (2,13-18) é marcante nesse sentido.

Essa é a nova humanidade a que Wright se refere quando afirma que o evangelho é uma nova humanidade redimida, uma única família de Deus. Aqui, pode-se estabelecer um link com a compreensão cristã a respeito da Ekklesia, isto é, da Igreja universal que congrega pessoas que procedem de toda “[...] tribo, língua, povo e nação” (BÍBLIA, 1993, Ap. 5,9).

• O evangelho é uma mensagem a ser transmitida ao mundo todo.

A compreensão de que o Evangelho é mensagem que precisa ser proclamada a todo o mundo é uma das bases neotestamentárias para a pregação mais importantes que podemos destacar. Wright comenta que “[...] a própria natureza do evangelho é que ele é uma boa-nova que simplesmente tem que ser anunciada [...]” e que “[...] deve ser ouvido como a ‘palavra da verdade’ (Efésios 1.13; Colossenses 1.5,23)” (WRIGHT, 2012, p. 230).

O Evangelho deve ser pregado a todas as nações indistintamente porque em Cristo todos são alcançados. As barreiras caíram e não deve haver distinção, como havia por parte dos judeus em relação aos gentios. O Evangelho “[...] é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (BÍBLIA, 1993, Rm. 1,16).

• O evangelho é transformação ética.

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A pregação do Evangelho possui um forte teor ético, que precisa ser levado em conta. Quando se pensa na proclamação do Evangelho, pode-se ter em mente que ela in-clui convidar as pessoas a aceitarem essa ética do Evangelho em suas vidas. Do contrário, isto é, se esse apelo não existe, pode-se até questionar a legitimidade desse “evangelho” que se está pregando.

É preciso destacar que no Evangelho não é possível separar a crença doutrinária do modo de viver. É que as “[…] duas coisas são intrínsecas ao próprio evangelho […]”, con-forme afirma Wright (2012, p. 232). É parte da ação do Evangelho no homem modificá-lo para melhor. O ensino paulino afirma que somos obra de Deus, criados para as boas obras (BÍBLIA, 1993, Ef. 2,8-10).

Concluindo este subtópico, é importante destacar que no Novo Testamento tan-to o ato de crer no Evangelho como o ato de obedecer ao Evangelho estão intimamente correlacionados. E essa precisa ser uma tônica da pregação cristã. Precisa ser e continuar sendo uma de suas bases neotestamentárias fundamentais, para que não sofra o prejuízo de se descaracterizar como Evangelho de fato.

• O evangelho é a verdade a ser defendida.

Há, também, outra base neotestamentária para se compreender a pregação: ela possui um caráter apologético. Uma vez que se compreende que a verdade do Evangelho precise ser defendida, a pregação assume esse caráter. Wright afirma: “As boas-novas tam-bém podem ser uma má notícia para aqueles cujos interesses pessoais sejam ameaçados por elas. Por essa razão, há uma batalha a ser travada, a fim de garantirmos que a verdade do evangelho seja preservada, esclarecida e defendida contra negações, distorções e trai-ções” (WRIGHT, 2012, p. 235).

Pensar sobre a questão apologética em relação ao Evangelho é fundamental, por-que nos conduz a refletir sobre o que é o Evangelho de fato, e o que ele não é. E hoje con-vivemos com diversos tipos de pregações que, conquanto se apresentem como “pregação do evangelho”, na verdade constituem discursos alienados da essência do Evangelho.

Podem ser citados diversos exemplos desse fato. Ouve-se muitos discursos de autoajuda como se fossem a mensagem do Evangelho. Mas esses discursos se distanciam do cerne do Evangelho, porque eles buscam no próprio sujeito a orientação e o esforço necessários para o seu progresso pessoal, numa espécie de empreendedorismo individual, o que de per si não é negativo, quando não é apresentado como a mensagem do Evan-gelho. O conteúdo da pregação cristã é o próprio Cristo, sua obra salvadora e sua vida em nós.

Outros apresentam um discurso extremamente radical relacionado à moralidade cristã, que geralmente é fruto de fundamentalismo religioso. Esse tipo de conteúdo é apresentado como “defesa do Evangelho” e da verdade, mas quem opera com esse tipo de abordagem parece não levar em conta o fato de que a graça de Deus foi dada a homens pecadores, que continuam sendo pecadores mesmo depois de alcançados pela graça.

Não se está afirmando com isso que deva haver leniência para com o pecado e com atos e comportamentos que são contrários a uma vida de verdadeiro discipulado. Como pode se depreender do comentário no subtópico anterior, nossa abordagem não é de legitimação do pecado, mas podemos entender que a condição humana é marcada por problemas e limitações.

Pregações marcadas por radicalismo religioso tendem a criar ou vender a ima-gem do “super cristão”, levando as pessoas a acreditarem numa espécie de utopia existen-cial, que consiste em crer que é possível alcançar um elevadíssimo padrão de moralidade que, na prática, nunca será alcançado por ninguém. Mesmo aqueles cristãos mais com-prometidos com Cristo e com a Igreja que conhecemos pessoalmente, e sobre os quais

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podemos ler na história do cristianismo, possuem e possuíram falhas morais, algumas gravíssimas, inclusive. É preciso equilíbrio entre a convicção de que é possível ser melhor sem ser perfeito.

Devemos lembrar que a humanidade, em sua história, sempre foi marcada por egoísmo, hedonismo, violência sem limites, sexo irresponsável, ganância, engano e tan-tos outros males que poderiam ser elencados. Por mais que a humanidade não deva ser encarada e entendida apenas nesses termos (seria impróprio), mas é fato que esses males assolam o homem há muitos séculos. Nesse sentido, o Evangelho é boa-nova, boa notícia, mas, também, confrontação, porque com efeito o homem é mau em seu coração e sente prazer na prática contínua de muitos desses males. O Evangelho confronta as condutas incorretas que praticamos, mas ele também é poder de Deus para modificar nossa ética no mundo da vida. É o que veremos no próximo subtópico.

• O evangelho é o poder de Deus transformando o universo.

O Evangelho é o poder de Deus agindo no mundo, na vida das pessoas, provocando transformações profundas. A obra de Cristo, seu ministério, sofrimento, sua morte e res-surreição possibilitam que os homens tenham acesso a Deus e possam, assim, ser trans-formados à imagem do próprio Cristo.

O ensino bíblico é no sentido de que o verdadeiro seguimento de Cristo não consiste só ou exclusivamente de uma compreensão intelectual de determinada verdade, mas em que se internalize na própria vida essa verdade. E aí está um elemento fundamental à fé cristã: a vivência concreta dos princípios do Evangelho.

É só após a análise da importância cósmica de Cristo, de sua igreja e de sua cruz é que Paulo passa para a reconciliação pessoal dos cristãos. Os cristãos em Colossos poderiam ficar firmes em sua fé e esperança (Colossenses 1.23), porque a sua salvação estava atrelada à agenda do evangelho, a qual possui um alcance cósmico, englobando todo o espaço e o tempo. Não é de admirar que Paulo diga que ele está sendo proclamado “a toda a criatura debaixo do céu” (Colossenses 1.23). (WRIGHT, 2012, p. 236).

As compreensões de Wright, com as quais dialogamos até aqui, são importantes para que se possa perceber as bases bíblicas da pregação cristã no Novo Testamento. As definições apresentadas pelo referido autor, e aqui desdobradas, auxiliam nessa compre-ensão. E pode-se perceber que com o passar do tempo, na história do cristianismo, tais compreensões têm sido sustentadas e servido de baliza para a proclamação do Evangelho. A seguir, faremos uma breve excursão pela história da pregação cristã.

4 A PREGAÇÃO NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO: BREVE EXCURSÃO

A história da pregação cristã se confunde com a própria história do cristianismo. O cristianismo sempre foi uma religião de proclamação e de argumentação em favor da fé cristã. Não por acaso ele formou não apenas teólogos brilhantes, mas, também, pregadores incríveis. E essa característica do cristianismo reflete muito sua dinamicidade ao longo de gerações.

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FIGURA 8 – PÚLPITO CRISTÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3luFbxE>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Um estudo dessa natureza, que busca considerar a história da pregação e, por que não dizer, da própria Homilética (por extensão), é importante porque nos permite perceber que a pregação não é uma prática que surge na Reforma Protestante, ou no grande avivamento da Inglaterra no século XVIII, com os Wesley. Muitos pregadores e teólogos reformados enfatizam tanto a pregação em Calvino e em outros reformadores, que fica a impressão de que a pregação surge com eles. Mas na verdade não foi assim.

Houve oradores notáveis que precederam o próprio Calvino, como Lutero, Agostinho e Orígenes. Na verdade, é correto compreender que Calvino não surge como pregador no vácuo, a partir do nada. Ele prega e se torna um pregador dentro de um contexto maior construído por outros que o precederam. A própria Reforma Protestante pode ser considerada um movimento de grandes proporções com ideias e conceitos comuns a diversos reformadores que os repetiram e corroboraram, como os cinco “somentes” da Reforma: somente a fé, somente a escritura, somente a graça, somente Cristo e glória somente a Deus (em latim, sola fide, sola escriptura, sola gratia, solus Christus e soli Deo gloria).

A história da pregação deve remontar até o primeiro século, ao registro que temos dela no Livro de Atos. Conforme comentado anteriormente, a pregação proferida por Pedro no dia de Pentecostes, de acordo com registro de Atos 2, coloca-se como uma amostra da ênfase que o Livro de Atos dá à pregação. Há outras ocasiões em que sermões são proferidos, como a pregação de Pedro, quando no alpendre de Salomão (BÍBLIA, 1993, At. 3,12), ou Paulo, na sinagoga de Antioquia da Pisídia (BÍBLIA, 1993, At. 13,16).

É preciso levarmos em conta que o Livro de Atos é uma importante fonte de informação histórica sobre a pregação cristã, já que não dispomos de muito material a esse respeito no texto bíblico. Temos, ali, material suficiente para perceber o caráter da pregação apostólica, mas não exaustivo. Também não dispomos de muito material no que se refere à pregação entre o período apostólico e o tempo de Orígenes, que viveu entre os séculos II e III.

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A despeito dessa ausência de material para maior pesquisa, acredita-se que a pregação era lida e explicada para a assembleia presente, seguindo um modelo que inicia no Novo Testamento. Mas em Orígenes acontece uma guinada na pregação, porque diferentemente de seus predecessores, ele não parte de um tema escolhido para a pregação, mas parte do próprio texto bíblico. A pregação era pautada por essa tendência de se escolher um tema e buscar textos bíblicos para confirmar o tema. Orígenes, por sua vez, transforma a homilia numa exposição das partes do texto bíblico escolhido, o que chamaríamos hoje de sermão expositivo. Importante destacar ainda que “[...] as homilias mais antigas que ficaram preservadas até nós são as de Orígenes” (CHAMPLIN, 1991, vol. 3, p. 154).

FIGURA 9 – REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DE ORÍGENES

FONTE: <https://bit.ly/3oLL9wc>. Acesso em: 20 ago. 2021.

Orígenes acreditava tanto na capacidade inata do pregador como no dom divino. E confiava mais na exposição simples e clara da palavra de Deus do que na retórica pagã. Uma vez que o sermão deve ter como fonte a palavra de Deus, o seu objetivo maior deveria ser a edificação espiritual do ouvinte. Porém, é preciso lembrar que Orígenes interpretava as Escrituras – isto é, sua Hermenêutica – a partir da alegorização (PARKER, 2019).

Na Bíblia, encontra-se alegorias, mas podemos falar de alegoria em termos de um modo de interpretar as Escrituras, modo esse que foi superado em definitivo na Reforma Protestante, que valorizou a interpretação gramatical do texto. A alegorização da Bíblia consiste em uma espécie de espiritualização do texto bíblico, mas de maneira forçosa. Trata-se de um método de interpretação que acabou contribuindo para interpretações distantes do que de fato o texto bíblico está afirmando, dando lugar, algumas vezes, a interpretações, no mínimo, inusitadas.

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Na Patrística, a pregação foi marcada pela preocupação em demonstrar o verdadeiro evangelho resguardando-o das heresias. Esse período que se estende por pelo menos cinco séculos (para citar uma contagem mais “econômica”), é o período da gênese da literatura cristã. Movimentos como o Gnosticismo recebiam refutação dos primeiros teólogos da Igreja. Deve-se lembrar, inclusive, que a Patrística é justamente o período que abrange os primeiros séculos da Era Cristã, nos quais despontaram grandes teólogos que deixaram para a posteridade obras de grande importância, como Contra as Heresias, de Irineu.

Um aspecto muito importante da Teologia patrística é o seu inegável déficit para com a Filosofia grega. Ao ponto, inclusive, de ser considerada a primeira fase da Filosofia medieval, já que a Patrística é o período de tempo que decorre entre a Antiguidade e o início da Idade Média. Esse foi, sem dúvida, um período muito importante e produtivo para o Cristianismo. E esse vínculo com a Filosofia grega tinha razão de ser, já que o mundo, naquele tempo, a cultura helênica influenciava todo o mundo. A Filosofia era usada, inclusive, de modo racional, para defender o dogma contra aqueles que o atacavam. Havia certa semelhança entre ensinamentos cristãos e ensinamentos de filósofos gregos, de modo que isso serviu a esses teólogos.

Essa era, a Patrística, pode ser considerada a era dos grandes apologistas cristãos que buscavam defender com veemência a fé cristã. E faziam essa defesa com base filosófica, conforme mencionado acima. Destacam-se assim pensadores cristãos como Justino, Irineu de Lião, Orígenes, Clemente de Alexandria, dentre outros).

Embora utilizando-se da Filosofia, é fato que esses pais apostólicos amavam muito as Escrituras e as utilizavam intensamente. Em que pese o fato de que eles deixaram muitos comentários às Escrituras. Os textos escriturísticos eram usados para a elaboração da defesa da fé cristã e para a sustentação dos argumentos apresentados por esses teólogos antigos. A filosofia era usada como uma espécie de etapa preparatória para a reflexão e a pregação cristã.

Parker (2019) comenta que os escolásticos contribuíram para a pregação ao dispensarem o formato de homilia, que não apresentava uma estrutura para o sermão, e adotaram uma estrutura formal em seus sermões. Segundo o autor:

Os escolásticos dispensaram a homilia e empregaram uma estrutura formal nos seus sermões. Esse formato foi empregado universalmente nos sermões acadêmicos, e como os estudantes eram treinados nesse método nas universidades, esse foi amplamente utilizado nas paróquias, apesar de a homilia nunca ter se extinguido completamente. Aqui, só é possível apresentar uma esquemática mínima desse formato incrivelmente complicado e sutil. O sermão era dividido em cinco partes:

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Tema ou texto.Pré-tema, para despertar o interesse das pessoas.Introdução ao tema, para explicar seu significado.Divisão em partes.Desenvolvimento das partes (PARKER, 2019, p. 21).

Nos dois séculos que precederam a Reforma Protestante, a pregação escolástica declinou, reduzindo-se, por vezes, ao humorístico e ao burlesco, ainda que sempre tenha havido pregadores sérios e zelosos (PARKER, 2019, p. 22). É na Era Escolástica que surge um homem muito importante na história do cristianismo, estudioso profundo e altamente competente, que trabalhou para traduzir a Bíblia para a língua inglesa, John Wycliffe (1328-1384). Parker (2019, p. 22) comenta que Wycliffe:

[...] se distanciou decisivamente da pregação medieval tanto em forma como em conteúdo. Ele retornou à homilia e fez da pregação a simples exposição das Escrituras. Em segundo lugar, ele delineia uma doutrina da Palavra que não parece ser fundamentalmente diferente daquela de Lutero ou Calvino.

Lutero, já no período da Reforma Protestante, pregou de modo expositivo,

em alemão, entendendo que a pregação era a exposição da Palavra de Deus e que devia ter uma posição central na Igreja. O reformador Zuínglio, por sua vez, usou a homilia e pregou livros inteiros da Bíblia, de maneira continuada, iniciando esse esforço em 1519, em Zurique, com o Evangelho de Mateus (PARKER, 2019, p. 24).

Calvino, que pode ser considerado como pertencente a uma segunda geração de reformadores, contribuiu com a Homilética no que tange à sistematização e à análise do sermão. Ele, juntamente com Lutero, Zuínglio e outros reformadores, pode ser considerado representante do modelo de pregação que prevaleceu no período da Reforma Protestante, um modelo que valorizava explorar o texto bíblico e que reconheceu a pregação da palavra de Deus como uma atividade fundamental e central do ministério cristão. No período da Reforma, afirma Parker (2019, p. 24) que “[...] a missa foi destronada de seu reinado usurpado na igreja, e o sermão colocado em seu lugar. O púlpito, em vez

T. H. L. Parker (2019, p. 18) apresenta uma importante distinção que precisamos considerar aqui, ok? Veja só: ele distingue, na história da pregação cristã, o conceito de “homilia” do conceito de “kerygma”. A pregação como homilia era direcionada exclusivamente à igreja, ao passo que a pregação como kerygma era direcionada ao mundo pagão e tinha um caráter mais profético e agressivo.

ATENCAO

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do altar, tornou-se o ponto central nas igrejas luteranas, calvinistas e anglicanas. A pregação foi vinculada às Escrituras tanto em forma quanto em substância”. Ele prossegue, apontando que o:

[...] propósito da pregação, de acordo com os Reformadores, era expor e interpretar a Palavra de Deus nas Escrituras. Desse modo, eles promulgaram as Escrituras como o critério a partir do qual toda sua pregação deveria ser julgada. A pregação era a serva da Palavra eterna que Deus uma vez “pronunciou” e da qual foram testemunhas as palavras dos profetas e dos apóstolos. (PARKER, 2019, p. 24)

5 BASES BÍBLICO-TEOLÓGICAS DA PREGAÇÃO

A pregação cristã precisa ter como um de seus fundamentos teológicos a compreensão de que ela é parte da própria missão da Igreja. E a missão da Igreja inclui proclamar o evangelho, levando o kerigma ao mundo perdido e carente de salvação em Cristo. É claro que a missão da Igreja assume diferentes aspectos, como ser, também, educadora. Cozzer (2020) afirma o seguinte:

A missão da Igreja, em sua anunciação do evangelho de Cristo, requer dela uma postura educadora. E ela vem assumindo isso ao longo dos séculos trazendo, inclusive, benefícios, no âmbito da Educação Pública. A Reforma Protestante teve como um de seus grandes ideais justamente o acesso à educação, ainda que básica, para a sociedade (COZZER, 2020, vol. 1, p. 367).

A missão da Igreja é anunciar boas-novas. E esse anúncio de boas-novas se dá com o próprio Jesus e, também, no corpus paulinum. Nesses, com maior ênfase, mas não apenas neles. Todo o Novo Testamento enfatiza as boas-novas de salvação em Jesus. Jesus é aquele que cumpre o sentido maior das profecias messiânicas de Isaías, vindo para reinar, fazendo crescer o seu reino de paz no mundo.

FIGURA 10 – PÚLPITO

FONTE: <https://shutr.bz/3BvnljI>. Acesso em: 4 ago. 2021.

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Outra base bíblica e teológica para a pregação é a eclesiológica. A Eclesiologia, enquanto disciplina teológica, é “[...] muito importante no âmbito da Teologia Sistemática e para a vida da Igreja do Senhor, bem como para a comunidade de fé local, que se reúne regularmente para cultuar a Deus” (COZZER, 2020, vol. 1, p. 767).

Certo, mas como essa relação Igreja/pregação pode ser entendida como base teológica para a teologia da pregação? Compreender que a pregação como parte da missão da Ekklesia constitui em si uma importante base teológica para a Igreja. Nosso entendimento é que a correta compreensão da Igreja e de sua missão incidirá na qualidade da pregação. E o fluxo de volta também é verdadeiro: a correta compreensão da pregação reflete diretamente na qualidade de nossas comunidades de fé. Por isso, a pregação é assunto tão importante em Teologia.

A seguir, refletiremos sobre o nosso principal objeto de estudo, o sermão. Avançamos agora para uma parte mais prática do nosso estudo: considerar as partes que compõem um sermão, cada uma delas, entendendo a sua finalidade na pregação e como preparar cada uma. Todas essas seções são fundamentais, e, quando bem-preparadas, contribuem diretamente para a qualidade da homilia, tanto no que se refere a sua qualidade teológica como no que se refere à qualidade da sua exposição perante a congregação.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Os fundamentos históricos e teológicos da pregação cristã, bem como suas bases no Antigo Testamento, no Novo Testamento e algumas bases de natureza teológica.

• A história da pregação, o que permitiu uma visão panorâmica a respeito de como a pregação foi praticada ao longo da história do cristianismo.

• As diversas características do Evangelho a partir do corpus paulinum, conforme analisado por Wright (2012), características essas que devem refletir diretamente na pregação e na própria vida do cristão.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Uma classificação muito tradicional para os sermões é aquela que os organiza em sermões expositivos, temáticos e textuais. Com base na definição de sermão expositivo, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) É o sermão elaborado a partir de um tema, logo, da cabeça do pregador. As divisões do sermão são articuladas com o tema.

b) ( ) É o sermão que é elaborado a partir do texto bíblico, que se utiliza de uma porção pequena de versículos, em geral um ou dois versículos.

c) ( ) É o sermão elaborado a partir do texto bíblico e que se utiliza de um grupo maior de versículos, podendo chegar a fazer uso de um livro inteiro.

d) ( ) É o sermão que tende a ser mais fácil de ser preparado e cuja aplicação é, também, mais simples.

2 A pregação cristã encontra suas bases tanto no Antigo e Novo Testamentos como na própria reflexão teológica. Em relação ao material bíblico, sabe-se que há palavras importantes que refletem a ideia de comunicar uma mensagem, que é basicamente o objetivo da pregação cristã. E há bases bíblico-teológicas importantes para a pregação que precisam ser conhecidas pelo pregador. Tendo as bases bíblico-teológicas para a pregação em mente, analise as sentenças a seguir:

I- Uma dessas bases é a compreensão de que a pregação é parte da própria missão da Igreja.

II- Uma dessas bases é a compreensão de que a pregação implica proclamar o evangelho do Senhor Jesus.

III- A base eclesiológica é também muito importante, mas sem relação com a questão da pregação, uma vez que ela tem que ver diretamente com a doutrina da Igreja.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.d) ( ) As sentenças II a III estão corretas.

3 O sermão é constituído por diversas partes. O pregador precisa conhecer essas partes de modo adequado para que tenha condições tanto de preparar adequadamente o sermão como de expô-lo com clareza. Uma dessas partes constitutivas do sermão deve ter como qualidades a clareza, concisão e a brevidade. Ela aparece no início do sermão e serve para que, por meio dela, o pregador anuncie o conteúdo do que será ministrado. Pensando em qual parte aparece no início do sermão, assinale a alternativa CORRETA:

AUTOATIVIDADE

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a) ( ) A introdução.b) ( ) A conclusão.c) ( ) O apelo.d) ( ) O desenvolvimento.

4 Ao longo da história do cristianismo, a pregação sempre foi uma constante. Em cada período, ela se apresenta com determinadas características. Com efeito, a história da pregação quase se confunde com a história da Igreja. Disserte a respeito das características da pregação na Era Apostólica, no primeiro século.

5 Refletir sobre as bases teológicas da pregação leva a considerar o corpus paulinum, que representa uma grande parte do Novo Testamento. São ao todo treze epístolas e deve-se mencionar ainda a própria vida de Paulo, que foi dedicada em grande medida à atividade missionária e, por extensão, à pregação. Consciente desse fato, disserte a respeito da concepção paulina, presente no corpus paulinum do Evangelho.

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TÓPICO 2 — UNIDADE 1

PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

1 INTRODUÇÃO

Muitas pessoas que se convertem ao Evangelho logo nos seus primeiros anos ou, por que não dizer, em seus primeiros meses de conversão, já começam a “pregar”. E há muitos cristãos que prosseguirão durante anos fazendo uso da Palavra ao púlpito de suas igrejas sem de fato entenderem como estruturar um sermão e em seguida expô-lo. A qualidade da exposição do sermão está diretamente ligada à forma como ele é pensado e preparado previamente. Para tratar dessa temática, é necessário aprofundarmos nossos conhecimentos sobre a Homilética.

FIGURA 11 – SERMÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3anoUUU>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Uma definição clássica para a Homilética é a seguinte: “é a técnica e arte da preparação e exposição de sermões”. É técnica porque envolve objetivos, conhecimento do assunto a ser abordado no sermão, elaboração intelectual e organização. Mas é arte porque requer do pregador sensibilidade e percepção de natureza espiritual, racional e emocional.

Vejamos, na tabela a seguir, outras importantes e muito úteis definições de Homilética e alguns comentários relativos a ela de grandes teólogos cristãos e em obras teológicas cristãs. É muito importante conhecer as contribuições desses pensadores da fé cristã, porque isso nos possibilita ter uma visão mais abrangente

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

e perceber a disciplina Homilética e a prática da pregação por meio de diferentes perspectivas que, em grande medida, são complementares. Tendo considerado essas conceituações, avançaremos para o estudo das partes que compõem o sermão.

QUADRO 1 – DEFINIÇÕES DE HOMILÉTICA

FONTE: O autor

Devemos destacar um ponto, ainda, muito importante: a estreita correlação que há – ou que deve haver – entre a pregação e a Hermenêutica Bíblica. Neste subtópico, o objetivo é estudar as partes que compõem o sermão, mas há um elemento fundamental que antecede a elaboração dessas partes. E que elemento é esse?

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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2 A IMPORTÂNCIA DE CONHECER A ESTRUTURA DE UM SERMÃO

O conhecido homileta brasileiro Jilton Moraes, já no início de sua obra Homilética: da pesquisa ao púlpito (2007), comenta que utiliza o método de H. C. Brown Jr., considerado pioneiro no estudo da elaboração de sermões a partir de vários passos, de modo que o primeiro desses passos é a interpretação correta do texto bíblico. Assim, Moraes comenta o seguinte:

O desafio do método Brown é equipar o pregador para elaborar sermões textuais e expositivos a partir do aprofundamento da pesquisa do texto básico. Segundo esse método, a tarefa do preparo do esboço não começa com o título, divisões, introdução ou conclusão, com a elaboração da pesquisa que antecede essa tarefa. Ou seja, o pregador só está apto a iniciar o trabalho das divisões, da introdução e da conclusão depois de ter elaborado tal pesquisa preliminar, que vai da correta interpretação do texto até a escolha do título (MORAES, 2007, p. 14).

Outro ponto muito importante que deve ser destacado é sobre a importância das partes do sermão. O Dr. Juan C. de la Cruz (2016) comenta que “[...] casi cualquier libro sobre predication que pretenda ser prático, proponderá em algún modo um orden que guie al predicador a passar del texto bíblico y del mensaje a la audiência del mundo bíblico, al mensaje bíblico al mundo actual del precador” (CRUZ, 2016, s.p.). Esse costume de estruturar o sermão em partes é fundamental para que ele possa ter concatenação nas ideias que apresenta, sequência lógica e organização.

Antes de prosseguirmos na análise dessas partes constitutivas do sermão, considere os dois exemplos de sermões a seguir, um expositivo e outro temático, extraídos da Enciclopédia Teológica numa perspectiva transdisciplinar (COZZER, 2020). Esses modelos ajudarão você, acadêmico, a perceber tanto as especificidades de cada um como, também, as diferenças entre tipos de sermões e como suas partes são organizadas. Conquanto a estrutura básica de um sermão seja TEMA – TEXTO BÍBLICO – INTRODUÇÃO – TÓPICOS – CONCLUSÃO, os esboços, conforme o tipo de sermão, podem apresentar certas diferenças.

Esse esforço para exemplificar os diferentes tipos de sermão é muito importante. Os sermonários, que são aqueles livros que contêm apenas esboços de sermões, são ferramentas muito úteis nesse sentido, justamente porque a consulta a eles permite visualizar de modo prático a elaboração de sermões.

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

Os seguintes títulos auxiliarão muito você, estudante, nessa jornada. São obras que, para mim mesmo, têm sido muito úteis ao longo dos anos, compartilhando a Palavra de Deus:

• BOYER, O S. 150 estudos e mensagens de Orlando Boyer. 6. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.

• MARINHO, R. M. A arte de pregar: como alcançar o ouvinte pós-moderno. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Vida Nova, 2008, Apêndices 1 e 2, nas páginas 261-72.

• MESQUITA, A. Ilustrações para enriquecer suas mensagens. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.

• PERES, A. C. Ilustrações selecionadas: pequenas histórias e experiências para ser-mões e estudos bíblicos. 16. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.

DICAS

A seguir, veremos um exemplo de sermão expositivo, retirado de Cozzer (2020, vol. 1, p. 755-761) e um exemplo sermão temático, retirado de Cozzer (2020, vol. 1, p. 788-790).

• Exemplo de esboço de sermão expositivo

Tema do sermão: A premente necessidade de obedecer aos preceitos do senhor

Texto bíblico de base: “E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração” (BÍBLIA, 1993, Dt. 6,6).

INTRODUÇÃO

O Livro de Deuteronômio faz parte do Pentateuco e é tradicionalmente atribuído a Moisés, tanto entre cristãos quanto entre judeus. Um fato interessante sobre o título grego do livro é que ele seria uma interpretação equivocada de 17.18, que conclui ser uma “segunda lei”, quando na verdade não se trata de uma segunda (outra) lei, mas, sim, da repetição da mesma Lei do Senhor, às vésperas de adentrarem na terra da promessa (CARSON et al., 2009). Assim, o livro reafirma e reaplica preceitos que estão contidos nos livros anteriores do Pentateuco para o povo de Israel.

Embora se admita que Moisés seja o seu autor, é inegável que houve o trabalho de um editor posterior, até pelo fato de o livro trazer o relato da morte de Moisés, no capítulo 34. O postulado defendido pela hipótese documentária de que o livro seria resultado de vários autores, oriundos de várias escolas, é rejeitada neste esboço. No próprio Novo Testamento (e mesmo no Antigo)

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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encontramos claras evidências de que Moisés foi o autor desse grupo de livros que contém importantes preceitos, que são, vários deles, reiterados nos textos neotestamentários.

Esta teoria, atualmente, não se acha mais em sua forma original, mas seus desdobramentos continuam sendo uma constante na Academia Teológica. Com efeito, muitos comentadores bíblicos adotam as posições relacionadas à esta teoria. Todavia, a Hipótese Documentária vem sofrendo questionamentos e mesmo autores que a adotam reconhecem que ela possui sim suas limitações (BROWN; FITZMYER; MURPHY, 2007).

ESBOÇO RESUMIDO

1. Introdução e chamado a obedecer aos preceitos que seguem (vv. 1-3).2. O Shemá de Israel e o chamado à obediência (vv. 4-9).3. O Senhor faz promessas ao seu povo quanto à posse da terra (vv. 10, 11).4. Instruções diversas ao povo sobre como proceder na terra da promessa (vv.

12-19).5. Instruções quanto às gerações futuras (vv. 20-25).

ESBOÇO HOMILÉTICO

O presente sermão reflete sobre a importância de obedecer aos preceitos do Senhor. Note-se que já no início do capítulo 6 do Livro de Deuteronômio, o povo é convidado a obedecer a Iavé, pondo em prática os seus mandamentos.

Introdução e chamado a obedecer aos preceitos que seguem (vv. 1-3)

É interessante observar que Moisés orienta o povo a respeito dos “[...] mandamentos, os estatutos e as normas que Iahweh vosso Deus ordenou ensinar-vos, para que os coloqueis em prática [...]” (v. 1, BJ). Esses preceitos deveriam ser postos em prática na terra que agora o povo passava a dominar. A bênção de Deus por vezes é condicional. Conquanto Deus prometa a bênção e a ministre sobre seus filhos, em muitos momentos ela vem mediante a observância de preceitos ao longo de nossa vida.

Deus estabelece seus preceitos (v. 1)

“Estes, pois, são os mandamentos [...]” (v. 1, ARC). Os mandamentos de Deus precisam ser conhecidos para então serem obedecidos. O salmista escreveu: “Tu ordenaste os teus mandamentos, para que diligentemente os observássemos” (Sl. 119,4).

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

O temor ao Senhor na observância dos mandamentos (v. 2)

“Para que temas ao Senhor, teu Deus” (v. 2). O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, como ensina o Livro de Provérbios (1,7). O temor do Senhor, não o medo, leva-nos a evitar o mal. Um ser humano que não teme nada e nem ninguém tende a ser inconsequente em suas ações.

O Shemá de Israel e o chamado à obediência (vv. 4-9)

Deparamo-nos agora com um dos textos mais conhecidos do Antigo Testamento, tanto entre judeus como entre cristãos. É um texto que exalta o Senhor, o Deus de Israel, como o único deus verdadeiro. Esse texto tem servido como um pilar ao monoteísmo judeu e ao monoteísmo cristão, ainda que cada uma dessas religiões entenda o monoteísmo ao seu próprio modo.

Moisés instrui o povo na vontade de Deus

Nesta seção, temos o conteúdo transmitido por Moisés ao povo quanto ao seu procedimento na terra da promissão. O texto começa conclamando Israel a ouvir: “Ouve, Israel [...]” (v. 4). Obedecer ou não aos mandamentos e preceitos que se seguem serão determinantes sobre o futuro de Israel. Ouvir aqui é muito mais do que um simples escutar. É atentar. Um olhar sobre o futuro é lançado nesta passagem. Vale ressaltar que toda a religião e vida do povo israelita deve girar em torno da verdade de que “o Senhor nosso Deus, é o único Senhor” (v. 4). A adoração e o serviço de Israel devem ser exclusivos a Iavé. “As quatro palavras (Javé, nosso Deus, Javé, Um) podem ser traduzidas de diversas maneiras, mas destacam que o Deus de Israel não era um de um panteão, mas soberano e objeto de toda a dedicação” (COUSINS apud BRUCE, 2009, p. 363).

A preservação deste ensino

Um fato interessante que se observa em Deuteronômio, capítulo 6, é o cuidado exigido por Deus ao povo no sentido de que ele preservasse “estas palavras” (v. 6). As gerações futuras precisam ser cientificadas deste ensino. Essas palavras deveriam fazer parte da rotina do povo, de sua vivência diária e não apenas num dia específico da semana (o sábado). Com efeito, esta preocupação deve fazer parte, também, da realidade da Igreja no século XXI. O cuidado com o ensino das verdades bíblicas é essencial para que tenhamos filhos saudáveis e adultos tementes a Deus. Deuteronômio 6, neste sentido, pode ser unido a outros diversos textos, inclusive os neotestamentários, que tratam da questão da instrução e do ensino bíblico.

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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O Senhor faz promessas ao seu povo (vv. 10,11)

Embora Israel, ao longo de sua trajetória, tenha sido por vezes infiel ao Senhor, Ele, contudo, reitera sua aliança com seu povo. Essa aliança retorna aos antepassados dos israelitas: “[...] na terra que jurou a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó” (v. 10). Deus não esquece as suas promessas. Ele as cumpre no tempo devido.

Interessante considerar que o povo sofredor no Egito havia esquecido essa promessa, mas Deus não! O que os israelitas estavam para ver com seus olhos era uma terra desejada por um povo do deserto, mas o desfrute dessa dádiva de Deus estava condicionado a que as pessoas ouvissem os preceitos do Altíssimo. O recebimento de uma promessa de Deus requer responsabilidade também. Mais do que pedirmos a Deus para que Ele cumpra o que nos tem prometido, devemos pedir que Ele nos dê estrutura e sabedoria para receber suas dádivas e para as administrarmos com prudência. Riquezas nas mãos de tolos podem ser destrutivas e reduzidas a nada.

Advertências ao povo (vv. 12-19)

Encontram-se neste trecho algumas advertências ao povo de Israel. Essas advertências podem ser contextualizadas para nós, hoje, e nos trazer, assim, orientação. É interessante lembrar que por ocasião de sua tentação no deserto, o Senhor Jesus usou versículos desta seção.

O povo deve cuidar para não se esquecer do Senhor, seu Deus

Aqui, o Decálogo, ou seja, os dez mandamentos, é reiterado. Na prosperidade a que estavam prestes a ser introduzidos, o povo não deveria esquecer-se do seu Deus. A idolatria tão presente entre os povos ao redor deveria ser evitada, sempre: “Não seguireis outros deuses, os deuses dos povos que houver à roda de vós” (v. 14). O versículo 13 viria a ser usado séculos mais tarde pelo Redentor para repelir uma das tentações de Satanás contra Ele, o que sugere que o valor doutrinário deste texto não está confinado aos tempos de Israel no deserto ou mesmo em Canaã. Noutras palavras, este versículo foi reatualizado em uma circunstância específica vivida por Jesus e pode ser reatualizado também em nossas vidas.

Advertência contra o perigo de se tentar o Senhor

Massá é lembrado como um evento que pode ensinar o povo (v. 16. cf.: Êxodo 17.1ss), que deve aprender as lições do passado. Jesus reiterou isso ao responder a Satanás: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus” (Mt. 4,7), citando justamente Deuteronômio 6.16. “Pôr Deus à prova é tentar forçá-lo a demonstrar a sua divindade ao impor condições a ele” (COUSINS apud BRUCE, 2009, p. 364). Deus está para muito além desse tipo de categoria humana.

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O povo deve ser contínuo em observar os mandamentos do Eterno

A palavra usada é “diligentemente” (v. 17). Essa observância é para a vida. É diária. É contínua. Como visto em 6.6,7: “E estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; e as intimarás a teus filhos e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e deitando-te, e levantando-te”. Requer esforço. A obediência é condição para que o povo desfrute das bênçãos de Deus. O povo deve viver em retidão: “E farás o que é reto e bom aos olhos do Senhor” (v. 18). Essa conduta ética é bastante reforçada nos ensinos do Novo Testamento, começando pelos preceitos de Jesus e indo até os textos epistolares. Os discípulos serão reconhecidos por suas obras e frutos (Mt. 5,16; Ef. 5,7-11; Fp. 2,12-18).

Instruções quanto às gerações futuras (vv. 20-25)

Assim como nós mesmos somos beneficiários de outros que nos antecederam em temor e obediência a Deus, assim também devemos nós prosseguir em transmitir às novas gerações os preceitos valiosos e indeléveis das Escrituras. O inesquecível comentarista devocional da Bíblia, F. B. Meyer, comentando Deuteronômio 6.1-19, afirma o seguinte: “Não nos esqueçamos de quantos de nossos privilégios e vantagens espirituais do presente devem ser creditados às orações e lágrimas, aos trabalhos e sofrimentos dos que nos legaram preciosas heranças, a nós, seus filhos e herdeiros! Estamos bebendo de cisternas que nunca cavamos!” (MEYER, 2002, p. 94). Essa transmissão passa pelo “dirás a teu filho” (v. 21) e, também, pelo “E o Senhor nos ordenou que fizéssemos” (v. 24). O dizer precisa ser confirmado pelo fazer. “Vós sois o sal da terra” (Mt. 5,13), ensinou o Mestre Supremo.

CONCLUSÃO

A pós-modernidade (uma das expressões usadas para tentar definir nosso tempo) tem como uma de suas principais características a abolição dos valores. Nesta época, o valor maior é não ter nenhum valor. Falar de preceitos, princípios doutrinários e de observância a mandamentos pode soar até como algo ofensivo na “era das opiniões”. Nas Escrituras, contudo, encontramos a ação redentora de Deus descrita em termos progressivos e em favor da humanidade. Israel deveria responder a seus filhos relatando os feitos do Senhor no passado.

Essa atividade redentora de Deus para com Israel era complexa, mas simples ao mesmo tempo. Israel fora escravo no Egito e Deus atentou para seu sofrimento realizando feitos prodigiosos e libertando-o da escravidão (vv. 21-25). Assim, também, Deus fez conosco, tirando-nos da escravidão do pecado (Jo. 8,31-36). Trouxe-nos das trevas para sua maravilhosa luz. E agora, devemos viver conforme o padrão estabelecido pelas Escrituras, que está acima de opiniões e visões filosóficas. O que éramos e quem somos deve servir para demonstrar a ação redentora de Deus em nossas vidas também, para nossos filhos, que poderão perceber, assim, que Deus é real e que sua ação salvadora é eficaz. Obedecer, pois,

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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ao Senhor, é uma necessidade premente, pois só fazendo isso seremos capazes de comunicar uma vida transformada a nossos filhos e a outros que nos cercam, inspirando-os a uma vida feliz na presença do Senhor.

• Exemplo de esboço de sermão temático

Tema do sermão: A importância de se ter objetivos

Texto bíblico de base: “Então o anjo do Senhor veio, e sentou-se debaixo do carvalho que estava em Ofra e que pertencia a Joás, abiezrita, cujo filho Gideão estava malhando o trigo no lagar para o esconder dos midianitas. Apareceu-lhe então o anjo do Senhor e lhe disse: O Senhor é contigo, ó homem valoroso” (BÍBLIA, 1993, Jz. 6,11-12).

INTRODUÇÃO

O livro de Juízes alude à uma época sombria para o povo de Israel: havia desunião política, guerras internas, opressão estrangeira, depravação moral e espiritual. Mas Juízes é também um livro que evidencia o cuidado de Deus com seu povo, providenciando libertadores para salvá-los da agressão que vinha de fora. Juízes é também um livro excepcional para se refletir sobre liderança. Ele registra as histórias de líderes notáveis que, alguns deles, apesar de seus erros crassos, puderam ser usados por Deus para livrar Israel. Homens como Sansão e Gideão.

No texto em particular, escolhido para servir de base para este sermão, encontramos justamente Gideão num ato de esforço e sendo chamado pelo anjo do Senhor de “homem valoroso”. De sua determinação podemos extrair algumas lições preciosas sobre a importância de se cultivar objetivos nobres e importantes em nossas vidas.

Prosseguindo quando todos fazem o que não agrada a deus

“Fizeram os filhos de Israel o que era mau perante o Senhor [...]” (v. 1). Um homem, Gideão, ousa prosseguir quando todos faziam o que não agradava a Deus. Manter-se íntegro numa geração de corrompidos não é fácil. Fazer o bem quando todos fazem o mal não é fácil. E insistir em fazer o bem quando todos não acreditam mais no bem, é de fato muito difícil. Todavia, como bem ensinam as Escrituras, “[...] não nos cansemos de fazer o bem, porque no tempo certo faremos a colheita, se não desanimarmos” (Gl. 6, 9, NAA).

Mantendo o objetivo, mesmo sob opressão

“Porque, cada vez que Israel semeava, os midianitas e os amalequitas, como também os povos do Oriente, subiam contra ele” (v. 3). Um homem ousa manter seu objetivo mesmo quando três povos vão contra o seu povo: midianitas, amalequitas e “outros povos da região a leste deles” (v. 3). Como se já não bastasse

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a sua própria nação fazer o que desagradava ao Senhor, outros povos vizinhos os oprimiam. Mesmo assim, ele prossegue. Enfrenta desafios internos e externos. Mas isso não o impede de manter-se focado em seu objetivo. Era preciso malhar o trigo e ele assim o fazia.

O povo empobreceu por causa da opressão, como se pode ler em 6.6: “Por causa de Midiã, Israel empobreceu tanto que os israelitas clamaram por socorro ao Senhor” (NVI). O povo de Israel escondia-se, enquanto Gideão trabalhava: “Os midianitas dominaram Israel; por isso os israelitas fizeram para si esconderijos nas montanhas, nas cavernas e nas fortalezas” (v. 2); Gideão, contudo, “[...] estava malhando trigo num tanque de prensar uvas” (v. 11).

Podemos aprender com isso que, em nossas vidas, é preciso manter o objetivo, confiando no Pai. Os dias difíceis virão, certamente. A noite chegará. A tempestade nos alcançará. O cristão pode, contudo, permanecer firme em seu objetivo, sabendo que dias alegres ajudarão a esquecer os dias tristes, que o amanhecer dissipará o sombrio noturno e que a bonança superará a tempestade violenta.

Deus auxilia na consecução desse objetivo

“Então, veio o Anjo do Senhor [...] e lhe disse: O Senhor é contigo, homem valente” (vv. 11,12). Deus vem em favor do seu servo e lhe envia um mensageiro celeste para animá-lo a prosseguir. Nas horas mais difíceis, o Senhor mostra-se presente e não desampara os seus. Em nossa caminhada nos vemos por vezes cansados e desanimados. Portas fechadas, críticas injustas, omissão daqueles que poderiam nos ajudar e ausência de pessoas importantes para nós são alguns dos diversos fatores que podem nos levar à frustração e à tristeza. Todavia, Ele vem em nosso socorro. Não nos desampara e quando menos esperamos, nos momentos improváveis da vida, Ele nos socorre.

CONCLUSÃO

Gideão questiona o Senhor e apela para a história passada de seu povo dizendo: “[...] Onde estão todas as suas maravilhas que os nossos pais nos contam quando dizem: ‘Não foi o Senhor que nos tirou do Egito?’ Mas agora o Senhor nos abandonou e nos entregou nas mãos de Midiã” (v. 13). Mesmo sendo o menor na casa de seu pai, foi capaz, com o auxílio do Senhor, de se tornar o libertador de uma nação inteira. A história de Gideão é inspiradora para nós, no sentido de que devemos prosseguir em busca dos objetivos que são os objetivos de Deus. O Senhor desejava libertar o seu povo, e a libertação do povo do Senhor tornou-se o objetivo de Gideão.

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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3 O TEMA E A INTRODUÇÃO DO SERMÃO

O tema do sermão ou título do sermão não é propriamente uma parte constitutiva do sermão, mas um elemento fundamental. É por meio do tema que se anuncia o conteúdo do sermão, de maneira objetiva, é claro, mas provocativa. Entenda-se “provocativa” aqui não em sentido pejorativo, mas positivo: que instiga, que provoca curiosidade, que anima para ouvir. É importante que o tema inclua palavras que estão na estrutura do sermão, de fato. E mais que isso: é importante que o tema inclua palavras-chave do sermão, que são aquelas palavras que carregam conceitos essenciais ao sermão e que são recorrentes. Repare no esboço do sermão temático que foi disponibilizado anteriormente, cujo título é A importância de se ter objetivos, que a palavra “objetivo” aparece no desenvolvimento e, inclusive, no segundo tópico do esboço. E é uma palavra essencial à proposta do sermão.

FIGURA 12 – INTRODUÇÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3iP7l4K>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Observe que os dois esboços de sermões apresentados anteriormente possuem várias partes constitutivas em comum, como a introdução, os tópicos (o desenvolvimento do sermão, também chamado de corpo de sermão) e a conclusão. Porém, note, também, que eles se diferenciam na extensão dos comentários e no fato de que o esboço do sermão textual estrutura ou organiza as suas partes a partir do texto bíblico, ao passo que o temático não parte do texto bíblico para organizar suas partes. Vejamos, a seguir, cada uma dessas partes.

UNI

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O tema de um sermão pode ser mais bem elaborado, mas não deve ser confundido com o modelo de títulos de trabalhos científicos, que normalmente são mais extensos e mais elaborados. Veja os exemplos a seguir, a fim de ilustrar a diferença entre eles:

QUADRO 2 – DIFERENÇAS ENTRE TEMAS

FONTE: O autor.

A escolha do texto bíblico é outra parte fundamental da elaboração do esboço do sermão. É tão importante justamente porque é o texto bíblico pregado que será o material de trabalho do pregador. E isso será independente de o sermão ser textual, temático, expositivo ou mesmo ocasional.

O pregador pode optar por trabalhar com uma série de sermões, caso ele tenha essa possibilidade em sua igreja local, em que aborda temas e/ou livros inteiros das Escrituras. Ele terá, assim, uma rica e inesgotável fonte para produzir suas pregações. É claro que as Escrituras são a fonte primária e fundante da pregação, mas não precisam ser a única fonte.

As fontes complementares para a pregação são muitas e variadas: os livros, a experiência pessoal, o encontro e o reencontro diário com o Evangelho e com Cristo que nos leva a repensar convicções e certezas, o dia a dia, as necessidades de nossas comunidades de fé, questões sociais (sem transformar a pregação em discursos sociológicos) e notícias locais, nacionais e internacionais. Não estamos, com isso, inferindo que discursos sociológicos sejam negativos. Todavia, insistimos em que o púlpito cristão precisa destinar-se exclusivamente à exposição da palavra de Deus.

Confira, no vídeo O problema da Assembleia de Deus, um exemplo de como um pregador traz para dentro do sermão uma vivência pessoal e a utiliza em conexão com o assunto abordado na pregação:

Disponível em: https://youtu.be/imfJsrmeSzo. Acesso em: 3 jul. 2021.

DICAS

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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A introdução é uma parte fundamental do esboço do sermão. Começar bem é essencial, inclusive no sermão. A introdução do sermão é a parte que anuncia de modo mais abrangente o conteúdo do que será abordado na pregação. Por meio dela, o pregador anuncia a quer chegar. E, sem dúvida, o pregador já deve chegar ao púlpito tendo claro o ponto alto da pregação, o seu clímax. Moraes (2007) alerta para o fato de que “o pregador que não fixa com clareza o propósito de sua mensagem tende a ficar falando em círculos intermináveis” e que “para pregar com objetividade, relevância e vigor, o pregador precisa trabalhar com um propósito claro, de tal modo que conheça o rumo a seguir em sua mensagem e saiba aonde pretende chegar com sua comunicação” (MORAES, 2007, p. 79).

Robson Moura Marinho (2008) cita Duane Liftin que por sua vez comenta o seguinte:

Você nunca tem uma segunda chance de causar uma primeira impressão!” Marinho prossegue afirmando que, no sermão, “[...] a primeira impressão exerce um papel decisivo, e geralmente irreversível. Ou seja, se não aproveitar bem os primeiros minutos do sermão, você não terá uma nova chance de começar de novo! (MARINHO, 2008, p. 225).

Marinho (2008) prossegue destacando algumas qualidades de uma boa introdução, que comentaremos a seguir. São as seguintes:

• Atratividade: desperta a atenção do ouvinte e provoca-lhe interesse. • Objetividade: ela não pode ser longa, e não precisa explicar o sermão; ela

introduz o ouvinte no assunto geral do sermão.• Concisão: a introdução não deve ser prolixa.• Brevidade: se a introdução for longa demais, ela pode cair no vazio e

deixar o ouvinte sem entender de fato onde o pregador busca chegar com o desenvolvimento do sermão.

• Modéstia: a introdução não deve anunciar aquilo que de fato não conseguirá abordar. Deve ser objetiva, concisa e se pautar também pela humildade. Marinho (2008, p. 228) afirma: “[...] Em vez de exagerar e dar a impressão de arrogância, seja modesto, deixe que o conteúdo fale por si mesmo e demonstre consistência”.

Imagine um pregador, em certa ocasião, anunciar na introdução que seu sermão tinha 10 tópicos, mas não conseguir passar do terceiro depois de 40 minutos! Agora Outro erro crasso é o pregador falar por trinta minutos ou mais e dizer que essa é apenas a introdução do seu sermão, dando aquele ar de sabedoria e de arrogância.

UNI

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

• Bom senso: esta qualidade tem a ver com outras qualidades já elencadas, como concisão e brevidade. Marinho (2008, p. 229) comenta que a introdução “[...] tem de ser coerente com o tema, com a congregação e com o espírito cristão”.

• Clareza: a introdução precisa ser clara, de modo que o ouvinte logo perceba do que se trata o conteúdo geral da pregação.

• Planejamento: a introdução também é parte da elaboração do esboço do sermão. Ela não é uma parte qualquer que deva ser relegada à menor importância. “Mais uma vez o preparo é fundamental. Alguns pregadores têm a ingenuidade de preparar o corpo do sermão e deixar a introdução para o improviso” (MARINHO, 2008, p. 229).

4 O DESENVOLVIMENTO DO SERMÃO

Chegamos, agora, ao corpo do sermão, também chamado de desenvolvimento ou esqueleto do sermão. É no desenvolvimento do sermão que constarão os tópicos, constituindo a sua estrutura principal. É importante, a essa altura do nosso estudo, que você retorne aos exemplos de esboços de sermões apresentados anteriormente para que possa visualizar os tópicos na prática.

FIGURA 13 – ESCREVENDO

FONTE: <https://shutr.bz/3AviNsm>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Cozzer (2018c) comenta que o desenvolvimento pode ser entendido como:

[...] as partes do sermão, propriamente ditas. Se o sermão for temático ou textual, sugiro que sejam em média três tópicos. Há exceções, é claro. Existem temas e textos que possibilitam e exigem uma quantidade maior de tópicos, mas é preciso pensar esta questão sempre em conexão com o tempo que será disponibilizado para a exposição do sermão. Há igrejas que dão mais tempo (uma hora, por exemplo), ao passo que outras dão menos tempo (meia hora) (COZZER, 2018c, p. 74-75).

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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FONTE: <https://shutr.bz/3iOHJFj>. Acesso em: 4 ago. 2021.

O autor prossegue destacando que um:

[...] aspecto muito importante que precisa ser observado quanto aos tópicos é a sua sequencialidade. Noutras palavras, os tópicos precisam combinar entre si. O final de um tópico deve introduzir o tópico seguinte. Deve haver coerência entre eles. Há pregadores que não observam isto na construção de seus esboços, o que reflete de modo muito negativo na exposição. Os ouvintes não conseguem identificar uma sequência lógica, harmoniosa. E além disto, o sermão fica mais didático [...] (COZZER, 2018c, p. 74-75).

5 A CONCLUSÃO DO SERMÃO

Uma vez desenvolvidos os tópicos, é hora de concluir o sermão. O que foi afirmado anteriormente sobre a importância da introdução vale também para a conclusão: ela é uma parte fundamental do sermão e não deve ser feita de improviso ou para simples preenchimento de esboço.

A conclusão do sermão não é uma parte do sermão de pouca relevância. Algumas pessoas tendem a subestimar a importância da conclusão, mas isso é um erro. A conclusão ajuda a consolidar na mente do ouvinte a mensagem central do sermão. É o fechamento do sermão.O pregador precisa saber a hora de parar. Há pessoas que prosseguem quando deveriam parar, numa pregação. Moraes (2007) conta que “depois de ouvir por uns 30 ou 40 minutos o sermão naquele domingo, uma piedosa irmã ficou impaciente diante da crise que se tornou visível no púlpito: o pregador, falando em círculos intermináveis, não conseguia encontrar o caminho para concluir sua mensagem. Mais tarde aquela irmã declarou: ― Eu orei pedindo a Deus que tivesse misericórdia do pregador e o ajudasse a terminar o sermão” (MORAES, 2007, p. 164, grifos do autor). Começar bem é necessário; concluir também. Uma conclusão bem-feita, coerente e que resume bem a proposta geral do sermão, que foi desdobrada nos tópicos, significa o coroamento do sermão. Na conclusão as divagações devem ser evitadas. Em todas as partes, mas principalmente na finalização do sermão. O pregador deve ser objetivo e direto ao concluir seu sermão (COZZER, 2018c, p. 75-76).

FIGURA 14 – CONCLUSÃO

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

A conclusão também precisa ser pronunciada com cuidado pelo pregador. E ela precisa existir também na proclamação. Há pregadores que simplesmente não conseguem encerrar seus sermões com uma boa conclusão. Se a primeira impressão passada pela introdução é fundamental, a última que é transmitida pela conclusão também o é. Por isso, a necessidade da conclusão ser devidamente preparada.

6 O APELO: É PARTE DO SERMÃO?

Depois da conclusão, pode-se mencionar o apelo. Alguns o consideram uma parte do esboço e do sermão, por conseguinte. Vamos adotar o entendimento aqui de que o apelo é “uma parte à parte”. Ele pode ser entendido como uma extensão, um apêndice, não parte essencial do sermão. Com isso não se pretende afirmar que o apelo não seja importante. Ele é! Porém, não necessariamente integra o sermão.

FIGURA 15 – APELO

FONTE: <https://shutr.bz/3oPUAus>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Alguns cuidados devem ser tomados em relação à prática do apelo e um deles é que “o apelo não deve ser apelativo”. Cozzer (2018c) comenta o seguinte:

Nas vezes em que pude ministrar aulas de Homilética, costumava dizer que “o apelo não deve ser apelativo”. O apelo deve ser entendido como um convite que é feito de modo gracioso. Ainda me lembro de minha saudosa mãe, no momento do apelo, após concluir suas pregações. Ela detestava apelos demorados. E sempre dizia que “Jesus não é penca de bananas oferecida em feira”. Era a sua forma direta e simples de dizer que Jesus não era mercadoria barata para ficar sendo empurrado forçosamente para os outros. Ele mesmo disse: “Se alguém quiser vir após mim”.

Infelizmente, o sensacionalismo tomou conta de grande parte da pregação na Igreja brasileira, seja pentecostal ou não. E isso torna a prática do apelo inadequada, em alguns casos extremados. Imagine situações em que o pregador começa a debater com pessoas que visitam o culto, criando uma situação de

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TÓPICO 2 — PARTES QUE COMPÕEM O SERMÃO

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extremo constrangimento. O apelo deve ser profundo e claro, mas indireto, no sentido de não ser direcionado à pessoa A ou B que esteja presente no momento do apelo.

7 REFERENCIANDO BIBLIOGRAFICAMENTE O SERMÃO

Por fim, há uma parte fundamental na elaboração de esboços de sermões e que geralmente não é mencionada pelos homiletas: a referenciação bibliográfica do esboço. Mesmo que não se dedique uma seção específica no esboço para essa finalidade, o pregador deve saber fazer essa referenciação e a faça de fato. A preocupação com tal questão evidencia honestidade intelectual e respeito ao trabalho de outros. É muito comum ouvir pregadores apresentando ideias e dando a entender claramente que elas são suas, quando sabemos que não são. Temos consciência de que uma pregação não é um artigo científico falado, mas isso não significa que o pregador não possa citar suas fontes, inclusive de modo oral. Volte aos esboços que foram disponibilizados como exemplos, anteriormente, e repare que neles constam referências bibliográficas que indicam as fontes consultadas. Isso enriquece o sermão e aumenta sua credibilidade, pois reflete que ele é produto de pesquisa séria.

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• Cada uma dessas partes constitui o sermão: o tema, a introdução, o desenvolvimento e a conclusão do sermão. E além desses elementos constitutivos da estrutura do sermão, aprendeu, também, sobre a importância de fundamentar teoricamente o esboço com boas referências bibliográficas e sobre a importância do apelo.

• O pregador e a pregadora precisam conhecer cada uma das partes do sermão: sua finalidade, suas qualidades e devem saber prepará-las adequadamente, para que o sermão possa ser comunicado com eficiência.

• A Introdução do sermão deve possuir qualidades como concisão, brevidade, objetividade e modéstia.

• A Conclusão do sermão é uma das suas partes constitutivas de grande importância, e deve receber especial atenção do pregador em seu preparo.

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1 Uma definição clássica para a Homilética é a seguinte: “Homilética é a técnica e arte da preparação e exposição de sermões”. É técnica porque envolve objetivos, conhecimento do assunto a ser abordado no sermão, elaboração intelectual e organização. Pensando na elaboração do sermão dentro da Homilética, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O sermão precisa ser organizado, isto é, estruturado previamente.b) ( ) O sermão deve ser proferido sempre de maneira espontânea.c) ( ) A elaboração prévia do sermão inibe a ação do espírito na vida do

pregador.d) ( ) A preparação prévia do sermão contribui para confundir o pregador.

2 A elaboração de sermões a partir de passos é muito importante, pois permite ao pregador construir seu sermão de maneira coerente e lógica, concatenando bem as ideias e dando progressão à mensagem a ser comunicada no sermão. O homileta brasileiro Jilton Moraes comenta, em seu livro Homilética: da pesquisa ao púlpito (2007), que faz uso do método de H. C. Brown Jr. A partir dos desafios do método Brown, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O desafio do método Brown consiste em que o sermão seja preparado começando com o título, as divisões, introdução e conclusão.

b) ( ) O desafio do método Brown consiste em equipar o pregador para elaborar sermões considerando a conclusão o seu ponto alto, e nem tanto a partir do aprofundamento na pesquisa.

c) ( ) O desafio do método Brown consiste em equipar o pregador para elaborar sermões textuais e expositivos a partir do aprofundamento da pesquisa do texto básico.

d) ( ) O desafio do método Brown consiste em equipar o pregador para elaborar sermões textuais e expositivos a partir da temática escolhida, que norteará o desenvolvimento do sermão.

3 O sermão é constituído de partes que devem receber atenção cuidadosa do pregador em sua elaboração. A partir dos conhecimentos adquiridos sobre as partes constituintes do sermão, analise as sentenças a seguir:

I- O tema é uma dessas partes constitutivas do sermão.II- A introdução do sermão é a parte em que se anuncia de modo resumido

o conteúdo do que será falado.III- O desenvolvimento é a parte do sermão que contém o seu conteúdo

propriamente dito.

Assinale a alternativa CORRETA:

AUTOATIVIDADE

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a) ( ) As sentenças II e III estão corretas.b) ( ) As sentenças I e III estão corretas.c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

4 A Introdução é uma parte constitutiva fundamental do sermão. É um erro pensar que ela não deve receber a devida atenção e ser preparada cuidadosamente. A introdução de um sermão deve possuir algumas qualidades. Disserte sobre algumas dessas qualidades que devem caracterizar a introdução.

5 Quando o sermão é bem elaborado em suas seções, isso contribui para que ele seja relevante e atrativo. Como foi mencionado no texto-base, um sermão deve possuir uma introdução, uma conclusão e um desenvolvimento. Todavia, há outros elementos que podem ser considerados como o apelo. Disserte sobre o que é o apelo e como ele deve ser feito.

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TÓPICO 3 — UNIDADE 1

A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL

1 INTRODUÇÃO

Chegamos, agora, a uma parte muito importante do nosso estudo em Homilética: a diferenciação entre os diferentes tipos de sermão. São eles o Expositivo, o Temático e o Textual. Essa é uma classificação geral, mas há outras formas de classificar os sermões. Aqui, para efeitos didáticos de abrangência, consideramos essa classificação mais usual para nosso estudo.

Essa classificação dos sermões é muito usual em Homilética e de grande importância. Não por acaso é amplamente utilizada por diversos homiletas, ainda que se reconheça a validade de outras formas de classificar os sermões e que esses tipos mesclam elementos uns dos outros. Essa classificação ajuda também em outros aspectos, como por exemplo, pregar conforme o perfil do culto. O sermão temático cabe bem em cultos festivos, ao passo que o sermão textual e o expositivo, em cultos de ensino. Naturalmente, será preciso conhecer cada um desses tipos para assim poder fazer usos deles com maestria.

Marinho (2008, p. 191) comenta que “[...] os sermões podem ser classificados quanto ao assunto ou quanto ao conteúdo geral”. O mesmo autor prossegue que há uma classificação mais tradicional, e que nela os sermões podem ser assim classificados:

InterpretativosÉticosDevocionaisDoutrináriosFilosóficos ou apologéticosSociais (família, educação etc.)Evangelísticos (MARINHO, 2008, p. 191).

2 O SERMÃO EXPOSITIVO

O sermão expositivo é muito valorizado por diversas denominações cristãs e, às vezes, até “idolatrado”. Vamos partir da ideia de que todos os tipos são válidos e oferecem a sua contribuição. Tanto o sermão expositivo como o temático e o textual possuem vantagens e desvantagens, que devem ser levadas em conta pelo pregador.

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

No sermão expositivo, todas as ideias saem do texto e do contexto. A ideia central, as divisões principais e todas as subdivisões originam-se de uma passagem maior da Bíblia e são interpretadas à luz do contexto, o qual fornece o tema e as aplicações do sermão. O texto escolhido pode ser um milagre de Cristo, uma parábola, um episódio, uma cena bíblica, um salmo, ou mesmo um capítulo qualquer da Bíblia. É a exposição do texto propriamente dita (MARINHO, 2008, p. 200).

Uma grande vantagem do sermão expositivo é que ele expõe como nenhum outro tipo o texto bíblico em si. Por isso mesmo é chamado de expositivo. É o texto bíblico que deverá ser amplamente explorado hermeneuticamente para ser assim compartilhado com a comunidade de fé. Isto, é claro, representa um desafio e muito trabalho para o pregador.

FIGURA 18 – DIÁLOGO

FONTE: <https://shutr.bz/3lt60lI>. Acesso em: 4 ago. 2021.

A construção de um esboço de sermão expositivo é, em essência, um trabalho exegético. Deve-se, inclusive, ter o cuidado de não transformar o sermão expositivo numa espécie de comentário bíblico falado, o que também seria válido, noutro contexto... A pregação precisa ser sempre marcada por certa dinamicidade. E deve ter como preocupação precípua aplicar a mensagem do texto, transpondo-o ao ouvinte pós-moderno. Com efeito, não adianta expor sem aplicar.

É importante lembrar ao aluno que o sermão expositivo difere do textual em alguns aspectos. O expositivo é todo estruturado a partir do texto bíblico (divisões e subdivisões), ao passo que o textual constrói suas divisões principais a partir do texto bíblico, mas não as subdivisões. Outra diferença importante é que o expositivo é mais extenso que o textual. Enquanto o textual utiliza poucos versículos, o expositivo pode chegar a explorar até mesmo um livro inteiro da Bíblia.

LEMBRETE

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TÓPICO 3 — A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL

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Uma das grandes vantagens do sermão expositivo, talvez a maior, é que ele expõe com maior profundidade o sentido do texto bíblico. Nesse sentido, podemos afirmar que ele é mais exegético. E vale lembrar que a palavra “exegese” vem do grego e significa “extrair”. Assim, a tarefa exegética no texto bíblico é entendida como o esforço para extrair o significado do texto bíblico em estudo.

Uma grande desvantagem do sermão expositivo é que ele tende a ser “teológico demais” para as nossas comunidades de fé. Se o pregador não tiver cuidado com a sua exposição perante a congregação, ele pode fazer parecer que está comunicando mais um discurso acadêmico-teológico do que um sermão, de fato.

Marinho (2008, p. 202) alista algumas vantagens e desvantagens do sermão expositivo que organizamos de maneira objetiva na tabela a seguir:

QUADRO 3 – VANTAGENS E DESVANTAGENS DO SERMÃO EXPONSIVO

FONTE: Adaptado de Marinho (2008, p. 202-204)

3 O SERMÃO TEMÁTICO

O sermão temático é o preferido dos pregadores pentecostais. É amplamente utilizado nas igrejas de tradição pentecostal, e basta uma consulta rápida na internet ou frequentar uma igreja pentecostal para perceber essa realidade. Demérito por isso? De modo algum! O problema da pregação pentecostal, sem dúvida, não é por ela utilizar majoritariamente o tipo temático, mas, sim, por outros fatores.

O sermão temático é aquele em que o pregador elabora um tema e busca nas Escrituras embasamento bíblico para suas ideias. Deve-se lembrar que, em muitos casos, essas ideias derivam justamente do texto bíblico, embora nem sempre. Marinho (2008, p. 193) comenta o seguinte sobre o sermão temático:

No sermão temático, o pregador determina o assunto que deseja e então busca os textos bíblicos para formar as divisões principais que vão apoiar o assunto escolhido. Em outras palavras, primeiro vem o tema, depois vêm os textos bíblicos. É o método mais usado por ser o de mais fácil preparo. É muito útil para os sermões doutrinários e evangelísticos, que precisam basear-se em diferentes temas da Bíblia (MARINHO, 2008, p. 193).

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

O sermão temático possui diversas vantagens. Uma das principais é a sua facilidade de aplicabilidade. Todavia, essa vantagem pode tornar-se uma desvantagem. Muitos pregadores, no afã de aplicarem a mensagem bíblica, acabam não tendo critério exegético algum e vilipendiam o texto bíblico em nome da contextualização. Infelizmente, isso tem dado lugar a absurdos ao púlpito cristão.

O sermão temático precisa ser cuidadosamente preparado. Os tópicos, bem como a ideia central, precisam ter bom aporte bíblico e teológico. Ele deve ser pensado em termos contemporâneos, mas bíblicos também. Do contrário, deixará de ser pregação cristã. O fato desse tipo de sermão ser de mais fácil preparação não deve ser pressuposto para o descuido na sua preparação ou mesmo para uma preparação rasa. Quanto mais pesquisa, mais qualidade o sermão tenderá a ter.

4 O SERMÃO TEXTUAL

O sermão textual é aquele que emana do texto bíblico, geralmente um trecho pequeno. Ele difere do sermão expositivo nesse sentido, que, por sua vez, é elaborado a partir de um conjunto maior de versículos, podendo até ser pensado a partir de um livro inteiro da Bíblia. O sermão textual parte de um texto pequeno, normalmente um ou dois versículos servem de base e, assim, as partes ou tópicos do sermão vão sendo elaborados. E, claro: a ideia central do sermão brota justamente desse texto bíblico escolhido pelo pregador.

FIGURA 19 – TEXTO BÍBLICO

FONTE: <https://shutr.bz/3DwrKDM>. Acesso em: 4 ago. 2021.

Enquanto no sermão temático o assunto sai da cabeça do pregador e dali ele busca aporte bíblico para fundamentar o tema, no textual, o assunto parte do texto bíblico. É um método que também possui várias vantagens, como o fato

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TÓPICO 3 — A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL

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de explorar em certa medida o texto bíblico, contribuir para fixar a atenção dos ouvintes na passagem e de ser mais fácil de preparar. E tanto quanto os anteriores, ele requer dedicação e aprofundamento bíblico.

5 AFINAL DE CONTAS, QUAL O MELHOR?

Respondemos a esta pergunta afirmando que todos são ótimos e podem ser explorados pelo pregador. E essa variedade só tem a enriquecer a homilia cristã. O que procuramos demonstrar é que todos os tipos possuem deficiências, como também vantagens. Percebe-se a ênfase exacerbada que alguns teólogos e pregadores reformados dão ao sermão expositivo em detrimento dos outros tipos. O nosso entendimento é que tal postura é negativa. Não é por se concentrar num determinado modelo de pregação que os sermões serão, via de regra, isentos de problemas. Com efeito, temos visto muito legalismo religioso, reducionismo e generalizações grotescas, bem como muita arrogância teológica e religiosa presentes em sermões, inclusive no contexto reformado que tanto valoriza a pregação expositiva sob a alegação de que ela é a melhor. O melhor caminho é o equilíbrio e a sensatez, desenvolvendo, assim, a capacidade de utilização de todos os tipos de sermões, sempre se mantendo fiéis ao texto bíblico e prezando pela boa aplicação da mensagem cristã ao mundo pós-moderno.

Prezado acadêmico, buscamos deixar bem claro que a preparação do sermão requer cuidado hermenêutico. Nas unidades a seguir, poderemos conhecer esta disciplina extraordinária, a Hermenêutica Bíblica, e com esse conhecimento é que o pregador poderá assim preparar melhor seus sermões e comunicá-los com mais segurança para a comunidade de fé.

ESTUDOS FUTUROS

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UNIDADE 1 — HOMILÉTICA – DOS CONCEITOS BÁSICOS AO ENSINO E À PREGAÇÃO BÍBLICA

LEITURA COMPLEMENTAR

CAMPO DE AÇÃO DE HOMILÉTICA

Roney Ricardo Cozzer

Recomendamos a leitura do trecho da obra Homilética: importa que o evangelho seja anunciado (2018c), intitulado “Campo de ação da Homilética”, que discorre sobre a Homilética e seu campo de ação, indicando a utilidade prática da disciplina, além de reforçar algumas conceituações importantes já estudadas nesta unidade. O texto está disponível a seguir:

CAMPO DE AÇÃO DA HOMILÉTICA

A Homilética em suas aplicações tem por campo de ação a vida do pregador, responsável pela transmissão da mensagem divina. Também a própria Igreja funciona como campo de ação da Homilética, que recebe a pregação. E ainda: os pecadores, que ouvem a proclamação da Palavra. A Homilética ainda se relaciona com outras disciplinas teológicas, dadas as suas aplicações, tais como a Hermenêutica, a Exegese, a Ética cristã e a Teologia do Obreiro.

O que é “pregação”?

Mas afinal, o que é a pregação? A palavra “pregação” vem do latim praedicare e significa “proclamação da Palavra de Deus, visando a divulgação do conhecimento divino, a conversão dos pecadores e a consolação dos fiéis. A pregação deve ter um caráter bíblico, evangélico e profético. Além de ter a Bíblia como base, há de mencionar a obra salvífica de Cristo, e mover o pecador a arrepender-se de seus pecados”.

Os dois lados da pregação

Quais são os dois lados da pregação ou proclamação da Palavra de Deus? Robson Moura Marinho, em seu livro A arte de Pregar: como alcançar o ouvinte pós-moderno (2008), chama a atenção para o fato de que a pregação é um milagre duplo:

A pregação bíblica é um milagre duplo. O primeiro milagre é Deus usar um homem imperfeito, pecador e cheio de defeitos para transmitir a perfeita e infalível Palavra de Deus. Trata-se de um Ser perfeito usando um ser imperfeito como seu porta-voz. Só um milagre pode tornar isso possível. O segundo milagre é Deus fazer que os ouvintes aceitem o porta-voz imperfeito, escutem a mensagem por intermédio do pecador e finalmente sejam transformados por essa mensagem. Esse é o grande milagre da pregação! (MARINHO, 2008, p. 179)

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TÓPICO 3 — A PREGAÇÃO EXPOSITIVA, TEMÁTICA E TEXTUAL

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Assim, a pregação tem de fato dois lados: o divino e o humano. Quando pregamos o Evangelho no poder e na unção do Espírito Santo vivenciamos em nós mesmos este milagre: a ação de Deus através de nós, seres humanos falíveis, pecadores. O Deus Santo e Verdadeiro usa seres humanos imperfeitos para a transmissão de Sua verdade salvadora. Não é, pois, a pregação um grande feito quando ministrada dessa forma? É preciso que tenhamos isso em mente, de que o humano coopera com o divino na transmissão do evangelho para os pecadores.

A DEPENDÊNCIA DE DEUS PARA O EXERCÍCIO DO MINISTÉRIO DA PALAVRA

Paulo deixou o exemplo da dependência de Deus para proclamar o evangelho. Ele pediu aos crentes de Éfeso que orassem a fim de que ele fosse um arauto ousado na proclamação do mistério do evangelho. Vale a pena ler suas palavras em Efésios 6.18-20:

Orem sempre, guiados pelo Espírito de Deus [...] Não desanimem e orem sempre por todo o povo de Deus. E orem também por mim, a fim de que Deus me dê a mensagem certa para que, quando eu falar, fale com coragem e torne conhecido o segredo do evangelho. Eu sou embaixador a serviço desse evangelho, embora esteja agora na cadeia. Portanto, orem para que eu seja corajoso e anuncie o evangelho como devo anunciar.

Paulo se mostra dependente de Deus para anunciar a Sua Palavra. Jamais deve o pregador se apoiar exclusivamente em seu próprio cabedal de conhecimento secular, bíblico e teológico, pois ainda que ele tenha amplo conhecimento nesses ramos do saber, se não depender de Deus, sua mensagem não haverá de produzir efeitos. Vale destacar a importância da vida devocional no ministério da pregação, visto que quanto maior for a nossa comunhão com Deus mais frutos haveremos de produzir no ministério da exposição da Palavra. É Dele que devemos buscar e receber nossos sermões. É a Ele que devemos perguntar pelo que pregar. O propagador do evangelho que realmente está comprometido com a divulgação do evangelho jamais prescindirá do auxílio do Pai através do Espírito Santo.

FONTE: COZZER, Roney Ricardo. Homilética: importa que o evangelho seja anunciado. Curitiba, PR: Editora Emanuel, 2018, p. 15-18.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Os três tipos de sermão, conforme essa tradicional classificação para os sermões: o sermão expositivo, o temático e o textual.

• A possibilidade de fazer uso dos três tipos de sermão sem necessariamente escolher um e preterir outros. O equilíbrio e a sensatez são fundamentais nessa utilização, tendo em vista que os três tipos possuem vantagens e desvantagens e podem dar a sua contribuição.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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1 Os sermões podem ser classificados em textuais, expositivos e temáticos. Essa é uma forma muito usual de classificar os sermões, embora não seja a única, é claro. Pensando na definição de cada tipo de sermão, analise as sentenças a seguir:

I- O sermão textual é aquele que emana do texto bíblico.II- O sermão expositivo é aquele que emana do tema do sermão.III- O sermão temático é aquele que emana do texto bíblico.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) As sentenças II e III estão corretas.c) ( ) Somente a sentença III está correta.d) ( ) As sentenças I e III estão corretas.

2 Todos os três tipos de sermão – textual, expositivo e temático – podem ser definidos a partir de suas características principais. Quanto ao sermão expositivo, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Nesse tipo de sermão, todas as ideias derivam do tema escolhido.b) ( ) Nesse tipo de sermão, todas as ideias derivam dos tópicos do sermão.c) ( ) Nesse tipo de sermão, todas as ideias saem da cabeça do pregador.d) ( ) Nesse tipo de sermão, todas as ideias brotam do texto e do seu contexto.

3 Todos os três tipos de sermão – textual, expositivo e temático – podem ser definidos a partir de suas características principais. Quanto ao sermão temático, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Nesse tipo de sermão, todas as ideias brotam do texto e do seu contexto.b) ( ) Nesse tipo de sermão, as ideias derivam do tema escolhido.c) ( ) Nesse tipo de sermão, as ideias derivam da análise do texto bíblico.d) ( ) Nesse tipo de sermão, as ideias emanam do contato com as ferramentas

exegéticas empregadas na análise do texto.

4 Todos os três tipos de sermão são úteis e possuem vantagens e desvantagens. Como afirmado no texto-base do Tópico 3, não se propõe a preferência de um tipo em detrimento de outros. Todos são reconhecidos como úteis e com seus respectivos prós e contras. Sendo assim, disserte sobre algumas vantagens e limitações do sermão textual.

AUTOATIVIDADE

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5 Todos os três tipos de sermão são úteis e possuem vantagens e desvantagens. Como afirmado no Tópico 3, não se propõe a preferência de um tipo em detrimento de outros. Todos são reconhecidos como úteis e com seus respectivos prós e contras. Disserte sobre algumas vantagens e limitações do sermão expositivo.

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UNIDADE 2 —

ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender o sentido da palavra “Hermenêutica”;• conhecer de maneira introdutória a história da Hermenêutica Bíblica;• entender os pressupostos básicos de determinados métodos hermenêu-

ticos;• saber diferenciar os métodos Histórico-Crítico e Histórico-Gramatical.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

TÓPICO 2 – A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

TÓPICO 3 – MÉTODOS HERMENÊTICOS NA MODERNIDADE

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, nesta unidade, estudaremos a respeito da origem e do desenvolvimento da Hermenêutica Bíblica, bem como consideraremos a sua colossal contribuição para a leitura e compreensão das Escrituras, ao longo do tempo, na História do Cristianismo. Houve grande avanço, inclusive, nas pesquisas hermenêuticas, de modo que é possível afirmar que a Hermenêutica transpôs os limites da Teologia, sendo objeto de estudo em diversas áreas, como, por exemplo, na Filosofia.

Uma compreensão mais adequada da Hermenêutica passa pelo estudo do seu desenvolvimento histórico e, também, dos conceitos principais, a partir de sua definição etimológica e teológica. Esse procedimento, inclusive, de sempre recorrer à etimologia de termos e ao seu sentido teológico, é constante nas Ciências Humanas e muito contribui para a elucidação da disciplina em si e de seus objetivos. E, claro, de suas contribuições.

Vale mencionar, ainda, nesta introdução, a grande contribuição da Hermenêutica para a Igreja, em suas muitas comunidades de fé, para a leitura e compreensão das Escrituras. Parece pouco uma ciência toda dedicada à interpretação de um livro antigo? A princípio, sim, mas isso não é pouco. O que ocorre é que a Bíblia se coloca como um livro singular na história, e, como nenhum outro, impactou profundamente e ainda impacta.

A Bíblia é livro que orienta a fé e a práxis religiosa de milhões de pessoas, ao redor do mundo. Ela está na base de praticamente todas as atividades que são desenvolvidas em igrejas cristãs, como a pregação, o ensino, a liturgia, o discipulado, dentre outras. Com isso, estamos procurando demonstrar que é a maneira como se interpreta as Escrituras que orienta a fé e a ação religiosa e vivencial da Igreja.

Tal fato sinaliza para a importância da disciplina em si e para a importância do ato interpretativo. E sinaliza, também, é claro, para o cuidado que esse ato interpretativo deve receber. Com efeito, a maneira como se interpreta o texto bíblico desembocará em ações concretas na realidade da vida. Interpretação e ação têm estreita conexão.

TÓPICO 1 —

ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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FIGURA 1 – A BÍBLIA

FONTE: <https://shutr.bz/3FyJhwL>. Acesso em 27 jul. 2021.

2 DEFINIÇÃO ETIMOLÓGICA

A palavra “Hermenêutica” é oriunda da língua grega. O termo grego hermeneutikós significa “interpretação”, “arte de interpretar” (HOUSTON, 2012 apud DICK, 2002, p. 163). Na verdade, há alguns termos cognatos de Hermenêutica no grego bíblico. Bentho (2005, pp. 60-61) destaca a palavra diermeneusen, que significa “explicar ou interpretar” e o termo mathermeneuo, “traduzir, tradução, dar significado”.

Bentho (2005, p. 60) comenta que a “[...] interpretação como explicação enfatiza os aspectos discursivos da compreensão, em vez de sua dimensão expressiva”. O mesmo autor prossegue comentando o uso da palavra diermeneusen em Lucas (24,25-27): “Jesus estava trazendo à compreensão dos discípulos o significado oculto do texto. Em vez de apenas discorrer sobre o texto, explicou-o e explicou-se a si mesmo em função deles”.

Um fato muito interessante, ainda em relação às palavras envolvidas na busca pelo significado da palavra “Hermenêutica”, é que ela guarda relação com o nome do deus da mitologia grega chamado Hermes. Cozzer (2020, vol. 1, p. 372) comenta:

Em Atos 14.12, pode-se ler que Paulo, juntamente com seu compa-nheiro de viagens missionárias, Barnabé, receberam dos habitantes de Listra nomes de deuses gregos. A Bíblia afirma que “a Barnabé cha-mavam Júpiter e a Paulo, Mercúrio, porque era ele o que dirigia a pa-lavra”. Mas “Mercúrio” e “Júpiter” são nomes romanos dados à eles; Mercúrio é, na verdade, o equivalente de Hermes. Note-se no texto que Paulo foi chamado de Hermes por ser ele que falava, ou, como consta na King James Atualizada, “a Paulo chamaram Hermes, pois era ele quem falava com poder”.

No pensamento mitológico grego antigo, o deus Hermes, como representado na Figura 2, era o deus responsável por “interpretar” as mensagens dos deuses direcionadas aos homens. Hermes era o deus que trazia e interpretava essas mensagens. Sempre retratado na Antiguidade com asas nos pés, Hermes

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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“[...] era tido como o mensageiro divino e intérprete dos deuses, e que também era o deus da eloquência, que os romanos chamavam de Mercúrio” (CHAMPLIN, vol. 3, 1991, p. 95).

FIGURA 2 – RETRATAÇÃO ARTÍSTICA DO DEUS GREGO HERMES

FONTE: <https://shutr.bz/3FA3UIL>. Acesso em 14 jul. 2021.

Há quem se sinta desconfortável pelo fato de a palavra “Hermenêutica” ser relacionada ao nome desse deus grego, Hermes. Uma origem pagã para a palavra “Hermenêutica”? Mesmo que o seja, isso não compromete em absolutamente nada a contribuição e o valor da Hermenêutica Bíblica para a Igreja. E no mais, diversas palavras e ideias incorporadas pela cultura ocidental carregam algum sentido mitológico, pagão ou mesmo idolátrico, mas que, por efeito de semântica, assumem significados absolutamente distintos.

Sobre a utilização da palavra “hermenêutica”, Champlin (vol. 3, 1991, p. 1) comenta que “[...] o uso comum dessa palavra alude à interpretação de textos escritos, especialmente bíblicos, embora também de natureza filosófica, legal etc.” Champlin prossegue comentando que “as atividades da filosofia das ciências sociais são consideradas, por muitos especialistas, como mais aparentadas à hermenêutica do que às ciências exatas, as quais já usam métodos de laboratório em suas pesquisas”.

3 DEFINIÇÃO TEOLÓGICA

Do ponto de vista teológico, a Hermenêutica pode ser entendida como um esforço disciplinar para aprofundar a compreensão do texto bíblico. Como ciência teológica, trata-se de um campo de estudos muito profundo e com diversos desdobramentos.

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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Bentho (2005, p. 55) comenta que “a hermenêutica não é apenas a arte ou a ciência da interpretação de qualquer texto; antes de tudo, é uma ciência que procura também o significado da palavra como evento histórico, social e de vida”. Isso significa dizer que o trabalho do hermeneuta é árduo.

Há várias contribuições valiosas no sentido de definir a Hermenêutica, em autores que são referência no estudo dessa disciplina tão fundamental. Para Bentho (2005, p. 55), a Hermenêutica, como ciência, “[...] é objetiva, pois está fundada em fatos concretos, isto é, na verdade bíblica”. Noutras palavras, a Hermenêutica Bíblica, como qualquer outra ciência, possui um objeto maior de estudos: o texto bíblico.

A Hermenêutica Bíblica, enquanto ciência teológica, tanto possui um objeto de estudo (o texto bíblico) como, também, se justifica como campo de pesquisa. E o que justifica a Hermenêutica? Deve-se mencionar que a Bíblia é um conjunto de textos que foram sendo reunidos ao longo de muito tempo. São diversos livros, 66 ao todo, escritos por autores diversos, em contextos diferentes e em épocas distintas.

Não se deve deixar de considerar também que há diferentes perspectivas a respeito da constituição da Bíblia nas diferentes tradições cristãs históricas. Pode-se falar de pelo menos três cânons bíblicos: o cânon católico, o protestante e o judaico. O protestante e o judaico se assemelham num sentido: eles não incluem os livros de Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (não o Eclesiastes), Baruque, 1 e 2 Macabeu e os quatro acréscimos a livros canônicos, a saber, Ester (a Ester, 10.4 – 16.24), Cântico dos Três Santos Filhos (a Daniel, 3.24-90), História de Suzana (a Daniel, cap. 13) e Bel e o Dragão (a Daniel, cap. 14).

Esses livros que não constam das Bíblias de edição protestante são chamados pelos protestantes de “apócrifos” e pelos católicos de “deuterocanônicos”. Teólogos protestantes encaram com olhar crítico a inclusão desses livros no cânon católico, o que ocorreu no Concílio de Trento no século XVI, como é o caso do teólogo pentecostal Antonio Gilberto: “A aprovação dos apócrifos pela Igreja Romana foi uma intromissão dos católicos em assuntos judaicos, porque, quanto ao cânon do Antigo Testamento, o direito é dos judeus e não de outros. Além disso, o cânon do Antigo Testamento estava completo e fixado há muitos séculos” (GILBERTO, 2007, p. 65).

Todavia, deve-se mencionar também que há vários teólogos protestantes que veem com olhar muito positivo o estudo desses livros. O autor deste livro, conquanto aceite a ideia de um cânon inspirado e fechado, alinhando-se a uma tradição teológica mais ortodoxa, lamenta profundamente que em nossas igrejas de matriz protestante tenha se consolidado a ideia muito equivocada de que esses livros devem ser evitados e não possuam qualquer valor, quando sabe-se que isso não é verdade. A pesquisa bíblica avança e tem demonstrado que esses livros são uma fonte de pesquisa fundamental, inclusive para a Hermenêutica dos livros

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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canônicos, além de possibilitarem a possibilidade de conhecer melhor o mundo dos séculos precedentes a Cristo e também o primeiro século, em que surge o Novo Testamento.

O período abrangido na produção dos livros bíblicos é enorme. Mais de mil anos. A pesquisa bíblica mais conservadora chega a estimar 1.600 anos, embora os exegetas orientados pelo método histórico-crítico certamente evitariam uma estimativa tão longa assim. Seja como for, é consenso que foi um período realmente muito longo.

Todo esse tempo e, também, a diversidade de lugares e contextos em que os livros bíblicos foram sendo produzidos incluíram uma diversidade de hábitos, costumes, situações históricas, mudanças políticas internas e externas, impérios mundiais que caíram e outros que se levantaram, dentre outros elementos que refletem diretamente no texto.

Daí decorre que a Bíblia possui em seu texto elementos de um passado distante, absolutamente estranho ao leitor contemporâneo. Que sentido faz para o leitor do século 21, só para citar um exemplo, a expressão contida em Gênesis 24.2: “Põe agora a tua mão debaixo da minha coxa”? O leitor certamente se surpreenderá ao descobrir que existe considerável possibilidade de que essa tradução, na verdade, reflita o costume de pôr a mão no próprio órgão genital masculino, num ato de juramento, na Idade Antiga, no Oriente Médio.

Um absurdo? Para nosso padrão cultural ocidental, certamente sim, mas não para aqueles povos. Fatos como esse a respeito da Bíblia evidenciam a enorme necessidade de se considerar determinados aspectos inerentes ao texto bíblico para, só assim, poder interpretá-lo melhor, e de maneira mais precisa. E mesmo com esse cuidado, há muitas passagens que permanecem sendo absolutamente discutíveis entre os estudiosos, restando apenas as aproximações coerentes.

Ainda refletindo sobre a Hermenêutica Bíblica na condição de ciência teológica, deve-se mencionar que ela também problematiza, ou, dito de outra forma, ela considera problemas em sua pesquisa e busca apresentar determinadas soluções para eles. E isso é absolutamente positivo, pois é justamente desse esforço que decorrem as suas grandes contribuições.

Na medida em que o hermeneuta vai percebendo determinados problemas interpretativos, ele apo determinadas afirmações a respeito do texto bíblico, reafirma outras e busca equilibrar seu trabalho interpretativo. Infelizmente, em nossas comunidades de fé, é muito comum que determinados dogmas cristãos sejam postos como inquestionáveis, sob o pretexto de que refletir sobre eles e sua coerência com a vida de fé implica na perda da fé.

É preciso lembrar que a vida de fé pode ser coerente com a honestidade intelectual. A vida de fé deve pautar-se numa compreensão fiel ao texto bíblico, aceitar o que a Bíblia, de fato, afirma e assim aplicar seus princípios ao próprio

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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comportamento. Não se deve negar o fato de que há complexos de ignorância que perduram em nossas igrejas porque negligencia-se esse cuidado com uma abordagem honesta e imparcial do texto bíblico.

Tudo o que a Igreja ensina a respeito da Bíblia é correto? É certo que não, mas tudo que a Igreja ensina a respeito da Bíblia ser incorreto também não é uma afirmação verdadeira. Como a interpretação bíblica é um esforço essencialmente humano, é natural que haja limites e problemas nessa interpretação. Ocorrem determinadas compreensões deficientes que, não poucas vezes, solidificam-se na história das denominações cristãs.

Deve-se mencionar, no entanto, que essas mesmas denominações manifestam crescente interesse pela atividade hermenêutica e pela Teologia de modo geral. Com isso, estamos procurando demonstrar que a Hermenêutica presta um serviço fundamental à Igreja, colocando-se como uma disciplina teológica de grande relevância, embora nem sempre reconhecida.

Prosseguindo na definição teológica da Hermenêutica Bíblica e na consideração de contribuições de diversos teólogos, considera-se a definição de Champlin (vol. 3, 1991, p. 95), que afirma que “a Hermenêutica é a ciência das leis e princípios de interpretação e explanação. Em relação aos estudos bíblicos e teológicos, o principal aspecto desse estudo diz respeito à compreensão das Escrituras Sagradas, e por que meios essa compreensão deve ser atingida”.

Essa afirmação pressupõe que nem sempre as Escrituras podem ser compreendidas. Como mencionado anteriormente, a Bíblia apresenta dificuldades de diversas naturezas que comprometem a sua melhor e mais adequada compreensão, dificuldades que podem ser superadas pela aplicação de princípios hermenêuticos.

FIGURA 3 – CORRELAÇÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3v1cMlO>. Acesso em 15 jul. 2021.

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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Na busca por uma definição teológica para a Hermenêutica, não se deve deixar de levar em conta a correlação estabelecida entre as disciplinas. As disciplinas teológicas possuem elementos em comum, objetos de estudo em comum e até mesmo compartilham de determinados aportes teóricos.

Dada a justificativa (isto é, o que torna a disciplina necessária) da Hermenêutica Bíblica, e o fato de que ela é uma disciplina que muito se correlaciona com outras, vamos nos referir a ela, nesta disciplina, como disciplina teológica de base. Com isso, buscaremos comunicar que a Hermenêutica oferece pressupostos e aportes teóricos essenciais para outras disciplinas, como a Exegese, a Homilética, entre outras.

Champlin (vol. 3, 1991, p. 95) comenta que “[...] a Hermenêutica deve ser estudada, logicamente, antes da exegese, a qual vale-se dos princípios hermenêuticos em suas investigações e conclusões”. A Exegese é devedora à Hermenêutica, em certa medida, e ambas possuem como objeto de estudo o texto bíblico.

Cozzer (2019a, p. 10-11), quando comenta sobre dificuldades bíblicas, afirma que é preciso levar em conta as contribuições de duas ciências teológicas, a saber, a Introdução Bíblica e a Hermenêutica Bíblica:

Duas importantes ciências bíblicas devem aqui ser consideradas: a Isagoge Bíblica e a Hermenêutica Bíblica. A primeira versa sobre vários aspectos da Bíblia, abordando-a sob dois ângulos básicos, inerentes mesmo às Sagradas Escrituras:

1) a Bíblia considerada como livro e um livro muito antigo e, 2) a Bíblia considerada como a Palavra de Deus, isto é, a mensagem de Deus.

A Isagoge Bíblica é uma ciência muito ampla, que inclui várias subdisciplinas, tais como a Crítica Textual, formação, preservação e tradução da Bíblia, usos e costumes dos tempos bíblicos, dentre outras, e claro, as dificuldades bíblicas [...].A segunda ciência a ser considerada é a Hermenêutica Bíblica, também chamada de Hermenêutica Sagrada, que é a ciência que se ocupa da interpretação dos textos bíblicos com vistas à compreensão adequada do seu sentido. A Hermenêutica, portanto, relaciona-se também com o assunto das dificuldades bíblicas, uma vez que estas podem causar um entrave ao correto entendimento das Escrituras. Por isso é importante que o leitor dedique-se a conhecê-las. Isso o ajudará muito na melhor assimilação da mensagem bíblica, com as suas muitas nuances (COZZER, 2019a, p. 10-11).

As dificuldades bíblicas são aqueles textos que oferecem algum tipo de complexidade na compreensão para o leitor atual. Essas dificuldades podem ser de naturezas diversas e não devem ser confundidas com “contradição”. Um texto difícil da Bíblia pode ser difícil porque se mostra contraditório ou se mostra contrário a outro texto bíblico, mas a aplicação de princípios hermenêuticos no estudo dessas passagens contribuirá para a superação dessas aparentes contradições (COZZER, 2019a, p. 14-15).

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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As dificuldades bíblicas se dão em algumas áreas, como se segue:

Moral: que envolvem alguma dificuldade de ordem moral, como no exemplo do caso do extermínio dos povos cananeus, do incesto de Ló com suas duas filhas, dentre outros casos;Teológica: que envolvem alguma dificuldade no campo teológico, como no caso da “discrepância” entre as epístolas de Romanos e Tiago (fé e obras);

Matemática ou numérica: são aquelas que implicam dificuldades com números na Bíblia, como no caso do texto de 1 Samuel 6.19 lido em versões diferentes; em algumas lê-se 50.070 homens enquanto noutras se lê 70 homens;

Geográfica: são aquelas dificuldades relacionadas à Geografia Bíblica. Um exemplo: o caso dos dois cegos de Jericó, onde num Evangelho se lê que Jesus entrava em Jericó e noutro se lê que ele saía de Jericó?;

Histórica: são dificuldades bíblicas relacionadas à História, como o interessante caso dos heteus, um povo que embora citado pela Bíblia, durante muito tempo, não se encontrou vestígio que comprovasse sua existência;

Cultural: são aquelas dificuldades de compreensão das narrativas bíblicas em face das profundas diferenças culturais entre os povos bíblicos e a cultura que envolve o leitor contemporâneo (o exemplo da poligamia na vida de grandes personagens bíblicos como Abraão);

Linguística: dificuldades oriundas de traduções imperfeitas para a língua receptora, no nosso caso, o português; um bom exemplo, que discutiremos depois, são os dois textos a seguir: Hebreus 11.21 e Gênesis 47.31 que relatam o mesmo episódio, mas divergem quanto a Jacó ter se apoiado sobre a extremidade do bordão ou sobre a cabeceira da cama (COZZER, 2019a, p. 18-19).

A Hermenêutica guarda certa relação com outras disciplinas, além da Isagoge Bíblica (ou Introdução Bíblica), da Exegese e das Dificuldades Bíblicas. Ela pode ser conectada à Crítica Textual, à Educação Cristã, à Homilética e, em maior ou menor grau, a diversas outras, que têm em comum o uso da Bíblia.

Todavia, não se deve pensar que a Hermenêutica também não depende de conhecimentos de outras áreas para realizar seu trabalho. O hermeneuta precisará possuir conhecimento nas línguas bíblicas, a saber, o hebraico, aramaico e grego, para, tão logo, interpretar o texto. Será necessário o emprego de ferramentas hermenêuticas, como dicionários bíblicos, léxicos e gramáticas das línguas bíblicas, livros que abordem o pano de fundo cultural, histórico, religioso e social dos tempos bíblicos, dentre outras ferramentas.

Importante destacar, no que se refere à dependência da Hermenêutica de outras áreas de conhecimento, que será necessário ao trabalho hermenêutico o conhecimento teológico, isto é, o conhecimento da própria Teologia como área maior de estudo.

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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O trabalho hermenêutico é essencialmente um esforço teológico. Estamos na ponta de uma longa tradição teológica que jamais deve ser negligenciada nessa labuta. Concluímos este subtópico com a importante observação de Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 186): “O uso da teologia no processo interpretativo muitas vezes transforma algo, que de outro modo seria uma divagação pouco interessante, numa experiência poderosa e cheia de vida”.

4 TRÊS PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS NA HERMENÊUTICA BÍBLICA

Há três pressupostos que jamais devem ser ignorados no estudo da Hermenêutica Bíblica, ao custo de não estarmos, de fato, fazendo hermenêutica, se não levarmos em conta esses três elementos, a saber:

• O autor do texto (hagiógrafo sagrado).• O texto (que contém a mensagem estudada pela Hermenêutica).• O leitor contemporâneo.

FIGURA 4 – BÍBLIA

FONTE: <https://shutr.bz/3AvlHwY>. Acesso em 27 jul. 2021.

O primeiro pressuposto, o autor do texto bíblico, precisa ser descoberto e “conhecido” pelo estudioso da Hermenêutica Bíblica. Na Exegese orientada pelo Método Histórico-Gramatical e, também, pelo Método Histórico-Crítico, leva-se em conta fatores que viabilizam a percepção parcial de quem é o autor de determinado texto bíblico.

Esse interesse pelo autor envolve a busca por elementos biográficos sobre ele registrados no próprio texto bíblico e, quando for o caso, fora do texto bíblico. Inclui, ainda, a busca pelas suas características e peculiaridades literárias, que podem ser observadas na análise literária.

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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Devemos lembrar que a Bíblia foi escrita por dezenas de autores, o que a torna um texto muito composto e variado. E tal fato estabelece distinções profundas. Há diferenças substanciais entre os textos paulinos e os textos petrinos, para citar um exemplo. E, claro, as experiências vividas por esses dois apóstolos, várias delas registradas em textos neotestamentários, influíram na produção dos seus conjuntos de textos.

O segundo pressuposto fundamental da Hermenêutica é o texto bíblico. Há diversos fatores relacionados ao texto bíblico que necessariamente precisam ser levados em conta no trabalho hermenêutico. É conhecida a máxima que afirma que “o texto bíblico não caiu pronto do céu”, o que traz essa consciência de que os textos bíblicos foram produzidos em variados contextos históricos, políticos, geográficos, culturais, religiosos e sociais, e isso influencia no resultado do texto.

Todos esses panos de fundos merecem atenção em particular. E devem ser considerados conforme o período em que o texto em estudo foi escrito. Por exemplo: o contexto político e social do mundo na época do apóstolo João, no primeiro século da Era Cristã, é absolutamente diferente do contexto político e social que envolve o profeta Malaquias, pelos idos dos anos 400 a.C.

O texto bíblico deve ser estudado também enquanto texto. Por mais que seja absolutamente necessário considerar os contextos dos quais ele emerge, deve-se analisar os aspectos próprios do texto, como a sua gramática e determinados aspectos linguísticos.

Por mais que possa haver variação na qualidade dos textos bíblicos, um autor, quando escreve, seja ele erudito ou não, escreve seguindo a estrutura básica da sua língua, bem como observando determinadas regras gramaticais básicas.

As línguas bíblicas possuem características que precisam ser consideradas no trabalho hermenêutico. Há, inclusive, peculiaridades próprias nessas línguas. Com relação ao grego bíblico, isto é, o grego do Novo Testamento, Geisler e Nix (1997) comentam o seguinte:

O grego do Novo Testamento adaptou-se de modo adequado à finalidade de interpretar a revelação de Cristo em linguagem teológica. Tinha recursos linguísticos especiais para essa tarefa por ser um idioma intelectual. Era um idioma da mente, mais que do coração, e os filósofos atestam isso amplamente. O grego tem precisão técnica de expressão não encontrada no hebraico. Além disso, o grego era uma língua quase universal. A verdade do Antigo Testamento a respeito de Deus foi revelada inicialmente a uma nação, Israel, em sua própria língua, o hebraico. A revelação completa, dada por Cristo, no Novo Testamento, não veio de forma tão restrita. Em vez disso, a mensagem de Cristo deveria ser anunciada no mundo todo: “[...] em seu nome seria pregado o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações, começando por Jerusalém” (Lc 24,47) (GEISLER; NIX, 1997, p. 127).

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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O hebraico bíblico, por sua vez, também possui as suas particularidades que precisam ser consideradas. E o estudo em torno dessas especificidades desemboca numa série de desdobramentos que refletem na tradução do texto bíblico, bem como na compreensão teológica das passagens. O estudo dos aspectos linguísticos, portanto, não pode ser deixado de lado no estudo hermenêutico.

O terceiro pressuposto fundamental da Hermenêutica é o leitor contemporâneo. Pode parecer até contraditório, a princípio, afirmar que o leitor contemporâneo seja um pressuposto fundamental no campo de estudos da Hermenêutica, mas o fato é que sem ele a Hermenêutica não faria o menor sentido!

FIGURA 5 – ESTUDANDO A BÍBLIA

FONTE: <https://shutr.bz/3Ax34Jf>. Acesso em 16 jul. 2021.

Deve-se mencionar, aqui, que a virada hermenêutica se deu justamente em torno do leitor, enfatizando seu papel e sua importância na interpretação. A chamada Nova Hermenêutica focaliza justamente no leitor contemporâneo e estabelece um estreito diálogo com a Filosofia.

Na esteira desse diálogo entre Teologia e Filosofia, e Hermenêutica e Filosofia, estão teólogos e filósofos destacados como Rudolf K. Bultmann (teólogo do Novo Testamento) e Martin Heidegger (filósofo alemão). Heidegger enfatizava “[...] a importância da linguagem como algo anterior à humanidade, como um poder que teria moldado a compreensão dos homens. A própria existência humana seria definida linguisticamente; e, através da linguagem, chegaríamos a entender o ser humano” (CHAMPLIN, 1991, vol. 3, p. 96).

Rudolf K. Bultmann fez uma espécie de convergência entre o existencialismo heideggeriano e estudos do Novo Testamento. Heidegger propôs a ideia de existência autêntica que vem pela percepção da própria finitude, percepção que produz angústia. Diante dessa realidade, o ser humano se move no esforço para dar ou encontrar sentido para sua vida.

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

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O esforço de Bultmann, por sua vez, foi buscar contextualizar a mensagem do Evangelho para o homem moderno, marcado pela racionalidade e pela recusa dos mitos fundamentes de civilizações antigas, inclusive as bíblicas. É preciso receber a mensagem do Evangelho pela fé e, assim, viver uma vida autêntica pelo encontro com o Evangelho.

Para compreender a mensagem do Novo Testamento, Bultmann entendeu que era preciso remover os mitos para, de fato, chegar a essa mensagem. Champlin (1991, vol. 3, p. 96) comenta que a “[...] verdadeira hermenêutica tem a tarefa de compreender de que modo o evangelho de Cristo aplica-se ao homem moderno. Há nisso uma fé de que o evangelho, verdadeiramente, dirige aos homens uma mensagem universal, mensagem essa que pode ser determinada”.

FONTE: <https://shutr.bz/3v7sI6o>. Acesso em 27 jul. 2021.

A Nova Hermenêutica leva em conta as contribuições da Hermenêutica e da Exegese do século XIX, com a diferença de que ela foca no leitor contemporâneo e na mensagem do texto bíblico mais do que no próprio texto. Essa ênfase levou alguns autores a falarem na morte do autor, como Kevin J. Vanhoozer (2005). A mensagem não deve permanecer presa num texto, mas ser ressignificada na vida do leitor que dela se apropria, na atualidade. Nesse sentido, “[...] a tarefa da Hermenêutica e da pregação, portanto, é a liberação. Uma vez liberada, a mensagem pode nos transformar” (CHAMPLIN, 1991, vol. 3, p. 96).

FIGURA 6 – INTERPRETAÇÃO TEOLÓGICA

Querido acadêmico, ao final desta unidade, você encontrará um texto a respeito do pensamento do grande teólogo bíblico do Novo Testamento, Rudolf K. Bultmann. Esse texto será importante para que você possa compreender melhor a proposta de Bultmann e como ela impactou os estudos sobre o Novo Testamento.

DICAS

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TÓPICO 1 — ORIGEM, DEFINIÇÃO E CONCEITOS

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Prezado estudante, adiante estudaremos a respeito dos métodos exegéticos de estudo da Bíblia chamados de Histórico-Crítico e Histórico-Gramatical. Eles constituem dois grandes métodos de estudo da Bíblia que vêm passando por revisões e melhoramentos ao longo do tempo, e permanecendo como modos de estudo da Bíblia, na Academia Teológica, ainda que sofrendo significativas revisões e dando lugar a novas contribuições.

ESTUDOS FUTUROS

Page 81: Homilética e Hermenêutica

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A palavra “Hermenêutica” deriva do grego e denota interpretação, tradução, explicação. Isto auxilia na compreensão do objetivo da disciplina.

• A Hermenêutica pode ser entendida como um esforço disciplinar para aprofundar a compreensão do texto bíblico, isto é, de sua mensagem.

• A Hermenêutica Bíblica é uma “disciplina de base”, no sentido de que dela dependem outras disciplinas, como a Exegese, a Homilética, dentre outras.

• Há três pressupostos fundamentais no estudo da Hermenêutica Bíblica, a saber: o autor, o texto e o leitor contemporâneo.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 Conforme indicado neste material didático, a palavra “Hermenêutica” deriva da língua grega e significa “interpretação”, “arte de interpretar”. Todavia, a palavra também remete ao nome de um deus grego que, na mitologia grega, era responsável por trazer a mensagem dos deuses aos homens e interpretar essas mensagens para eles. Sobre que deus era esse, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Apolo.b) ( ) Iavé.c) ( ) Hermes.d) ( ) Zeus.

2 A Hermenêutica Bíblica é uma disciplina teológica muito rica e dialoga com outras áreas de conhecimento, para além, inclusive, dos limites da própria Teologia. Com base nas definições dadas à Hermenêutica Bíblica, analise as sentenças a seguir:

I- Ela pode ser entendida como arte.II- Ela pode ser entendida como ciência.III- Ela é subjetiva, pois depende da interpretação do hermeneuta.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.b) ( ) As sentenças I e II estão corretas.c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença II está correta.

3 A Hermenêutica Bíblica possui características e métodos que permitem que ela seja considerada como uma verdadeira ciência teológica. E nessa esteira, deve-se pensar, também, no que justifica o seu trabalho, o seu campo de estudo. Pensando na justificativa para o trabalho da Hermenêutica, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A Bíblia é Palavra de Deus e este fato lembra que é o Espírito Santo que faz o leitor contemporâneo entender o texto bíblico, e tal fato justifica a existência da Hermenêutica Bíblica.

b) ( ) A Bíblia, como livro inspirado por Deus, não carece de princípios hermenêuticos para sua melhor elucidação, e tal fato justifica a existência da Hermenêutica Bíblica.

c) ( ) A Bíblia é um livro essencialmente religioso, logo não se deve aplicar em seu estudo princípios hermenêuticos, tendo em vista que na condição de livro religioso, o seu entendimento é absolutamente fácil.

AUTOATIVIDADE

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d) ( ) A Bíblia carece da aplicação e utilização de princípios interpretativos e métodos para ser adequadamente interpretada, e tal fato justifica a existência da Hermenêutica Bíblica.

4 Na medida em que o hermeneuta vai lidando com o texto bíblico, percebe determinados problemas interpretativos, e, então, relativiza afirmações a respeito do texto bíblico, reafirma outras e busca equilibrar seu trabalho interpretativo. Infelizmente, em nossas comunidades de fé, é muito comum que determinados dogmas cristãos sejam postos como inquestionáveis, sob o pretexto de que refletir sobre eles e sua coerência com a vida de fé implica na perda da fé. Todavia, não necessariamente! É preciso lembrar que a vida de fé pode ser coerente com a honestidade intelectual. Considerando isso, disserte sobre a relação entre a vida de fé e a interpretação do texto bíblico.

5 A Hermenêutica viveu uma verdadeira virada, que foi chamada de a “virada Hermenêutica” e “Nova Hermenêutica”. Naturalmente, houve revisão de determinados conceitos e ênfase em outros. Discorra sobre como a Nova Hermenêutica passou a encarar o leitor contemporâneo da Bíblia no processo interpretativo.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Considerar a história da interpretação bíblica no Cristianismo é fundamental para o estudo da Hermenêutica Bíblica, e isso se dá por diversas razões. Quem somos hoje, como cristãos, é resultado em grande medida das compreensões que foram sendo amadurecidas, ao longo de muitos séculos, em torno do texto bíblico.

Nossas denominações e tradições cristãs são o reflexo de um longo processo interpretativo em torno da Palavra de Deus. Mesmo que você seja membro de uma pequenina comunidade de fé, que seja independente, ainda assim ela se insere num contexto maior, que guarda muito do que uma parte considerável do Cristianismo entende a respeito da Bíblia.

Afinal de contas, onde começa a história da interpretação? Poderiam ser mencionados os Targums judaicos, que faziam uso tanto do sentido explícito quanto do sentido oculto das leis mosaicas, ou, ainda, rabinos importantes como Hillel, que ofereceu regras de interpretação. E outros fatos e personagens históricos podem ser indicados como precursores dessa história.

FIGURA 7 – CRISTIANISMO PRIMITIVO

FONTE: <https://shutr.bz/30eiGoB>. Acesso em 27 jul. 2021.

TÓPICO 2 —

A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO

PRIMITIVO E MEDIEVAL

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

É preciso mencionar, no entanto, que, de certo modo, a história da interpretação bíblica deve começar na própria história bíblica. Com efeito, os livros da Bíblia já constituem em si mesmos esforços para interpretar a revelação de Deus. O conjunto da obra bíblica, no Antigo Testamento, é uma hermenêutica da criação e da relação de Deus com o seu povo Israel e, depois, com a Igreja.

A Bíblia também se constitui de textos que se retroalimentam e se interpretam e reinterpretam. Há usos constantes de textos bíblicos entre os livros bíblicos. Noutras palavras, os livros bíblicos utilizam outros livros bíblicos, e esse uso, inevitavelmente, implica uma hermenêutica. Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 202) comentam que “[...] os escritores do Novo Testamento usaram quase 300 citações do Antigo Testamento juntamente com centenas (ou até milhares, de acordo com alguns) de outras alusões a ele”.

Nosso entendimento, aqui, é que a própria Bíblia precisa ser levada em conta no que concerne à história da interpretação. Os textos neotestamentários em muitos momentos ressignificam textos do Antigo Testamento sem necessariamente adulterá-los. Um exemplo clássico dessa Hermenêutica é o uso que o evangelista Mateus faz do texto do profeta Oséias (Mateus, 2.15, citando Oséias, 11.1).

Mateus aplica a Jesus o texto de Oséias (11.1), que afirma o seguinte: “Quando Israel era menino, eu o amei; e do Egito chamei o meu filho” (BÍBLIA, 1993, Os. 11.1). Em Mateus (2.15), pode-se ler: “e lá ficou até à morte de Herodes, para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor, por intermédio do profeta: Do Egito chamei o meu Filho” (BÍBLIA, 1993, Mt. 2.15).

É interessante notar que há uma diferença fundamental entre os textos: em Oséias, o “menino” é uma nação, Israel, ao passo que em Mateus, “meu Filho” é referência a um indivíduo, a saber, o Senhor Jesus. Mateus aplica a profecia de Oséias à pessoa de Jesus vendo num evento específico de sua vida o cumprimento de uma profecia antigotestamentária. O texto ganha luz na vida de Jesus.

A tabela a seguir é uma interessante ferramenta que lhe auxiliará na percepção panorâmica da história da interpretação bíblica. Naturalmente, ela não é e não pretende ser exaustiva, tendo em vista a amplitude e a riqueza desse assunto. Todavia, se coloca como uma ferramenta muito útil, no sentido de organizar, em ordem cronológica, os documentos, personagens e instituições que têm relação com a história da interpretação das Escrituras. Após a leitura e contemplação da tabela a seguir, prosseguiremos com nosso estudo sobre a história da interpretação, considerando as escolas de Alexandria e de Antioquia.

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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FONTE: <https://bit.ly/3Fzbd3r>. Acesso em: 17 jul. 2021.

2 A ESCOLA DE ALEXANDRIA

Alexandria foi uma importante cidade do Egito, famosa, na Antiguidade, por sua enorme biblioteca. Essa biblioteca foi fundada por Ptolomeu I, cerca de 300 a.C.

Alexandria acabou por substituir Atenas como o grande centro intelectual do mundo, na época. A biblioteca passou por destruições, decorrentes de guerras, mas, também, por reconstruções, de modo que no século II, Aulo Gélio declarou que a biblioteca tinha 700 mil livros (CHAMPLIN, 1991, vol. 1, p. 107).

QUADRO 1 – HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

FIGURA 8 – REPRESENTAÇÃO GRÁFICA DA BIBLIOTECA DE ALEXANDRIA

FONTE: <https://bit.ly/3oQHYU8>. Acesso em: 27 jul. 2021.

Alexandria possuía uma expressiva comunidade de judeus vivendo nela. Na verdade, a cidade contava com a presença de três grandes etnias: os gregos, os egípcios e os judeus. Não havia perseguição contra os judeus nessa cidade, e isso contribuiu diretamente para que essa comunidade crescesse ali.

Esse florescimento da comunidade judaica na cidade egípcia de Alexandria possibilitou contribuições fundamentais ao estudo das Escrituras. Em Alexandria, o pensamento hebraico entrou em contato com a filosofia grega, encontro do qual surge o pensador judeu Filo (cerca de 50 d.C.), que teve como discípulo Tito Flávio Clemente, que foi considerado o primeiro grande mestre da escola de Alexandria (SILVA; KAISER JR., 2002, p. 210).

Filo de Alexandria foi um judeu que se tornou muito importante para a história da interpretação, destacando-se como o mais influente expoente do método alegórico de interpretação. Suas obras são divididas em três categorias ou gêneros, a saber: exegéticas, filosóficas e políticas. González (2008) explica que em seus escritos de natureza exegética, ele utiliza a alegoria para explicar a obra criadora de Deus como se encontra no Gênesis. E Filo interpreta também outros livros do Antigo Testamento se utilizando desse método alegórico.

Sua intenção com a utilização do método alegórico é estabelecer uma conexão entre a fé judaica e a filosofia grega. E nesse esforço para conectar fé judaica e filosofia grega ele, naturalmente, irá fazer uso da linguagem filosófica e de conceitos filosóficos retirados de Platão e do estoicismo. É claro que na história do Cristianismo em particular, esse diálogo irá se repetir, mais especificamente na Idade Média, no período do Escolasticismo e em Tomás de Aquino.

O método hermenêutico da escola de Alexandria foi a alegoria. Alegorizar é falar uma coisa em termos da outra. É um tipo de linguagem que opera por substituição de elementos para chegar a uma significação. E deve-se mencionar

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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que na Bíblia encontram-se alegorias, como a que está em Gálatas (4.21-31). Porém, a alegoria como método de interpretação funciona de outra forma. A alegoria como figura retórica de linguagem na Bíblia pode ser entendida como se segue:

É uma figura retórica que geralmente consta de várias metáforas unidas, representando cada uma delas realidades correspondentes. Exemplo: “Eu Sou o Pão Vivo que desceu do céu, se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo, é a minha carne [...] Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna”. Esta alegoria tem sua interpretação nesta mesma passagem das Escrituras (Jo 6.51-65). Noutras palavras, a própria perícope bíblica explica a alegoria (COZZER, 2020, vol. 1, p. 673).

Como método hermenêutico, significa interpretar as Escrituras alegoricamente. Não é o mesmo que simplesmente identificar uma alegoria na Bíblia, mas olhar e compreender suas passagens em termos de alegorias. A palavra “alegoria” vem do grego e significa basicamente “falar por outro”. O termo correlato à alegoria aparece em Gálatas (4,24): “Estas coisas são alegóricas [...]” (BÍBLIA, 1993, Gl. 4,24).

As alegorias diferem de outras figuras de linguagem da Bíblia, como das parábolas, por exemplo. Nas parábolas, o significado das narrativas é mantido distinto da própria narrativa em si, ao passo que na alegoria, esse significado se mescla à própria narrativa. Zuck (1994) comenta o seguinte:

Uma parábola é uma história baseada em fatos do cotidiano com o objetivo de ilustrar ou aclarar uma verdade. Apesar de ter base plausível, ela pode não ter realmente ocorrido com todos os detalhes como foi apresentada. Os acontecimentos históricos podem servir de ilustrações, mas as parábolas são histórias especiais, não necessariamente fatos históricos, contadas para ensinar certa verdade. Como se baseiam na realidade, diferem das alegorias e das fábulas [...] (ZUCK, 1994, p. 225).

Virkler (1987, p. 134) também destaca o fato de que na interpretação bíblica, as parábolas diferem das alegorias, no sentido de que as alegorias abrem precedente para diversos pontos de comparação:

Em se tratando de interpretação, parábolas e alegorias diferem em outro ponto principal: a parábola possui um foco, um núcleo, e os detalhes são significativos apenas enquanto se relacionam com esse núcleo; a alegoria geralmente tem diversos pontos de comparação, não necessariamente concentrados ao redor de um núcleo. Por exemplo, na parábola do grão de mostarda (Mateus 13.31,32), o objetivo central é mostrar a divulgação do evangelho a partir de um minúsculo grupo de cristãos (o grão de mostarda) até chegar a um corpo de amplitude mundial de crentes (a árvore crescida em sua plenitude). A relação entre o grão, a árvore, o campo, o ninho, e as aves é casual; e esses detalhes adquirem significado só em relação com a árvore em crescimento. Contudo, a alegoria da armadura do cristão (Efésios 6), possui diversos pontos de comparação. Cada peça da armadura do cristão é significativa e cada uma é necessária para que o cristão esteja totalmente armado (VIRKLER, 1987, p. 134).

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

FIGURA 9 – ALEGORIA

FONTE: <https://shutr.bz/303dovV>. Acesso em 27 jul. 2021.

Como método hermenêutico, a alegorização buscava sempre um sentido mais profundo e espiritual nas passagens das Escrituras. Segundo Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 211), “[...] o lema da escola de Alexandria era: ‘A menos que você acredite, você não irá compreender’”. Na Unidade 1, pudemos ver na prática o que esse método fazia com o texto, oferecendo a ele um significado distante do significado pretendido pelo autor.

Esse método alegórico de interpretação da Bíblia é herdeiro, em grande medida, do pensamento platônico, que via duas realidades coexistindo juntas: um mundo visível e outro emblemático, um material e outro invisível. Mas como bem observam Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 212), “[...] em nenhum texto da Bíblia ensina-se tal doutrina de sombras e imagens ou a doutrina das correspondências. Essas doutrinas são diretamente derivadas da filosofia secular daquela época; por isso, as Escrituras não podem ser culpadas de defender tal ponto de vista”.

3 A ESCOLA DE ANTIOQUIA

A escola de Antioquia se colocou em oposição à escola de Alexandria no que se refere à interpretação das Escrituras. Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 213) afirmam que o verdadeiro fundador dessa escola foi Luciano de Samosata, já no final do terceiro século d.C. Os dois maiores discípulos dessa escola foram Teodoro de Mopsuestia e João Crisóstomo. Lopes (2013, p. 134) comenta que Luciano foi quem deu origem a uma tradição de estudos que preconizava o conhecimento das línguas originais, e ainda, que “[...] atribui-se a Luciano (embora sem evidências concretas) uma recensão e uniformização dos textos gregos da sua época, dando origem ao texto Bizantino ou Sírio, que foi o texto grego do Novo Testamento adotado pela igreja até meados do século passado”.

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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FONTE: <https://shutr.bz/3oMPT4L>. Acesso em 27 jul. 2021.

O método hermenêutico da escola de Antioquia era a theoria, palavra grega que significa “ver”. O interesse estava na integridade da história e do sentido natural das passagens bíblicas. Isso não quer dizer, contudo, que os exegetas dessa escola não se preocupassem com o sentido espiritual da passagem, mas eles não desvinculavam esse sentido espiritual do sentido natural da passagem, como faziam os exegetas do método alegórico da escola de Alexandria.

Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 213) afirmam que os “[...] estudiosos de Antioquia davam grande ênfase à ideia da theoria referir-se basicamente ao fato de que havia uma visão ou percepção da verdade espiritual no cerne do acontecimento histórico que os escritores da Bíblia estavam registrando”. Não se tratava de buscar um sentido duplo, mas, sim, um sentido único presente na naturalidade do texto bíblico.

Lopes (2013) destaca alguns dos princípios que regiam a Hermenêutica antioquena, princípios que demarcavam significativa distinção da Hermenêutica alexandrina. Lopes (2013) começa mencionando a valorização do sentido literal do texto. Em seguida, a theoria, aqui já citada. Lopes (2013, p. 136) afirma o seguinte:

[...] esse termo designa o estado mental dos profetas que recebiam as visões, em oposição à alegoria. É uma intuição ou visão pela qual o profeta pode ver o futuro por meio das circunstâncias presentes. Depois da visão, é possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos bem como seu cumprimento futuro”.

Lopes (2013, p. 136) prossegue destacando, ainda, outros dois princípios, a saber, a historicidade dos relatos e a intenção autoral. Como se poderá perceber mais adiante, há significativas semelhanças com a Hermenêutica da Reforma Protestante e com princípios do Método Histórico-Gramatical.

FIGURA 10 – LETRAS HEBRAICAS

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

4 A HERMENÊUTICA NA IDADE MÉDIA

O período da Idade Média, que se inicia com a queda do Império Romano, no final do século V a.C., e se estende por mil anos aproximadamente, foi chamado de “Idade das trevas”, de maneira muito inadequada, o que, inclusive, tem sido revisto, tendo em vista que nesse longo período muita coisa aconteceu e muito foi produzido no campo intelectual.

FIGURA 11 – IDADE MÉDIA

FONTE: <https://bit.ly/30iJbtb>. Acesso em 27 jul. 2021.

Diversas universidades foram fundadas, ocorreram descobertas e avanços científicos, ocorreram movimentos, em grande medida, culturais, como a Renascença e o Escolasticismo, dentre outros fatos que podem ser elencados. A despeito desses fatos, Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 215) entendem que para a Igreja e para a Hermenêutica, a Idade Média não foi uma época brilhante, na qual “[...] muitos membros do clero, sem falar nos leigos, eram ignorantes até mesmo sobre o que a Bíblia dizia”, e permanecia a adoção da interpretação pelo sentido quádruplo.

Agostinho, tido como um dos principais representantes da escola Ocidental, defendeu um sentido quádruplo das Escrituras, a Quádriga. Lopes (2013, p. 150) afirma que a Quádriga tem sua elaboração atribuída a João Cassiano, que morreu no final do século V. Silva e Kaiser Jr. (2002, p. 214) comentam que a “[...] ilustração usual desse sentido quádruplo surgiu por volta de 420 d.C. nas Conferências de João Cassiano [...]”. A Quádriga distingue quatro sentidos nas Escrituras, a saber:

1. O sentido literal ou histórico: busca o sentido evidente e óbvio do texto.2. O sentido alegórico ou cristológico: é o sentido mais profundo apontando

sempre para Cristo.3. O sentido tropológico ou moral: relacionado ao cristão em sua conduta.4. O sentido anagógico ou escatológico: relacionado ao futuro.

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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FONTE: <https://shutr.bz/3v1UMIo>. Acesso em 27 jul. 2021.

Devemos lembrar que houve precedentes importantes que “pavimentaram o caminho” para que a Reforma Protestante pudesse caminhar. Martinho Lutero (1483-1546) rompeu radicalmente com o método alegórico das Escrituras valorizando o sentido literal das Escrituras. E outros reformadores também seguiram a mesma tendência de rejeitar a alegoria e interpretar a Bíblia de modo literal.

João Calvino (1509-1564) valorizou muito a interpretação literal das Escrituras. Ele escreveu que “[...] as Escrituras têm apenas um sentido, que é o sentido literal” (CALVINO apud SILVA; KAISER JR., 2002, p. 217). Naturalmente, ele reconhecia que há na Bíblia alegorias e similitudes, mas mesmo essas figuras deveriam ser interpretadas pelo viés da literalidade.

A Quádriga foi adotada pela Igreja na Idade Média, mas houve outro princípio de interpretação que ganhou importância nesse período, chegando à Reforma Protestante, no século XVI, que afirmava a necessidade da tradição na interpretação das Escrituras.

5 A HERMENÊUTICA NA REFORMA PROTESTANTE

Um dos pontos de maior ruptura entre a Reforma Protestante e a Igreja Católica foi na questão da autoridade da tradição versus tradição da Igreja. Lopes (2013, p. 159) afirma que “[...] os reformadores rejeitaram e combateram o conceito de que a hierarquia da igreja era a autoridade máxima em questões religiosas. Eles insistiram que a Bíblia era o juiz maior de todas as controvérsias religiosas, interpretando-se a si mesma ao longo de suas partes”.

FIGURA 12 – MONUMENTO DA REFORMA PROTESTANTE

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

Um fato muito importante que precisa ser considerado quando se estuda a Hermenêutica na Reforma Protestante é o lugar que a Bíblia ocupou nesse evento de proporções gigantescas. A Reforma foi um movimento, também, hermenêutico, justamente porque valorizou muito as Escrituras, reconhecendo-a como superior à tradição da Igreja e entendendo que ela deveria ser dada ao povo. Essa valorização das Escrituras pode ser percebida num dos principais lemas da Reforma: Sola Scriptura, que significa “somente as Escrituras”.

Diversos empreendimentos foram realizados no sentido de difundir a leitura da Bíblia e aprofundar a sua pesquisa. Lutero a traduziu para o alemão, Erasmo (1467-1536) publicou a primeira edição crítica do Novo Testamento em grego, no ano de 1516, e Johannes Reuchlin publicou uma gramática hebraica, um léxico hebraico, uma obra sobre acentuação e ortografia hebraica e, ainda, uma interpretação gramatical dos sete salmos de penitência (SILVA; KAISER JR., 2002, p. 216).

6 A HERMENÊUTICA NA MODERNIDADE

Para considerar a Hermenêutica na Modernidade, cumpre levar em conta o que foi o Iluminismo, movimento intelectual que ocorreu no seio da Europa no século XVIII. Foi um movimento que causou um profundo impacto nas Ciências e na própria sociedade nos decênios que se seguiram. Lopes (2013, p. 183) entende esse movimento como uma espécie de revolta contra o poder da religião institucionalizada e contra a religião em geral.

Lopes (2013, p. 183) afirma que “[...] as pressuposições filosóficas do movimento foram moldadas, em primeiro lugar, pelo racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, e pelo empirismo de Locke, Berkley e Hume”. Lopes prossegue afirmando que “mesmo sendo teoricamente contrárias entre si, as duas filosofias concordavam que Deus tem de ficar de fora do conhecimento humano. O efeito combinado de ambas produziu profundo impacto na Hermenêutica bíblica”.

Page 94: Homilética e Hermenêutica

TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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FONTE: <https://bit.ly/3oR19Nh>. Acesso em 21 ago. 2021.

Nosso entendimento é que Lopes, em sua abordagem, mostra-se um pouco reducionista, como é típico das abordagens teológico-fundamentalistas.

O Iluminismo foi um movimento intelectual que trouxe grandes contribuições para a humanidade, inclusive para a pesquisa bíblica, conquanto não concordemos com vários dos pressupostos que orientaram essa nova abordagem ao texto bíblico, notadamente marcada pelo racionalismo. É preciso equilíbrio ao avaliar um movimento dessa magnitude, e evitar dogmatismos, na mesma medida em que não se deixa de considerar aquelas crenças que consideramos ameaçadoras à fé cristã bíblica e histórica.

É na Modernidade que surgirão duas correntes de pensamento muito importantes para a pesquisa bíblica, a saber: a Busca do Jesus histórico e o Método Histórico-Crítico. Adiante, abordaremos o que é o Método Histórico-Crítico, de maneira introdutória. Concluímos este subtópico destacando que a Hermenêutica na Modernidade foi marcada por uma forte ênfase na racionalidade, o que serviu para delimitar a ruptura com as convicções em milagres entendidos como fatos históricos e na inerrância bíblica. A Bíblia passou a ser estudada estritamente como literatura antiga e houve o questionamento de uma série de pressupostos relacionados à autoria e à datação dos livros bíblicos, dentre outros fatores. No tópico seguinte, consideraremos com mais detalhes os métodos hermenêuticos da Modernidade.

FIGURA 13 – AUGUSTE COMTE

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

7 A HERMENÊUTICA NA PÓS-MODERNIDADE

Inicialmente, precisamos ter uma compreensão elementar do que vem a ser Pós-modernidade para, em seguida, podermos refletir sobre Hermenêutica na Pós-modernidade. A expressão “Pós-modernidade”, grosso modo, é um indicativo de uma época, uma forma de periodização da História.

Um fato interessante sobre o conceito de “Pós-modernidade” é que não há consenso entre os estudiosos do tema quanto à sua legitimidade, já que em seu entendimento não seria possível falar de uma Pós-modernidade. A Modernidade ainda estaria vigorando, ao menos em parte.

FIGURA 14 – A ERA DIGITAL

FONTE: <https://shutr.bz/3oPjjPz>. Acesso em 27 jul. 2021.

Porém, é fato, também, que há razoável consenso entre outro grupo de estudiosos a respeito da nomenclatura, o que pode ser percebido pelo amplo uso que dela se faz na literatura especializada. A Pós-modernidade é entendida como uma época com suas especificidades, que começou no século XX e assinala profundas rupturas com a Modernidade, ainda que possa guardar algumas semelhanças.

A Hermenêutica, nesse período, sofreu, naturalmente, grande impacto, assim como sofreram diversas outras áreas do conhecimento. Uma característica da Hermenêutica pós-moderna é a sua ênfase no leitor contemporâneo e na sua contribuição.

Outra característica da Hermenêutica pós-moderna (podemos falar no plural, de hermenêuticas pós-modernas) é a sua marcante relativização da verdade, característica que é positiva em alguns aspectos, mas negativa em outros. Positiva porque aplica humildade no sujeito, levando-o a reconhecer que a verdade é muito grande e não cabe em sistemas hermenêuticos. Isso leva a uma conclusão: os diversos sistemas interpretativos (hermenêutica pentecostal, teologia reformada, teologia católica, teologia da libertação, teologia feminista

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TÓPICO 2 — A HERMENÊUTICA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO E MEDIEVAL

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etc.) podem oferecer determinadas contribuições. Por outro lado, há o risco de, nessa relativização, se afirmar tudo e não se afirmar nada; reconhecer os diferentes lugares interpretativos e não se conhecer o próprio tópos de onde se produzem afirmações. Novamente, no que se refere à Hermenêutica Bíblica, é preciso equilíbrio, evitar os fundamentalismos e abertura ao diálogo em fidelidade às Escrituras e ao Evangelho.

A Busca do Jesus Histórico foi uma pesquisa extensa, produzida por diversos teólogos e dividida em, pelo menos, três fases. A primeira fase foi chamada de Old quest (“Antiga questão”) e tem como marco inicial a publicação da obra de Hermann S. Reima-rus, em 1753. A segunda fase foi denominada de New quest (“Nova questão”), que repre-sentou uma renovação no interesse pela busca do Jesus histórico, a partir de 1953, com a conferência intitulada “O Problema do Jesus Histórico”, realizada pelo Professor Ernst Käsemann (1906-1998), discípulo de Rudolf K. Bultmann. Por fim, a terceira fase, ocorrida no final do século XX, foi marcada pela cientificidade, e “[...] diverge de modo significativo da segunda quando afirma que a ênfase na mensagem de Jesus sem considerar de modo mais profundo seu ambiente vivencial (i.e., o contexto social e histórico em que ele viveu)”, “[...] o torna desencarnado e distorce sua real imagem” (ANDRADE, 2014, p. 62).

INTERESSANTE

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O conhecimento da história da interpretação bíblica é essencial ao estudo da Hermenêutica Bíblica, tendo em vista que nos encontramos na extremidade de uma longa tradição interpretativa.

• A escola de Alexandria, no Egito, era orientada pelo método alegórico de interpretação das Escrituras.

• A escola de Antioquia era orientada pela theoria em sua interpretação das Escrituras, isto é, ela prezava pela interpretação mais literal, ainda que se levasse em conta, também, o sentido espiritual.

• A interpretação na Modernidade foi marcada pelo racionalismo, o que levou a exegese e a Hermenêutica, nesse período, a romperem com o sobrenaturalismo bíblico e outras convicções eclesiais em torno da Bíblia, mas, em contrapartida, fez avançar a pesquisa em torno do texto bíblico, aprofundando significativamente os estudos no campo da Crítica Bíblica.

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1 Um elemento fundamental no estudo da Hermenêutica Bíblica é o seu desenvolvimento ao longo da história do Cristianismo e mesmo antes da Era Cristã. Naturalmente, na pesquisa científica, deve-se sempre indagar o porquê de se empreender determinado esforço de pesquisa. A partir da justificativa do porquê de estudar a história da interpretação bíblica, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Quem somos hoje, como cristãos, é resultado, em grande medida, das compreensões hermenêuticas que foram sendo amadurecidas ao longo de muitas gerações.

b) ( ) Quem somos hoje, como cristãos, não guarda relação com a interpretação bíblica do passado. Daí a necessidade de se construir uma Hermenêutica própria.

c) ( ) Nossas igrejas não possuem nada que indique guardar certa relação com a interpretação no passado. Disso decorre a necessidade de uma Hermenêutica própria.

d) ( ) Nossas tradições teológicas não possuem nada que indique guardar certa relação com a interpretação no passado. Disso decorre a necessidade de uma Hermenêutica própria.

2 No estudo do desenvolvimento histórico da interpretação bíblica, consideram-se os diversos pensadores, as diferentes formas e correntes interpretativas que surgiram no decurso do tempo. Porém, e no que se refere ao conjunto total de livros da Bíblia, sendo ela constituída de várias vozes, vários autores, de diferentes tempos? Partindo do que se deve levar em conta no âmbito da Hermenêutica Bíblica, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Deve-se considerar o fato de que a Bíblia constitui-se de textos que não se reinterpretam, pelo simples fato de serem substancialmente distintos entre si.

b) ( ) Deve-se considerar o fato de que a Bíblia é uma diversidade textual e que seria arriscado, do ponto de vista hermenêutico, interpretar um livro bíblico a partir de outro, ou mesmo interpretar uma porção textual menor a partir de outra.

c) ( ) Deve-se levar em conta o fato de que, embora existam pontos convergentes nos diferentes textos bíblicos, eles não se retroalimentam ou se reinterpretam.

d) ( ) Deve-se considerar o fato de que a Bíblia também constitui-se de textos que se retroalimentam e se interpretam e reinterpretam.

3 Diversos tipos de interpretação foram desenvolvidos no passado, entre cristãos e judeus, na busca pelo sentido do texto bíblico. Houve, também, ocorrência de alguns fatos que contribuíram diretamente para a interpretação bíblica e que são elencados na história da Hermenêutica. Um desses fatos

AUTOATIVIDADE

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foi a realização de uma tradução do Antigo Testamento, originalmente escrito em língua hebraica, para o idioma grego, entre os séculos II e III e a.C. Pensando na tradução responsável por esse fato, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) A Septuaginta.b) ( ) A Vulgata Latina.c) ( ) A Tradução de João Ferreira D’Almeida.d) ( ) A Peshita.

4 A Quádriga foi um dos diversos modos de interpretação que foram sendo desenvolvidos ao longo do tempo. Foi utilizada durante a Idade Média e distinguia quatro sentidos nas Escrituras. Delineie, de maneira objetiva, esses quatro sentidos.

5 Alexandria foi uma importante cidade do Egito, famosa, Antiguidade, por sua enorme biblioteca. Essa biblioteca foi fundada por Ptolomeu I, cerca de 300 a.C. Alexandria acabou por substituir Atenas como o grande centro intelectual do mundo, na época. A cidade possuía uma expressiva comunidade de judeus vivendo nela e acabou se tornando uma referência, na Antiguidade, de um modo de interpretar as Escrituras. Disserte sobre em que consistia o método interpretativo da escola de Alexandria.

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UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃO

Os assuntos abordados neste tópico têm estreita correlação. O estudo em torno do Método Histórico-Crítico requer que se considere o Liberalismo teológico, uma vez que ambos estão apoiados em pressupostos comuns. Noutra mão, o Método Histórico-Gramatical está alinhado com a Ortodoxia teológica, e ambos se apoiam, também, em pressupostos comuns.

O conhecimento dos pressupostos desses métodos é necessário para se entender como a interpretação bíblica é feita na prática. A ideia de “método” sinaliza justamente para o modo de fazer, o “como fazer” de uma ciência, seja ela qual for. Em nosso caso, a Hermenêutica bíblica. Entender os métodos Histórico-Gramatical e Histórico-Crítico também é fundamental para se perceber que há diferentes modos de interpretar a Bíblia, que refletem diferentes tradições cristãs.

Ao estudante de Teologia cabe conhecê-los e considerar suas possibilidades e limites, contribuições e problemas. Infelizmente, convivemos em nossas igrejas com a ideia de “leituras perigosas”, que incentiva as pessoas a evitar a leitura de obras alinhadas com o Método Histórico-Crítico e com o Liberalismo Teológico, mas a Ortodoxia Teológica, por sua vez, também possui problemas e igualmente precisa ser avaliada criticamente.

FIGURA 15 – LÂMPADA DO CONHECIMENTO

FONTE: <https://shutr.bz/3mDKSIV>. Acesso em: 27 jul. 2021.

TÓPICO 3 —

MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

2 O MÉTODO HISTÓRICO-CRÍTICO

Esse método exegético pode ser entendido como um conjunto de críticas bíblicas, algumas de caráter diacrônico. Noutras palavras, há críticas que buscam entender como o texto chegou à sua forma final. Trata-se de um trabalho exegético do texto bíblico, levando em conta os aspectos formativos desse texto, a depender da crítica que esteja sendo utilizada.

O Método Histórico-Crítico surge no final do século XVII e vai se desenvolvendo nos séculos XVIII e XIX, e não necessariamente terminou, como afirma Lopes (2013, p. 189). Ele continua em uso, ainda que tendo passado por reelaborações. Lopes afirma que “[...] uma boa parte dos supostos resultados “infalíveis” desse método continua ainda hoje a influenciar os estudos acadêmicos da Bíblia, como fatos provados, em vez do que são na realidade: meras hipóteses”.

Lopes, nessa compreensão em particular a respeito do Método Histórico-Crítico, comete um erro crasso ao não distinguir o método em si dos pressupostos de teólogos e exegetas que operaram por ele. O Método Histórico-Crítico é uma metodologia exegética que, naturalmente, refletirá na forma como se entende o texto, mas não necessariamente constitui algum tipo de hipótese teológica, como pressuposto por Lopes.

O Método Histórico-Crítico foi fundamental para a crítica bíblica. Abriu caminho para o estudo científico em torno do texto bíblico, aprofundando muito os estudos exegéticos. Isso, contudo, não significa que devamos ser acríticos em relação ao método. O exegeta Uwe Wegner, que opera pelo referido método, afirma com muito equilíbrio:

[O Método Histórico-Crítico] cultiva uma academicidade alheia à maioria dos integrantes das comunidades, criando barreiras entre teólogos e teólogas e o povo leigo. O exegeta histórico-crítico tende a uma atitude de arrogância diante de outras ou outros colegas considerados “ingênuos” ou conservadores. Favorece uma espécie de idolatria do intelecto e de tudo o que é racional e racionalizável, em detrimento de outros modos de percepção da realidade. Muitas vezes, um estudo racional dos textos anda paralelamente a um aumento das dúvidas de fé (WEGNER, 1998, p. 33).

FIGURA 16 – PESQUISA

FONTE: <https://shutr.bz/3FyCGlQ>. Acesso em 27 jul. 2021.

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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A despeito desses limites, contudo, o Método Histórico-Crítico é o que prevalece na Academia Teológica, com contribuições fundamentais. Exegetas que operaram por ele entregaram uma enorme produção exegética que trouxe à tona muitos conhecimentos a respeito da vida e do pensamento nos tempos bíblicos, contribuindo para aclarar o sentido das passagens bíblicas.

FIGURA 17 – ACADEMICIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3mFoSgL>. Acesso em 27 jul. 2021.

O texto bíblico foi “dissecado” nesse método, que o encarou como resultado de um processo de editoração até que chegasse ao formato final, no qual se encontra atualmente. Entende que o texto bíblico é múltiplo e fragmentário, uma espécie de costura de textos que foi sendo feita ao longo do tempo e com a participação de vários autores. Com isso, rejeita, por exemplo, a autoria mosaica do Pentateuco e da maioria dos textos bíblicos, por encontrar neles indícios literários de que houve participação de autores diversos.

3 O MÉTODO HISTÓRICO-GRAMATICAL

O Método Histórico-Gramatical valoriza os aspectos histórico e gramatical do texto bíblico. É um método essencialmente sincrônico, não diacrônico. A palavra é entendida como inserida dentro de um contexto histórico. Ela brota de contextos históricos. Zuck (1994, p. 89) concorda que o “[...] contexto em que determinada passagem bíblica foi escrita influi no entendimento que se terá dela”.

O exegeta orientado por esse método entende que o sentido do texto, quando foi entregue pelo delimitaçãoógrafo sagrado, pode ser parcialmente recuperado. Por meio de diversas análises, busca-se chegar a esse sentido pretendido pelo autor do texto. Como se pode perceber, o método valoriza muito o papel do autor na construção do sentido.

Na prática, ambos os métodos, o Histórico-Crítico e o Histórico-Gramatical, podem ser aplicados seguindo alguns passos, como propõem diversos exegetas. Wegner (1998, p. 11) comenta que a Hermenêutica “[...] designa mais particularmente os princípios que regem a interpretação dos textos; a exegese descreve mais especificamente as etapas ou os passos que cabe dar em

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

sua interpretação”. Segue-se uma sugestão para se fazer uma exegese pensada/elaborada em diálogo tanto com o Método Histórico-Crítico como com o Método Histórico-Gramatical. Esse passo a passo conta com pelo menos cinco passos.

FIGURA 18 – PESQUISANDO

O primeiro passo consiste em delimitar a perícope que será estudada. Isso é chamado de “delimitação do texto bíblico”. O segundo passo consiste em realizar uma tradução própria, isto é, uma tradução que é feita pelo estudante. Essa ação permitirá que se observem determinados aspectos gramaticais que não poderiam ser notados, possivelmente, consultando-se exclusivamente as traduções em português.

FONTE: <https://shutr.bz/3v1nWaz>. Acesso em 27 jul. 2021.

Recomendo duas obras e um artigo em particular que oferecem passos para a exegese de perícopes bíblicas, explicando de modo minucioso cada um desses passos:

• ALEXANDRE JÚNIOR, M. Exegese do Novo Testamento: um guia básico para o estu-do do texto bíblico. São Paulo: Vida Nova, 2016.

• KUNZ, C. A. Método histórico-gramatical: um estudo descritivo. Revista Via Teológica. Curitiba: FTBP, 2008, n. 16, vol. 2.

• WEGNER, U. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.

DICAS

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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O terceiro passo é o da análise literária que considera a lexicografia do texto, sua análisegia, semântica, sintaxe e o estilo. Analisa possíveis figuras de linguagem presentes, como metáforas e hipérboles, por exemplo. O quarto passo é fazer a crítica textual da passagem, que deve incluir considerar as variantes textuais, tipo de texto que foi utilizado, dentre outros aspectos. Por fim, o quinto e último passo é fazer a aplicação da passagem ao ouvinte/leitor contemporâneo. A Exegese (e a Hermenêutica) deve ser posta a serviço das comunidades de fé. Os resultados das suas investigações devem ser aplicados à vida, ao serviço cristão, em favor da melhor compreensão das Escrituras e da própria religião cristã.

4 O LIBERALISMO TEOLÓGICO

O pensamento liberal sofre duros ataques de teólogos cristãos, e com a popularização da internet, esses ataques ganharam mais notoriedade. Mas essa rejeição ao Liberalismo teológico definitivamente não é de agora. Todavia, é preciso diálogo e que sejam consideradas as contribuições de ambos os lados, tanto da Ortodoxia teológica quanto do Liberalismos teológico.

Nos círculos eclesiais em geral há grande rejeição ao pensamento liberal. E vários teólogos que estão alinhados com a Igreja comumente apresentam rejeição a muitos pressupostos liberais. No prefácio da obra Teologia Contemporânea: a influência das correntes filosóficas e teológicas na Igreja (2012) de Abraão de Almeida, um livro na verdade reeditado, publicado originalmente em 2002, o Pastor e Teólogo N. Lawrence Olson (1910-1993), que atuou como missionário a serviço das Assembleias de Deus no Brasil, mormente no estado de Minas Gerais, autor do Best Seller O plano divino através dos séculos, publicado originalmente em 1974, comenta negativamente a respeito da Teologia Liberal e chama a atenção dos leitores no sentido de terem cuidado com o pensamento liberal, sendo algo a evitar. Olson fala em termos de “[...] essa nociva Alta Crítica” e a coloca como “[...] apenas uma minúscula parte do arsenal que o inimigo preparou para atacar a integridade da Igreja” (OLSON in ALMEIDA, 2012, p. vi). Um radicalismo por parte de um teólogo da Igreja? A que é possivelmente a principal razão dessa rejeição é o fato do pensamento liberal excluir o elemento sobrenatural das Escrituras, o que acaba por colocar Jesus como um personagem histórico e não divino, os milagres

Para uma abordagem detalhada sobre o que é e como fazer a delimitação do texto, você pode assistir essa aula aberta, disponível no YouTube:

Disponível em: https://youtu.be/JSezYoQ2t_I. Acesso em: 17 jul. 2021.

DICAS

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

como relatos míticos e não como factualmente históricos, dentre outros aspectos atrelados à questão do sobrenaturalismo bíblico (COZZER, 2020, vol. 1, pp. 85-88).

O Liberalismo teológico é, também, um tipo de Hermenêutica, pois constituiu um modo de entender a Bíblia absolutamente distinto do modo como a Igreja interpretava as Escrituras até então. Um pensador fundamental do Liberalismo teológico foi Friedrich Daniel E. Schleiermacher (1768-1834). Ele entendeu que a religião não deveria ter origem num livro, ou mesmo na razão ou, ainda, em qualquer elemento externo. E nessa esteira, Schleiermacher irá enfatizar a possibilidade de a religião encontrar sua fonte em nosso sentimento de dependência de outro alguém.

Diversos autores se seguiram a Schleiermacher orientados por pressupostos muito semelhantes. Houve o entendimento de que os textos neotestamentários, assim como os do Antigo Testamento, eram carregados de mitos, que Jesus seria unicamente um homem (não o Filho de Deus encarnado) que precisava ser recuperado nos textos dos Evangelhos dos acréscimos helenísticos (Adolf von Harnack) e míticos (Rudolf K. Bultmann).

FIGURA 19 – FRIEDRICH SCHLEIERMACHER

FONTE: <https://bit.ly/3FwCSSJ>. Acesso em 27 jul. 2021.

5 A REAÇÃO ORTODOXA

A reação ortodoxa ao Liberalismo teológico foi no sentido de reafirmar a crença no sobrenaturalismo bíblico, na divindade de Jesus, na inerrância bíblica e em outras doutrinas cardeais para o Cristianismo bíblico e histórico. Nesse sentido, a Ortodoxia Teológica ofereceu grande contribuição.

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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A palavra “ortodoxia” vem da junção de duas palavras gregas, a saber: orthós, “reto”, e dóxia, “opinião”. “Ortodoxia” passa a indicar, no contexto teológico, “crença correta”. Conquanto a palavra seja usada para identificar a Teologia de diversas denominações cristãs, admite-se que se pode falar em ortodoxias.

Champlin (vol. 4, 1991, p. 633) faz a seguinte observação:

[...] os vícios de várias ortodoxias (e há muitas) é que elas equiparam a crença certa (conforme elas a julgam) com a verdade. Entretanto, a história tem frequentemente demonstrado, nos campos da ciência, da filosofia e da religião, que a ortodoxia de uma geração é contradita por alguma heterodoxia, e que esta última, ao obter poder, torna-se uma nova ortodoxia.

Reconhecendo essa verdade, exposta por Champlin, e considerando o fato de que o conhecimento é limitado e de que a verdade do Evangelho não cabe nos diversos sistemas teológicos, noutras palavras, essa verdade está muito acima desses sistemas, tem-se defendido a ideia de uma Ortodoxia dialogal, dialogal porque reconhece contribuições de outros sistemas. Conquanto defenda uma verdade absoluta, não é defendido necessariamente um absolutismo teológico.

Historicamente, a Ortodoxia Teológica pode ser definida a partir de alguns pressupostos básicos e comuns às diferentes tradições cristãs, a despeito dessa enorme variedade existente no interior do Cristianismo. Há doutrinas que têm sido chamadas de “doutrinas cardeais” e que se assentam sempre nas Escrituras. Noutras palavras, os teólogos ortodoxos buscam fundamentar essas convicções doutrinárias nas Escrituras.

O Novo Testamento forma a base dessa ortodoxia cristã, e os pronunciamentos dos concílios definiram e delinearam crenças. Porém, deve ficar entendido desde o princípio que nem todas as ideias foram igualmente aceitas. Antes de tudo, devemos considerar o cisma, quanto a algumas questões importantes, entre as igrejas cristãs Oriental e Ocidental. Posteriormente, a Igreja Ocidental fragmentou-se, durante a Reforma Protestante; e vem-se fragmentando cada vez mais, desde então. E foi assim que muitas ortodoxias arrogantes surgiram, do seio dessa Igreja fragmentada.Os estudiosos liberais pensam que qualquer busca pela ortodoxia é tempo perdido, além de ser uma atividade amortecedora e estagnadora, pois nada teria a ver com a verdade, ainda que posta a serviço do mero conforto mental. É que a mente humana insiste em obter sistemas fechados, completos, que solucionem todos os problemas, liberando o indivíduo da necessidade de continuar buscando e crescendo.Assim sendo, a verdadeira busca pela verdade deve evitar a estagnação, e, no entanto, à base mesma da formulação de qualquer sistema ortodoxo temos uma grande dose de estagnação (CHAMPLIN, 1991, vol. 4, p. 634).

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

A crítica apresentada por Champlin é muito importante, pois evidencia os limites da Ortodoxia Teológica, mas, como afirmado anteriormente, há doutrinas e elementos doutrinários comuns, defendidos historicamente ao longo de séculos, pela Igreja Cristã, que constituem pontos de convergência entre as igrejas.

Algumas dessas doutrinas históricas são a doutrina da ressurreição de Jesus, da Segunda Vinda de Jesus, da inerrância bíblica, do monoteísmo trinitário, da salvação pela graça de Deus manifestada em Cristo, da queda e da necessidade de remissão dos pecados, dentre outras. Como bem observado por Champlin, acima, não houve unanimidade entre os cristãos quanto a essas e outras doutrinas ao longo do tempo, mas houve enorme consenso entre diversos segmentos do Cristianismo ao longo dos séculos.

A Ortodoxia teológica pode ser claramente distinguida quando comparada ao Liberalismo Teológico. Ela oferece uma contribuição fundamental no sentido de definir uma Teologia que se identifica como cristã, o que permite falar a partir de um lugar comum para milhões de pessoas ao longo de gerações. Champlin afirma:

A busca por uma verdadeira ortodoxia é a mesma coisa que a busca pela verdade e pela autoridade. [...] Em primeiro lugar, existem certas verdades fundamentais, nas Sagradas Escrituras, que nos orientam nessa busca. Um verdadeiro cristão vê em Jesus tanto o Logos encarnado quanto o Senhor Deus. Essas são verdades fatuais do Novo Testamento, segundo pode-se ver em vários trechos bíblicos: 1 Coríntios 15.1-11; Gálatas 1.6-9; 1 Timóteo 6.3; 2 Timóteo 4.3,4; 1 João 4.1-3 [...]. Porém, é mister que entendamos que a verdade é vastíssima, e que a nossa busca para conhece-la melhor está em estado de fluxo. A estagnação sempre é amortecedora, não tendo utilidade na busca real pela verdade. A Palavra de Deus é maior do que a Bíblia, a qual é um reflexo escrito da Palavra. A Palavra Viva é mais vasta que a palavra escrita; o Logos é maior do que qualquer livro ou coletânea de livros. Isso posto, qualquer busca pela verdade deve ser caracterizada por um crescimento contínuo. Os homens estacionam o trem de sua verdade em alguma estação; mas a verdade real prossegue caminho (CHAMPLIN, 1991, vol. 4, p. 634).

A despeito da enorme contribuição da Ortodoxia Teológica, deve-se mencionar que nem sempre a reação ortodoxa, ou pelo menos a reação de algumas de suas alas, em nossos dias, e em nosso país, é saudável. No afã de defender verdades fundamentais da fé cristã e de se produzir uma Apologética cristã, teólogos ortodoxos produzem ataques pessoais de baixo nível, produzem campanhas de boicote a determinadas obras e chegam a conclusões sem terem o cuidado na análise do conteúdo proposto.

Todavia, a Ortodoxia Teológica também é feita por teólogos equilibrados, que se abrem ao diálogo e se utilizam das contribuições das diversas correntes de pensamento teológico. É perfeitamente possível falar a partir de um lugar comum e dialogar com outras contribuições teóricas. Não é necessário agredir para afirmar convicções teológicas e doutrinárias.

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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FONTE: <https://shutr.bz/2YHu23Z>. Acesso em 27 jul. 2021.

Infelizmente, no Brasil, tornou-se comum produzir Teologia com base em desqualificação e na construção de caricaturas a respeito de outras tradições teológicas. E isso não acontece apenas do lado ortodoxo, mas mesmo na Academia Teológica nota-se a presença de abordagens reducionistas e até ridicularizantes de tradições teológicas e religiosas. Tal atitude deve ser evitada sempre.

Reagindo a pressupostos liberais, a Ortodoxia Teológica vem reafirmando suas convicções por meio de publicações e de documentos. A Declaração de Chicago sobre a Inerrância Bíblica, em 1978, que reafirmou a convicção na inerrância da Bíblia, em seu Artigo XII, afirma:

Afirmamos que, em sua totalidade, as Escrituras são inerrantes, estando isentas de toda falsidade, fraude ou engano. Negamos que a infalibilidade e a inerrância da Bíblia estejam limitadas a assuntos espirituais, religiosos ou redentores, não alcançando informações de natureza histórica e científica. Negamos ainda mais que hipóteses científicas acerca da história da terra possam ser corretamente empregadas para desmentir o ensino das Escrituras a respeito da criação e do dilúvio (NETO, 2021, s.d.).

No Artigo XIV, também pode-se ler o seguinte: “Afirmamos a unidade e a coerência interna das Escrituras. Negamos que alegados erros e discrepâncias que ainda não tenham sido solucionados invalidem as declarações da Bíblia quanto à verdade” (NETO, 2021, s.d.).

FIGURA 20 – EQUILÍBRIO

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

A Declaração foi produzida Hyatt Regency O'Hare, em Chicago, no verão de 1978, durante uma conferência internacional suprema de líderes evangélicos interessados. Ela foi assinada por aproximadamente 300 eruditos evangélicos famosos, incluindo Boice, Norman L. Geisler, John Gerstner, Carl F. H. Henry, Kenneth Kantzer, Harold Lindsell, John Warwick Montgomery, Roger Nicole, J.I. Packer, Robert Preus, Earl Radmacher, Francis Schaeffer, R.C. Sproul e John Wenham (NETO, F. S. A. Declaração de Chicago sobre a Iner-rância da Bíblia. Monergismo. 2021.

Disponível em: https://bit.ly/3lt2lo8. Acesso em: 30 jul. 2021.

DICAS

A Ortodoxia Teológica contribui no sentido de reafirmar essas verdades fundamentais e, ainda, no sentido de apontar para o fato de que o Cristianismo se apoia sobre fatos e convida à vida concreta. Ela chama a atenção para o fato de que a fé cristã precisa ser, também, prática, não apenas concreta. A Ortodoxia Teológica sempre esteve muito alinhada a movimentos cristãos que valorizavam a piedade cristã, a leitura e o estudo devocional da Bíblia e a vida com Deus, como o Pentecostalismo, em suas origens.

Outro aspecto relevante a ser considerado ainda com relação ao Pentecostalismo é que a despeito de não ter uma tradição teológica tão extensa como o tem as denominações históricas, ele cumpre papel preponderante no combate aos pressupostos liberais contrários às Escrituras, às heresias, aos falsos ensinos e deturpações da Palavra de Deus (COZZER, 2020, vol. 1, p. 488).

Horton (1916-2014), importante teólogo pentecostal estadunidense, escreveu o seguinte:

Minha opinião é que você não pode conhecer as Escrituras à parte do poder de Deus. O conhecimento puro e simples da letra pode levar à morte, mas “o Espírito vivifica” (2 Co 3.6). Eis a razão de estarem os pentecostais na linha de frente da batalha contra os liberais (que são, na verdade, anti-sobrenaturalistas), os secularistas, as doutrinas da Nova Era e todas as forças anticristãs conhecidas ou não (HORTON, 1997, p. 9).

Naturalmente, os teólogos ortodoxos utilizam o Método Histórico-Gramatical como método hermenêutico em função do seu alinhamento com essas verdades centrais da fé cristã e abertura ao sobrenaturalismo bíblico. Existe harmonia, também, com pressupostos hermenêuticos da Reforma Protestante, que são reafirmados pela Ortodoxia Teológica, o que permite uma identificação fundamental com esse movimento religioso, social e político.

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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LEITURA COMPLEMENTAR

RUDOLF KARL BULTMANN

Roney Ricardo Cozzer

FIGURA 21 – RUDOLF KARL BULTMANN

FONTE: <https://bit.ly/3iRrR4J>. Acesso em: 16 jul. 2021.

Chegamos, agora, a mais um dos grandes pensadores cristãos do século 20. E esse é um pensador também muito criticado no contexto evangélico, mas isso se dá certamente, em grande medida, por desconhecimento da obra de Bultmann. Ele estudou profundamente o contexto ou cenário que dá origem ao Novo Testamento, mas fazendo isso sem desconectar-se da sua própria realidade no século 20. Deve ser destacado já de partida que Bultmann não foi um teólogo sistemático, mas deve ser entendido – e com justiça – como um teólogo bíblico, que se dedicou de fato ao estudo profundo do Novo Testamento.

Bultmann nasceu na Alemanha, em 20 de agosto de 1884 e faleceu em 1976, aos 91 anos. Foi catedrático da Universidade de Marburg, na Alemanha, durante muitos anos (de 1921 até 1951 quando se aposentou) e produziu diversos textos de cunho histórico, teológico e interpretativos sobre o Novo Testamento. Marburg foi a universidade onde ele lecionou até o fim da vida em 1976.

Dentre os pontos interessantes a respeito da vida e obra de Bultmann, é que ele fez parte da Igreja Confessante, composta por teólogos igualmente destacados como o suíço Karl Barth, inclusive, que rejeitaram e se opuseram ao nazismo. Bultmann estudou nas melhores universidades alemãs: Tübingen, Berlim e Marburg e era herdeiro de uma rica tradição protestante (GRENZ; OLSON, 2013, p. 100).

É importante destacar também, já de partida, que conquanto reconheçamos as contribuições notáveis de Bultmann e de outros grandes teólogos cristãos (contemporâneos ou não), tal reconhecimento não significa endosso absoluto da

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

integralidade de suas obras. Não é diferente aqui com relação ao pensamento bultmanniano. Como cristãos confessos e cheios de fé, discordamos radicalmente de alguns resultados do trabalho de Bultmann, como alguns vistos em seu programa de demitologização do Novo Testamento que vê a ressurreição de Jesus como mito, e não como fato na História.

[...] ele se recusava a reconhecer qualquer disparidade profunda entre a exegese e a Teologia sistemática, afirmando que, na verdade, a tarefa de ambas é explicar a existência humana em relação a Deus ao ouvir a Palavra de Deus, que se dirige ao indivíduo por meio do Novo Testamento. Por causa de sua contribuição a essa questão mais ampla do método teológico, Bultmann tem sido uma voz insuperável no meio da Teologia sistemática bem como dos estudos do Novo Testamento (GRENZ; OLSON, 2013, p. 100).

No senso comum de muitos evangélicos brasileiros, Bultmann tem sido considerado um teólogo liberal. O curioso, contudo, é que o próprio Bultmann se considerou um aliado de Barth no sentido de dar uma resposta ao liberalismo teológico em seu tempo. Sua crença é de que a revelação, o kerigma, é suficiente para o conhecimento de Deus. “[...] Seguindo as ideias do filósofo existencialista Martin Heidegger, Bultmann interpretou essa mensagem exclusivamente em termos de condição humana que ele via caracterizada pela ansiedade e até mesmo pelo desespero” (GRENZ; OLSON, 2013, p. 100). É correto afirmar sobre ele que seu esforço foi no sentido de projetar a sua visão cristã através do existencialismo.

Bultmann encontrou um modo eficiente de conciliar conceitos do pensamento heideggeriano e o seu próprio pensamento. Ele estabeleceu alguns paralelos entre conceitos da obra de Heidegger e conceitos bíblicos, como por exemplo, fé e pecado com “existência autêntica” e “existência inautêntica”. E esse esforço se dá em Bultmann por ele estar buscando explicar a mensagem do Evangelho em seu próprio contexto, isto é, em sua própria época. Havia um desencontro entre o homem moderno e o homem do período do Novo Testamento, em que a concepção do universo é mítica. Bultmann mantêm seu inelutável interesse em chegar ao cerne da mensagem do Novo Testamento removendo as camadas mitológicas que a cobrem e poder assim comunicar essa mensagem ao homem contemporâneo.

A existência autêntica de Heidegger só é possível, segundo Bultmann, mediante a resposta do homem por meio da fé à graça de Deus, oferecida ao homem pela proclamação cristã (o kerigma). E essa resposta do homem constitui em si um milagre de Deus. Noutras palavras, o homem não pode por si mesmo experimentar essa existência autêntica; ele depende da graça de Deus experimentada por um ato de fé.

O sentido da ressurreição para Bultmann não é em termos factuais, históricos. Isso não significa dizer que Bultmann não aceitasse a pessoa de Jesus e sua cruz como fatos históricos. Ele não considerou que um homem realmente tivesse voltado dentre os mortos, mas cria na existência real de Jesus e que Ele

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TÓPICO 3 — MÉTODOS HERMENÊUTICOS NA MODERNIDADE

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veio a morrer numa cruz. Para Bultmann, foi justamente a crucificação que exaltou Jesus à posição de Senhor. Para ele, a fé na ressurreição implicava “[...] fé na eficácia salvadora da cruz” (GRENZ; OLSON, 2013, p. 100).

O pensamento de Bultmann, evidentemente, deve ser criticado. Ele possui limites sérios. A despeito de suas contribuições, não podemos negar que esse grande pensador caminhou para certo ceticismo no que tange à fé histórica do Cristianismo quanto a milagres, a ressurreição e outras narrativas de fatos sobrenaturais das Escrituras, que ele entendeu como sendo mitos.

O conservadorismo teológico prossegue em ver a obra de Bultmann com suspeição e com certa justiça, em função da sua compreensão a respeito de mito e Bíblia. E não pode ser negado que sua visão diferiu substancialmente da visão tradicional, inclusive quanto à Revelação de Deus à humanidade.

Grenz e Olson (2013) irão afirmar que “independentemente da questão das formulações doutrinárias corretas e das críticas relacionadas a vários aspectos de suas posições, o principal problema teológico está no centro da proposta de Bultmann” (GRENZ; OLSON, 2013, p. 112). Os autores prosseguem dizendo que esse problema irá se tornar evidente em pelo menos três pontos fracos no pensamento bultmanniano: exegese, vida de fé e a natureza de Deus.

Outro ponto fraco no pensamento de Bultmann é com relação à vida de fé. Para ele, “[...] a fé é uma decisão pessoal sobre o viver autêntico, compreendida de modo extremamente individualizado” (GRENZ; OLSON, 2013, p. 113). Seguindo na trilha da compreensão existencialista, ele acabou por limitar muito ao individual a esfera de ação da fé reduzindo assim sua dimensão eclesial, comunitária e social. A fé, em termos neotestamentários, tem implicações que transbordam à própria esfera do individual, no cristão. Ela possui implicações abrangentes projetando o cristão para o outro.

Do mesmo modo, não é sem importância o fato de que seus escritos raramente falem da igreja. Do ponto de vista de avanços teológicos subsequentes, podemos concluir apenas que a Teologia de Bultmann fornece uma soteriologia útil, ainda que parcial, mas carece de uma eclesiologia satisfatória (GRENZ; OLSON, 2013, p. 113).

Em um texto publicado originalmente em 1958, e intitulado Das Befremdiliche des christlichem Glaubens, traduzido como “Por que a fé cristã causa estranheza” (BULTMANN, 2001, p. 383), Bultmann discorre sobre o sentido do Cristianismo, sobre o significado do Cristianismo e conclui em dado momento que “[...] cada qual precisa decidir para si próprio o que é fé cristã” (BULTMANN, 2001, pp. 385-86). Ele argumenta logo em seguida que o que vem a ser Cristianismo não necessariamente fica restrito à subjetividade do indivíduo, mas que a explicação sobre o que vem a ser o Cristianismo pode ser feita mediante o conhecimento da história, não história como fatos frios que se sobrepõem, mas sim, e em suas próprias palavras, “o dilema resolve-se se considerarmos o que é autêntica relação com a história, ou seja, o que é relação histórica com a história” (BULTMANN,

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UNIDADE 2 — ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA HERMENÊUTICA

2001, p. 386). “História” em Bultmann assume um sentido diferente do sentido ordinário que conhecemos. Para ele, ela requer envolvimento, e ele afirma que o historiador tem a sua própria subjetividade envolvida levando-o a participar como pessoa (BULTMANN, 2001, p. 386). Só havendo esse envolvimento o sujeito pode compreender os eventos ocorridos na própria História. É após essa conjuntura existencial do sujeito que ele pode compreender seu sentido histórico. Dito isto, Bultmann então lança o problema: “Qual a consequência disso para a pergunta pela essência da fé cristã?” e em seguida, ele mesmo responde: “Ela somente é reconhecível a partir da história do Cristianismo, mas só para aquele que estiver existencialmente envolvido nesta história” (BULTMANN, 2001, p. 387). Bultmann está deslocando o Cristianismo do conceito de um evento ocorrido na História para a posição de algo contínuo, que retroage e que é escatológico. A despeito de reconhecer que Jesus Cristo inaugurou uma nova era, deixando o velho éon para trás e inaugurando uma nova era, tudo isso permanece atrelado ao existencialismo, que ele usa como “trilho” por onde corre o “trem” da sua Teologia.

FONTE: COZZER, R. R. (no prelo). Doutrinas Bíblicas. São Paulo: Instituto Teológico Quadrangular.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• O Método Histórico-Crítico é constituído por um conjunto de procedimentos e críticas, como as Críticas da Fonte e da Redação, por exemplo.

• O Método Histórico-Gramatical valoriza os aspectos histórico e gramatical do texto bíblico, entendendo a palavra como evento histórico.

• Na aplicação de métodos exegéticos, são dados alguns passos, como a delimitação do texto bíblico e a realização de uma tradução própria. Há outros passos importantes.

• O Liberalismo Teológico e a Ortodoxia Teológica são duas correntes de pensamento teológico que divergem estruturalmente em determinados pressupostos, porém ambas oferecem suas contribuições, as quais devem ser levadas em conta.

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CHAMADA

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1 Há diversos métodos interpretativos das Escrituras com as suas contribuições específicas para o esforço de pesquisa em favor da melhor compreensão do texto bíblico. Um desses métodos é o Histórico-Crítico. Sobre esse método, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Esse método exegético pode ser entendido como um conjunto de críticas bíblicas, algumas de caráter diacrônico.

b) ( ) Esse método exegético pode ser entendido como um conjunto de críticas bíblicas, algumas de caráter sincrônico.

c) ( ) Esse método exegético pode ser entendido como uma crítica bíblica específica, não composto de várias críticas, de caráter diacrônico.

d) ( ) Esse método exegético pode ser entendido como uma crítica bíblica específica, não composto de várias críticas, de caráter sincrônico.

2 Tanto o Método Histórico-Gramatical como o Método Histórico-Crítico pautam-se pela aplicação de uma espécie de passo a passo na análise de uma Perícope Bíblica. Um desses passos é a análise literária, que compreende considerar alguns elementos. Com base nos elementos compreendidos pela análise literária, analise as sentenças a seguir:

I- Essa análise considera a lexicografia, a sintaxe e a morfologia, mas desconsidera o estilo do texto.

II- Essa análise considera a lexicografia, a sintaxe e a morfologia do texto.III- Essa análise considera o estilo do texto.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.b) ( ) As sentenças II e III estão corretas.c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.d) ( ) Somente a sentença II está correta.

3 A reação ortodoxa ao Liberalismo Teológico foi no sentido de reafirmar a crença no sobrenaturalismo bíblico, na divindade de Jesus, na inerrância bíblica e em outras doutrinas cardeais para o Cristianismo bíblico e histórico. Nesse sentido, a Ortodoxia teológica ofereceu grande contribuição. Pensando na representação da Ortodoxia, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) “Ortodoxia” passa a indicar, no contexto teológico, “crença incorreta”.b) ( ) “Ortodoxia” passa a indicar, no contexto teológico, “crença particular

de um grupo religioso”.c) ( ) “Ortodoxia” passa a indicar, no contexto teológico, uma espécie de

equivalência do Liberalismo Teológico.d) ( ) “Ortodoxia” passa a indicar, no contexto teológico, “crença correta”.

AUTOATIVIDADE

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4 O Método Histórico-Gramatical valoriza os aspectos histórico e gramatical do texto bíblico. A palavra é entendida como inserida dentro de um contexto histórico. Zuck (1994, p. 89) concorda que o “[...] contexto em que determinada passagem bíblica foi escrita influi no entendimento que se terá dela”. Considerando isto, disserte a seguir sobre características desse método de interpretação das Escrituras.

5 O Método Histórico-Crítico pode ser considerado como um método composto, no sentido de que há várias críticas que são utilizadas em sua aplicação. Ele emprega a Crítica da Forma, Crítica da Redação e a Crítica das Fontes, dentre outros procedimentos. Tem sido amplamente utilizado no campo da crítica bíblica. Disserte a seguir a respeito da importância desse método.

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DICK, E. (ed.). Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíbli-ca. Tradução: Gordon Chown. São Paulo: Shedd Publicações, 2012.

GEISLER, N. L. Enciclopédia de Apologética. Tradução: Lailah de Noronha. São Paulo: Vida, 2002.

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GEISLER, N.; NIX, W. Introdução bíblica: como a Bíblia chegou a nós. São Pau-lo: Vida, 1997.

GILBERTO, A. Antonio. A Bíblia Através dos Séculos: uma introdução. 19. ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.

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VANHOOZER, K. J. Há um significado neste texto? Interpretação bíblica: os enfoques contemporâneos. Tradução: Álvaro Hattnher. São Paulo: Vida, 2005.

VIRKLER, H. A. Hermenêutica avançada: princípios e processos de interpreta-ção bíblica. Tradução: Luiz Aparecido Caruso. São Paulo: Vida, 1987.

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ZUCK, R. B. A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade bíblica. Tra-dução: Cesar de F. A. Bueno Vieira. São Paulo: Vida Nova, 1994.

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UNIDADE 3 —

A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender a importância da interpretação bíblica;• entender o que são os distanciamentos bíblicos e sua importância para

o estudo das Escrituras;• conhecer as figuras de linguagem e compreender o que são os

hebraísmos;• compreender como a Hermenêutica é entendida na contemporaneidade.

Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O ABISMO CULTURAL, LITERÁRIO E GRAMATICAL

TÓPICO 2 – AS FIGURAS DE LINGUAGEM

TÓPICO 3 – A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, neste primeiro tópico, será abordada a questão da “distância” que há entre o leitor contemporâneo da Bíblia e os seus autores. Essa distância é objeto de interesse na Hermenêutica Bíblica há muitos anos. Ela refere-se aos diferentes contextos nos quais os textos bíblicos emergem, que são de natureza cultural, religiosa, política, social, geográfica, histórica e linguística.

A maioria dos cristãos acostumou-se a ler a Bíblia como um texto muito familiar, que perpassa, por vezes, a sua formação religiosa cristã. Existe a tentação infundada, mas compreensível, de se pensar que a Bíblia é um texto absolutamente familiar a nós, em nossa cultura. Porém, ela não é!

Os diferentes contextos que geram o texto bíblico, isto é, o seu sitz im leben, são muito distintos dos nossos. A Bíblia é escrita em línguas diferentes da nossa, por pessoas com hábitos culturais e religiosos muito diferentes dos nossos. A organização social, a estrutura familiar, os grupos religiosos e o cenário político internacional em que os textos bíblicos vão sendo produzidos incidem diretamente neles. A Bíblia reflete de muitos modos esses contextos.

A Hermenêutica Bíblica tem como um de seus pressupostos importantes a convicção de que o conhecimento desses contextos é fundamental para a compreensão da Bíblia. E nisso haverão de concordar exegetas de diferentes tradições teológicas e hermenêuticas. É esse conhecimento do sitz im leben da Bíblia que permitirá a melhor compreensão de fragmentos textuais, perícopes inteiras e, claro, livros completos das Escrituras.

TÓPICO 1 —

O ABISMO CULTURAL, LITERÁRIO E GRAMATICAL

A expressão sitz im leben é alemã e é muito utilizada em Exegese bíblica para indicar o “lugar na vida” que dá origem aos textos bíblicos. Noutras palavras: essa expressão indica os diferentes contextos sociais, culturais, familiares, religiosos e políticos em que viveram os autores bíblicos, e sinaliza, ainda, para a influência desses ambientes no próprio texto bíblico.

INTERESSANTE

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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Essa expressão alemã, sitz im leben, significa basicamente “lugar da vida”, ou “lugar vivencial”. Tem sido usada na Exegese para indicar o mundo em que a Bíblia surge. Todavia, uma questão fundamental que precisa ser considerada é a seguinte: não se pode falar de um único mundo em que a Bíblia (Figura 1) se origina, mas, sim, vários.

FIGURA 1 – BÍBLIA

FONTE: <http://galeria.dtcom.com.br/picture.php?/2721/search/117>. Acesso em: 8 ago. 2021.

O que ocorre é que o conjunto total dos 66 livros que compõem o cânon bíblico demorou vários séculos para ser completado. A Bíblia não é resultado de um projeto editorial que objetivava produzi-la tal como a conhecemos hoje. A posição mais ortodoxa defende que foram demandados cerca de 1.600 anos para que os 39 livros do Antigo Testamento e os 27 do Novo fossem todos escritos, mas a posição mais alinhada com o Método Histórico-Crítico permite concluir um período menor, de mil anos aproximadamente. Essa, naturalmente, é uma estimativa aproximada.

Seja como for, fato é que muita coisa acontece numa janela de tempo tão extensa assim, seja em nível nacional, seja em nível internacional. As mudanças são profundas. Por exemplo, o mundo na época da escrita do livro de Daniel (admitindo-se o século VI a.C. como data provável) tinha, inicialmente, o Império Babilônico como a grande potência mundial e o aramaico como língua franca no Oriente Médio. No primeiro século da Era Cristã, a potência agora era outra, o Império Romano, e a língua franca era o grego koiné, falado não apenas no contexto palestino, mas no contexto de todo o Império.

Se voltarmos mais ainda no tempo, ao período patriarcal, teremos um cenário ainda mais diferente. O famoso Código de Hamurábi, inscrito numa estela (um tipo de rocha trabalhada) e em outros documentos, reflete muito do estilo de vida dessas sociedades do segundo milênio a.C. Esse documento leva o nome de Hamurábi, que foi o sexto rei da Babilônia (COZZER, vol. 1, 2020, p. 332). No referido código, pode-se ler: “Se alguém roubar gado ou ovelhas, ou uma cabra, ou asno, ou porco, se este animal pertencer a um deus ou à corte, o

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ladrão deverá pagar trinta vezes o valor do furto”. O mesmo trecho prossegue afirmando o seguinte: “se tais bens pertencerem a um homem libertado que serve ao rei, este alguém deverá pagar 10 vezes o valor do furto, e se o ladrão não tiver com o que pagar seu furto, então ele deverá ser condenado à morte” (Código de Hamurábi).

O fragmento acima permite perceber que a economia da época era, ainda, medida em animais, além do uso de ouro e prata. Esse cenário é bem diferente do de Jesus e de seus discípulos. Tanto a geopolítica como as condições socioculturais do Oriente Médio haviam mudado de modo significativo, ainda que não se possa falar de grandes avanços tecnológicos. E dos tempos bíblicos aos dias de hoje, as mudanças que ocorreram foram profundas em diversos aspectos.

Essas mudanças naturalmente abrem um abismo enorme entre o mundo bíblico e o nosso, entre os códigos comunicacionais do universo bíblico e os nossos. Fazer esse caminho de volta buscando entender esses distintos contextos coloca-se, portanto, como uma tarefa imprescindível da Hermenêutica Bíblica, bem como da Exegese, cada qual ao seu modo.

As palavras no texto bíblico podem ser entendidas como “eventos” históricos, justamente porque entende-se que elas emergem de cenários históricos. E nesses cenários elas podem ter significados diferentes daqueles que elas assumem para nós, hoje. Esse fato histórico-linguístico não é apenas de âmbito semântico, mas vivencial, histórico, social, político e religioso.

Logo, interpretar implica, também, resgatar o sentido de um texto em seu ambiente geracional. A história precede a palavra, e as palavras são o registro de eventos concretos que envolveram pessoas em situações históricas. E isso vale mesmo para textos não narrativos, uma vez que aquele que escreve um texto, seja esse texto de qualquer natureza (narrativo, prosódico, poético, epistolar etc.), envolve elementos do cotidiano de quem escreve e das pessoas mencionadas no texto. E com a Bíblia isso não é diferente.

Nos subtópicos seguintes refletiremos sobre os distanciamentos em Hermenêutica. Podemos ser tentados a considerar a questão dos distanciamentos sempre de modo negativo. Todavia, os distanciamentos são fundamentais. Devem ser considerados não apenas em termos de dificuldades para a compreensão do texto bíblico, mas, também, como distinguidores de realidades muito diferentes das nossas. Isso permite que compreendamos nosso próprio contexto e percebamos os limites necessários na aplicação da mensagem bíblica à nossa própria vida. Com efeito, essa aplicação precisa ser não apenas piedosa e orientada por um desejo sincero de conformar a própria vida ao Evangelho, mas deve ser, também, responsável e pautar-se pela honestidade intelectual em relação ao texto bíblico. Vejamos, então, o que são os distanciamentos e a sua importância.

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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2 O QUE SÃO OS DISTANCIAMENTOS EM HERMENÊUTICA

Os distanciamentos bíblicos ou distanciamentos em Hermenêutica Bíblica são aquelas diferenças existentes entre o contexto do leitor contemporâneo da Bíblia e o contexto ou dos contextos dos quais emerge o texto bíblico. Esses distanciamentos são de diversas naturezas.

O seu estudo é necessário para que se possa compreender melhor as passagens da Bíblia, uma vez que o texto bíblico carrega em si aspectos da vida, do estilo de sociedade, elementos religiosos e outros aspectos daqueles povos dentre os quais os textos bíblicos foram produzidos. Esses distanciamentos demarcam diferenças profundas entre o mundo bíblico e o mundo contemporâneo e por isso mesmo precisam ser cuidadosamente estudados.

A Crítica Textual é uma ciência dedicada a estudar os manuscritos bíblicos, catalogando-os e comparando-os, a fim de identificar um texto que possa ser entendido como primordial. De certo modo, esse trabalho indaga a respeito da “[...] fidelidade desses textos. Se mesmo hoje, com todo o avanço da tecnologia de impressão e digitalização, acontece de um texto original não ser transmitido de maneira fiel, o que dizer dos tempos anteriores à prensa de Gutenberg, onde os documentos eram feitos manualmente?” (COZZER, vol. 1, 2020, p. 352).

FIGURA 2 – FIGURA REPRESENTATIVA DA PRENSA DE GUTENBERG, DO SÉCULO XV

FONTE: <https://shutr.bz/2YyLMy4>. Acesso em 14 ago. 2021.

Esse esforço para “recuperar o original” evidencia os distanciamentos que há entre nós e o texto bíblico, “[...] assim, num certo sentido, os críticos textuais trabalham justamente para ‘recuperar o original’ e diminuir esses distanciamentos, possibilitando ao leitor contemporâneo, séculos depois da produção dos autógrafos, ler o que o autor original de fato quis comunicar” (COZZER, vol. 1, 2020, p. 352).

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TÓPICO 1 — O ABISMO CULTURAL, LITERÁRIO E GRAMATICAL

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Nas Escrituras, encontra-se vários tipos de distanciamentos. Augustus Nicodemus Lopes (2013) indica diversos distanciamentos: o temporal, contextual, cultural, linguístico, autoral, natural, espiritual e moral. Esses distanciamentos podem ser entendidos assim:

• Distanciamento temporal: o leitor contemporâneo distante da Bíblia em termos de tempo. Em outras palavras, os 66 livros bíblicos foram escritos há muito tempo. O último livro do cânone bíblico a ser escrito foi o Apocalipse, tradicionalmente aceito como tendo sido redigido por volta do ano 96 d.C. Os livros do Antigo Testamento estão, naturalmente, ainda mais distantes de nós no tempo e tal fato coloca determinadas dificuldades para a interpretação.

• Distanciamento contextual: as circunstâncias que envolveram a produção do texto escriturístico estão perdidas no tempo. Algumas dessas circunstâncias são perceptíveis, ao menos em parte, ao passo que muitas outras não. Fato é que os contextos em que viveram os autores bíblicos são fundamentalmente diferentes dos nossos contextos hoje.

• Distanciamento cultural: a Bíblia foi escrita em uma cultura muito diferente das contemporâneas. Na verdade, pode-se falar de culturas, no plural, haja vista que a Bíblia foi escrita ao longo de um período muito extenso e naturalmente culturas extinguiram-se e surgiram. As diferenças culturais entre o universo bíblico e o nosso são muito sensíveis. E quando não são consideradas, isso pode dar lugar a más interpretações de perícopes bíblicas ou mesmo de unidades textuais menores.

• Distanciamento linguístico: as línguas bíblicas já não são mais existentes. Elas não existem no sentido de que deixaram de existir tal como eram nos tempos em que os livros bíblicos foram escritos. Hoje se fala de “hebraico bíblico” e “grego bíblico”, mas a forma como esses idiomas se achavam quando os textos bíblicos foram escritos já não existe mais. Essas línguas, assim como outras, mudaram substancialmente ao longo desse período que nos separa do tempo em que esses textos foram produzidos. E esse distanciamento se define não apenas por este fato, mas porque os textos hebraico e grego de que dispomos hoje, em seus milhares de manuscritos, e que servem de base para as diversas traduções existentes, são bem diferentes do nosso idioma, o português, inclusive na grafia.

• Distanciamento autoral: o leitor contemporâneo está distante dos autores bíblicos. (LOPES, 2013). Esses sujeitos históricos tiveram suas vivências, em contextos históricos, sociais e religiosos, e essa experiência naturalmente influiu diretamente em seus textos. A busca pelo autor é um pressuposto fundamental em Hermenêutica Bíblica. Buscar o autor significa identificar um estilo literário, peculiaridades teológicas daquele dado autor e perceber como as suas vivências contribuíram para o texto que ele entregou.

O trabalho hermenêutico consiste, em grande medida, no esforço para diminuir esses distanciamentos sem anulá-los, tendo em vista a sua importância. Procura-se, com isso, aproximar-se o máximo e melhor possível ao que o autor original quis, de fato, comunicar. Para a Igreja, esse interesse não é apenas de natureza literária, mas, também, devocional e ética, uma vez que ela recebe a Bíblia como livro que orienta sua vida, fé e prática.

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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A Igreja procura viver o evangelho que se encontra registrado nas Escrituras. E o correto entendimento do Evangelho, com seus diferentes aspectos, coloca-se, assim, como uma tarefa fundamental e fundante da própria vida de fé, no seguimento de Cristo. Como se pode notar, a Hermenêutica se estabelece como uma disciplina essencial à Teologia e à vida da Igreja.

Temos nos referido à Hermenêutica, seja por escrito ou verbalmente, em palestras e aulas, como uma “disciplina de base” para a Igreja. E tem-se defendido ainda a sua transposição didática para a vida das comunidades de fé, uma vez que muito do que fazemos enquanto igreja depende diretamente do texto bíblico. Nossas músicas, liturgias de culto, pregações e programas de ensino com seus conteúdos emanam na interpretação que fazemos do texto bíblico, seja ela certa ou errada. O reino de Deus, para ser estabelecido entre nós, precisa partir da correta interpretação da mensagem de Deus contida em sua Palavra escrita. Isto mostra a importância de uma disciplina teológica dedicada a ajudar na compreensão adequada da Bíblia.

Na Bíblia, especialmente no livro de Isaías, a ideia de Deus retornando para reinar com seu povo é muito forte. Christopher J. H. Wright (2012), no entanto, comenta que a ideia de Deus retornando ou da promessa de Deus retornar para estar com seu povo, não é exclusiva do livro de Isaías, mas que este “[...] é um tema encontrado em vários momentos, principalmente no período pós-exílio, quando ainda havia a sensação de que, embora o templo houvesse sido reconstruído, o próprio Deus nunca havia realmente posto um fim no exílio, retornando ao seu templo e mantendo todas as grandiosas promessas proféticas” (WRIGHT, 2012, p. 223). Wright prossegue, citando John Dickson, que por sua vez afirma o seguinte:

No cerne da mensagem do evangelho (no Antigo e Novo Testamentos) está a ideia do governo de Deus como rei, em outras palavras, a de seu reino. Quando os primeiros cristãos proclamaram esse evangelho do

Algo muito importante e fundamental que precisa aqui ser destacado é a respeito da importância fundamental dos teólogos para a Igreja do Senhor. Um fato curioso, mas muito real e não tão comentado pelas pessoas, é que teólogos também sofrem com o preconceito das pessoas, nas igrejas. Ainda, ouve-se expressões como “A Teologia esfria o crente”, “Todo teólogo é frio”, “Teologia demais afasta as pessoas de Deus”, dentre outros complexos de ignorância. No vídeo a seguir, é possível refletir justamente sobre o problema do preconceito contra teólogos. Convido você a assisti-lo e depois analisar sobre a necessidade de as igrejas investirem na Teologia e na formação de novos teólogos: COZZER, Roney R. O que eu fiz com a rejeição? | Preconceito contra teólogos. [Vídeo]. Disponível em: https://youtu.be/PIvJx-Nsf1E. Acesso em: 4 set. 2021.

ATENCAO

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TÓPICO 1 — O ABISMO CULTURAL, LITERÁRIO E GRAMATICAL

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reino, eles não estavam copiando o “evangelho” do reinado romano; ao contrário, expunham o Império Romano como uma fraude. Era Deus, e não qualquer rei humano, quem governava sobre tudo. Esse é o tema central do evangelho cristão.Qual é a ideia mais importante que norteia a nossa missão em relação ao mundo? [...] A resposta tem a ver com o monoteísmo (um só Deus) ou, mais precisamente, com o monoteísmo cristológico – o senhorio do único Deus verdadeiro por intermédio de seu Messias. [...] Simplificando e colocando isso em termos práticos, o objetivo da pregação do evangelho – e da divulgação do evangelho – é ajudar o nosso próximo a perceber o reinado e o senhorio de Deus sobre sua vida e a submeter-se a ele.[No entanto] o evangelho cristão não só anuncia o conceito de que “Deus reina”, mas descreve exatamente como esse reinado foi revelado ao mundo [...]; o conteúdo central do evangelho é a obra do rei ungido de Deus, Jesus. Por meio de seu nascimento, seus milagres, seu ensino, sua morte e ressurreição, o reino de Deus foi manifesto (e será consumado mediante seu retorno). Falar o “evangelho”, portanto, envolve falar das obras do Messias Jesus (DICKSON, J. apud WRIGHT, 2012, p. 224).

É interessante considerar esse aspecto do Evangelho, porque podemos perceber que ele possui uma implicação prática. Com isso está se afirmando que a mensagem de boas-novas em Cristo não é apenas assentida intelectualmente, mas experienciada na prática. Essa mensagem implica numa transformação ética e isso pode ser percebido por diversas expressões do Novo Testamento, em Jesus, em João Batista e em Paulo e nos demais apóstolos. Em Romanos 1.5, para citar um exemplo, pode-se ler o seguinte: “Por intermédio de quem [Jesus] viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios” (BÍBLIA, 1993). O apóstolo Tiago afirma que a fé sem as obras está morta (Tg. 1, 14-17) e convida seus leitores à prática da Palavra: “Tornai-vos, pois, praticantes da Palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg. 1, 22).

3 A IMPORTÂNCIA DOS DISTANCIAMENTOS

Os distanciamentos bíblicos são importantes por alguns fatores que precisamos considerar. Em primeiro lugar, pode-se mencionar o fato de que pelos distanciamentos percebe-se as particularidades do mundo bíblico. Se esses distanciamentos não forem considerados de algum modo, as pessoas são tentadas a pensar que os contextos bíblicos são idênticos aos nossos, quando isso não é verdade.

Outro fato que torna os distanciamentos muito importantes é que por eles somos levados a refletir sobre nossa própria realidade. Essa reflexão surge como que por contraste. Algo só pode ser diferente para nós se dispormos de um ponto de referência. Isso aparentemente é algo óbvio de se considerar, mas se trata de uma obviedade para a qual nem sempre atentamos.

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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Nas diferentes comunidades de fé cristãs é muito comum que as pessoas leiam a Bíblia e simplesmente queiram reproduzir em sua própria realidade determinados hábitos e costumes que simplesmente não fazem sentido num contexto como o nosso. Um exemplo interessante a este respeito é a postura de muitas igrejas – ainda! – com relação à figura da mulher. Ainda convivemos com discursos de base machista e patriarcalista, derivados de textos bíblicos que são ambientados em culturas orientadas por esse viés, patriarcal, que se perderam no tempo. A discussão sobre pastorado feminino, por exemplo, muitas vezes traz à tona textos bíblicos para se defender a ideia de que a mulher não pode ser pastora porque não há base bíblica. Todavia, em muitas denominações que se orientam por esse argumento recorrente é sempre comum que a mulher desenvolva uma série de atividades de diferentes naturezas: elas lideram setores menores da igreja local e mesmo setores maiores, dirigem corais e grupos, ensinam, pregam, plantam igrejas, são missionárias, limpam banheiros, cuidam da cozinha e das cantinas e para tudo isso não há qualquer tipo de entrave hermenêutico. Mas pastorear não podem porque “não é bíblico”...

Como podemos perceber, pelo exemplo acima citado, a interpretação da Bíblia também é questão de coerência e honestidade intelectual. Ela precisa primar por princípios hermenêuticos sérios que contribuem diretamente para dar imparcialidade nessa interpretação do texto bíblico. É muito perigoso usar a Palavra de Deus para legitimar nossos dogmas, crenças e costumes. E esses distanciamentos evidenciam que nem sempre o que a Bíblia está de fato comunicando legitima esses dogmas, crenças e costumes. Em alguns momentos, um pastor sério, e um estudioso sério das Escrituras, legitimarão sim esses dogmas, crenças e costumes, mas por outras vias, e não pela violência e truculência com o texto bíblico a fim de ajustá-lo para atender a interesses de natureza dogmático-religiosa.

Tomando-se como exemplo o distanciamento linguístico, o fato anteriormente mencionado fica bem claro. As línguas bíblicas são diferentes do idioma português em diversos aspectos: grafia, sintaxe, morfologia etc. O conhecimento dessas línguas ajuda muito na melhor compreensão da mensagem bíblica. Porém, o conhecimento de outro idioma depende do conhecimento do idioma vernacular e deve-se partir dele. Esse idioma vernacular servirá de aporte e referencial para o conhecimento de outra língua. E disso decorre, também, a importância de se valorizar o próprio idioma.

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FONTE: <https://shutr.bz/3oMPT4L>. Acesso em: 14 ago. 2021.

Um resultado muito positivo de se reduzir os distanciamentos pode ser o de inviabilizar determinados modos de interpretação bíblica que deturpam o sentido real do texto bíblico, como o método alegórico. A fim de exemplificar esse modo de interpretação do texto bíblico, considere a interpretação que Orígenes faz da passagem bíblica da parábola do Bom Samaritano:

O homem que caiu entre os ladrões é Adão. Como Jerusalém representa o céu, assim também Jericó, para onde se dirigia o viajante, representa o mundo. Os dois ladrões são os inimigos do homem, o Diabo e seus serviçais. O sacerdote representa a lei, e os levitas representam os profetas. O bom samaritano é o próprio Cristo. O animal sobre o qual o homem ferido foi colocado é o corpo de Cristo que carrega o Adão caído. A hospedaria é a Igreja; as duas moedas, o Pai e o Filho; e a promessa do samaritano de voltar outra vez é o segundo advento de Cristo (PFEIFFER. HOWARD. REA, 2007, p. 1458).

A despeito de parecer, a princípio, um arranjo bem feito, o fato é que essa é uma interpretação equivocada de um texto bíblico. Outros teólogos como Agostinho e Tertuliano também praticaram esse tipo de interpretação das Escrituras, mas houve outros que rejeitaram a alegorização como forma de interpretação bíblica. Foi o caso dos patriarcas da cidade de Antioquia. Mas o fato é que a alegorização prevaleceu durante muito tempo (PFEIFFER; HOWARD; REA, 2007). Obviamente, essa forma de compreender o Antigo e o Novo Testamentos haveria de refletir, também, na pregação.

Durante a Reforma foram feitos significativos progressos nos estudos bíblicos, que refletiram no entendimento e na interpretação das parábolas. Assim, as alegorias foram, de forma geral, rejeitadas.Se Lutero e Calvino erraram em sua interpretação das parábolas, isso se deve apenas à sua ansiedade de encontrar “A Doutrina da Reforma” em todas as partes das Escrituras, inclusive nas parábolas de Jesus (PFEIFFER; HOWARD; REA, 2007, p. 1458).

FIGURA 3 – O ALFABETO HEBRAICO

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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Pode-se afirmar que esse modo alegorizante de interpretar e pregar as Escrituras, estabelecida por Orígenes, durou então até praticamente o período da Reforma Protestante. Houve renovação na pregação, mesmo antes da Reforma, no século XVI, despertando grande interesse nas pessoas para ouvir sermões, como no século XI e no século XIII, quando a pregação medieval prosperou, com a ajuda das ordens religiosas dos Dominicanos e dos Franciscanos, as duas fundadas como ordens homiléticas, isto é, voltadas à pregação. Todavia, foi durante a Reforma que o modo de interpretar as Escrituras mudou, de fato, e de modo significativo.

E por que a redução dos distanciamentos inibe, de certo modo, interpretações absurdas da Bíblia como no exemplo aqui citado? O que ocorre é que a percepção desses distanciamentos aproxima mais o intérprete do que de fato a Bíblia está dizendo, pois essa redução o aproxima mais do sentido original do texto bíblico e que não cabe nas passagens espiritualização a todo custo e alegorização.

Grandes nomes utilizavam a alegorização como método interpretativo das Escrituras, como Orígenes (185-253/254 d.C., aproximadamente), que foi discípulo de Clemente. Também Agostinho, que introduziu elementos importantes para a interpretação bíblica, mas não deixou de orientar-se pelo método alegórico. Ele valorizava o sentido literal e histórico das Escrituras, mas não deixou de operar pelo método alegórico.

Orígenes, seguindo o método alegórico de Filo de Alexandria, buscou dar ao método uma fundamentação bíblica. Ele declarou que as Escrituras possuíam um sentido triplo: o corpóreo ou carnal, físico e espiritual. Carne corresponderia ao sentido mais óbvio do texto; o sentido físico indicava o entendimento num nível intermediário e, por fim, o sentido espiritual, que corresponderia a um nível mais profundo de compreensão. Para captar essa compreensão mais profunda (espiritual), seria necessária a anagoge (palavra que significa “ascendente”), método que consistia em ascender a alma do nível da carne para o nível espiritual.

Não se pretende aqui desvalorizar a leitura da Bíblia como leitura devocional e teológica. Reconhece-se a necessidade e importância de valorizar a Bíblia como leitura devocional e teológica, tendo nisso um dos motivos para o estudo contínuo da Bíblia Sagrada. Nessa esteira, reflitamos sobre o problema de se considerar a Bíblia unicamente em termos científicos:

Aqui está um ponto muito importante que deve ser considerado por acadêmicos de Teologia que por vezes podem ser tentados a encarar a Bíblia apenas sob uma perspectiva científica, na medida em que vão tendo contato com diferentes perspectivas metodológicas e hermenêuticas quanto ao texto bíblico, ignorando assim o aspecto teológico e devocional da leitura bíblica. Mais do que analisar a Bíblia usando ferramentas exegéticas e as diversas críticas do Método Histórico-Crítico, deve o acadêmico de Teologia reconhecer que o uso desses recursos poderá ser posto como apoio para o melhor entendimento da Bíblia e sua consequente aplicação como Palavra

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FONTE: <https://shutr.bz/3v03mHr>. Acesso em: 15 ago. 2021.

4 COMO DIMINUIR OS DISTANCIAMENTOS

A diminuição dos distanciamentos se dá pela aplicação dos princípios científicos de interpretação da Bíblia oferecidos pela Hermenêutica e pela utilização de ferramentas de pesquisa hermenêutica, como dicionários bíblicos, léxicos, comentários bíblicos, dicionários de língua portuguesa, dicionários teológicos e atlas bíblico. Podem ser mencionados, ainda, os recursos digitais, hoje amplamente utilizados.

Ainda que se reconheça neste trabalho que a interpretação bíblica é arte e não apenas um ato de natureza científica, não se deixa de reconhecer que uma interpretação do texto bíblico ancorada apenas em aspectos psicológicos e emocionais pode ser prejudicial ao real significado do texto.

de Deus para a vida. O aspecto devocional da Bíblia não precisa ser negligenciado mediante o uso de recursos técnicos para o melhor entendimento das Escrituras. Noutras palavras, a Exegese não deve jamais suprimir a leitura teológica das Escrituras. James I. Packer, conhecido teólogo inglês, afirma o seguinte a respeito da leitura teológica da Bíblia: “Ler a Bíblia “teologicamente” significa lê-la com o foco em Deus: seu ser, seu caráter, suas palavras e obras, seu propósito, sua presença, seu poder, suas promessas e seus preceitos” (PACKER, J. I. in: GRUDEM; COLLINS; SCHREINER, 2013, p. 29).

Esse modo de leitura da Bíblia precisa ser respeitado pela Academia teológica e pelos exegetas profissionais, uma vez que vem, ao longo de gerações, alimentando a fé e a práxis de inúmeras comunidades de fé. O estudo dos distanciamentos pode, em certo grau, contribuir para o aprofundamento dessa leitura, afinal, Deus revelou-se na História dos homens e das mulheres que com Ele se relacionaram e cujas histórias encontram registradas na Bíblia. Com efeito, a história precede a Palavra.

FIGURA 4 – LENDO A BÍBLIA

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

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Ainda que se reconheçam os diversos distanciamentos que separam o intérprete atual do autor do texto bíblico, ainda sim essa distância pode ser diminuída por meio do esforço para se aperceber do conteúdo presente naquela dada mensagem bíblica. Mas aqui se nota a necessidade dos recursos científicos da Hermenêutica, uma vez que o olhar pelo viés artístico pode ser embaçado pela sobrecarga de emoção que se pode extrair da leitura do texto. Não por acaso Deus proveu o homem de razão e emoção, mente e coração. É a complementaridade entre a frieza da ciência e o calor da arte que contribuirão diretamente para que se chegue ao sentido do texto bíblico. A visão artística impede que se ignore o elemento estético presente na Bíblia, ao passo que a visão científica não permite que se construam interpretações equivocadas baseadas unicamente em símbolos estilísticos (COZZER, vol. 1, 2020, p. 488).

Como se pode depreender do texto citado, o trabalho interpretativo do texto bíblico requer a conjugação de fatores diversos, como considerar o aspecto artístico e científico da Bíblia. Na medida em que essas diferentes variáveis vão sendo levadas em conta, o texto bíblico vai sendo “descortinado” para o leitor contemporâneo. Diminuir os distanciamentos, portanto, é essencial e constitui uma tarefa essencialmente hermenêutica.

FIGURA 5 – CONJUGAÇÃO DE FATORES

FONTE: <https://shutr.bz/2YHMSrK>. Acesso em: 13 ago. 2021.

Tal pressuposto, contudo, não significa, irrestritamente, que a descoberta do significado pretendido pelo autor seja sempre possível. Ao lidar com a Bíblia, lida-se com um texto milenar, que passou por muitas edições e releituras no decurso de todo esse tempo. Todavia, também não se pode, irrestritamente, concluir que não esteja ali um núcleo central de uma mensagem que foi comunicada pelo autor. E o esforço da Hermenêutica e da Exegese bíblicas é justamente aproximar-se o máximo possível, e de modo responsável, desse sentido pretendido.

O fato de que o texto “perde-se do autor” quando sai de sua mão é reconhecido por importantes teólogos e filósofos. Mais adiante será mencionado o trabalho do filósofo francês Paul Ricoeur, que contribuiu no sentido de demonstrar que o texto escapa ao autor, podendo seu sentido, inclusive, sobrepor-

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se ao sentido pretendido pelo autor quando assumido pelo leitor. Para falar como Ricoeur, “o que o texto significa agora é mais importante do que a intenção do autor quando escreveu” (RICOEUR apud SILVA; KAISER, 2002).

Um fator importante para auxiliar na redução dos distanciamentos é o estudo da própria história da interpretação bíblica. Com efeito, as Ciências Sociais, como também as Ciências Humanas de modo geral, dialogam diretamente com a Hermenêutica e tem nela um caminho metodológico, de certo modo, para produzir seu conhecimento. Com efeito, já foi proposto que a Hermenêutica nem deve ser uma disciplina, ou componente das Ciências Humanas, mas a própria intérprete das Ciências Humanas. Naturalmente, esta Hermenêutica que opera nessa relação com as Ciências não é a Bíblica, mas a filosófica, ainda que a Hermenêutica Bíblica esteja dentro do amplo campo das Ciências Humanas.

Outra razão importante para estudar a história da interpretação é que “um conhecimento da história da interpretação pode ser uma das proteções mais eficazes contra o erro interpretativo” (SILVA; KAISER, 2002, p. 202). Essa visão panorâmica sobre o desenvolvimento histórico da interpretação possibilita, também, notar a evolução e o avanço na compreensão do texto bíblico. Nesse esforço, determinadas convicções são reforçadas e reafirmadas ao longo do tempo, ao passo que outras são abandonadas e algumas relativizadas.

Não se deve deixar de mencionar que os autores do Antigo Testamento, bem antes do primeiro século, utilizam outros textos antigotestamentários. E, claro, deve-se considerar também a tradição oral, que precede a tradição escrita. Num certo sentido, a tradição escrita é resultado da tradição oral. Com efeito, como diria o filósofo francês Paul Ricoeur, a história precede a palavra.

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Neste tópico, você aprendeu que:

• Existe um “abismo” entre o leitor contemporâneo e o texto bíblico e que esse abismo pode dificultar de modo substancial a correta interpretação da Bíblia.

• A Bíblia é um conjunto de textos que foram produzidos em contextos diferentes dos nossos, e que esses contextos vivenciais são chamados de Sitz im leben, o “lugar na vida” dos autores bíblicos, que reflete diretamente no texto bíblico.

• Há diversos tipos de distanciamentos, como o cultural, o linguístico, histórico, religioso e outros; esses distanciamentos precisam ser identificados, considerados e diminuídos pela aplicação de princípios interpretativos oferecidos pela Hermenêutica.

• Os distanciamentos são fundamentais no estudo da Bíblia, pois eles permitem que se note as especificidades do texto bíblico, suas particularidades, bem como os diferentes ambientes geracionais desse rico texto.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 A maioria dos cristãos condicionou-se a ler as Escrituras como um texto que lhe é absolutamente familiar. A Bíblia, em diferentes tradições cristãs, tornou-se um texto-base para a formação religiosa e humana das pessoas. Todavia, há distanciamentos profundos entre ela e o leitor contemporâneo, ocidental e que vive no século 21. Sobre esses distanciamentos, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Esses distanciamentos podem ser diminuídos e devem ser encarados como sendo de muita importância para a interpretação do texto bíblico.

b) ( ) Esses distanciamentos podem ser ignorados pelo leitor e devem ser encarados como sendo de muita importância para a interpretação do texto bíblico.

c) ( ) Esses distanciamentos não podem ser diminuídos, uma vez que a Bíblia é um texto muito antigo, distante de nós muitos séculos.

d) ( ) A diminuição desses distanciamentos pode comprometer o significado real do texto bíblico. Cabe ao hermeneuta não buscar, assim, superá-los.

2 Os distanciamentos bíblicos são aquelas diferenças que existem entre os contextos bíblicos e os contextos que envolvem o leitor contemporâneo da Bíblia. Esses distanciamentos podem ser de natureza cultural, social, religiosa, linguística, dentre outras. Com base na compreensão de que os distanciamentos são importantes para a interpretação bíblica, analise as sentenças a seguir:

I- Os distanciamentos bíblicos devem ser diminuídos pela aplicação de princípios hermenêuticos, mas não ignorados.

II- Os distanciamentos bíblicos acabam por evidenciar a grande semelhança existente entre os contextos bíblicos e o nosso, apesar das pequenas diferenças.

III- Os distanciamentos bíblicos, quando não considerados, comprometem uma compreensão mais responsável do texto bíblico.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

AUTOATIVIDADE

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3 A interpretação da Bíblia não consiste apenas na utilização de princípios científicos do campo da Hermenêutica. Ela é, também, um esforço artístico, no sentido de que exige do intérprete sensibilidade para compreender determinadas passagens bíblicas. Considerando esse fato, classifique com V para as sentenças verdadeiras e com F para as falsas:

( ) A interpretação ancorada apenas em aspectos psicológicos e emocionais compromete o adequado entendimento da mensagem bíblica.

( ) A interpretação ancorada apenas em aspectos científicos compromete o adequado entendimento da mensagem bíblica.

( ) A interpretação é, em essência, um esforço científico e apenas isto.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – F – F.b) ( ) V – V – F.c) ( ) F – V – F.d) ( ) F – F – V.

4 Os distanciamentos bíblicos são aquelas diferenças existentes entre o leitor contemporâneo da Bíblia e o texto bíblico com seus diferentes aspectos, isto é, os aspectos que ele reflete. Esses aspectos são culturais, religiosos, sociais etc. Disserte a respeito de como esses distanciamentos podem ser importantes para a tarefa de interpretação do texto bíblico se eles contribuem para separar o leitor do texto bíblico.

5 Conquanto sejam, reconhecidamente, muito importantes para a interpretação bíblica, isto não significa dizer que eles não representem desafios à tarefa interpretativa das Escrituras. Considerando esse fato a respeito dos distanciamentos, disserte sobre como eles podem ser diminuídos.

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Prezado acadêmico, neste tópico, levaremos em conta as figuras de linguagem presentes no texto bíblico. É claro: não será possível abordar esse assunto tão rico de maneira exaustiva, dada a sua extensão, mas será apresentada uma descrição útil e que lhe instrumentará para poder reconhecer a importância desses recursos literários e identificá-los no texto bíblico.

O entendimento do que são as figuras de linguagem e, em especial, em relação à Bíblia, é muito importante para a Hermenêutica bíblica. A ignorância a respeito desse assunto pode dar lugar a interpretações equivocadas de passagens das Escrituras. E, ainda: deve-se considerar também as suas especificidades. Conquanto figuras de linguagem sejam comuns aos diferentes idiomas, na Bíblia elas estão em uso conectadas ou inseridas em seu ambiente geracional (sitz im leben), ao que se deve dar atenção.

O Professor de Literatura Inglesa da Universidade de Glasgow, W. McNeile Dixon, faz um interessante comentário a respeito da beleza das figuras de linguagem que vale muito considerar aqui:

Se me perguntassem qual foi a maior força utilizada na formação da história [...] eu responderia [...] a linguagem figurada. Os homens vivem pela imaginação; a imaginação governa nossas vidas. A mente humana não é um foro de debates, como querem os filósofos, mas sim uma galeria de arte [...] Elimine as metáforas (ou seja, a linguagem figurada) da Bíblia e seu espírito vivo se dissipará [...] Os profetas, os poetas, os líderes são todos mestres da metáfora, e com ela cativam a alma humana (W. McNeile, DIXON apud: ZUCK, 1994, p. 167).

O texto de McNeile evidencia a importância e a riqueza desse assunto. Zuck (1994, p. 167) comenta, ainda, que a “[...] Bíblia contém centenas de figuras de linguagem. E. W. Bulinger agrupou as figuras de linguagem da Bíblia em mais de 200 categorias e forneceu 8000 exemplos bíblicos, sendo que o sumário ocupou 28 páginas para relacionar as 200 categorias”. Essa enorme presença das figuras de linguagem nas Escrituras justifica um estudo específico, em Hermenêutica, a respeito delas.

TÓPICO 2 —

AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

2 O QUE SÃO AS FIGURAS DE LINGUAGEM NA BÍBLIA

Neste subtópico, discorreremos sobre o que são as figuras de linguagem e sua importância para a interpretação bíblica. As figuras de linguagem são “[...] recursos linguísticos empregados pelo literato para expressar de modo concreto suas ideias, evocando algum tipo de imagem real, comparação, ou de correspondência entre as palavras e pensamento” (BENTHO, 2005, p. 307). Segundo Roy B. Zuck, elas são “[...] formas literárias em que os autores põem de lado intencionalmente determinadas regras gramaticais” (ZUCK, 1994, p. 167-168). As figuras de linguagem também são utilizadas para embelezar e dar vivacidade ao texto:

À guisa de exemplo, e com vistas a tornar prático o que se pretende aqui comunicar, pode ser citado o caso do uso da poesia no Antigo Testamento, que é recorrente e está também para fora dos limites dos “livros poéticos”, propriamente ditos. Os textos poéticos veterotestamentários são de uma beleza ímpar, mas encerram por vezes estruturas literárias complexas e empregam figuras de linguagem que dão vivacidade ao texto de uma forma deslumbrante, como no caso de onomatopéias e apóstrofes. Em Jó 9.26, por exemplo, encontra-se o exemplo de uma onomatopéia onde o som de um verbo hebraico presente na frase imita o som da águia (ou falcão peregrino) no momento em que se lança sobre a presa a uma elevada velocidade (COZZER, vol. 1, 2020, p. 488).

FIGURA 6 – FIGURAS DE LINGUAGEM

FONTE: <https://shutr.bz/3oVvSJd>. Acesso em 16 ago. 2021.

As figuras de linguagem podem ser entendidas como recursos literários, já que suas finalidades são variadas. Elas não têm apenas uma finalidade estética, mas funcional também. Como elemento comum às diversas línguas humanas, elas estão presentes, naturalmente, não apenas na literatura, mas, também, em nosso cotidiano, em nosso idioma, o português. Quem nunca ouviu as expressões a seguir?

• “A chaleira está fervendo”.• “O carro passou voando”.

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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• “Está chovendo canivetes”.• “Morri de rir”.

Note-se já de partida que tentar interpretar figuras de linguagem de modo literal constitui um erro grave. Elas fogem ao sentido literal e operam no campo do figurativo, como se pode perceber nos exemplos acima. Sobre esse cuidado na interpretação de figuras de linguagem, considere a explicação a seguir:

As figuras de linguagem são muito abundantes e quando são conhecidas pelo leitor da Bíblia, esse conhecimento será essencial para a correta compreensão de passagens bíblicas e para se evitar alguns erros comuns na interpretação bíblica. Um exemplo bem popular de um erro dessa natureza é o esforço que muitos fazem para identificar o camelo e a agulha, mencionados por Jesus em Marcos 10.25. Guardando-se as devidas proporções, querer identificar na História bíblica o que seria a agulha e o camelo é como querer explicar em termos literais o sentido da frase “está chovendo canivetes”. O que ocorre é que em Marcos 10.25 encontra-se o uso de uma figura de linguagem chamada hipérbole, que consiste do exagero ou da diminuição de determinadas expressões com vistas a dar ênfase ao que se está procurando comunicar. Simplesmente não faz sentido tentar explicar em termos literais tal frase. Esse esforço simplesmente tiraria o efeito da hipérbole (COZZER, 2021, pp. 48-49).

FIGURA 7 – CAMELO

FONTE: <https://shutr.bz/3oR5oIN>. Acesso em: 14 ago. 2021.

Entender que as figuras de linguagem não devem ser interpretadas literalmente é muito importante para que o texto faça sentido e a interpretação não dê lugar a compreensões absurdas e que não são coerentes com o sentido do texto bíblico. A preocupação da Hermenêutica é sempre no sentido de elucidar o que o texto significa, e isso inclui compreender que mensagem ou ênfase nas figuras de linguagem na Bíblia dão a mensagem bíblica.

Uma pergunta importante que precisa ser feita aqui é a seguinte: por que a Bíblia usa figuras de linguagem? Bentho (2005) apresenta algumas das principais razões para o uso das figuras de linguagem pelos autores bíblicos:

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

• Elas acrescentam cor e vida (cf.: Sl., 18.2).• Chamam a atenção (cf.: Fp., 3.2 e Tg., 3.6).• Concretizam conceitos abstratos ou intelectuais.• Ficam mais bem registradas na memória (cf.: Os., 4.16).• Sintetizam uma ideia – Exemplo: o Salmo 23.• Estimulam a reflexão. Considere os textos de Sl., 52.8 e Is., 1.8.

FIGURA 8 – CLASSIFICAÇÃO

FONTE: <https://shutr.bz/3lCiOGR>. Acesso em: 15 ago. 2021.

As figuras de linguagem também podem ser classificadas. Essa classificação auxilia na percepção dos diferentes tipos de figuras, bem como suas diferentes utilidades. Bentho (2005, p. 307) as classifica da seguinte maneira:

• Figuras de comparação: Símile e Metáfora.• Figuras de dicção: Pleonasmo e Hipérbole.• Figuras de relação: Sinédoque e Metonímia.• Figuras de contraste: Ironia, Parábola, Litote e Eufemismo.• Figuras de índole pessoal: Prosopopeia e apóstrofe.

É fundamental ao estudante da Bíblia a identificação das figuras de linguagem da Bíblia. Embora toda língua possua suas figuras de linguagem, no caso da Bíblia, essas figuras são específicas, até pelo fato de pertencerem aos idiomas bíblicos e estarem ambientadas em contextos históricos, sociais e culturais distantes do nosso. Se lidas sem que isso seja observado, parecerão literais e, em alguns momentos, até absurdas, fazendo com que se perca seu real sentido no contexto da passagem bíblica em que são usadas.

Antes de prosseguirmos analisando as diferentes categorias de figuras de linguagem, é importante destacar também a importância do estudo dos gêneros literários presentes na Bíblia. São dois assuntos que podem ser estudados dentro de um mesmo interesse na Hermenêutica e na Exegese Bíblicas: o estudo das características literárias de determinada perícope e/ou livro da Bíblia.

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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Os gêneros literários são classes ou categorias em que se dividem as obras literárias ou os textos, já que numa mesma obra (ou livro bíblico), podem estar agrupados dois ou mais gêneros literários (o livro de Jó, por exemplo, que tanto possui narrativas como possui textos poéticos). O filósofo grego Aristóteles foi o primeiro a apresentar uma classificação para textos.

Na literatura, os gêneros são vários: narrativa, drama, épico, lírico, fábula, conto, novela, dentre outros. Nos livros bíblicos encontram-se diversos gêneros literários, dos quais podemos mencionar alguns: narrativas, poesia, salmo, crônica, sabedoria (sapiencial), evangelho, Atos, epístola, apocalipse, parábola.

É necessário que se considere cada um desses gêneros no estudo da Bíblia e da Hermenêutica Bíblica. Cada gênero possui as suas especificidades e isso reflete diretamente na forma como o texto é formado e organizado. Conhecer o gênero em que determinado texto está redigido é um passo ou princípio de interpretação bíblica. A própria Constituição Dogmática Dei Verbum, promulgada em 1965 pelo Concílio Vaticano II, afirma categoricamente que para descobrir a intenção dos hagiógrafos, é preciso levar em consideração os “gêneros literários”.

Para alguns hermeneutas, inclusive, a identificação do gênero literário é parte da exegese de perícopes bíblicas. É o caso de Henry A. Virkler (1987) que indica como alguns passos para se fazer uma boa análise léxico-sintática: 1) identificar o gênero literário usado na passagem que se está analisando (prosa, poesia, apocalíptica etc.); 2) investigar o desenvolvendo do tema pelo autor em seu contexto; 3) reconhecer as divisões naturais do texto bíblico (aqui entra o trabalho de segmentação do texto); 4) identificar os conectivos dentro dos parágrafos e sentenças; 5) identificar o significado isolado das palavras; 6) analisar a sintaxe; e 7) transmitir em palavras não técnicas os resultados obtidos de tal pesquisa, tornando-a acessível ao leitor comum (VIRKLER, 1987, p. 73).

Essas formas literárias (gêneros) diversas presentes no texto bíblico possuem suas especificidades que precisam ser conhecidas e identificadas pelo intérprete. A forma como o texto “funciona” difere conforme o gênero. Gordon D. Fee e Douglas Stuart (2011) concordam que “para interpretar o ‘lá e antigamente’ dos textos bíblicos, você não somente precisa saber algumas regras gerais que se

A Constituição Dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina pode ser encontrada no link: www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html.

DICAS

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

aplicam a todas as palavras da Bíblia, como também você deve aprender as regras especiais que se aplicam a cada uma dessas formas literárias (gêneros)” (FEE; STUART, 2011, p. 30).

Quando se afirma que conhecer cada gênero literário significa entender como o texto “funciona”, está se fazendo um esforço didático para demonstrar que um salmo é diferente, por exemplo, de um texto profético. Enquanto num salmo, o padrão é de expressão do autor em direção a Deus, numa profecia o padrão é de expressão de uma mensagem divina aos interlocutores.

[...] A maneira de Deus nos comunicar sua Palavra no “aqui e agora” frequentemente diferirá de uma forma para outra. Por exemplo, precisamos saber como um salmo, uma forma frequentemente direcionada a Deus, funciona como a Palavra de Deus para nós, e como certos salmos diferem de outros, e como todos eles diferem das “leis”, que frequentemente eram destinadas a pessoas em situações culturais que já não mais existem. Como tais “leis” falam conosco, e como diferem das “leis” morais, que sempre são válidas em todas as circunstâncias? Essas são as questões que a dupla natureza da Bíblia nos impõe (FEE; STUART, 2011, p. 30).

A questão dos gêneros literários sinaliza para a importância que tem não apenas o conteúdo dos textos bíblicos, mas também a forma pela qual esse conteúdo é posto, ou, ainda, o estilo pelo qual ele é comunicado. Pode não parecer a princípio, mas a forma como esse conteúdo é colocado influi diretamente na compreensão de sua mensagem.

3 AS FIGURAS DE COMPARAÇÃO E AS DE RELAÇÃO

As figuras de comparação são aquelas que estabelecem algum tipo de comparação e geralmente contribui didaticamente para o entendimento do que se está comunicando. Essas figuras são o símile e a metáfora. Essas duas figuras são muito parecidas, mas com uma diferença importante entre elas.

FIGURA 9 – COMPARAÇÃO

FONTE: <https://bit.ly/3AukN3Z>. Acesso em: 14 ago. 2021.

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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A metáfora é uma comparação em que um elemento imita ou representa outro, quando são essencialmente diferentes. Em João 10.7 e 9, encontra-se uma metáfora na fala de Jesus: “Eu sou a porta”. Note que nesse tipo de figura, o elemento que é comparado confunde-se com o elemento a que se compara. Jesus não diz que é “como uma porta”, mas, sim, que Ele “é a porta”.

No símile, uma figura também muito comum na Bíblia, ocorre que uma coisa lembra outra de maneira explícita. É o caso do texto de 1 Pedro (1.24), em que se lê que “toda a carne é como a erva”, e, ainda, também em Lucas (10.3), em que se lê o seguinte: “Eis que eu vos envio como cordeiros para o meio dos lobos[...]”. O símile utiliza expressões como “assim como”, “tal qual”, “tal como” e “como”.

4 AS FIGURAS DE DICÇÃO

As figuras de dicção são o pleonasmo e a hipérbole. O pleonasmo é uma redundância e emprega vocábulos que, gramaticalmente, seriam desnecessários. Todavia, essa figura assim o faz para dar elegância ao texto e, também, dar ênfase ao que se afirma. Gênesis 40.23 é um bom exemplo de um pleonasmo na Bíblia: “O copeiro-chefe, todavia, não se lembrou de José, porém dele se esqueceu”. A redundância fica clara nesse versículo. Note que a expressão “porém dele se esqueceu” é absolutamente desnecessária, do ponto de vista gramatical, uma vez que é antecedida da expressão “não se lembrou de José”. A presença dessa redundância, contudo, dá ênfase à ideia de que José foi esquecido.

A hipérbole, por sua vez, constitui uma afirmação exagerada em que se diz mais do que o significado literal com o objetivo de dar ênfase, como a que se encontra em João 21.25: “Há, porém, ainda, muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos”.

FIGURA 10 – EXAGERO

FONTE: <https://shutr.bz/3veEjkd>. Acesso em: 14 ago. 2021.

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

A hipérbole constitui uma intensificação da expressão, e que geralmente choca e chama a atenção. Isso acaba por contribuir didaticamente para a comunicação da mensagem, no sentido de que o leitor tem sua atenção voltada ao que está registrado. Essa intensificação ou exagero – deve-se mencionar – é intencional por parte do autor. Ele quer chamar a atenção para algum ensino ou fato em particular. A hipérbole é um recurso estilístico muito utilizado, inclusive, em nossa linguagem cotidiana. Quem nunca falou ou ouviu, por exemplo, a seguinte frase: “Estou morrendo de fome!”

Anteriormente, foi mencionada a necessidade de o leitor da Bíblia saber identificar as figuras de linguagem e como elas funcionam, a fim de evitar interpretações absurdas do texto bíblico. Na pregação, já houve pregadores afirmando que esse texto, de João 21.25, deveria ser entendido literalmente... É difícil acreditar que absurdos como esse sejam afirmados de púlpitos de igrejas e eventos evangélicos, mas infelizmente isso acontece. Isso também mostra a necessidade de boa interpretação bíblica.

5 AS FIGURAS DE CONTRASTE

As figuras de contraste são aquelas que estabelecem algum tipo de contraste de ideias. A ironia, parábola, litote e eufemismo são figuras de contraste.

A ironia consiste em expressar-se o contrário do que se está dizendo ou afirmando, como em Gênesis 3.22. Também se encontra outro exemplo de ironia em 1 Reis 19.4, em que se pode ler: “Ele mesmo, porém, se foi ao deserto, caminho de um dia, e veio, e se assentou debaixo de um zimbro; e pediu para si a morte e disse: Basta; toma agora, ó Senhor, a minha alma, pois não sou melhor do que meus pais”. A ironia é a expressão “pois não sou melhor do que meus pais”. O profeta Elias estava, na verdade, afirmando que ele era melhor que seus pais.

A ironia, assim como outras figuras de linguagem, também chama a atenção. Ela pode ser usada com sentido de sarcasmo ou expressando o ridículo. Um exemplo interessante encontra-se em 2 Samuel 6.20, em que se pode ler a ironia empregada pela esposa do rei Davi, Mical, após ele ter dançado perante a nação: “Quando Davi regressou para abençoar a sua casa, Mical, filha de Saul, saiu ao seu encontro e lhe disse: — Que bela figura fez o rei de Israel no dia de hoje, descobrindo-se diante das servas de seus servos, como se descobre um sem-vergonha qualquer!” (BÍBLIA, 1993, 2 Samuel 6.20).

A parábola consiste em comparar por meio de narrativas. Significa “pôr ao lado”. As parábolas tanto elucidam como, também, ocultam dos ouvintes, em algumas ocasiões, o sentido real contido na mensagem. Como recurso didático, foram amplamente utilizadas por Jesus.

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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Uma parábola é uma história baseada em fatos do cotidiano com o objetivo de ilustrar ou aclarar uma verdade. Apesar de ter base plausível, ela pode não ter realmente ocorrido com todos os detalhes como foi apresentada. Os acontecimentos históricos podem servir de ilustrações, mas as parábolas são histórias especiais, não necessariamente fatos históricos, contadas para ensinar certa verdade. Como se baseiam na realidade, diferem das alegorias e das fábulas [...] (ZUCK, 1994, p. 225).

A palavra “parábola” tem origem no termo grego parabolé e significa “colocar uma coisa ao lado da outra; comparação”. A parábola é uma narrativa alegórica constituída de personagens, elementos do cotidiano das pessoas no tempo de Jesus, incidentes e atitudes que, através de comparações, auxilia diretamente na compreensão de assuntos que se acham além do entendimento do ouvinte (ou do leitor). A seguir, as 44 parábolas de Jesus registradas nos Evangelhos, listadas em ordem alfabética:

1. O administrador desonesto (Lc., 16.1-9). 2. O amigo importuno (Lc., 11. 5-8).3. As bodas (Mt., 22.1-14).4. O bom samaritano (Lc., 10. 29-37). 5. A casa vazia (Mt., 12. 43-45). 6. Coisas novas e velhas (Mt., 13. 51-52). 7. O construtor de uma torre (Lc., 14. 28-30). 8. O credor incompassivo (Mt., 18. 23-35). 9. O dever dos servos (Lc., 17. 7-10). 10. As dez virgens (Mt., 25.1-13). 11. Os dois alicerces (Mt., 7. 24-27). 12. Os dois devedores (Lc., 7. 40-43). 13. Os dois filhos (Mt., 21. 28-32). 14. A dracma perdida (Lc., 15. 8-10). 15. O fariseu e o publicano (Lc., 18. 9-14). 16. O fermento (Mt., 13. 33). 17. A figueira (Mt., 24. 32-33). 18. A figueira estéril (Lc., 13. 6-9). 19. O filho pródigo (Lc., 15. 11-32). 20. A grande ceia (Lc., 14. 15-24). 21. Jejum e casamento (Lc., 5. 33-35). 22. O joio (Mt., 13. 24-30, 36-43).23. O juiz iníquo (Lc., 18. 1-8). 24. Os lavradores maus (Mt., 21. 33-46). 25. Os meninos na praça (Mt., 11. 16-19). 26. A ovelha perdida (Lc., 15. 3-7). 27. O pai vigilante (Mt., 24. 42-44). 28. A pedra rejeitada (Mt., 21. 42-44). 29. A pérola (Mt., 13. 45-46). 30. Os primeiros lugares (Lc., 14. 7-11). 31. A rede (Mt., 13. 47-50). 32. O rei que vai para a guerra (Lc., 14. 31-32).

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

33. O remendo com pano novo (Lc., 5. 36). 34. O rico e Lázaro (Lc., 16. 19-31 – embora neste trabalho não consideremos esta

passagem uma parábola). 35. O rico sem juízo (Lc., 12. 16-21). 36. O semeador (Mt., 13. 3-9, 18-23). 37. A semente (Mc., 4. 26-29). 38. A semente de mostarda (Mt., 13. 31-32). 39. O servo fiel (Mt., 24. 45-51). 40. Os servos vigilantes (Mc., 13. 33-37). 41. Os talentos (Mt., 25. 14-30). 42. O tesouro escondido (Mt., 13. 44). 43. Os trabalhadores da vinha (Mt., 20. 1-16).44. O vinho e os odres (Lc., 5. 37).

O litote consiste em não expressar diretamente o que se pensa, ou então negar o contrário daquilo que se quer afirmar, conforme explica Bentho (2005, p. 324). A expressão “não muito depois desses dias”, em Atos 1.5, é um litote.

Kaiser e Silva (2002) assim se expressam sobre litotes:

Litotes são uma forma de declaração incompleta que afirma algo ao negar seu contrário. Assim, por exemplo, Paulo asseverou em Atos 21.39: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia”. Abraão menosprezou a si mesmo, ele que era só “pós e cinzas” (Gênesis 18.27), a fim de aumentar a grandeza de Deus (SILVA; KAISER JR., 2002, p. 93).

O eufemismo consiste em abrandar a força de determinadas expressões. A palavra “dormem” em 1 Tessalonicenses 4.13 é eufemismo para aqueles que haviam morrido. Ocorre que as vezes as frases/expressões soam realmente muito duras e impactantes, sendo então colocadas de modo mais suave por meio do eufemismo. Em nosso idioma encontramos diversos eufemismos como “gordinho” para gordo, por exemplo. Enquanto “gordo” soa ofensivo, “gordinho” soa mais afetivo.

O exemplo anteriormente citado, de 1 Tessalonicenses 4.13, que emprega a palavra “dormir” em lugar de “morreram”, como eufemismo, nos leva novamente à questão da importância de se identificar as figuras de linguagem no processo interpretativo a fim de se evitar compreensões equivocadas do texto bíblico. Esse texto tem sido usado para se defender a doutrina do sono da alma, que afirma que as pessoas, depois que morrem, entram numa espécie de sono, um estado de inconsciência, contrariando, assim, a crença predominante no Cristianismo que há pleno estado de consciência após a morte.

Comentando esse texto de 1 Tessalonicenses 4.13, Norman L. Geisler e Ron Rhodes (2006) informam que há ocorrências de textos na Bíblia que referem aos mortos como estando adormecidos, e que a partir deles, alguns grupos religiosos

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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como os adventistas do sétimo dia concluem que a alma da pessoa que morre não fica em estado de consciência no período entre a morte e a ressurreição. Todavia, refutando esse ensino, os mesmos autores prosseguem explicando o seguinte:

As almas tanto dos crentes como dos incrédulos estão conscientes no período entre a morte e a ressurreição. Os incrédulos estão em tormento consciente (veja Marcos 9.43-48; Lucas 16.22,23; Apocalipse 19.20), e os crentes estão em gozo consciente (Filipenses 1.23). “Dormir” é referência ao corpo físico, e não à alma. O sono é uma figura de linguagem apropriada para representar a morte do corpo, uma vez que a morte é temporária até a ressurreição – ocasião em que o corpo “despertará” (GEISLER; RHODES, 2006, p. 433-434).

Com efeito, no que tange à condição do indivíduo depois da morte, há vários textos bíblicos que evidenciam estado de consciência, e não de inconsciência ou como que estando numa espécie de sono. Moisés, a respeito de quem a Bíblia afirma ter falecido, aparece consciente no monte da transfiguração junto a Jesus e a Elias (Mateus 17.3). Jesus, na cruz, momentos antes de falecer, entrega seu espírito ao Pai (Lucas 23.46), dando a entender justamente estado de consciência após a sua morte. Paulo afirma, em 2 Coríntios 5.8, que quando deixamos esse corpo, habitamos com o Senhor. Esses, e outros exemplos, podem ser elencados para evidenciar que a alma continua consciente no pós-morte.

6 AS FIGURAS DE ÍNDOLE PESSOAL

As figuras de índole pessoal são a apóstrofe e a prosopopeia. A apóstrofe consiste em uma interrupção do discurso com o intuito de dirigir-se a uma pessoa ou coisa personificada, como acontece no Salmo 114.5,6: “Que tens, ó mar, que assim foges? E tu, Jordão, para tornares atrás? Montes, por que saltais como carneiros? E vós, colinas, como cordeiros do rebanho?”. Se você ler o verso quatro, ele não se dirige a elementos inanimados, mas no verso cinco, aqui citado, o autor dá uma guinada no texto e passa a falar com esses elementos como personificados.

FIGURA 11 – APÓSTROFE

FONTE: <https://shutr.bz/3asIr6q>. Acesso em 14 ago. 2021.

A prosopopeia, por sua vez, implica na personificação de seres inanimados, como ocorre em Isaías 44.23: “Regozijai-vos, ó céus, porque o Senhor fez isso; exultai, vós, ó profundezas da terra; retumbai com júbilo, vós, montes,

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

vós, bosques e todas as suas árvores, porque o Senhor remiu a Jacó e se glorificou em Israel”. Note-se que esses elementos da natureza são apresentados com características e sentimentos humanos, como se fossem pessoas.

7 OS HEBRAÍSMOS

Os hebraísmos são expressões exclusivas da língua hebraica, que surgem, em grande medida, dos contextos vivenciais dos autores bíblicos, contextos esses marcados por uma forma de vida campestre e com a presença constante de animais diversos. Os hermeneutas Eric Lund e P. C. Nelson (2006, p. 142) entendem que os hebraísmos são “[...] certas expressões e construções peculiares do idioma hebreu que ocorrem em nossas traduções da Bíblia [...]”.

FIGURA 12 – MANUSCRITO

FONTE: <https://shutr.bz/3oSFzbw>. Acesso em: 13 ago. 2021.

Bentho (2005) destaca a necessidade de se conhecer o ambiente cultural em que os textos bíblicos são produzidos, a fim de que se possa entender adequadamente os hebraísmos:

Para que haja uma compreensão adequada das Escrituras, é necessário uma compenetração e empatia com a cultura hebraica. Os hagiógrafos deixaram registrados nas Escrituras os matizes culturais e formas próprias de expressão semita que nos causam estranheza à primeira vista. São frases recheadas de figuras selváticas e campestres, todas retiradas da observação do ambiente que cercava os escritores sacros.[...] Hebraísmos são determinadas expressões idiomáticas encontradas nas Escrituras, que registram a forma de comunicação específica dos judeus. São idiotismos familiares à cultura hebraica de então, desconhecida do exegeta e que não podem ser determinadas a priori, mas somente através de um estudo consciencioso (BENTHO, 2005, pp. 209-211).

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TÓPICO 2 — AS FIGURAS DE LINGUAGEM

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Os hebraísmos preservam um pouco da mentalidade dos hebreus dos tempos bíblicos e a sua forma de compreender temas como a vida, a religião, a família, dentre outros. E diversos hebraísmos são incorporados no texto grego do Novo Testamento, o que deve ser lembrado aqui. Seguem alguns exemplos de hebraísmos:

• No Salmo 108.9, pode-se ler: “[...] sobre Edom atirarei a minha sandália [...]”; Bentho (2005) explica que neste “[...] texto, ‘lançar a sandália’ refere-se ao ato de tomar posse de alguma coisa ou dominar sobre algo” (BENTHO, 2005, p. 211).

• “Filhos de iniquidade”, ou “filhos da perversidade”, em 1 Crônicas 17.9.• “Cálice de salvação”, no Salmo 116.12,13; a palavra “cálice” aqui significa

“sorte admirável de assistência divina”.• “Pedra de escândalo” ou “pedra de tropeço”, em Isaías 8.14, como referência

a uma pessoa que é motivo ou ocasião de escândalo, de pecado.

Acontece de alguns hebraísmos não serem reconhecidos como tal, em língua portuguesa, e isso contribui para má interpretação. Um exemplo interessante é a expressão “espírito de vida” ou “sopro de vida” que aparece em Gênesis 6.17 e é repetida em Apocalipse 11.11 (na expressão grega πνεῦμα ζωῆς). Também a expressão “pedra de escândalo”, acima citada, é outro exemplo que ocorre no Novo Testamento, nos textos de Romanos (9. 33) e 1 Pedro (2. 8) (COZZER, vol. 1, 2020).

Para maior aprofundamento do estudo sobre hebraísmos, recomenda-se a seguinte leitura: LUND, E.; NELSON, P. C. Hermenêutica: princípios de interpretação das Sagradas Escrituras. 2. ed. São Paulo: Vida, 2006.

DICAS

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RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• As figuras de linguagem estão presentes na Bíblia em abundância e são muito importantes para a interpretação da mensagem bíblica.

• As figuras de linguagem são recursos literários que são empregados no texto com vistas a enriquecê-lo, tornar mais claras as suas ideias e dar mais vivacidade ao texto bíblico.

• Há razões importantes que justificam o uso das figuras da linguagem, a saber: Elas acrescentam cor e vida; chamam a atenção; concretizam conceitos abstratos ou intelectuais; ficam mais bem registradas na memória; sintetizam uma ideia e estimulam a reflexão.

• As figuras de linguagem podem ser classificadas em Figuras de comparação: Símile e Metáfora; figuras de dicção: Pleonasmo e Hipérbole; figuras de relação: Sinédoque e Metonímia; figuras de contraste: Ironia, Parábola, Litote e Eufemismo; e figuras de índole pessoal: Prosopopeia e Apóstrofe.

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1 As figuras de linguagem são recursos literários muito presentes no texto bíblico. Elas são recursos literários que dão vida e cor ao texto bíblico e ajudam no sentido de fixar ideias, comparar e dar ênfase a determinadas afirmações e verdades. Dito isso, assinale a seguir a alternativa CORRETA:

a) ( ) As figuras de linguagem estão muito presentes na Bíblia, e o conhecimento delas contribui significativamente para a melhor interpretação da mensagem da Bíblia.

b) ( ) O conhecimento dessas figuras de linguagem está mais para o campo da Linguística e não contribui de modo significativo para a interpretação da mensagem da Bíblia.

c) ( ) O conhecimento das figuras de linguagem não mantém qualquer relação com a possibilidade de se evitar interpretações equivocadas ou mesmo absurdas em torno do texto bíblico.

d) ( ) O conhecimento desses recursos literários se dá apenas no aspecto gramatical, não no que se refere ao pano de fundo histórico, social e cultural dos diferentes contextos bíblicos.

2 As figuras de linguagem podem ser classificadas, o que ajuda a entender a sua utilização e a finalidade de seu uso na Bíblia. Dito isso, analise as sentenças a seguir:

I- Símile e metáfora são figuras de dicção.II- Símile e metáfora são figuras de comparação.III- Ironia e parábola são figuras de contraste.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As sentenças I e II estão corretas.b) ( ) As sentenças II e III estão corretas.c) ( ) As sentenças I e III estão corretas.d) ( ) Somente a sentença II está correta.

3 As figuras de linguagem têm uma utilidade no texto bíblico. São usadas com finalidades específicas. Dito isso, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas:

( ) As figuras de linguagem acrescentam cor e vida ao texto bíblico.( ) As figuras de linguagem acrescentam cor e vida ao texto bíblico.( ) As figuras de linguagem sintetizam uma ideia.

AUTOATIVIDADE

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Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:

a) ( ) V – V – V.b) ( ) V – V – F.c) ( ) F – V – F.d) ( ) V – F – V.

4 O entendimento do que são as figuras de linguagem contribui diretamente para a melhor interpretação bíblica. Elas cumprem determinadas funções em relação ao texto e entender essas funções ajuda, também, a perceber a finalidade do seu uso. Dito isso, discorra a seguir sobre o que justifica o uso de figuras de linguagem no texto bíblico.

5 As figuras de linguagem de comparação são o símile e a metáfora. As duas são muito parecidas, mas com uma diferença importante. Discorra a seguir sobre o que diferencia uma figura da outra.

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UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, neste tópico, precisamos considerar o que vem a ser a Pós-Modernidade, para assim podermos considerar a Hermenêutica nesta conjuntura histórica. Essa pode parecer uma tarefa óbvia e fácil de ser realizada, mas constitui um grande desafio conceituar a Pós-Modernidade. O entendimento do que é a Pós-Modernidade é muito importante, inclusive, para o diálogo com determinadas disciplinas teológicas, como a própria Hermenêutica, a Homilética, a Poimênica, dentre outras. A Teologia deve ser contextualizada, deve pisar o “chão da vida”, e daí decorre a necessidade de se entender o que é a Pós-Modernidade e como ela incide sobre as nossas vidas e sobre a reflexão teológica.

Todavia, é claro que essa correlação entre disciplinas é muito recorrente na Teologia, e ela deve de fato acontecer. O conhecimento, especialmente nos dias de hoje, não pode operar de modo fragmentário e exclusivamente disciplinar. Esse diálogo entre as disciplinas é fundamental e absolutamente necessário.

FIGURA 13 – PÓS-MODERNIDADE

FONTE: <https://shutr.bz/3oPjjPz>. Acesso em 15 ago. 2021.

Neste trabalho, a Pós-Modernidade tanto é entendida como uma época que sucede, mas não supera totalmente, a Modernidade, como também constitui uma espécie de ideologia (o pós-modernismo). Essa ideologia supervaloriza tendências e práticas comuns, na realidade ocidental, hoje, como o consumismo, por exemplo.

TÓPICO 3 —

A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

Elizabeth Gomes (2010, p. 72) comenta que “[...] hoje, o desejo de consumo é considerado como de grande importância. É dado imprescindível na máquina que move o mercado. O grande prazer da maioria dos brasileiros é passear no shopping e comprar”. A mesma autora reconhece que somos “[...] seduzidos pelo prazer de consumir, de comprar, não por causa de uma necessidade verdadeira, mas de uma necessidade percebida, presumida – e pelo simples prazer”.

Esse consumismo exacerbado, que também acaba por “consumir” as pessoas que o praticam, é uma das variadas características da Pós-Modernidade. Há várias outras características da Pós-Modernidade que permitem entendê-la um pouco melhor, apesar de sua complexidade. E tão complexo é o assunto que não há unanimidade entre os estudiosos, até mesmo quanto ao uso do termo “Pós-Modernidade”.

Diversos teóricos vêm dando sua contribuição para explicar a Pós-Modernidade, dentre eles alguns que se tornaram notáveis, como o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), com o seu conhecido conceito de “modernidade líquida”. Bauman usa a ideia de “Pós-Modernidade” inicialmente, mas depois desenvolve o conceito de modernidade líquida, que servirá de base para diversas obras suas.

FIGURA 14 – ZYGMUNT BAUMAN, SOCIÓLOGO

FONTE: <https://shutr.bz/3FD3y47>. Acesso em: 15 ago. 2021.

O que Bauman busca comunicar com seu conceito de modernidade líquida é que o tempo atual é marcado por uma fragilização, uma liquefação e pelo esfacelamento de relações e estruturas, outrora seguras, estáveis, firmes. Tudo hoje está “derretendo”: a família, o casamento, as estruturas sociais, a política e até o próprio Estado...

O educador Edgar Morin reconhece que a situação atual da humanidade é desafiadora. Para ele, a “situação é paradoxal sobre a nossa Terra. As interdependências multiplicaram-se. A consciência de ser solidários com a vida e

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TÓPICO 3 — A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

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a morte, de agora em diante, une os humanos uns aos outros”. Morin prossegue e afirma que a “[...] comunicação triunfa, o planeta é atravessado por redes, fax, telefones celulares, modems, internet. Entretanto, a incompreensão permanece geral. Sem dúvida, há importantes e múltiplos progressos da compreensão, mas o avanço da incompreensão parece ainda maior [...]” (MORIN, 2000, p. 93).

Porém, a proposta de Bauman é uma dentre outras. E há outras expressões que buscam definir nosso tempo. Uns preferem “Modernidade Tardia”, e há os que chegam a dizer que nem “pós”, nem “hiper” e nenhuma outra nomenclatura seria possível. O Doutor em Ciências Humanas Luiz Roberto Benedetti, por sua vez, afirma o seguinte:

Não há nada mais ambíguo do que o termo Pós-modernidade. Expressão usada a torto e a direito, no pressuposto de que o interlocutor participe de um mundo comum no interior do qual a linguagem adquire significado. Essa ambiguidade constitui, entretanto, a sua marca. Ela é o pós-moderno da Modernidade: indefinível, fluido e inconsciente.Ninguém ousa definir a Pós-modernidade. A tentativa de definição é, por si só, uma atitude que contraria seus cânones (se é que existem). Situá-la no espaço e no tempo segundo características marcantes é a única atitude plausível [...]. (BENEDETTI apud TRASFERETTI; GONÇALVES, 2003, p. 53, grifo nosso).

Com efeito, diversas são as marcas da Pós-Modernidade, como o consumismo exacerbado mencionado anteriormente. Também a ênfase na relatividade moral e conceitual; a decadência moral e a profunda quebra de valores e de paradigmas que orientaram a sociedade durante séculos; o individualismo e o hedonismo como parâmetros de orientação pessoal e para as relações humanas, dentre outras, são marcas definidoras da Pós-Modernidade.

Essa marca do pós-modernismo, sem dúvida, é devastadora para o homem. Dentro da hermenêutica, tem-se que somente o evangelho poderá, de fato, modificar o homem para melhor, é o evangelho do Senhor Jesus. Wright afirma que a aceitação do Evangelho, por uma pessoa, provoca uma mudança radical. Ele afirma:

[…] Uma mudança radical de vida acompanha a fé e as boas-novas. O arrependimento e a fé não podem ser separados. Quando o povo perguntou a João Batista o que ele entendia por arrependimento, esse profeta foi implacavelmente prático (Lucas 3.7-14). Paulo concorda com ele. O evangelho envolve despir a roupa imunda do velho homem e vestir as roupas que trazem o aroma da semelhança com Cristo. Na verdade, Paulo usa exatamente as mesmas palavras: “novo homem” (kainos anthropos), tanto para a união de judeus e gentios na nova família de Deus, única e multinacional, quanto para o novo modo de vida que essa comunidade deve demonstrar (Efésios 4.24). (WRIGHT, 2012, p. 231).

Outra característica interessante dessa era é o que Antonio Cruz (1996) denominou como “retorno ao sentimento”. Ele realça o fato de que a Pós-Modernidade rompeu drasticamente com o racionalismo da Modernidade. Há

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um retorno ou mesmo uma idolatria do sentimento, o que pode ser notado em algumas práticas que são até mesmo incoerentes e irracionais, mas praticadas pelas pessoas em larga escala a fim de atender seus próprios desejos.

Todavia, o que todo esse conjunto de características da Pós-Modernidade tem a ver com a tarefa interpretativa das Escrituras? Naturalmente, a forma de se ler e interpretar a Bíblia nessa conjuntura também sofreu revisões. Um dos impactos diretos da Pós-Modernidade sobre a interpretação bíblica foi a ênfase que ela deu ao leitor contemporâneo, provocando uma espécie de deslocamento do foco hermenêutico do autor para o leitor pós-moderno.

Por mais que atualmente haja uma forte tendência de se atribuir o sentido do texto ao leitor e não mais ao autor, na Exegese Bíblica clássica a busca recai sobre os autores bíblicos e em como seus leitores primários receberam esses textos. Essa tendência de se atribuir o sentido do texto ao leitor e não ao autor está presente nas hermenêuticas pós-modernas, grandemente influenciadas pelo método de Jacques Derrida. Cumpre, perguntar, todavia, se o mesmo método de Derrida - o Desconstrutivismo - for aplicado ao Desconstrutivismo, o Desconstrutivismo sobreviverá? Esta pergunta é importante para que seja avaliado se essa tendência nas hermenêuticas pós-modernas é de todo segura e até mesmo viável (COZZER, vol. 1, 2020, p. 359).

Naturalmente, a teoria de Derrida, como tantas outras pode e deve ser questionada. Toda proposta teórica possui seus limites e necessita, inclusive, ser reformulada em determinados aspectos. E não se está aqui negando, em absoluto, que Derrida esteja certo em alguma medida quanto aos pressupostos que apresenta ou que ofereça contribuições importantes ao pensamento. E ainda: não se está negando aqui que o leitor possua importância no processo interpretativo. Com efeito, nem todos os pressupostos pós-modernos devem ser encarados em termos negativos.

FIGURA 15 – LEITORA

FONTE: <http://galeria.dtcom.com.br/picture.php?/6564/search/298>. Acesso em 15 ago. 2021.

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A valorização que se dá ao leitor contemporâneo do texto bíblico, pelas diferentes hermenêuticas pós-modernas, é positiva em certa medida. Porém, é fato também que as ideologias presentes na Pós-modernidade recaíram sobre a Hermenêutica, em certa medida, de modo negativo. Um olhar mais atento permitirá ao estudante perceber isso. Essa tendência de relativizar tudo, de remover o sentido daquilo que antes era firme e seguro e a particularização cada vez maior da cosmovisão (maneira de olhar o mundo) de alguma forma também podem ser vistas nas Hermenêuticas pós-modernas. O texto por vezes é usado na verdade para legitimar militâncias pessoais, o que leva a um engajamento que não é hermenêutico em essência, mas eisegético. Aqui, é preciso sim buscar contribuições das Hermenêuticas pós-modernas, mas considerando a necessidade de ter cuidados.

2 HERMENÊUTICAS PÓS-MODERNAS

Nem tudo que se refere à Pós-Modernidade necessariamente é negativo. As hermenêuticas pós-modernas podem ter um viés positivo quando se consideram as seguintes características:

• Sua valorização do leitor contemporâneo e do seu tópos (grego) ou sitz im leben (alemão). A Exegese e a Hermenêutica tradicionais valorizam muito o sitz im leben do hagiógrafo sagrado – o que é fundamental! – mas muito pouco ou quase nada falam sobre o leitor contemporâneo que se debruça sobre este texto.

• Seu foco em determinados anseios que subjazem na ênfase que dão a determinados temas. Por exemplo, a hermenêutica feminista que busca valorizar o papel da mulher no plano salvífico; a hermenêutica da Teologia da Libertação que valoriza o pobre etc.

Na esteira dessa reflexão sobre Hermenêutica e Pós-Modernidade, deve-se mencionar que Jesus foi um homem de seu tempo, e que falou a pessoas de seu tempo. A Teologia Cristã tem diante de si o desafio de contextualizar-se sem descaracterizar-se. Ela é cristã, não geral ou secular, mas é direcionada a pessoas inseridas num contexto geral e secular, mesmo que essas sejam cristãs. Se, enquanto teólogos e teólogas, negligenciamos ou nos fechamos ao nosso tempo, jamais teremos condições de falar ao homem pós-moderno.

É preciso equilibrar a questão da relação da Igreja com a cultura vigente. Vale considerar aqui as seguintes palavras: “A Igreja sempre teve de confrontar sua cultura e existir em tensão com o mundo. Ignorar a cultura é arriscar-se à irrelevância; aceitar a cultura sem críticas é arriscar-se ao sincretismo e à infidelidade” (VEITH JR, 2021c). A Igreja do Senhor é depositária de valores perenes como o valor à vida, à família, à verdade e a dignidade humana. Ela é “coluna e firmeza da verdade”, como podemos ler em 1 Timóteo 3.15.

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A Igreja não é ou não deve ser uma espécie de grupo separatista que se isola da sociedade. Ela é a própria sociedade e só será realmente capaz de falar ao mundo se falar com ele. Em dias difíceis e incertos, permanece viva a fé, que de uma vez por todas foi dada aos santos (Judas 1.3). Como cristãos, não devemos nos entregar a esse pessimismo corrosivo de drena o ânimo das pessoas, mas seguir em frente, confiando N’aquele que é Senhor dos céus e da terra. E, nesse sentido, a boa interpretação da Bíblia, feita com responsabilidade, seguindo princípios hermenêuticos, haverá de contribuir no sentido de fortalecer o desenvolvimento dessa missão.

Alguns autores cristãos, no entanto, parecem encarar apenas aspectos negativos na influência da Pós-Modernidade sobre o texto bíblico. Lopes (2013) vê como consequências das influências do pós-modernismo na interpretação bíblica contemporânea os seguintes aspectos:

• O abandono dos métodos críticos para a reconstrução do processo histórico de formação de textos, esforço típico do Método Histórico-Gramatical, para dar lugar a uma interpretação centrada no leitor contemporâneo.

• Abertura a uma pluralidade de interpretações em lugar de uma interpretação única.

• O abandono do esforço no sentido de resgatar o sentido original da passagem bíblica.

• Ceticismo quanto à possibilidade de se chegar ao sentido pretendido pelo autor do texto bíblico.

• Ocorre uma busca do sentido das passagens bíblicas numa relação direta com o leitor, em detrimento de uma busca pelo sentido do texto no autor, sua intenção autoral (LOPES, 2013).

3 HERMENÊUTICA E O AUTOR

Um dos pressupostos fundamentais da Hermenêutica é o autor do texto bíblico, o hagiógrafo sagrado. Identificar o autor do texto não apenas como um nome perdido na história, mas reconhecendo suas demandas, características, peculiaridades, modo de escrever (estilo literário), dentre outros elementos relativos a ele, é um passo indispensável na tarefa da interpretação bíblica.

Cada autor bíblico, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo, possui suas particularidades e especificidades. E mesmo se seguirmos no trilho do Método Histórico-Crítico que não afirma categoricamente a identidade dos autores dos textos bíblicos, reconhecendo diversas autorias como fruto de pseudonímia, fato é que autores trabalharam esses textos e deixaram ali seus traços autorais.

Desse modo, é possível identificar elementos comuns nos estilos literários presentes nos diferentes livros da Bíblia. E a relação que se estabelece com a “biografia” dos autores ajuda a clarear o sentido do texto bíblico. Por exemplo,

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quando se conhece a história da vida do apóstolo Paulo, tal como descrita em Atos dos Apóstolos e em outras partes do Novo Testamento, a vivacidade com que Gálatas se apresenta ganha mais sentido. Só para citar um exemplo do Corpus paulinum...

Tanto os autores propriamente ditos dos livros bíblicos como aqueles editores anônimos que trabalharam o texto a posteriori impingiram nele suas características e intencionalidade. No esforço hermenêutico, isto é, na busca pelo sentido do texto, deve-se sempre levantar algumas indagações que podem ser consideradas fundamentais: Por que este autor registrou este fato? Por que ele afirmou isto? Para quem? Em que circunstância? Qual a sua teologia? O que pretende ensinar?

Como se pode concluir, a Hermenêutica não é ciência apenas do texto, mas também a pesquisa sobre os eventos e pessoas históricos que produziram esse mesmo texto. Com efeito, é um trabalho de “juntar peças”. Requer cuidado e dedicação, bem como o uso de ferramentas adequadas.

4 HERMENÊUTICA E O LEITOR CONTEMPORÂNEO

Identificar o leitor contemporâneo em suas demandas e cosmovisão, pois isso sem dúvida afetará a maneira como se interpreta (eisegese) o texto bíblico. O leitor é muito importante no processo interpretativo e diversos autores fundamentais em Hermenêutica e Filosofia destacaram a sua importância, como é o caso do filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005).

Uma vez que os textos foram escritos, seus significados não são mais determinados pela compreensão que os leitores originais tinham desses mesmos textos. Cada público subsequente pode ler agora sua própria situação no texto, pois um texto, diferentemente da fala, transcende suas circunstâncias originais. As novas leituras não são em nada menos válidas. Elas não devem ser completamente contraditórias à compreensão do público original, mas podem ser diferentes, mais ricas, ou mais empobrecidas (SILVA; KAISER, 2002, p. 30).

Sobre o trabalho de Paul Ricoeur, no sentido de valorizar o leitor contemporâneo da Bíblia e discorrer sobre o fato de que o texto é ressignificado a partir do momento em que sai do autor, Silva e Kaiser (2002) afirmam o seguinte:

O trabalho de Paul Ricoeur é especialmente conhecido nesse sentido. Entre suas inúmeras ideias sugestivas, devemos notar sua ênfase na distinção das relações entre falar-ouvir e escrever-ler. No discurso oral, o sentido do discurso se sobrepõe à intenção do orador. “Dentro do discurso escrito, porém, a intenção do autor e o sentido do texto deixam de coincidir [...] o rumo do texto deixa escapar o horizonte finito vivido por seu autor. O que o texto significa agora é mais importante do que a intenção do autor quando escreveu” (Paul Ricoeur. Interpretation Theory: Discourse and the Surplus of Meaning (Fort Worth: Texas Christian University, 1976, p. 29-30). Embora o próprio Ricoeur não

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fosse um estudioso da Bíblia, ele estava profundamente interessado no pensamento religioso e, portanto, muitos teólogos e estudantes da Bíblia tem sido influenciados pelo seu trabalho (SILVA; KAISER, 2002, p. 225).

Logo, reconhece-se que o significado do texto se desprende do autor do texto, em certa medida, quando o texto sai de sua mão. Dali para frente, ele será ressignificado, ou, ainda, aplicado ao leitor contemporâneo que dele se apropria. Por mais que possa existir enorme resistência de alas mais conservadoras e fundamentalistas do Protestantismo quanto a esse pressuposto, fato é que esses movimentos também ressignificam o texto bíblico em suas homilias e ensinamentos regulares. No final, no que tange à Bíblia, ninguém consegue escapar a esse fato habilmente indicado por Ricoeur.

5 O PROBLEMA DO “ANACRONISMO HERMENÊUTICO”

Um cuidado fundamental em Hermenêutica bíblica é em relação ao anacronismo hermenêutico. Em História, isto é, na ciência História, o anacronismo consiste de uma espécie de erro de cronologia, em que se atribui características contemporâneas a eventos, fatos, personagens e a culturas do passado com o olhar contemporâneo, sem levar em conta as especificidades desses eventos, fatos, personagens e culturas do passado em seu próprio ambiente vivencial.

Por vezes, em minhas aulas de Hermenêutica, discorri sobre o que tenho chamado de “anacronismo hermenêutico”, pegando emprestado um conceito da História (o conceito de anacronismo) e transpondo-o para a Hermenêutica. Interpretar as Escrituras é, em grande medida, lançar um “olhar para trás”, é “voltar” na História para entender o pano de fundo ou, para pegar emprestada uma expressão da Exegese, o sitz im leben da perícope bíblica. Mas esse “retorno ao passado” requer cuidado na interpretação dos dados históricos disponíveis: se eles forem lidos com o nosso olhar de século 21, com toda sua carga cultural, fenomenológica, epistemológica e filológica, certamente não compreenderemos adequadamente o que o hagiógrafo sagrado tencionou comunicar (COZZER, 2020, p. 397).

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FONTE: <https://shutr.bz/3lvYFlx>. Acesso em: 15 ago. 2021.

Por meio do anacronismo hermenêutico, introduz-se no texto bíblico um sentido que ele realmente não possui, mas que é próprio do leitor. E esse anacronismo pode ser de natureza científica na interpretação de passagens como Gênesis capítulos um, dois e três, que consiste em interpretar esses relatos da criação com o viés da Ciência contemporânea, totalmente desconhecida para o autor de Gênesis.

Esse anacronismo pode ser também de natureza social, como é o caso da interpretação feita por grande parte das igrejas evangélicas em relação a Israel, numa espécie de “xenofobia invertida”, que prefere Israel e pretere as demais nações do mundo em nome de uma interpretação que é mais nacionalista do que bíblica, de fato.

Essa questão merece, assim, especial cuidado por parte do estudante da Hermenêutica, a fim de evitar esses anacronismos e produzir uma análise mais responsável do texto bíblico. A Bíblia possui uma mensagem que perpassa épocas e circunstâncias e se aplica a todos os homens, em todos os tempos. É por meio do estudo hermenêutico sério da Palavra que essa mensagem vai sendo descortinada em sua amplitude e pode, por fim, ser aplicada ao leitor pós-moderno, que poderá conformar sua própria vida ao evangelho.

FIGURA 16 – AVISO: ANACRONISMO

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FIGURA 17 – ÉTICA CRISTÃ

FONTE: <https://shutr.bz/3FyrV3f>. Acesso em: 15 ago. 2021.

Concluindo este tópico, fica reiterada a importância de se valorizar diversos aspectos relacionados à interpretação bíblica. Tanto é preciso “voltar ao autor” do texto bíblico como pensar a forma como o leitor contemporâneo recebe e interpreta o texto bíblico. Se isso não for feito, a Bíblia será reduzida apenas a uma espécie de documento histórico, quando sabemos que ela é intensamente utilizada como fonte de devoção, fé e vivência comunitária dos princípios morais e religiosos que dela emanam.

6 CONCLUSÃO

A Hermenêutica Bíblica é uma disciplina de fundamental importância para o cristão individualmente e para a coletividade cristã. Para alguns, ela pode ser apenas mais uma disciplina teológica muito técnica, bizarra talvez e que deveria ficar a cargo apenas dos letrados e estudiosos. Contudo, a Hermenêutica pode ser transposta didaticamente para a vida das comunidades de fé, auxiliando-as na melhor interpretação da mensagem da Bíblia.

Uma vez realizada uma interpretação de qualidade, poderemos contar com sermões de qualidade. Se nossas pregações são precárias, carregadas de misticismo e triunfalismo religiosos, que em nada edificam e promovem a genuína fé, isso começa na precária interpretação dos textos bíblicos. Se forem aplicados os princípios hermenêuticos de compreensão do texto bíblico, certamente homilias mais sensatas e relevantes serão produzidas.

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TÓPICO 3 — A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

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FIGURAS DE LINGUAGEM DA BÍBLIA

Roney Ricardo Cozzer

INTRODUÇÃO

É importante destacar [...] que a Bíblia não foge à regra no sentido de que, como livro, seus autores empregaram a linguagem de seu tempo. O Espírito Santo, ao inspirar os autores bíblicos, usou a sua linguagem, nela inclusos os gêneros literários e o vocabulário próprios do contexto em que esses autores viveram.

As figuras de linguagem são muito abundantes e quando as conhecemos, interpretamos melhor o texto bíblico. É importante ressaltar aqui que embora a Bíblia seja plenária e verbalmente inspirada por Deus, ela foi escrita seguindo critérios e tendências literárias, de modo que muitas vezes o escritor bíblico, ao desenvolver o texto, tinha em mente um plano a ser seguido. Passaremos a considerar aqueles que consideramos serem as principais figuras de linguagem encontradas no texto bíblico.

FIGURA 18 – BÍBLIA

FONTE: <https://shutr.bz/3AoDNRz>. Acesso em: 15 ago. 2021.

1. COMPARAÇÃO E CONTRASTE

No texto bíblico encontramos em alguns momentos a associação de duas ou mais ideias que são iguais ou parecidas. Isso é chamado de comparação. Temos um exemplo em Gênesis 22.17 onde Deus mesmo compara a descendência de Abraão com as estrelas do céu e com a areia que está na praia do mar. Palavras e expressões como “tal como”, “igual a”, “como” e “semelhante” expressam justamente a ideia de comparação.

LEITURA COMPLEMENTAR

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

O contraste é o oposto da comparação, pois indica diferença nas qualidades que estão sendo salientadas. Palavras e expressões como “mas”, “ou”, “de outra forma” e “entretanto” indicam contraste. Um exemplo interessante temos no livro dos Salmos, no Salmo 1, onde lemos o contraste que o salmista apresenta entre aquele que atenta para a Lei do Senhor e aquele que não o faz.

2. METÁFORA

Esta figura tem por base alguma semelhança entre dois objetos ou fatos, caracterizando-se um com o que é próprio do outro. Exemplo: Ao dizer Jesus: “Eu Sou a videira verdadeira”, Jesus se caracterizou com o que é próprio e essencial da videira (pé de uva); e ao dizer aos discípulos: “Vós sois as varas”, caracterizou-os com o que é próprio das varas. Outros exemplos: “Eu Sou o caminho”, “Eu Sou o pão vivo”, “Judá é leãozinho”, “Tu és minha Rocha”, etc.

3. SINÉDOQUE

Faz-se uso desta figura quando se toma a parte pelo todo ou o todo pela parte, o plural pelo singular, o gênero pela espécie, ou vice-versa. Exemplo de um caso em que se toma a parte pelo todo: “até o meu corpo repousará seguro”, em vez de dizer simplesmente “meu corpo” (Sl 16.9). Um exemplo de quando se toma o todo pela parte: “[...] beberdes o cálice”, em lugar de dizer “do cálice”, isto é, parte do que há no cálice.

4. METONÍMIA

Emprega-se esta figura quando se aplica a causa pelo efeito, ou o sinal ou símbolo pela realidade que indica o símbolo. Exemplos: Jesus emprega a causa pelo efeito: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos”, em lugar de dizer que eles tinha os escritos de Moisés e dos profetas (Lc 16.29). Jesus emprega o símbolo pela realidade que o mesmo indica: “Se eu não te lavar, não tem parte comigo”. Lavar é o símbolo da regeneração.

5. PROSOPOPEIA

Esta figura é usada quando se personificam as coisas inanimadas, atribuindo a elas os feitos e ações das pessoas. Exemplos: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1 Co 15.55). Paulo trata a morte como se fosse uma pessoa. Em Isaías 55.12 podemos ler: “Os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas”. Também em Salmos lemos: “Encontraram-se a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram. Da terra brota a verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar” (Sl 85.10,11).

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TÓPICO 3 — A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

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6. IRONIA

Faz-se uso desta figura quando se expressa o contrário do que se quer dizer, porém sempre de tal modo que se faz ressaltar o sentido verdadeiro. Exemplo: “Clamai em altas vozes [...] e despertará”. Elias dá a entender que chamar por Baal é completamente inútil (1 Rs 18.27).

7. HIPÉRBOLE

É a figura pela qual se representa uma coisa como muito maior ou menor do que em realidade é, para apresentá-la viva à imaginação. É um exagero. Exemplos: “Também vimos ali gigantes [...] e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos [...] as cidades são grandes e fortificadas até aos céus” (Num. 13.33). No livro do Evangelho de João encontramos um exemplo interessante: “Creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (Jo 21.25). Ainda no livro de Salmos, podemos ler: “Rios de águas correm dos meus olhos, porque não guardam a tua lei” (Sl 119.136).

8. ALEGORIA

É uma figura retórica que geralmente consta de várias metáforas unidas, representando cada uma delas realidades correspondentes. Exemplo: “Eu Sou o Pão Vivo que desceu do céu, se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo, é a minha carne [...] Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna”. Esta alegoria tem sua interpretação nesta mesma passagem das Escrituras (Jo 6.51-65). Noutras palavras, a própria perícope bíblica explica a alegoria.

9. FÁBULA

É uma alegoria histórica, na qual um fato ou alguma circunstância se expõe em forma de narração mediante a personificação de coisas ou de animais. Em 2 Reis 14.9 temos um exemplo: “O cardo que está no Líbano, mandou dizer ao cedro que lá está: Dá tua filha por mulher a meu filho; mas os animais do campo, que estavam no Líbano, passaram e pisaram o cardo”. Com esta fábula Jeoás, rei de Israel, responde a proposta de guerra feita por Amazias, rei de Judá.

 10. ENIGMA

É algo que se propõe a ser descoberto. Exemplo: “Do comedor saiu comida e do forte saiu doçura” (Jz 14.14).

11. TIPO

O tipo pode ser uma pessoa, um evento do Antigo Testamento ou mesmo um objeto. Ele tem por objetivo fazer uma indicação para um cumprimento futuro. Os tipos indicam que serão cumpridos futuramente. Assim, todo tipo encontra

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UNIDADE 3 — A INTERPRETAÇÃO BÍBLICA

seu antítipo, isto é, a pessoa ou evento em que o tipo se cumpre. Exemplos: A serpente de metal levantada no deserto foi mencionada por Jesus como um tipo para representar sua morte na cruz (Jo 3.14). Jonas no ventre do grande peixe foi usado como tipo por Jesus para representar a sua morte e ressurreição (Mt 12.40). O primeiro Adão é um tipo para Cristo o último Adão (1 Co 15.45).

12. SÍMBOLO

Representa alguma coisa ou algum fato por meio de outra coisa ou fato familiar que se considera a propósito para servir de semelhança ou representação. Exemplos: Representa-se: A majestade pelo leão, a força pelo cavalo, a astúcia pela serpente, o corpo de Cristo pelo pão, o sangue de Cristo pelo cálice etc.

13. PARÁBOLA

Apresentada sob a forma de narração, relatando fatos naturais ou acontecimentos possíveis, sempre com o objetivo de ilustrar uma ou várias verdades importantes. Exemplos: O semeador (Mt 13.3-8); ovelha perdida, dracma perdida e filho pródigo (Lc. 15), dentre muitas outras.

14. SÍMILE

Procede da palavra latina similis que significa “semelhante” ou “parecido a outro”. É uma analogia. Comparação de coisas semelhantes. Exemplos: “Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem” (Sl 103.11). “Como o pai se compadece de seus filhos, assim (do mesmo modo) o Senhor se compadece dos que o temem” (Sl 103.13).

15. INTERROGAÇÃO

Somente quando a pergunta encerra uma conclusão evidente é que é uma figura literária. A interrogação é uma espécie de figura em que o orador questiona seu interlocutor mas sabendo de antemão que ninguém vai responder. Exemplos: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18.25). “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?” (Hb 1.14). “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?” (Rm 8.33). “Com um beijo trais o Filho do homem?” (Lc 22.48).

16. APÓSTROFE

O vocábulo indica que o orador se volve de seus ouvintes imediatos para dirigir-se a uma pessoa ou coisa ausente ou imaginária.Exemplos: “Ah, Espada do Senhor, até quando deixarás de repousar?” (Jr 47.6). “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão!” (2Sm 18.33).

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TÓPICO 3 — A HERMENÊUTICA E A CONTEMPORANEIDADE

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17. ANTÍTESE

“Inclusão, na mesma frase, de duas palavras, ou dois pensamentos, que fazem contraste um com o outro”. Exemplos: “Vê que proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal” (Dt 30.15). “Entrai pela porta estreita (larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz a perdição e são muitos os que entram por ela) porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela” (Mt 7.13,14).

18. PROVÉRBIO

Trata-se de um ditado comum, uma máxima, uma reflexão contida numa frase. Exemplos: “Médico cura-te a ti mesmo” (Lc 4.23).”Nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra” (Mt 6.4; Mt 13.57).

19. PARADOXO

Denomina-se paradoxo a uma preposição ou declaração oposta à opinião comum. Exemplos: “Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos” (Mt 8.22). “Coais o mosquito e engolis o camelo” (Mt 23.24). “Porque quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12.10).

CONCLUSÃO

Ainda que as figuras de linguagem (ou linguagem figurada) consistam de um distanciamento do uso comum da língua, sua utilidade na língua e no texto é inegável. E deve ser dito que não apenas o conhecimento das figuras de linguagem representa um passo importante para a compreensão dos textos bíblicos, mas também as próprias figuras de linguagem em si mesmas contribuem para melhorar nosso entendimento do texto. Dito de outra forma, podemos afirmar que a presença de figuras de linguagem no texto bíblico cumpre também um papel pedagógico-hermenêutico. Considere o caso das figuras de linguagem de natureza hiperbólica. As hipérboles são fundamentais para nos ajudar a perceber a ênfase pretendida pelo autor, quando elas ocorrem. Assim como “Estou com um boi no estômago” é suficiente para deixar bem claro para nós que a pessoa que pronuncia esta figura de linguagem comeu muito e está muito satisfeita, também um camelo passando pelo fundo da agulha é muito satisfatório para nos mostrar o grande perigo do amor às riquezas, ao dinheiro. Assim, a linguagem figurada na Bíblia deve ser estudada com a devida atenção, em função da sua importância.

FONTE: COZZER, R. R. Enciclopédia teológica: numa perspectiva transdisciplinar. Vol. 1. São Paulo: Reflexão, 2020.

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RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• A Hermenêutica tem sido amplamente estudada na contemporaneidade, isto é, na Pós-Modernidade, e que essa interferiu na forma de se interpretar o texto bíblico.

• Não há um consenso absoluto a respeito do que vem a ser a Pós-Modernidade e que diversas propostas teóricas têm sido apresentadas, como a do sociólogo Zygmunt Bauman.

• As hermenêuticas pós-modernas precisam ser encaradas com cautela, mas que oferecem contribuições importantes para o estudo das Escrituras.

• Tanto o leitor contemporâneo como o hagiógrafo sagrado constituem pressupostos fundamentais para a Hermenêutica Bíblica.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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1 Na esteira da reflexão sobre Hermenêutica e Pós-Modernidade é importante mencionar que Jesus foi um homem de seu tempo e que falou a pessoas de seu tempo. Ele falava do céu com os pés no chão. Com base no exposto, analise as sentenças a seguir:

I- A Teologia cristã precisa contextualizar-se sem descaracterizar-se.II- A Teologia cristã precisa interagir com o contexto social.III- A Teologia cristã deve fechar-se em absoluto para a Pós-modernidade,

face aos seus enormes desafios.

Assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) As sentenças II e III estão corretas.c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.d) ( ) As sentenças I e III estão corretas

2 A Pós-Modernidade pode ser entendida por meio de suas diversas características. Uma dessas características é aquela que Antonio Cruz chama de “retorno ao sentimento”. Pensando na definição adequada para essa característica, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) Retorno ao sentimento significa que a Pós-modernidade rompeu drasticamente com o racionalismo da Modernidade.

b) ( ) Retorno ao sentimento significa que a Pós-modernidade voltou a superstição religiosa típica da Idade Média.

c) ( ) Retorno ao sentimento significa que a Pós-modernidade ignora qualquer tipo de racionalidade.

d) ( ) Retorno ao sentimento significa que a Pós-modernidade não nutre qualquer interesse por reflexões, sejam elas de que natureza forem.

3 Um cuidado fundamental em Hermenêutica bíblica é em relação aos anacronismos hermenêuticos. Esse conceito de “anacronismo hermenêutico” pega emprestado um conceito da ciência História para indicar determinadas interpretações impróprias do texto bíblico. Assinale a seguir a alternativa que compreende a CORRETA definição de anacronismo hermenêutico:

a) ( ) Anacronismo hermenêutico implica em entender eventos do passado bíblico exclusivamente pelas lentes da atualidade.

b) ( ) Anacronismo hermenêutico implica em entender eventos do passado bíblico utilizando-se princípios hermenêuticos.

c) ( ) Anacronismo hermenêutico implica em entender eventos do passado bíblico sem considerar o autor do texto.

AUTOATIVIDADE

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d) ( ) Anacronismo hermenêutico implica em entender eventos do passado bíblico da forma mais fidedigna possível.

4 Tanto o autor do texto bíblico quanto o leitor contemporâneo da Bíblia foram reconhecidos, neste trabalho, como elementos fundamentais à Hermenêutica. Tendo isto em mente, discorra a respeito da importância do leitor para a interpretação.

5 Na Hermenêutica valoriza-se o autor do texto bíblico e ao longo de muito tempo defendeu-se a ideia de que é preciso “retornar ao autor” para entender o que ele quis de fato comunicar em seu texto. Considerando isto, disserte a respeito da importância de se perceber as características literárias dos diferentes autores bíblicos.

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