Ideologia Do Trabalho

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Coordellaç(fo editorial: José Carlos de Castro, Pascoal Solo

Preparaç([n de origil7ais: Luiz Vicente Vicira Filho (coordenador),

Vêra Regina A. Masclli (preparadora)

Pesquisa icnl7ngrájica: Tha"is H. Falcão Botclho

Revis(fn: Lisabeth Bansi Giatti (coordenadora)

Artes: Sidnei Moura (coordenador), Wilson Gazzoni Agostinho (diagramador)

Capa: Rokn

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carmo, Paulo Sérgio do, 1950.A ideoloqia do trabalho / Paulo Sérgio do

Carmo; capa de ROKO. -- São Paulo: Moderna,1992. -- (Coleção polêmica)

1. Trabalho - Filosofia I. Título. 11.Série.

92·0783 CDD-331.01

índices para catálogo sistemático:

1. Trabalho: Filosofia: Economia 331.01

ISBN 85-16-00653-0Todos os direitos resen'ados

EDITORA MODERNA LTDA.Rua Afonso Brás, 4:11

Te!': 822·5099CEP 04511·90 I . São Paulo· SP . Brasil

1992

!mrJl"esso no Brasil

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SUMÁRIO

Introdução 71. A ocupação de corpo e alma 11

A exaltação do trabalho, 12; O desemprego. 13; Os contestadores. 15; Que étrabalho?, 15; A ideologia, 16

2. Alguém tem de trabalhar 17Séculos V e IV a.c.. 17; A visão filosófica. 19; Outros povos. 20

3. Mãos vadias, coração louco 22Visão religiosa, 22; Para além da Idade Média. 24; A classe ociosa, 25; Len-tas mudanças. 26; A ética protestante. 26; O fim do antigo regime. 28

4. Mais abelhas que arquitetos 29A dificuldade de mão-de-obra, 29; Os "improdutivos" causam mal-estar, 30;Começando pela criança, 31; O exemplo não vem de cima. 34; A total dedica-ção ao trabalho, 35

5. A (con)sagração do capital 36O liberalismo, 36; Surge a crítica, 37; A conquista de novos povos. 39; Umcrítico mais exaltado, 40

6. O tempo como mercadoria .. , 41O taylorismo. 41; Pagos para pensar. 42; Pagos para não pensar, 43; Ofordisll1o, 44; A experiência humana, 46

7. A mão (in)visível do Estado 48A nova ordem. 48; U 111 novo homem. 50; Resquícios do passado. 51

8. Rumo ao paraíso 52Um país arrasado, 54; Industrializar a qualquer custo. 55; A educação dasmassas, 56; Sem voz ativa, 58

9. O escravo feliz 59O lado informal, 59; A grande família, 60; A crítica e os críticos, 61; Os ven-tos do Oriente. 62

10. Um país sem povo , , 64Seriam bons selvagens'!. 64; Os escravos. 65; Os imigrantes, 67

11. O povo, ora o povo! , 69O empresariado, 69; O Estado interfere. 71; O samba comportado, 71; Osvestígios de 64, 72

12. Um reino ameaçado? 75As nossas carências, 77; A razão de ser, 77; Os caminhos do paraíso, 78

Glossário , 81

Sugestões de leitura 85

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"Ao ler tudo o que se escreve sobre a juventude e em particularsobre as suas esperanças e juízos, é espantoso, por exemplo, avaliar oínfimo lugar dispensado ao que ela pensa sobre o trabalho. Essa indife-rença contrasta com a excessiva atenção atribuída a qualquer outra dassuas opiniões.

Incessantemente chamados a emitir juízos sobre as sociedadesatuais ou futuras, os jovens são, na verdade, muito menos interrogadosacerca do sentido da sua existência futura de trabalhadores do que acercada droga, do erotismo ou da violência.

Mesmo quando tal ocorre, é principalmente numa perspectivaconcreta de orientação profissional e não para os convidar a refletir sobreo conteúdo e os objetivos de uma atividade laboriosa à qual, todavia, estãocondenados a consagrar, amanhã, tanto tempo e tanto de si próprios.

Tudo se passa como se a obrigação de trabalhar fosse de tal modonatural como o respirar ou o alimentar-se, permanecendo, por essência,estranha a qualquer evolução cultural e, a fortiori, a toda reformulação.Tudo se passa, também, como se uma verdadeira conspiração de inte-resses e idéias se esforçasse por retirar todo significado global a mani-festações tão diferentes como as revoltas dos operários trabalhando emcadeia, o crescente desinteresse dos jovens a respeito de certas tarefasou, até, de toda atividade laboral, o aparecimento de novas atitudes ju-venis anticarreiristas, o aumento de diversas formas de marginalismoprofissional, a criação, embora discreta mas não menos importante, decomunidades reagrupadas à volta de atividades artesanais caídas emdesuso (... )." (Jean Rousselet, A alergia ao trabalho.)

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INTRODUÇÃO

Fala-se em trabalho a todo momento e por toda parte. Só essaconstatação já demonstra a importância dele para a nossa sociedade. Seriainteressante, porém, ir em busca da origem dessa atividade chamada trabalhoe compreender a razão do seu prestígio.

Emprega-se o termo "trabalho" para designar, por exemplo, a atividadedas plantas, das abelhas, das máquinas, dos atletas, do pintor, do aluno, dabailarina, do religioso, do filósofo etc., como se tudo na vida se resumisse atrabalho.

É através dessa multiplicidade de prismas sobre o tema que o leitorpercorrerá este livro. A intenção é mostrar como o trabalho foi exaltado oudesprezado por diferentes classes sociais em diferentes épocas e nações. Aexaltação do trabalho tornou-se tão forte que, para muitos, o ócio e até mes-mo o lazer, quando praticados, vêm acompanhados de sentimento de culpa.

Entretanto nem sempre foi assim. Há 2.500 anos, os gregos, ao adotar amáxima de Aristóteles "Pensar requer ócio", apresentavam uma postura bas-tante diversa. Contudo, para sustentar a elite grega, que se desobrigava dotrabalho, havia os escravos, e como essa situação provocava vergonha, os gre-gos criaram sutis argumentos que justificavam a necessidade da escravatura.

Na Idade Média, que vai do século V ao século XV, predominou o regi-me de servidão; pode-se dizer que houve nesse período um meio-termo entreo trabalho escravo e o trabalho livre, e não há evidência de grande atenção aotrabalho ou de preocupação com o produtivismo. A camada dirigente ~ anobreza e o clero ~ levava uma vida de costumes requintados e muitos evita-vam qualquer atividade ligada a trabalho. Havia também um contraste entre avisão do catolicismo, que considerava o trabalho uma penitência para o peca-do e uma oportunidade para a redenção divina, e a do protestantismo (surgidono século XVI), que o tratava não só como meio de se obter riqueza mastambém como forma de servir a Deus, pois mantinha à distância o ócio e aluxúria.

Com o surgimento do capitalismo vimos uma grande mudança com re-lação às posturas medievais. Passou a imperar o, então, produtivismo. Torna-ram-se revoltantes para a elite burguesa a indolência e o ócio. Recorreu-se,quando necessário, inclusive, ao uso da força para obrigar as pessoas a traba-lhar. Surgem, por toda parte, filósofos e economistas exaltando o trabalhocomo a única fonte de riqueza. Novas idéias alardearam, com a opção pelotrabalho assalariado, a liberação do homem ao jugo da servidão. No entanto amultidão de mendigos que infestava as cidades era atribuída tanto ao cresci-

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mento desordenado da população quanto à incapacidade do homem comumde obter sua subsistência aproveitando as oportunidades oferecidas pelo novosistema econômico. Os tentáculos do capitalismo se estenderam pelo mundotodo através das colônias de exploração, principalmente na África e na Ásia.

No século XX, a preocupação com o desempenho humano no trabalhose exacerba e assume ares científicos. Difundem-se as idéias e os experimen-tos do engenheiro norte-americano Frederick W. Taylor, originando otaylorismo. Cronometrar o tempo de trabalho, subdividir as tarefas, diferen-ciar na hierarquia empresarial os que pensam dos que executam, torna-seaplicação corrente, desde a mais recôndita fábrica do interior do Brasil ou daÍndia até as indústrias de países avançados como a Alemanha. Desenvolve-setambém o aspecto psicológico em relação de trabalho. No final da década de20 aparece a Escola de Relações Humanas, sustentada por teorias oriundas dapsicologia e da sociologia de grupo, que deram novos impulsos ao conheci-mento da conduta humana. Desde então, surgiram sempre novas técnicas emétodos que procuravam despertar no trabalhador o gosto pelo trabalho, paraque produzisse mais e faltasse menos.

Outro grande acontecimento desse século foi o advento do nazismo edo fascismo, com uma marcante intervenção do Estado na economia e grandepreocupação com o trabalho. Esses dois regimes - chamados muitas vezesde nazi-fascismo em virtude de suas semelhanças - foram implantados naEuropa no intervalo entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Emboranão abrindo mão da propaganda ideológica, também usaram da força paradominar a classe trabalhadora, com o Estado assumindo as rédeas da econo-mia e, conseqüentemente, intervindo nos sindicatos e no dia-a-dia do traba-lhador. Embora o Estado se colocasse acima das classes, representava os inte-resses de uma elite empresarial. Sua preocupação era conter a luta de classese impor a harmonia entre patrões e empregados.

Causaram impacto também as revoluções socialistas, cujos regimes seautodenominavam "'ditadura do proletariado". Visando a construir uma gran-de nação igualitária, onde surgiria um novo homem, os socialistas tiverampelo trabalho verdadeira obsessão. A necessidade de produzir mais levou àimplantação de uma disciplina rígida. A onipresença do símbolo da foice e domartelo representando o trabalho camponês e operário foi uma evidência des-sa preocupação com a "religião do trabalho". A burocratização da produção,concentrada nas mãos do Estado, que se erigiu em único patrão, não conse-guiu satisfazer o crescente desejo de liberdade econômica e política por partedos trabalhadores.

No Brasil, fatos históricos dão mostras de como se difundiu o precon-ceito contra a imagem de um povo que não gostava de trabalhar, a começarpelos índios, vistos como preguiçosos e incapazes para o trabalho disciplina-do. Com a necessidade de braços para a lavoura, apresentou-se a alternativado trabalho escravo, já que o homem livre e pobre recusava deixar-se explo-

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rar, pois a abundância de terras e de recursos naturais permitia-lhe levar umavida modesta, sem a necessidade de trabalhar para os senhores das fazendasde cana-de-açúcar e de café. Para os senhores fazendeiros, essa· gente nãopassava de uma "corja de inúteis"; assim eles justificaram sua substituiçãopelos escravos e, mais tarde, pelos imigrantes.

Ao entrar no século XX, o Brasil conta com uma ainda incipiente classeoperária. A partir da década de 20, o operariado cresce, luta, organiza-se econquista alguns direitos inerentes à economia capitalista. De 1930 em dian-te, o Estado interfere de forma mais decisiva nas relações trabalhistas com oobjetivo de controlar as entidades sindicais. Variam as concepções ideológi-cas sobre o trabalhador brasileiro: ora ele é considerado preguiçoso, ora habi-lidoso e diligente, quando treinado, igualando-se a seus pares dos países maisadiantados.

Uma reflexão sobre o prestígio conferido ao trabalho na sociedadeatual e uma discussão sobre os possíveis rumos do trabalho após a introduçãode novas tecnologias e sobre como reagirá um modelo econômico sustentadono desperdício de recursos naturais não-renováveis são apresentadas no ca-pítulo final desta obra.

Após esse capítulo estão reunidas, no Glossário, palavras e expressõescujo significado é de fundamental importância para uma boa compreensãodo texto.

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1. A OCUPAÇÃO DE CORPO E ALMA

"Há uma certa determinação em milhões de trabalha-dores americanos de viver sem trabalhar ou fazendo-o o mí-nimo possível. Isto constitui para o nosso tempo um perigomuito maior do que aquele que algum dia os Vermelhospossam representar." (The Open Shop Rev;ew, 1920.)

1968. Trabalhadores ocupavam fábricas em Paris, exigiam reformaspolíticas em Praga, abandonavam o trabalho em pleno expediente em Detroite faziam greves em São Paulo. Mais do que a contestação da juventude, ocomportamento do operariado preocupava a classe dirigente dessas cidades.Aumentavam o descontentamento e a recusa à exploração e à alienação dotrabalho, o que poderia causar uma reviravolta surpreendente no curso daHistória. No entanto, essa tendência, assustadora para a classe dirigente, nãose efetivou. Poucos anos depois essa classe já respirava aliviada com a passa-gem da onda contestatória, cujo vírus não fora poderoso o suficiente paracontaminar de vez os ideais de disciplina e de docilidade impostos à classetrabalhadora.

Esses acontecimentos ocorridos num breve espaço de tempo e em dife-rentes lugares puseram em xeque aquilo que a sociedade industrial tanto ve-nera: o trabalho. Nosso século deu tamanha amplitude ao termo "trabalho" aponto de aplicá-lo a qualquer ação que realizamos. O filósofo francês PaulRicoeur afirma que a nossa "civilização do trabalho" emprega essa palavrapara múltiplas atividades. Até mesmo a atitude intelectual, contemplativa, foinomeada como "trabalho intelectual", pressupondo-se que o pensar (theorein)puro e simples tivesse cedido lugar à práxis; assim, a reflexão passou a nãomais se diferenciar da ação. Se o trabalho preenche o vazio deixado pelobanimento do repouso, da especulação contemplativa, ele nos leva a crer quea constante atividade é o que impera em nossos dias.

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Assim, em uma civilização que tem no trabalho a categoria econômicae social dominante e seu único valor, é possível encontrar pessoas afirmando,com uma ponta de orgulho, que são "viciadas em trabalho". Os americanos aschamam de workaho/ics e os franceses, de drogués du travail.

A exaltação do trabalho

Para muitos, o trabalho é a chave para superar os infortúnios e oparâmetro para medir a acumulação de capital, evidenciando a habilidade de"vencer na vida". Os donos de grandes fortunas passam a idéia de que todariqueza é montada à custa de grande disposição para o trabalho. Bem-sucedi-dos, sentem-se estimulados a trabalhar cada vez mais e, por esse mesmo estí-mulo, forjam uma imagem de que estão sempre satisfeitos com suas ocupa-ções. Impulsionados por esse ideal, alardeiam uma suposta igualdade deoportunidades, pretendendo impor a todos um modelo de sucesso e felicidadeque aparentemente só diz respeito a eles próprios.

É sintomático o fato de uma sociedade atribuir valores aos indivíduos,tachando-os de "ganhadores" ou de "perdedores". Segundo um modelo socialcujo exemplo de sucesso está em vencer pela atividade dita produtiva, pinto-res como Van Gogh e Gauguin, por exemplo, foram considerados indivíduosfracassados. Paradoxalmente seus quadros são disputados em leilões e arre-matados por altas somas, não para serem desfrutados enquanto objetos de artemas como forma de investimento. Visando ao entesouramento, parte do lega-do cultural da humanidade é quase sempre confinada em cofres-fortes, o quetoma impossível a apreciação da obra.

A supervalorização do trabalho se dissemina por todos os estratos so-ciais: a redução da jornada de trabalho é condenada sob a alegação de que "opaís precisa crescer"; os políticos quase sempre elegem o tema "trabalho"para suas plataformas de campanha; os meios de comunicação bombardeiama cabeça da população, levando-a a crer que a delinqüência é oriunda da faltade vontade de trabalhar. O Estado considera delito social "a vadiagem e aociosidade" ao tratar essas condutas como caso de polícia. Uma parte da po-pulação acredita que a imposição de trabalhos forçados nas prisões seria umaforma de atenuar a criminalidade. Para a polícia a carteira de trabalho chega aser, algumas vezes, o único documento válido.

Pela veneração ao trabalho, os currículos escolares são alvo de altera-ções, não com a finalidade de formar cidadãos ou dotá-los de um pensamentocrítico, mas de formar pessoas aptas para o trabalho e, se possível, adestrá-Iaspara a formação de uma mão-de-obra dócil. Curiosamente, professores pres-crevem aos alunos "trabalhos para casa". O trabalho do menor é visto comouma preparação para o futuro, no que tange à disciplina exigida para se tornar

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cidadão. Nos estratos sociais de baixa renda, um rapaz adquire maturidade e évisto com orgulho pelos pais quando começa a trabalhar precocemente. Em-bora a contragosto, os estudos são abandonados cedo, devido à necessidadede lutar pela sobrevivência. Acredita-se muitas vezes que quanto mais cedo oindivíduo começar a trabalhar maiores serão suas chances de ser bem-sucedido.

Também sob outras variantes se apresenta a glorificação do trabalho: oimigrante se orgulha de ter chegado sem nada e conseguido tudo à custa dotrabalho intensivo; o patrão acredita praticar um "ato filantrópico" pelo merofato de dar empregos; as nações do mundo todo dedicam um dia do ano àcomemoração do Dia do Trabalho. Por fim, a Igreja periodicamente celebra,ao longo do século, a encíclica Rerum novarum ("Das coisas novas"), de 1891,dedicada ao trabalho.

o desemprego

É cada vez mais evidente que em nossa sociedade a instabilidade dianteda perspectiva de perda do emprego é um drama que afeta a todos. Estar de-sempregado não é estar com tempo livre para o lazer: os momentos de tensão,o sentimento de fracasso, de exclusão social, e a sensação de ser facilmentedescartável afetam profundamente o desempregado. Em uma sociedade ondea participação na abundância e o sucesso profissional são aspectos essenciaispara a integração social, o fato de encontrar-se sem trabalho constitui senti-mento grave de derrota. Trata-se das contradições de um sistema que faz aexaltação do trabalho, mas se sustenta deixando à margem um sem-númerode desempregados - um exército industrial de reserva - de que ele lançamão quando necessita.

Mesmo em períodos de rece~são, quando encontrar trabalho torna-semuito mais difícil, é freqüente ouvir pessoas dizerem: "Emprego não falta, oque falta é vontade de trabalhar". Muito difundida. essa idéia, no entanto, nãoé nova. Já em 1563, na Inglaterra, o Estatuto dos Artífices afirmava: "Os quequerem trabalho sempre o encontram". Mas advertia, em seguida: "Seaceitarem o preço que se ofereça por seu trabalho". Submeter-se à ofertado mercado em determinadas épocas é candidatar-se, disfarçadamente, aotrabalho servil.

Em um estudo realizado pela ONU (Organização das Nações Unidas)nos anos 80, constatou-se a existência, no mundo, de aproximadamente 60milhões de crianças trabalhadoras, que "sobrevivem em condições piores quea dos antigos escravos". O Brasil não ficou de fora nesse tipo de exploração.Segundo a ONU, existem mais crianças trabalhando como escravos em plan-tações de cana hoje do que há um século. No tempo da escravatura as criançaseram mantidas pelos senhores. Hoje, para comer, elas têm de trabalhar.

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Com as autoridades fazendo vista grossa à lei que impede o trabalho demenor de 14 anos, torna-se comum encontrar notícias como esta, publicadano Jornal do Brasil de 22 de setembro de 1991:

Crianças cortam cana em Pernambuco

Sem infância, a criança trabalha em atividade semi-escrava.

Ipojuca (PE) - Ele mal se equilibra sobre os feixes de cana-de-açúcar espalhados pelo chão. Entre um escorregão e outro, amparadopela foice, bem maior do que seus pequeninos braços, Mário, 5 anos,não tem consciência da possibilidade de sofrer um acidente e perder amão. Vai cortando a cana como se montasse um carrinho para puxarpelo chão. "Cuidado, menino!", grita °pai ( ... ) que, de vez em quando,soJta a foice e ajuda Mário a se levantar.

Sem amparo - O caso dos irmãos Silva é comum na Zona daMata de Pernambuco, onde se planta a cana-de-açúcar há 400 anos eonde a necessidade de reforçar () orçamento familiar e a carência demão-de-obra estão provocando um fenômeno todo fim de ano: a utili-zação de crianças de até 5 anos para cortar cana. Um verdadeiro exérci-to de crianças que mal se sustentam em pé e abandonam as escolas todomês de setembro para ganhar o sustento na roça.

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Os contestadores

A crítica dirigida à valorização excessiva do trabalho já é de longa datamas intensificou-se cada vez mais a partir da década de 60. Tem-se constatadoque, paradoxalmente, mesmo em uma época de grande desemprego, os jo-vens europeus não silo mais convencidos a abraçar uma carreira. Esse novoposicionamento foi em grande parte fruto do movimento de contracultura, noqual estava inserido o que se chamou de "movimento hippie". Os jovensdessa época puseram em questão, entre diversos valores e condutas tradicio-nais, como a família e o sexo, também o trabalho. Para o espanto de diversossetores da sociedade, ao contestar o modo de vida social, e para fugir dele,praticavam uma vida à margem da sociedade, sem trabalhar ou fazendo-oapenas o suficiente para sobreviver. Ao criticar a sociedade de consumo e aacumulação de riquezas, estavam criticando o valor do ato de trabalhar. Tra-tava-se, no entanto, de um movimento difundido muito mais nas sociedadesricas - Estados Unidos c Europa -, onde o indivíduo podia dar-se ao luxode viver das "migalhas" do sistema econômico.

No Brasil, sob a influência de notícias oriundas dos Estados Unidos, oartigo "Lazer, mal do fim do século", publicado pelo jornal carioca Correio daManhã, de 10 de julho de 1970, dá bem o tom da apreensão vivida pela civi-lização ocidental: com o aumento da riqueza e do lazer, temia-se que o tempolivre suplantasse o tempo de trabalho, gerando dessa forma a ociosidade, con-siderada algo pernicioso para a sociedade.

Num nível mais sofisticado, temos a visão das companhias de turismo,cujos catálogos e mensagens cada vez mais enfatizam o lado bom de "apro-veitar a vida enquanto é tempo", numa visão oposta à dos empresários, umavez que a indústria do turismo e do lazer depende do tempo e da renda dispo-níveis do cidadão.

Esse paraíso idílico - a possibilidade de se trabalhar menos e poderdedicar mais tempo ao lazer -, no entanto, cada vez mais vem sendo desfi-gurado pela invasão de produtos dos países orientais, principalmente do Ja-pão, cuja mão-de-obra, altamente diligente. põe em risco o emprego dos cida-dãos europeus e americanos.

Que é trabalho?

Podemos definir trabalho como toda atividade realizada pelo homemcivilizado que transforma a natureza pela inteligência. Há mediação entre ohomem e a natureza: domando-a ele a seu desejo, visa a extrair dela sua sub-sistência. Realizando essa atividade, o homem se transforma, se autoproduze, ao se relacionar com outros homens, na realização da atividade, estabelecea base das relações sociais. Dessa forma, a diferença entre o homem e o ani-maI fica evidente, pois o ninho do pássaro ou a casa da abelha, por exemplo,são atividades regidas pelo instinto, programadas, nas quais não há a inter-venção da inteligência. De acordo com Karl Marx, pensador e político alemão,

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a capacidade de projeção da consciência na idealização de uma casa é quedistingue o pior arquiteto da mais hábil abelha. Visto dessa forma, o trabalho éum ato de liberdade. Ele se toma alienado quando é parcelarizado, rotinizado,despersonalizado e leva o homem a sentir-se alheio, distante ou estranho àquiloque produz. As imposições de um poder burocrático que decide pelo trabalha-dor fazem do trabalho o dominador da natureza e da nature-:,ahunuma.

Vivendo no universo da mercadoria, o trabalhador tamném se tornamercadoria, distanciando-se dos outros homens e até de si mesmo. A perda daautonomia em suas atividades faz com que ele não se reconhc<.;amais como oresponsável pelo produto do trabalho realizado.

De origem controversa, a palavra "trabalho" remete ao latim Iripalium,nome do instrumento formado por três estacas utilizadas para manter presosbois ou cavalos difíceis de ferrar. No latim vulgar, ela significa "pena ou ser-vidão do homem à natureza". Inicialmente considerado esforço de sonrevi-vência, o trabalho transformou-se ao longo da História em ação produtiva,ocupação e, para muitos, algo gratificante em termos existenciais.

A ideologia

Tem-se notícia do aparecimento do conceito de ideologia pela primeiravez no século XVIII. Em seu sentido amplo foi usado na metade do séculoXIX por Marx, que via na luta de classes o motor da História.

O fato de o termo ter aparecido há poucos séculos não impede que sejaaplicado às sociedades antigas e medievais, cujos indivíduos estavam dota-dos de idéias que determinavam suas atitudes e comportamentos acerca darealidade, ainda que inconscientemente. Isso porque - como podemosadiantar - ideologia, em seu sentido amplo, pode ser considerada uma visüode mundo (um conjunto de doutrinas, idéias, crenças, normas, procedimentos,valores) que uma sociedade, classe ou grupo social tem da realidade e da qualse serve para agir sobre essa realidade e alterá-Ia.

O homem, enquanto ser social, não se liberta da ideologia. É, pois, umequívoco falar em "fim da ideologia". Pode-se dizer que a ideologia nãomorre e sim as ideologias, que podem ser substituídas por outras. Por exem-plo, um partido de ideologia revolucionária pode definhar e dar lugar aosurgimento de um partido de ideologia ecológica, havendo assim um rearranjona forma de os sujeitos encararem a realidade e a sua transformação.

Embora a palavra ideologia seja empregada por vários pensadores dematizes ideológicos diversos, ela se toma mais intensa em nossa mente quan-do pensamos na imposição das idéias de uma classe sobre outra. Ou seja, ainteração entre os indivíduos não se dá apenas no nível econômico, material,ou no sentido prático, mas também no nível das idéias.

Em síntese, consideramos aqui a ideologia uma representação imaginá-ria do real, de que os homens se servem para agir, ou um conjunto de idéiasimpostas para o exercício da dominação, e, também, uma falsa consciência.Naturalmente, o trabalho não poderia ficar alheio a ela.

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1;2. ALGUÉM. TEM OETRABAtHAR ~

"Os espartanos só tiveram força enquanto estiveramem guerra. Tão logo conquistaram um império, foram à ruí-na pela incapacidade de saber desfrutar a paz e por não te-rem nunca praticado outro exercício mais importante do quea arte da guerra." (Aristóteles, Política, 11.)

Um grande contraste entre a sociedade atual ea da Grécia: antiga·é oelldeusamentodo trabalho,Q mundo antigo, nunca tratou com nobroza o tra-balho. Segundo a filósofa Hannah Arendt, em A condição humana, os gregosculü"avarn, em-sen ideal de sabedoria; o primado dacl'>ntemplaçãosobre todaat~vidade, na convicção de que "nenhum trabalho de mãos humanas podeigualar em beleza e verdade" o universo. O trabalh0 seria umaatividadcime-nor, visto ter como fim apenas suprir as carências físicas.

Na sociedade grega antiga sobressaio trabalho agrícola, praticado prin-cipalmente pelos escravos, encarregados da execução das-tarefcasmaishumij-des e pesadas. o artesanato e o comércio (onde havia predominância de es-trangeiros e seusdescendentesJ eram, de preferência, reservados ao homemlivre, porém não-cidadão.

Séculos V e IV a.C.

Na Antigüidade, no auge da civilização grega, o direito à cidadaniapropriamente dita era restrito a uma reduzida classe de privilegiados. A nítidaseparação entre o cidadão ~. classe dirigente com direito a voto nas assem-bléias ea participação na vida política ~ e os demais estratos sociais excluí-dosae'Úpinar sobre odes~ino da cidade ocorria, pois; no plano político.

Aristóteles considerava que, sendo impossível a vida sem o,necessáriopara a sobrevivência, a humanidade não poderia abrir mão dos escravos. Aescravidão era encarada· ..como uma le,tnatural; pois "se existissem máquinasque se movimentassem sozinhas, não seria necessário o trabalho escravo". Osescravos, eram uti1iliados'flara livrar os cidadãos das tm:efas servis, permitindoàelite.gFeg.a!,consagrar-se melhor à cidade, aos prazeres do corpo ou à inves-tigação e à contemplação das coisas· eternas do espírito. A distinção entre ocidadão e o escravo tinha um argumento sutil, que servia para o desencargo

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de cansciência da elite grega: oeSGr~l,(a,era ,desprezí;yel;,.não,pGl"~tFaQalhaF,mas. porque, em um dada mamenta de sua existência, tinha preferida a seF\!i-dãoaa risco de mOfl'er'pelahberdade, Cama natau a histariadar M. L Finley:

"Inevitavelmente, as gregas e romanos também tentaramjustifi-cal' a escravidãa cam base numa inferioridade natural d.os escravas ...Cantuda, a idéia fai abandanada enquanta idealagia, e substituída paruma das mais natáveis cantradições da História. 'A escravidã.o', escre-veu a jurista romana Flarentina, 'é uma instituiçã.o da lei de tadas asnações pela qual alguém é submetida a .outrem de mancira contrária ànatureza'. A definiçãa tarnau-se .oficial... Mas ninguém, ou ninguémimpartante, tirou daí a canclusãa aparentemente óbvia de que aquilaque é cantrária à natureza está errad.o e deve ser ab.olid.o.

(00') Para as greg.os, cama abservau Nietzsche ( ... ), tant.o a tra-balha quanta a escravidãa eram 'uma desgraça necessária, um mativade vergonha, camo se fassem a um só tempo uma desgraça e uma ne-cessidade'. Seria mais acertado afirmar que essa vergonha geralmenteera subcansciente; prova disso é o silência quase absoluto dos autoresantigos diante daquela que certamente era a faceta mais torpe da insti-tuição: o tráfic.o de escrav.o em si ... " (M. I. Finley. Aspcctos da Anti-güidade. Sã.o Paula, Martins F.ontes, 1991.)

A nação de trabalha,para.os gregas, está diretamente vinculada.à,wti·na da utilizaçã@ das mã.os emcontat.o c.omutensflios· rudimentares, ..scm.tlkni·C'te.' cnativi dade ..MI>litQs .•Glefendem .que {}descasa dos gregos·.p&lo·ti'a9&J.honão,'Sc c.oloca. }').o.lser..el€ manual ou considerado.degFadantc\ .l1las,,~e-la~s.im~liifí~.açãwpordispensar qualquerqualificaçã.oe por suas atividac1es.•.1R0-

nót.onalS,ejornadas·de longa duração. O escritor grego Xenofontes, discípul.ode Sócrates, dizia que a rudeza de alguns trabalh.os manuais causava dan.osfísic.os a.os seus .operadores, prov.ocand.o muitas vezes uma fraqueza d.oc.orp.oque c.onduzia à fraqueza da mente. Send.o assim, c.onsiderava-se um absurd.ohaver quem fizesse d.o trabalha uma atividade em si mesma.

Representação de algumas atividades diárias dos escravos na Antigüidade.

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Alguns escravos domésticos gozavam de certas regalias, mas isso nãocausava inveja ao homem livre, porém pobre, que preferia a insegurança deum mercado de trabalho instável, ainda que árduo e penoso, a um trabalhoregular e garantido mas que restringisse a sua liberdade de atuação no dia-a-dia. Estar subordinado a alguém era considerado servidão mesmo dispondo-se de certas regalias.

A visão filosófica - jU.sth·C.~ do -8;cMvis.l'/t()

Platãb, na sociedade idealizada da República, reconheceu que a-divisãodo trabalho traz maiores .benefícios à sociedade e propicia um harmoniosointercâmbio de serviços. Para o filósofo grego, sendo os homens diferentespor natureza, cabe a cada um estar no lugarem que melhor expresse sua habi-lidade. Dessa forma, fica justificado o papel, reservado ao escravo, de reali-z·ar·tarefas necessárias à manutenção da cidade, deixando aos cidadãosas prerrogativas políticas. A*.~apregoava que, nos Estados maisbem-governados, a nenhum cidadão poderia ser permitido o exercício deatividades ligadas às artes manuais, pois isso o impediria de dedicar maistempo à sua obrigação para com o Estado, O exerCÍcio da cidadania, por de-mandar grande parcela de tempo, exigia que o cidadão estivesse liberado detodas as outras atividades.

Com Platão e, de resto, em toda a filosofia grega, a contemplação éaprincipal fonte de contato com a verdade. Significa a cessação de toda ativi-dade política ou de trabalno. A palavra grega skole, que também quer dizer"escola", corresponde, em latim, a otium (ócio), que é o "estarlivredaneces-sidade de· estar ocupado",. e é diferente de "lazer" ou "tempo livre", comoentendemos o ócio hoj.e em dia, pois ele acentua a idéia de um certo períodode ausência de atividade compulsória em razão de determinada causa. Comoafirma Hannah Arendt, o otium está sempre condicionado à isenção de preo-cupações e cuidados. Estar ocupado é estar em estado de não-ócio, é negar oócio. Daí o termo "negócio" (nec-otium), difundido mais tarde na Idade Mé-dia. Para o pensamento grego, a beleza e a verdade do universo só advêm coma quietude requerida pela contemplação, que possibilita a interrogaçãofilosófica, característica da faculdade humana.

São inegáveis as contribuições dos gregos no plano da filosofia, daciência, das artes e da política, cujo patrimônio cultural está presente até osdias atuais. Todavia, no plano econômico, os reflexos da visão de mundoescraMocrata.retardaram o desenvolvimento da técnica.

Encarar o trabalho como degradante e, em decorrência, conceder 'poucaatenção à invenção técnica é característica das sociedades escravistas. Quan-d();amão~àe.obraescrava é abundante; prática e barata, não há incentivo àpesquisa e à criação de artefatos mecânicos. O declínio da civilização antiga,influenciado pela expansão da escravatura, provocou o descaso pela aplica-ção útil das invenções, acarretando baixa produtividade e alto custo na manu-tenção de um exército para conter ou sufocar rebeliões escravas.

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De acordo com o historiador M. I. Finley:

"( ... ) a escravidão no século IV d.e. já estava em declínio, nãocomo resultado de um movimento abolicionista, mas em conseqüênciade mudanças socioeconômicas complexas que substituíram o escravo-mercadoria e, em grande parte, o camponês livre, por um outro tipo detrabalhador: o c%nus (... ), o servo. Os valores morais, os interesseseconômicos e a ordem social não foram afetados por essas sutis mudan-ças na condição social da população submetida. Tampouco desapare-ceu completamente a escravidão da Europa. Os problemas jurídicoscriados pela existência de escravos tomaram mais espaço que qualqueroutro tópico na codificação do imperador Justiniano no século VI d.e.Filósofos, moralistas, teólogos e juristas continuaram a disseminar umavariedade de fórmulas capazes de explicar, a eles e à sociedade em ge-ral, como um homem podia ser um homem e um objeto a um só tempo.O mundo ocidental teve de esperar ainda mil e quinhentos anos depoisde Sêneca para dar o passo final, ou seja, propor que a escravidão eratão imoral que devia ser abolida - e mais trezentos anos para que talabolição se concretizasse, pela força e pela violência." (M. I. Finley.Aspectos da Antigüidade. São Paulo, Martins Fontes, 1991.)

Outros povos

A aversão pelo trabalho não era privilégio da elite grega. O historiadorHeródoto já a atribuía a outros povos, como os egípcios e os persas. Diferen-temente da elite dessas sociedades, aqueles que precisavam trabalhar ardua-mente a terra com suas próprias mãos para sobreviver recebem do poeta gre-go Hesíodo, no século VIII a.e., palavras encorajadoras. A esse poeta é atri-buído o pioneirismo do tema trabalho, muito antes de Platão e de Aristóteles.Hesíodo se lança em defesa da atividade laboriosa, tratando-a com honra edignidade. Para ele, o trabalho é o único meio de fazer reinar a ordem e salva-guardar a justiça.

No entanto convém lembrar que essa exaltação do trabalho e a conde-nação da indolência sempre ocorrem nos períodos de escassez de trabalhado-res e de elevação do preço do trabalho. Surgem ideologias de reabilitação dotrabalho para conferir-lhe estatuto de nobreza. Nas sociedades de livre merca-do e de escassez de mão-de-obra, o enaltecimento do trabalho transforma-seem preocupação central.

O ócio, no sentido de algo a ser alcançado como fim em si mesmo ecomo necessário para o exercício espiritual, sofre modificação na sociedaderomana. Nela, o trabalho vai sendo introduzido e exigido como condição in-dispensável para o gozo do ócio. Em Roma, os filósofos estóicos (séculos IIIe II a.C.), conhecidos pela austeridade e rigidez de seus princípios morais,influenciados pelos ideais gregos, ponderavam que o desfrute do tempo livre

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deveria ser efetivado com seriedade - otium cum dignitate. Também o filó-sofo estóico Sêneca apontava indivíduos com intensa ocupação que busca-vam o otium não mais como um fim em si mesmo, mas como contraposiçãoao nec-otium. Nota-se que já não se trata de sentir-se livre do trabalho, comoentre os gregos, mas de um "repouso" necessário para a recuperação dasenergias antes da volta ao trabalho; portanto, de contemplação, para os gre-gos, o termo se metamorfoseia em descanso (diversão, repouso) para os ro-manos. Esse novo ideal permanece e chega até a Idade Média.

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"Gasta-se o tempo de modo não-produtivo, primeiro porum sentimento da indignidade do trabalho produtivo e, se-gundo, para demonstrar a capacidade pecuniária de viver umavida inativa." (Thornstein Veblen, A teoria da classe ociosa.)

Nac,lflade'Méd,ia'ltassoot'1da~FedominaRtem0fl'tedla'ieconomia.agr4eola,o trabalho servil erarea.lizado empequenas comunidade.s.Jiuuitas,vez.escauto.suficientes e quase sempre.,dicS't<m"'es,cl0·meriCadoda'cidaoo~,(:;;omoúnica fontede·subsistência.e riquezaT'~,pGsse.da.teffa'era condição.deJiber.dadeepoder.A grande maioria. dos que nãoapossuiarn muitas veZeS levava Uma vida:se·melhante à dos antigosescravos,embel'afossem livresjuri,diearnenttkNãe háevidências, nesse período, de que existisse ex.altação do.tFabalhllh' Não mere-cendo uma preocupação especial na estrutura social e econômica daquelaépoca, ele absorvia apenas uma pequena parcela da atenção da classe domi-nante. Mas isso não pode servir de argumento para comprovar sua de-simportância na manutenção da economia medieval.

Os escritos e as gravuras medievais muitas vezes nos induzem a umafalsa noção da vida no campo, sugerindo uma imagem paradisíaca de pas-seios e repousos, como se a intensa atividade produtiva fosse característica dacidade. Muitos historiadores têm desmascarado essas idéias e as atribuem auma simplificação dos romancistas, poetas e pintores, que imaginavam, emsuas obras, uma paisagem rural destituída de trabalhadores e de trabalho, típi-ca do que se poderia chamar de "romantismo bucólico". Em vez disso, ot1'a-balhoera necessário; a fim degaraptirasobreviyênera-da'faJmlia,'e umaes-pécie'de tributo do.servo'r>arao senhof.;",devecia"séF<de4,aixa"pr0dl:1tividade,pois:ooo·ehavia.'mna economia,··de-mercaoo'que,·eoffij1lt>Ftasse'ex-eedentes;.;o1'itmo,c;\asatividades e a sua interru~ão'-deveriany'Se1""ditados pelas chuvas,peloas.'estações do anoepero ciclo dodiatl'da'i'foÍte.

;.Vi~ãoreDgiosa .Q catolicismo deu pouca importância ao que estava contioo"nos·.escri.

tos bíblicos acerca do trabalho~ Quando o fez, enfatizou a virtude dos,humi·l-des e desaprovou a condutado&epod0fOsos.. A interpretação do textosag.pado

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~ervi!!,,ªOs católicos"para criticar Q apego· demasiado ao>trabalho e, canse-qü.entemente, o esquecimento da veneração aDe\1s. Isso toma-se mais evi-dente quando se estima que havia 141 dias santos na época.

O Sermão da Montanha faz uma alusão direta ao tema: "Olhai os líriosdos campos, não trabalham nem fiam ... ". Os cristãos medievais, longede maldizer a situação de penúria em que muitos viviam, podiam se conso-lar com o que Jesus Cristo havia dito das aves: "Vede as aves do céu, nãosemeiam nem colhem, nem guardam as provisões e, contudo, o Vosso PaiCeleste alimenta-as. Não .vos aflijais dizendo: que teremos para comer ou beber,que teremos para vestir? São os pagãos que buscam isso com diligência".

Se.hac\liacil;lJltacl~Ní.'altação.do,tr-abalho,~issQocorúftmais .nQ&entido.<tiiticd""pJinaF'"de.manter as pessoas ocupadas, e,não como. uma obrigação comum atodos, O trabalho não era tido. Gomo algo nobre,. ou como fonte de satisfaçãQ,j.::l,'que,infindáve1e tedioso;,Era valorizado apenas na medida ,em quecontri-bula-'\3ataaresignaçã,ocristã,ea··res.tay..r:ação da pureza, da,mente,. SetMia'pa;r,aaf.a&tai";aspessQasdatpregui~a, segundo sugere o provérbio popular "Mãosvadias, coração louco". O corpo, origem de todo pecado, deve permanecerocupado para afastar-se das tentações diabólicas. Como se vê, não·,hávene.ra~

~ção do.trabalh0' em nome de uma maior ,produti vidade;,.ele g. um meio·de

X'••. salv·a~ã0;mna7oportmTidade,'OfeFecidapel<l" graça~;.divina,.de Tooenção.pelapenit&ncia.

Pensador da época, São,1i'ornas de Aqg,iner{122§,,,k224}, inspirando-seem Aristóteles, construiu um corpo filosófico queencwava :o trabalho peloprism'bmoraLe,nawl"almente.,teológiGo. Esse pensador criou uma complexae consistente concepção de umuniverso cristão no qual a leihumana é parte do sistema da leidivina e, assim, o indivíduo éconclamado a ocupar o seu lugarespecial na economia das coisas.O tF·abalho·,hlimtm~·iftl'8>"hu,,"lUana.-...,é· Gon&idel'ad&u'ma''ilti-vidade·-eapa:b ·de"ref1eti:r o@'1Jf{)-

lottgar a..criaçi1Q,.divina '-.,.....Q'f'S

dtMma'; Na sociedade por eledescrita haveria uma harmônicatroca de serviços que contribui-ria para o seu funcionamento.

Uma comunidade da Idade Média.Muitas vezes, esses pequenos nú-cleos tinham auto-suficiência eco-nômica.

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A vida predominantemente rural, acarretando pouca comunicação en-tre as distantes aldeias e vilas, e a ocorrência de práticas sociais milenarescom mudanças quase imperceptíveis fizeram com que os indivíduos dessasociedade fechada, de equilíbrio estável, tivessem suas atividades na hierar-quia social nitidamente definidas. Aqueles mais inclinados a mandar do que aser mandados eram aceitos com naturalidade. Nessa visão de ordem, a har-monia está na disparidade. São :rúmásdeAqui:a.(h'v:ia~·trabaloo,,"mao.at.i;yi<.da~'PresQindível·selitlente'para.·suprir asnec.essidades .humanas,.pois,l;la-v'6lldo"€.tmdiç6es'cles1iIbsistêneia;o homem nãe-teriaa.obrigaçãode·trabalhar.Infiuenetada;,peles'<ideais<d()"mEU7f€l(;y·;gr-eg(i);t'ecssa,;~~bri~0.~;$,,~t:aQaU~Q1'l'lestra;ainda·asuperiüridade'àa"viàlt'0@ntemplativa"agol'lt"vinwl:tlada,à,aFtro.X'im~'6''à0'f}eHS'. Do ponto de vista econômico, advertia-se para o perigo deo homem "ambicionar vôos mais altos".

O catolicismo, ao considerar riqueza e pobreza como dons de Deus,postergava a igualdade para um futuro reino divino, perpetuando, assim, ainjustiça no tempo presente. Em muitos mosteiros explorava-se o trabalhoescravo, pois, sem ele, "quem haveria de trabalhar?". Diferentemente da An-tigüidade grega, atenuava-se o tratamento ao escravo, não mais consideradoum instrumento ou objeto de propriedade "que se distinguia do animal apenaspor ser dotado de fala". Quanto à participação no culto religioso, todos eramtratados como iguais. Havia também algumas tentativas esparsas de condenarou atenuar a crueldade do cativeiro.

Para além da Idade Média

A crescente obrigatoriedade moral do trabalho para aqueles que nãonecessitavam dele parece ter começado nos mosteiros. Os monges, além deimpor uma rígida disciplina nas suas atividades religiosas, eram obrigados adedicar um certo número de horas aos-trabalhos manuais, abrindo, assim, umprecedente na vida monástica. Sendo a desocupação inimiga da alma, os ofí-cios manuais se apresentavam como algo benéfico para a mente, e daí,a ne~cessidade do relógio para regular o tempo das obrigações diárias.

Não havia, até então, na civilização medieval, uma referência precisapara avaliar o escoamento do tempo, atrelado ao ritmo natural das alternânciasdo dia e da noite de um mundo predominantemente rural e artesanal. A passa-gem para a cultura urbana tampouco vem alterar de forma significativa essequadro. Segundo o historiador francês Lucien Febvre, o controle do tempo naEuropa ocidental, no fim do século XVI, era feito por instrumentos bastantegrosseiros. Os raros relógios, imensos e rudimentares, funcionavam apenasalgumas horas. Destacam-se nessa época os relógios colocados nas torres dasigrejas ou em outros pontos elevados, por meio dos quais os habitantes con-trolavam o tempo. Foram, pois, justamente os religiosos, cuja vida monásticaexigia uma certa disciplina de acordar cedo, orar e trabalhar, que impuseram

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um controle mecânico do tempo. Para se ter idéia desse "tempo vago" em seusentido amplo, os registros históricos dão conta de pessoas que ignoravam aprópria idade ou hesitavam entre várias datas de nascimento. No cotidiano,ao referir-se às horas, era impensável subdividi-Ias em minutos, como faze-mos hoje em dia. Ao referir-se ao tempo necessário para a realização de de-terminadas tarefas empregavam-se expressões como "o tempo da cozedurado arroz", "a duração em que o milho fique assado" ou "o tempo que se levapara rezar uma ave-maria".

A lentidão no trabalho, na visão do estudioso francês GeorgesFriedmann, não pode ser confundida com a indolência. Embora não possa sergeneralizada, há indícios, porém, de que não havia, durante a Idade Média,uma obrigação de ritmo acelerado no trabalho e as pessoas raramente traba-lhavam mais do que a metade dos dias do ano. Era grande o número de feria-dos oficiais e dias santos. As condições climáticas ditavam o trabalho, de jor-nada longa no verão e curta no inverno. Havia uma sincronia entre o ritmodas rudimentares máquinas e o movimento do corpo que as fazia funcionar. Otempo dessa sociedade pré-mecânica é o do moinho de vento, que nos lembraDom Quixote, o cavaleiro andante. Em certos lugares a iluminação se faziacom archotes, velas e candeeiros de azeite, quando não apenas pela luz doSol. Os indivíduos eram, dessa maneira, "mentalmente moldados" por esseritmo de vida que revela tradições seculares.

Nas 00 sociedadesa:ristocrátic>,rS';''Pteoetl)'l'a'das;em des4:acar.·os -;títulosrrooHj.ár~cos (};ei"du'llilc. Niscof.lde;-;l'Jl{l!J!E1uês"bar:ão)i'(1)\,despre,z~pelot'l1aba·looofliOO,fiçaorestrit,ª,.a·peGas;Jà.'at,i~,e;~Gak,,,am~and(}-os,eoatémesmo,.,ara,os·0'fícios,mais qual.i~i"O'.á':IDaY1@"era",c0R5iderado~em,o su,a-diotabdade,como indigno parao,AQm@llhdequalidacil8';' cujas>atividadeser.am ;d€diea:da-saQp@llsamônt@,ã€lireção dos negóciospolítieoscreligiosos;"à gestão d~bense,-eventualmeme:"a"ocansações,financeiras" Essas atividades Jlão,eram",cntão,coosiderad.as:tliaibalQi(). Tem-se como exemplo o filósofo Descartes (1596-1650), que se felicitava de estar desobrigado de "fazer da ciência um ofício",por contar com o "alívio de sua fortuna".

Ao tratar da classe ociosa, o historiador econômico Thornstein Yeblenvai buscar a origem dessa classe na discriminação entre as funções considera-das dignas e as consideradas indignas. Ociosidade, para o autor, não tem aconotação de indolência ou inatividade; significa abster-se de ofícios manuaise ocupações mecânicas, dedicando-se apenas a funções puramentehonoríficas. A classe ociosa (nobres e religiosos, por exemplo) ocupava-secom a guerra, a política, o esporte, a cultura e o sacerdócio. Destacava-se da"classe inferior" por não realizar as formas mais vulgares de trabalho manual.Para obter e conservar a consideração alheia e a respeitabilidade, a classe

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ociosa além de ser, teria de parecer rica e poderosa aos olhos dos outros. Ha-via necessidade de isentar-se do trabalho ignóbil, de se exaltar o consumo dosupérfluo e de se ter costumes requintados, a fim de impressionar os outros.

CoRPo~rnES D~ OÇ;c;o~Lentas llludªnças ~ ~-

Com o desenvolvimento do trabalho livre, o crescimento das cidades ea criação de pequenas fábricas, aos poucos essa atitude vai se modificando.Há praticameNte uma inversão.entrecR,ldade,Métiia·.ee,RenasGiffl€mto, comuma cres.cente supremacia qo"faZer''., sohreo"~'B'aeer" . Nesse', períodorenascentista despontam a admiração pelo trabalho e o valor dele, mas princi-palmente o artesanal e o artístico (doesGliltor,do>pintm:,<Qo alquiteto e docientista).

Na produção familiar, os artigos eram consumidos no interior da comu-nidade aldeã. Aos poucos a produção na esfera·dodomínio.privado vai dandolugar ao sistema' de corporações. Por corporação entende-se a união deartesãos visando à defesa dos interesses comuns, tanto no campo quanto nacidade. A produção, vizinha a seus lares, buscava um pequeno e estável mer-cado, não muito distante das oficinas.

Os ofícios exigiam habilidade individual e eram realizados pelos meS'-tres artesãos e S'eusaprendizes. Diferentemente dos assalariados da economiacapitalista, que apareceriam mais tarde, os pequenos agrupamentos produti-vos, com menos de cinco pessoas, gozavam de certa independência: tinham aposse das ferramentas, dispunham da matéria-prima e vendiam o produto doseu trabalho e não a suaforça de trabalho para outrem.

De acordo com a filósofa Hannah Arendt, a supremacia do trabalhomanual., que exigia o contato das mãos tocando a matéria, resgata o trabalhoartesanal do desprezo a que o mund<'l'antigo o havia lançado; dignidade, deresto, até hoje mantida. No transcorrer do século XVI, mais gente admira eadquire o gosto de "pôr as mãos no barro" para criar. Por outro lado, as pri-meiras sementes do capitalismo começam a germinar, direcionando a atençãopara o trabalho como elemento implementador do crescimento econômico edas riquezas.

A ética protestante

Com a Reforma protestante ocorrida no século XVI, pouco a pouco osensinamentos religiosos começavam a dar novo sentido ao sofrimento oriun-do do trabalho, transformando-o em conformismo, em motivo de orgulho esacrifício. Houve uma certa reavaliação da concepção cristã, ao se legitimar oprincípio da obtenção do lucro.

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Essa paulatina mudança fica evidenciada no estudo do sociólogo ale-mão Max Weber, acerca da ética protestante. Nesta a conduta racional tinhapor princípio valores morais que iam ao encontro dos ideais do capitalismoemergente. Weber procura comprovar a existência de uma íntima afinidadeentre a idéia protestante de "vocação" e a compulsão para o lucro. Com isso,mostra haver uma ligação entre a esfera religiosa e o desenvolvimento naórbita econômica. Segundo ele, parece haver uma relação, indireta, entre oprotestantismo e a ascensão da economia capitalista, cuja base está napredestinação de alguns para o êxito na atividade profissional. Há uma ênfasede que a fé deve ser reforçada pelo trabalho. Essa conduta, que culminaria noenriquecimento, não sofreria a condenação de Deus, pois a riqueza não é con-denável quando do adquirido só se tira o necessário para a subsistência pes-soal e o restante é poupado ou reinvestido.

Para o protestantismo, é condenável o desfrute dos bens e tudo o quedisso advenha, como a ociosidade e as tentações da carne. Não se deve, pois,desperdiçar o tempo, considerado dádiva divina. A maior produtividade notrabalho e a recusa ao luxo deram origem a um estilo de vida que influenciouindiretamente o espírito do capitalismo, criando um clima propício para aacumulação de capital. Sendo o trabalho a melhor oração, a obtenção de êxitoe prosperidade através dele revela a condição de "eleito" para entrar no reinode Deus. Trabalhar passou a constituir a própria finalidade da vida.

Essa ética, que muito influiu na mentalidade dos colonos norte-ameri-canos, pode ser exemplificada com trechos de discursos de Benjamin Franklin(1706-1790), que, de origem humilde, se tornou estadista, escritor e inventor.Além de ter conseguido fortuna, Franklin pode ser visto como um modelotípico para o cidadão médio americano. Em seus escritos encontramos a afir-mação de que "tempo é dinheiro"; aquele que vai vadiar perde duplamente,pois, além de deixar de ganhar dinheiro, ainda gasta. Afirma também que terácrédito aquele trabalhador que faz ecoar o som do seu martelo às cinco damanhã, ou às oito da noite. Toda hora desperdiçada redunda em uma perda detempo que poderia ser empregado no trabalho, assegurando, assim, a glorifi-cação divina. Conformar-se em ser pobre era reprovável, pois equivaleria aquerer ser indolente, um desafio à glória de Deus. Max Weber interpreta essediscurso de Franklin como a expressão de um modo de agir típico de valoresindividualistas que busca legitimação por meio de um conteúdo ético queapela para a auto-realização; dessa forma a acumulação de capital passa a serum fim em si mesma e, sobretudo, um dever do indivíduo.

Segundo Weber, a postura de Franklin, difundida no século XVIII eaprovada pela sociedade, seria condenada tanto na Antigüidade quanto naIdade Média por ser considerada uma atitude inteiramente desprovida de auto-respeito. O espírito do capitalismo envolve uma filosofia de avareza, que ape-Ia para o ideal do homem ativo e poupador, para quem a riqueza é um deveraté mesmo social, pois contribui, indiretamente, para a ordem da sociedade eo vigor moral da nação. Com relação à divulgação de idéias, os capitalistaspreparavam a sociedade para a arrancada econômica que viria mais tarde.

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.'o t1m do :antigo regim~.

o regime.feudal;. que teve seI)!aflogeuentfeif)s'·800ulf}S'FXi.I,e~Xi.I.v,.s{')ffeuum Jentoe 'quase impe'l'ceptível'processode definhament'O, .•Diver{;os·fat0rescontribuíram para a'suacderr-ocada: a falta de um poder que centralizasse oexcesso de leis, impostos e taxas cobradas por feudo, dificultando o livretrânsito do comerciante; a Peste Negra, epidemia que assolou a Europa, redu-zindo a população camponesa, o que, conseqüentemente, valorizou e encare-ceu a mão-de-obra, fazendo com que o servo perdesse o medo da autoridadedo senhor; por fim, as constantes fugas dos camponeses para as cidades, ondese expandia o livre comércio. O surgimento das cidades se deu ao redor dasigrejas ou nas cercanias dos burgos, cujos habitantes,€ram chamados de bur-gueses. Os burgos eram fortalezas que protegiam 'Os habitantes no caso deataques.

Com a antiga ordem social posta 'abaixo, não 'será mais a nobreza quemditar-lÍ-osrumos dos acontecimentos, masosbufgueses·dotados de capital.

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'4~MÀ1SÁBÊLHASQUEARQUITETOS_',' .. - _. _,._" .. '. - ..• 0 ".'.... ..'-...... .,' •.... " ,.... .. .. '." " ~ ". .. .... _. O.'

"É ainda discutível que as invenções mecânicas de atéagora tenham aliviado o labor diário de qualquer ser huma-no." (John Stuart Mill)

A expansão comercial e financeira propiciou o surgimento do capitalis-mo, cuja culminância se deu no século XVIII, Odesenvolvimento industrialprovocou mudanças sem precedentes na História; o feudalismo perdeu terre-nO'~a burguesia emergiu como classe dominante, impondo gradativamenteseu ideal ec@nâfl'lico.Houve areordenação da sociedade rural centralizada navila e. n:aaldeiacamponesa, e a conseqüente migração da população para oscentros·ur]}anos. Essas profundas transformações econômicas desestruturarama antiga e quase estática ordem social, introduzindo modificações substan-ciais na atividade manufatureira, de natureza artesanal e doméstica, .Q~raba1hofamiliar que prevalecia nas oficinas foi reorganizado, e a atividade de artesIlQsofreu"um processo de desqualificação. A era do maquinismoarrancoumu-lheres e-GI:iançmHio.lar e levou-as ao ambiente sombrio das fábricas,

A dificuldade de mão-de-obra

Enquanto os camponeses e artesãos podiam dosar o ritmo de suas ativi-dades, era bem diferente a sorte dos trabalhadores nas primeiras fábricas: tra-balho ininterrupto durante horas intermináveis, disciplina Severa, .serviçosrepetitivos, frio, calor e barulho, tudo isso acarretando muita recusa ao traba-lho. Esse contexto fez com que os novos capitalistas se tornassem "filantro-pos" e se dedicassem à recuperação dos desvalidos, oferecendo ou impondo aeles trabalhos nas oficinas em troca de comida.

o desenvolvimento do capitalismo só foi possível quando houve mão-de-obra disponível em grande escala. No início, lançou-se mão do crescenteexército de camponeses e artesãos arruinados, oriundos da destruição da so-ciedade pré-capitalista medieval: expulsos das terras e das aldeias,desenraizados e sem uma situação segura na sociedade, infestavam as estra-das, pilhando e matando, É esse melancólico exército de decaídos, mendigos,vagabundos e mercenários que forma os primeiros proletários,

A dificuldade de mão-de-obra é inerente ao caráter estático da vidaeconômica medievaL Com a produção voltada para a demanda tradicionaj e

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não para ganhos ilimitarlos, a mão~de"obra não estava preparada f'ara a novaordem econômica emergente. Dotar a sociedade de um novo ideal é umaquestão que exige longo tempo; assim, enquanto fosse possível usar a terra oufazer artesanato, ninguém iria querer trabalhar para outrem, submetendo-se aum salário irrisório eatodo tipo de opressão. A solução, então, foi impor leisque forçassem as pessoas livres a trabalhar, utilizando-se o sutil argumento.de que eram vadias. Na Inglaterra, o operário que abandonasse a fábrica arris-cava-se a ser preso. A classe produtora emergente, ao condenar a indolência,construiu uma nova moral, poderosa e eficiente aliada para a exploração dasforças trabalhadoras necessárias, impondo penalidades severas a mendigos evagabundos.

Os "improdutivos" causam mal-estar

Merecem destaque as dramáticas exposições do filósofo francês MichelFoucault em História da loucura. Quando incursiona pelo âmbito econômi-co, dá mostras da mudança pela qual passou a sociedade a partir do séculoXV: a nova ordem econômica concedia, aos que representassem ameaça deagitações, revoltas ou desordens, um tratamento de reclusão visando à devidaorientação correcional. No século XVI a loucura e a pobreza ainda eram con-sideradas manifestações de Deus e, conseqüentemente, pretexto para suscitarnas pessoas a caridade. Os desvalidos ofereciam aos cristãos a possibilidadede praticar o ato de bondade e, assim, de salvar-se.

Já no século XVIII, ainda segundo Foucault, ocorre a perda da dimen-são mística da miséria e toma lugar a idéia de desordem e de indisciplina:recusar-se a trabalhar tornou-se, então, um desafio a Deus, que não criou o serhumano para a revoltante inatividade do ócio. Agora o pobre passa a at.estar amaldição divina. Sendo assim, de pouco adianta ir em seu socorro através dasobras de caridade. A pobreza estava associada ao enfraquecimento da disci-plina e à frouxidão dos costumes.

Data do século XVII a criação, na França, do primeiro Hospital Geralpara o internamento dos desvalidos. Apesar do nome, não se tratava efetiva-mente de um hospital, mas de uma casa de correção, onde os internos, mão-de-obra barata, eram obrigados a trabalhar sob supervisão cerrada. Esse tipode instituição se disseminou por toda a Europa. Na Inglaterra, com o mesmofim, criaram-se as Workhouses, também apelidadas de "bastilhas dos pobres".O século XVII inaugura o uso do internamento como regulador da mão-de-obra e, ao mesmo tempo, como ocultamento da miséria, evitando, assim, osinconvenientes sociais e políticos de deixá-Ia à mostra.

Nesse primeiro impulso do mundo industrial acreditava-se que a práti-ca do trabalho compulsório servia como panacéia atenuadora das inquieta-ções sociais. Em meados do século XIX, ao se dar conta do fracasso das casasde correção, os industriais são obrigados a mudar de objetivos. SegundoFoucault, essas casas, que 150 anos antes destinavam-se a alojar os indolen-

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tes e imprestáveis para o convívio social, passaram a abrigar prioritariamenteos loucos. Podemos constatar, então, que as primeiras tentativas de segrega-ção, iniciadas no século XVII nas penitenciárias e orfanatos, marcam osurgimento de uma sociedade disciplinar onde os pobres e os libertinos sãoobstáculos à ordem. Um exemplo ocorre na França, onde o operário passa ater uma carteira de trabalho, ficando, assim, submetido ao controle da Polícia.

Para pôr em funcionamento a crescente,atividade produtiva, a explora-ção da·,mào...cte...obra não [icará-restrita apenas aosadult{)s~ Além do trabalhode homens emulheres,recorria"se sistematicamente àexploração do trabalhodo'menor. Relata Paul Mantoux, estudioso da manufatura do século XVIII naRevolução Industrial, que o trabalho da criança era mais apreciado porquesupullAamaim docüi·dade e obediência. em virtude de sua fragilidade;' Alémdisso, era mais barato: bastava um insignificante salário ou; muitas vezes,ah:c1j'a'mentoe:;umar.a~ãO"empão. Mantoux afirma que as crianças eramfreqüentemente chicoteadas e punidas para fazer seus duros trabalhos e man"ter-se acordadas. Acompanhemos o comovente relato que o autor faz do tra-balho infantil:

"Entrar para uma fábrica era, diziam, como ir para um quartel oupara uma prisão. ( ... ) A maioria desses infelizes seres eram criançasassistidas, fornecidas - poderíamos dizer vendidas - pelas paróquiaspor elas responsáveis. Os manufatureiros,principalmente durante. oprimeim. período do maquinismo, quando .aScfábricaserarn construídasfe:vadas .cidades,.e, em.ger;al,longedelas, teriam.tido-grande dificuldadeparaebter a mão-de~obra-dequeneGessitavam ernsua vizinhança'ime-diata.Por seu lati~;,as,.paróquias só queriam se desembaraçar de:suascrianç;as, Aconteciam verdadeiros negócios, vantajosos para ambas aspartes,.emboranãoparaas crianças, que eram tratadas como mercado·rias;. entre os fabrieanteseos administradores do imposto dos pobres.Cinqüenta, oitenta, cem crianças eram cedidas em bloco e enviadas,como gado, com destino à fábrica onde deveriam ficar fechadas duran-te longos anos. ( ... ) Os operários se recusavam, e com razão, a mandaras suas. Sua resistência, infelizmente, não durou muito tempo; levadospela necessidade, resignaram-se àquilo que, a princípio, tanto os haviahorrorizado. ( ... ) Longe de se indignarem, os contemporâneos achavamisso admirável. Yarranton recomendava a abertura de escolas de indús-tria, como vira na Alemanha, onde duzentas meninas fiavam sem des-canso, sob a ameaça da palmatória de uma mestra, submetidas a umsilêncio absoluto, e chicoteadas se não fiassem bem ou rápido o bas-tante. ( ... ) De Fae, ao visitar Halifax, ficou maravilhado ao ver criançasde quatro anos ganharem a vida como pessoas adultas ...

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( ... ) Abandonados ao arbítrio dos patrões, que os mantinha fe-chados em seus edifícios isolados, longe de qualquer testemunha quepudesse comover-se com seu sofrimento, padeciam uma escravidãodesumana. O único limite para seu dia de trabalho era o esgotamentocompleto de suas forças: durava quatorze, dezesseis e até dezoito ho-ras ... Freqüentemente, para não paralisar o funcionamento das máqui-nas, o trabalho continuava sem interrupção, dia e noite. Nesse caso,eram formadas equipes que se revezavam: 'as camas não esfriavamnunca'. Os acidentes eram freqüentes, sobretudo no final dos dias detrabalho muito longos, quando as crianças, exaustas, ficavam traba-lhando meio adormecidas; foram incontáveis os dedos arrancados, osmembros esmagados pelas engrenagens.

( ... ) As fábricas eram, geralmente, insalubres: seus arquitetospouco se preocupavam com a higiene e com a estética. Os tetos erambaixos, de forma a se perder o menos possível de espaço, as janelaseram estreitas e, quase sempre, ficavam fechadas ... " (Paul Mantoux. ARevolução Industrial no século XVIlI. São paulo, Unesp/Hucitec, s.d.)

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Desânimo e cansaço de umafiandeira de algodão em uma fábri-ca da Inglaterra. Era uma cena co-mum, que se repetia em todas asindústrias da época.

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No entanto, apesar dessas condições reais, nem sempre a situaçmo dotrabalhador era descrita com pessimismo e cóticas. Muitos dos explorudol'eSda mão-de-obra, assim como seus ideólogos, tinham das condições de l.ruha-lho uma visão bem diferente. Como exemplo, merece destaque a visuo doinglês Andrew Ure, considerado o diabólico porta-voz da burguesia, que dei-xou registradas em livro editado em 1835 suas considerações filosóficas acer-ca da atividade manufatureira. Propõe Ure a substituição do trabalho do ho-mem pelo da mulher e da criança. Diz nunca ter visto qualquer empregadorinfligir castigo corporal às crianças e nem mesmo tratá-las com rudeza. Con-siderava absurdas as críticas feitas aos industriais, que criavam oportunidadesde trabalho e ainda facilitavam as tarefas humanas "introduzindo máquinasque aliviavam as fadigas". Segundo ele, dava gosto observar aqueles "rotosmeninos" que manipulavam o carro do tear com vivacidade. Afé~l!t:Sêitar~~-tQ"dac4:}1'q,~~Ql·<i).,1lllaq;\;lims·m():'·Flermitiudisc.iplina1ia·mãokde~br-a;â'·J)J:1itI~~at;d.~l~~0,fQif'C~v~n~r~.oP~al'i&Ql\l·"ª,aba:Rdonar,,afllti.gws'1h~":t~~~alb,qPl'io~-egll.laJ;,idade:·,l&elat0sJli·stól;Íeos,dã,,·e~nta>d@,deS€o1ll'ten .•ta~<dos .oper-ários, ,que.~xi§ialfr(Nlifé.it()1ide';1.il're1ires0âFse,J;á'·fora?:!'o1:l;,depaoor"'p'aEa\;:""~l!f;a"'13I1~S&~~"t!"i'

&;;rr~~m~~a-:À'fintf~l;l[~Jii).í~:l'l~i:l*~f.lWiIogt;~~~"lá"'~~t~lil~if~~tÍJ!ia;M0g~am.a.<spe~a~&;"aql1Jelas~u€<;eIíl66n",tll~ól!Jv~Rt~~~Qani~ª~,,~ra·be.l'léfic-apaF<f0'.patrolilat1i)~pot'5'aS",má',,·et~esqldalíficavaflí1';os,04'í(j;io&,e ditavaoo()"F,it~mo·d'kp];odtl~ão;i"enf.m~ •.lo>~Iilª~~a,J\ Ainda segundo Ure, os patrões, só de ouvir falar emsindicatos, já ficavam à espreita, uma vez que o trabalho especializado, alémde encarecer a produção, ainda os deixava subordinados ao livre·arbítrio dooperariado. As máquinas exigiam apenas destreza e vigilância, convenientes,então, para os "olhos vivos" e os "delicados e flexíveis dedos dos menores",cuja habilidade causava inveja aos adultos e chegava a ser para eles umexempl o.Qs"afgumeHtºs;,{;f.Ue.;,sMSct~Hta,yarn·.0-'Ustlqa:mão .•.Qe•.obri!4;nFanl'f~·.~'dE1S} t};<l.Q~~.de.s4tlt.~~0,$o~a,~ábit.o.··a·di~pbna,e a·s;I;loordi!ílJllJà(l),>'

Na visão de Andrew Ure, criar leis limitando a jornada de trabalho,tanto do menor quanto do adulto, significava ir contra o inalienável direito àliberdade de opção do trabalhador que tencionava elevar seu poder aquisiti-vo. Era, pois, um ato autoritário e de falsa filantropia para o povo trabalhador,que dependia da fábrica para sobreviver. Tais medidas, se aplicadas, resulta-riam na demissão de crianças, arrancando-as do seu "leve e lucrativo trabalhona aquecida sala de tecelagem para o frio mundo", e elas cairiam "na mendi-cância e no vício". Para Ure, a interferência do Estado e das associações detrabalhadores só obstaculizavam a possibilidade de o trabalhador sair das ruase da mendicância. As associações e sindicatos, em vez de combater seus pa-trões, deveriam alegrar-se com seus êxitos, pois eram eles que despertavamos "entorpecidos talentos" do proletariado.

Por outro lado, junto a esse tipo de discutso, a religião atuava poderosa-mente como antídoto para os descontentamentos sociais e como forma de

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aceitação das penas do trabalho geradas pela nova ordem econômica. Umaparte essencial das orações evangélicas tinha como doutrina o dever do pobrede trabalhar duramente, de obedecer a seus superiores e de estar satisfeitocom a condição de vida que Deus lhe reservara. Assim, a Igreja contribuíapara a formação de religiosos que exerciam a função de vigilantes da mão-de-obra em estabelecimentos laicos, num período em que a disciplina ainda nãoera invisível, distante e interiorizada.

o exemplo não. vem de cima

Se havia ociosidade na classe dominante, ela era também condenável,mas o malefício maior recaía sobre os pobres. Estes não deveriam invejar osricos, pois o repouso após estafante dia de trabalho é mais bem-aproveitadoque qualquer indolência. Isso reflete a persistência da classe ociosa, que alegagastar todo seu tempo e energia nos "cansativos deveres sociais" de cumpri-mento da etiqueta, como visitas, preocupação com o vestuário, idas a clubes,ações de caridade, prática de esportes etc. Esse segmento social sobreviveráaté a sociedade moderna, com valores diferentes, destoando da ética daexaltação do trabalho. O novo sistema econômico, por razões históricas, alémde se pautar por um sinal produtivista de acumulação de riqueza (não-exis-tente no regime feudal), percebeu que era de seu interesse difundir a ideolo-gia do trabalho, a fim de motivar ou coagir a classe subalterna à produção deriquezas.

O enaltecimento do trabalho se expande e extrapola as obras deemi-nentes pensadores e religiosos que, com suas idéias, prestavam um serviço àclasse dominante. Longe de ser um filósofo, Napoleão, por exemplo, dizia terchegado a uma conclusão definitiva: "Quanto mais trabalhar o meu povo,menos vícios haverá; estarei disposto a ordenar que aos domingos, após osofícios religiosos, se abram as oficinas e os o'perários voltem ao trabalho".Mesmo o árduo trabalho assalariado converteu-se em virtude, não era maisuma maldição ou motivo de desprezo, contrariamente ao que fora proClama-do pelos nossos remotos ancestrais gregos e medievais.

Para muitos, a formação educacional estava descartada, pois levaria osjovens à insolência perante seus superiores e permitiria que tivessem acesso a"folhetos sediciosos, livros perigosos e publicações contra a cristandade", as-sim como os faria querer igualar-se em direitos à classe superior. Dessa for-ma, o ensino, quando aplicado, necessitava de ll,igilância e de punição, paradesenvolver corpos submissos, dóceis, capazes de executar, como indivíduosúteis, qualquer trabalho mecânico. Alguns membros da Igreja aconselhavamas elites sociais a praticar uma conduta exemplar para que os pobres pudes-sem "confiar nelas como guias".

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A total dedicaçã() a() trabalho

Michel Foucault aborda, em uma conferência, o regulamento de umainstituição que, conforme enfatiza, "realmente existiu na França" no séculoXIX: quatrocentos internos deveriam levantar todas as manhãs às cinco ho-ras; às cinco e cinqüenta deveriam ter terminado de fazer a toalete e a cama ede tomar café; às seis começava o trabalho obrigatório, que terminava às oitoe quinze da noite, com uma hora de intervalo para o almoço; às oito e quinze,jantar e oração coletiva. O recolhimento aos dormitórios, às nove horas, erafeito em absoluto silêncio. O domingo era reservado ao dever religioso cum-prido na reclusão da capela, no interior da instituição, para evitar o contatocom o mundo exterior. Entretanto, a fim de dissipar o tédio, pela manhã eramfeitas recreações, leituras e escrita; à tarde, catecismo e passeios sob a vigi-lância do pessoal religioso que controlava a economia, a eficiência do tniba-lho e o enquadramento moral. Os internos não recebiam salários, mas um prê-mio em dinheiro ao final do ano ou no momento em que deixavam a instituição.

Foucault constata ser indiferente, à primeira vista, o fato de essa insti-tuição ser convento, prisão, hospital psiquiátrico, escola ou quartel, uma vezque a prática dessas casas se estende quase que identicamente por todas asoutras instituições sociais. Na verdade, tratava-se de uma fábrica existente naregião do Ródano, que empregava mulheres. Eram, como ele generaliza, fá-bricas-prisões, fábricas-conventos, fábricas sem salários, "onde o tempo dooperário é inteiramente comprado".

Esse sonho patronal, esse caso-limite, foi praticado em larga escala noinício do século XIX, chegando a 40 mil o número de operários que, na Fran-ça, viviam sob tal regime. Diante dessa ocorrência, conclui o filósofo que háduas espécies de utopia: "as utopias proletárias socialistas, que têm a caracte-rística de nunca se realizarem, e as utopias capitalistas, que têm a má tendên-cia de se realizarem freqüentemente". Os espaços reclusos são as instituiçõestotais, cuja prática disciplinar se ramificava por todas as casas de correção,tomando-as semelhantes entre si. Aplica-se a denominação a todas as formasde instituições - internatos, conventos, prisões, quartéis, campos de trabalho- nas quais a autoridade procura estabelecer, através de regras formais eexplícitas, uma total regulamentação da vida diária de seus habitantes.

Como esse tipo de prática não poderia prosperar numa economia delivre mercado, os patrões tiveram de lançar mão de outros mecanismos. Nãoseria exagero afirmar que o maior problema, em face da moderna organiza-ção industrial e social, foi o esforço para construir uma efetiva ideologia quesubmetesse a massa proletária ao gosto pelo trabalho. Para essa moderniza-ção o trabalho livre provava ser mais rentável e eficiente, pois exigia menosinversão de capital na vigilância e no gerenciamento. Para confirmar essaconstatação surgiram novas teorias, que alardeavam a importância e as vanta-gens do vínculo entre capitalismo e trabalho livre.

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5. A (CON)SAGRAÇÃO DO CAPITAL

"Antes de sua expulsão do Paraíso, Adão e Eva desfru-tavam, sem trabalhar, um nível de vida elevado. Depois desua expulsão, tiveram de viver miseravelmente, trabalhandode manhã até a noite. A história do progresso técnico dosdois últimos séculos é a de um esforço tenaz para voltar aencontrar o caminho do Paraíso." (Wassily Leontief, PrêmioNobel de Economia.)

Os discursos religiosos ou moralizantes acerca do trabalho têm seu es-paço ocupado pouco a pouco por teorias que encontram no trabalho objetoespecífico de profundas reflexões filosóficas e econômicas.

Entram em cena doutrinas mais elaboradas, como o liberalismo, surgi-do no século XVII, que ganhou corpo e foi se cristalizando através de diver-sos pensadores burgueses. A sua divulgação cada vez mais dava a muniçãonecessária à ideologia empresarial nascente.

o liberalismo

A idéOkigili'~:iDêtàIO'l:rHberalismo, ao se pautar por um conjunto deidéias contrárias à intervenção do Estado na economia, e sendo favorável àlivre concorrência· do mercado e à exaltação dos direitos individuais, exprimia,no nível das idéias, o que era levado na prática pela burguesia emergente.

Para se impor, o liberalismo foi forçado a produzir argumentos cadavez mais consistentes em face de uma realidade social em que se evidenciavao estado de penúria da população, acentuado mesmo após o decantado fim daservidão. Exaltou"se, principalmente, a "Iibefdade" que o cidadão tinha paravender sua força de trabalho. Progressivamente, teorias como a do economis-ta inglês Malthus, segundo a qual a pobreza se deve ao crescimentodesordenado da população sem a correspondente produção de alimentos, ououtras, que viam na miséria a derrota dos incapazes na luta pela sobrevivên-cia, vão desobrigando a classe dominante de combater a pobreza. Fundamen-tava-se a crença da miséria como inevitável. Uma vertente do pensamentoeconômico nascente sustentava com extrema franqueza que cada um cuidasseda sua própria subsistência.

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o historiador contemporâneo Harold J. Laski, em seu estudo acerca doliberalismo europeu, constata que esse ideal econômico se preocupou maisem defender os interesses da propriedade do que em proteger aquele cidadãoquesó'p()ssuí~,sua força de trabalho para vender. Assim, os ideais liberais seconverteram em uma ideologia disciplinar da classe trabalhadora.

No estudo de economistas como Adam Smith (1723-1790), o trabalhopassa a ocupar o primeiro plano na conquista de riquezas. Ele constata que ariqueza dos países não reside no ouro, na prata ou na agricultura, como era atendência do pensamento do século XVIII, mas no trabalho, capaz de trans-formar matéria bruta em produtos com valor de mercado. No início do séculoXIX, o pensador alemão Hegel (1770-1831) valorizou o trabalho como obje-to de reflexão filosófica e tematizou o desenrolar da luta entre duas consciên-cias, a do senhor e a do escravo, influenciando profundamente Karl Marx(1818-1883).

Época de crescimento econômico sem precedentes, o século XIX fazda organização do trabalho objeto de atenção de diversos reformadores soci-ais. Assim, a divisão excessiva do trabalho é condenada pelo socialista utópi-co Fourier, que a considera "repugnante". Essa primeira fase da teoria e práti-ca socialista foi considerada utópica por acreditar-se na possibilidade de eli-minar a exploração do proletariado através de mudanças ou reformas sociaise econômicas. Ela visava à substituição do conflito e da competição pela har-monia e pela cooperação entre as classes sociais, sem contudo reconhecer aluta de classes ou lançar mão da revolução proletária.

Uma parte dos empreendedores, ditos liberais, alegava ser passageira asituação de miséria e acenava com melhores salários, cooperativas e tolerân-cia de organização sindical. Tais precauções tomaram corpo devido ao perigodos ideais socialistas em gestação. Enquanto puderam, os patrões combate-ram duramente o surgimento de sindicatos e outras formas de resistência dostrabalhadores.

,Su~gea critica

Um dos grandes pensadores do tema, cuja influência se estendeu a todaparte do mundo, foi I<al'l:;Ma.rx.Ele ficou fascinado pela produtividade semprecedl;lntesna sociedade"ocidental e dedicou numerosas páginas de críticas àcondição degradante ernquese· encontravam os trabalhadores. Baseando-sena dinâmica econômica, Marx procurou dotar o trabalhador de uma bagagemteórica e prática capaz de reverter sua condição de explorado. Segundo ele, sóO trabalho gera riqueza, e justamente quem a,produz a elanãoteI1l direito. Suaidéia é a de que p,elo trabalho·o·homemdeixaiÍeser escravo dos desígnios danatuEeza,',moldando a matéria bruta à sua aecessidade. Nessa atividade o ho"mem se '~natural~a"eanatureza se "humaaiza". Quem olha a vida econômi-ca através da circulação exterior das riquezas tem a impressão de uma igual-dade entre dar é receber; no entanto, quem penetra naintimiêade da produção

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fabúJ ,Merifica'flue tí-o,homem que aliena sua força, .4eJrab.í;Üho,para gerarriquezas pri vadas. Nesse4ipO'de atividatree'homel1l:'seJk)m'hinfeli~"nãode~.senvolvestla pVltencialidade, sente-se como algo externo',a'simesmo,;,'esó, sesente {)Clepróprio quando foradO"tralmlhoFrrro trahalho, sente'se\(for:ae8simesmo", diz Marx. Muitos acham estranho, e até certo ponto paradoxal, quea essa crítica à produção capitalista Marx dê, em sua obra principal, o títulonão de O trabalho, mas sim de O capitaL Otrabalho-é",na realidade, operso-nagem'centralna teoria marxista, já que.tiásustenliáculo.ao,capital.

Fábrica do século XIX. Diferentemente da pequena produção artesanal do fim daIdade Média, no século XIX a grande aglomeração humana mudou a paisagemurbana.

<fa~e-~'MafxassegUfa que, o objetivo da revolução;sOttiaiista;não,secumpre

com aemançipação,da ..elassetrabalhadora,rnas com.a liberação do homemem relação aotfabalho! A escritora e filósofa francesa Simone Weil, que poralgum tempo se submeteu ao trabalho fabril, afirmava que a esperança deuma liberação final do fardo do trabalho "é o único elemento utópico do mar-xismo" e deveria tomar-se a verdadeira força motriz de todos os movimentostrabalhistas. Para ela, "o ópio do povo" - que Marx acreditava ser a religião- é, na realidade, o trabalho.

Sob a influência do pensamento de Marx, impregnado da ideologia dotrabalho de seu tempo, boa parte da velha escola marxista ortodoxa fez tam-

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bém uma intensa exaltação do trabalho ao elevá-lo a fator essencial da vidareal dos homens, fazendo coro, ainda que inversamente, à veneração levada acabo pelos capitalistas.

A conquista de novos povos

Esse progresso espetacular do capitalismo, que não passou despercebi-do a Marx, é evidenciado pela extensão de seus tentáculos a todas as partes doplaneta, e principalmente na África e na Ásia, através do colonialismo. Aambição do capital europeu não fica restrita ao seu território. O sutil argu-mento utilizado foi a necessidade de difundir um modelo de sociedade tidocomo o mais avançado, capaz de levar a outros povos, considerados "selva-gens", os benefícios da civilização. Tinha-se como missão levar o progressocultural, religioso, moral etc.

Contudo as razões que encobriam esse ato humanitário da missãocivilizatória eram outras: a necessidade de mercados para os artigos exceden-tes, o controle das matérias-primas e, por fim, a possibilidade de escoar oexcesso de capital acumulado com investimentos nas colônias carentes deferrovias, hospitais, eletricidade etc. A mão-de-obra abundante e barata tinha,no entanto, o inconveniente de fazer parte de uma cultura bem diferente eextremamente contrária a qualquer tipo de trabalho regular. Conseqüente-mente, o nativo foi estigmatizado como indolente e preguiçoso "por nature-za". Diante de uma moral utilitarista, ensiná-lo a trabalhar com afinco era umdireito e até mesmo um dever da missão civilizatória.

Em um relatório enviado por um colonizador à metrópole, dizia-se quefaltava "ambição" aos nativos; que eles "não estavam familiarizados com oconforto" e, para contentá-los, era "qualquer coisa suficiente", exigindo as-sim o mínimo necessário de trabalho.

Ao obrigar esses povos a trabalhar, a História se repetia, como nosprimórdios do capitalismo. A diferença é que os colonizadores estavam agoradotados de "experiências" acumuladas durante séculos, e sabiam como coa-gir ao trabalho aqueles que não estavam acostumados a ele. A estratégia utili-zada, quando não submetia à escravidão todo um povo, era a de endividar ascolônias, impor-lhes pesados impostos e taxas ou expulsar os nativos de suasterras para que eles não mantivessem uma economia de subsistência capaz delhes dar auto-suficiência.

Os nativos, não acostumados àquele ritmo, achavam irracional a obses-são que os europeus tinham pelo trabalho. Os' colonizadores, envoltos emcontradições num mundo de cultura diferente, cuja ordem mantinham atrav~sda coerção e da ideologia da superioridade da raça, vêem a longo prazo seusmétodos deixarem de surtir efeito. Paulatinamente os colonizados, ao tomarconsciência de sua situação, partem para a formação de movimentos de inde-pendência, em busca da autonomia política e econômica.

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Um crítico mais exaltado

Nessa torrente de enaltecimento do trabalho, difundida em quase todasas nações, encontramos, no fim do século XIX, o pensamento peculiar dePaul Lafargue, autor de um livro cujo título já aponta para a sua proposição:O direito à preguiça. Como um dos pioneiros da crítica à divinização do tra-balho, o autor invoca as "terríveis conseqüências do trabalho" na sociedadecapitalista. Ele estranhava "a esquisita mania", presente nos padres, econo-mistas e moralistas e até mesmo na classe trabalhadora, do "amor pelo traba-lho". Para o autor, tratava-se de um estranho vício, uma aberração mental quelevava ao esgotamento do indivíduo. Segundo Lafargue, excetuando-se osque trabalham para a sobrevivência, há aqueles que gostam do trabalho comoum fim em si mesmo: "Uns curvados sobre suas terras, os outros agarrados asuas lojas, movem-se como toupeiras em galerias subterrâneas, e nunca selevantam para observar, ao acaso, a natureza".

Herdeiro dessa tradição produtivista, o nosso tempo, considerado o"século do trabalho", nos faz dedicar a essa atividade toda a nossa existência.

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6. O TEMPO COMO MERCADORIA

"Tem-se vergonha do repouso; a meditação mais de-morada causa remorso. Reflete-se com o relógio na mão, damesma forma como se almoça com os olhos fixos no pregãoda Bolsa." (Friedrich Nietzsche, A gaia Ciência.)

Percorrendo o desenrolar da História, constata-se que na sociedade pré-industrial não havia uma distinção nítida entre o lar e o trabalho. A vida fami-liar confundia-se com o espaço comunitário da atividade produtiva. Estudio-sos apontam a era industrial como responsável pela perda progressiva da ca-pacidade do homem de narrar histórias e de contar suas façanhas e realiza-ções. Essa arte de transmitir experiências é patrimônio herdado principal-mente da produção artesanal, progressivamente em extinção.

Num primeiro momento das invenções de instrumentos, estes eram fa-bricados para se adaptar aos membros humanos e ao seu ritmo de trabalho. Opé que pisa a uva na Antigüidade é também o "motor" dos diversos tipos depedais que movimentam as máquinas simples. Já a passagem do século XIXpara o XX marca um período histórico que intensifica a necessidade do ho-mem de adaptar-se ao ritmo das máquinas. Observando-se a evoluçãotecnológica, verifica-se que a primeira revolução foi a da desvalorização dobraço humano pela concorrência que lhe moveu a máquina e a segunda foi ada máquina de calcular assumindo o papel do cérebro. Depois de longo pe-ríodo de crescimento da produção causado pelos inventos na Revolução In-dustrial, o homem tornou-se apenas um apêndice da máquina. No final doséculo XIX, o fator humano passa a merecer mais atenção, não por um ines-perado humanismo, mas porque o homem já não acompanhava o ritmo dese-jado da produção.

Otaylorismo

O surgimento, nos EstadoS" Unidos, de uma nova concepçãoprodutivista, notadamente no início deste século, é marcado pelo pioneirismodos estudos eJetuadospor Frederick W. Taylor (1856·1915), cuja corrente depensamento passou a ser designada taylorismo. Engenheiro de formação pu-ritana, de princípios rígidos, Taylor foi educado dentro de uma mentalidade

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de disciplina de veneração ao trabalho. Com Taylor, pela primeira vez naHistória, o trabalho merece uma atenção sistemática em seus mínimos deta-lhes, anteriormente negligenciados. Ele funda uma nova ideologiaprodutivista, realçada como um método "{;ientífica);' de.organizaçãodo traba·lho. Ao conceder o estatuto de ciência à sua técnica, confere-lhe o prestígiode um saber desinteressado, objetivo e neutro, dissimulando, assim, uma con-cepção ideológica de trabalho nela revestida. Sua técnica se disseminou pelasindústrias do mundo todo. Com aplicação. ampla,ultrapass@u,osmurosdasfábricas e penetmu'flos trabalhos de escritário'e até mesmo no trabalhojnte-lectual. Ao generalizar-se, seu alcaIlce transformou-a numa técnica·seeial dedominação.

Tantas máquinas quantas os olhos possam alcançar: criança árabe numa indús-tria têxtil do lêmen.

o taylorismo visa à 'racionalização da produção, a fim de possibilitar oaumento da produtividade no trabalho, evitando o desperdício de tempo,"eco-nomizando mão-de-obra, suprimindo. gest0s desnecessários e comportamen-tos supérfluos no interior do processo produtivo. Em sua observaçãocriteriosa, Taylor concretizou de forma exemplar a noção de "tempo títil". Anossa sociedade do trabalho introjetou 'essa preocupação com a obsessão pelorelógio - manifestação concreta do tempo transformado em mercadoria.

Pagos para pensar

Taylor acreditava que o processo de produção de qualquerfábriGa, aose tornar cada .vez mais complexo, não poderia seI' deixado a .cargo dos pró-prios trabalhadores, vistos como resistentes à mudança e apegados à tradição.

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Segundo ele, sem um método objetivo de ação, o trabalhador fica à deriva,desperdiçando tempoeenergia. Além disso, aponta também a necessidade deerradicar a "indolência sistemática" do trabalhador (causadora da miséria),que o faz produzir muito menos do que a sua possibilidade. Essa atitude é,também, conseqüência da crença de que quanto mais o trabalhador fizer "cor-po mole" maior será o acúmulo de serviços, o que evitará a sua demissão.Taylor parte da crença de que o homem é compelido ao trabalho não porquegoste, mas por ser ele um recurso à sobrevivência, e, assim, sua única motiva-ção são as recompensas econômicas e materiais. O trabalho é visto somentecomo um exercício de sobrevivência, não como um ato existencial.

A preocupação maior de Taylor é a desordem com que é feito o traba-lho quando deixado inteiramente nas mãos dos operários. Nesse sentido, aap~ieação de suas idéias visa a acentuar de vez a separação entre o trabalhointelectual (planejamcNto, ..coflcepção e direção) e o trabalho manual (execu"ção) ..no intetiordo .procttSsoprooutiwo.Dentro.dessalógic&"caàa tarefa 'é-de-composta em movimentos elementares e ritmados, em consonância com acadência das máquinas;·possuindo assim uma, "ciência" que deve ser postaem prática pela direQãoda .empresa. O uso do cronômetro, por exemplo, tempor fim eliminar o "tempo morto" ou "dosrnovimentos desnecessários". Cadaoperário realiza a s,ua tarefa. individualmente, com atividades distintas daque~las do operáriovizinho,.e .elimina~se o'trabalho em grupo, gerador decorporativismo,. discussões e pressõ.es,.responsáveispela queda de-prelilução.

Ao reduzir-se a complexidade do saber operário, introduz-se o desinte-resse pela atividade, a monotonia, o tédio e, em conseqüência, a idiotizaçãodo trabalhador. Antes, os ofícios qualificados eram passados, na prática eoralmente, do operário para o aprendiz, o que requeria destreza, tempo e ha-bilidade. Retirando-se-lhe o saber, retira-se-Ihe o poder de força na luta pelaconquista de melhores condições de trabalho.

Na passagem do século, com o crescimento vertiginoso do sindicalismonos Estados Unidos, o taylorismo foi usado para tentar quebrar a espinhadorsal de uma aristocracia operária. Essa categoria de trabalhador qualificadoconflitava com uma massa de operários não-organizados ao nível sindical,dispostos a aceitar qualquer atividade desqualificada.

Pagos para não pensar

O taylorismo tem um poderoso lado perverso: com a,simpliflcação dastarefas, em questão de dias ou de horas um novo operário não~qualificado écapaz "de dar .conta da tarefa-,..epor que não com um salário mais baixo?Com a apropriação do saber operário; ele cria a sujeição dotrabalha.doraosditames d()planejador,.~ánão competindoàquele'discutir o mérito das ordensporeste.emitidas. Organizar, agora, é controlar e vigiar até mesmo os míni-mos detalhes da execução da tarefa, determinando o que e como fazer em umcurto espaço de tempo.

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Segundo Taylor, a vantagem do método é que ele "beneficia;' os maispmdutivos e "pune" os indolentes. Na verdade, porém, sua "ciência" redundaem uma das grandes tecnologias disciplinares do mundo moderno, dissimula-da pela eficácia da produção, tornando o trabalhador uma massa bruta desti-tuída de capacidade crítica e de satisfação, por não realizar atividades criati-vas. Suas tarefas são as de puxar alavancas, apertar botões, supervisionar pai-néis, vigiar equipamentos ou alimentar máquinas com matéria-prima.

Taylor acreditava que o aumento da produtividade do trabalho iria be-neficiar financeiramente não só o patrão como também o trabalhador. Na prá-tica, porém, isso não ocorreu. Podemos confrontar o otimismo de Taylor comos estudos realizados meio século mais tarde por Georges Friedmann, pesqui-sador do trabalho "parcelarizado em migalhas". Ele visitou diversas fábricasdo mundo todo e constatou que, em fração de minutos, repetem-se as mesmastarefas durante o dia todo, por um salário irrisório.

Ofordismo

A linha de montagem, criada por Henry Ford (1863·1947) na fabrica-ção em massa de automóveis, seguiu a trilha aberta por Taylor. Essa atividadeem cadeia elevou o grau de mecanização no trabalho, reduzindo ainda mais ainiciativa e a autonomia dos 0perários. Ao ditar a cadência do trabalho, alinha de montagem permite ·um grau de padronização da mão~de.obra queelimina o operário zeloso ou o preguiçoso, pois ambos retardariam a marchada produção. Através da esteira transportadora o fordismo fixa o operário emseu posto, fazendo com que as peças e os componentes venham até ele, paraque "nenhum homem precise dar um passo", diz Ford. Essa obsessão peloprodutivismo em sua plenitude teve excelente representação no filme Temposmodernos, de Charles Chaplin.

A linha de montagem, efetivada em 1909 na indústria Ford, fez comque a rotatividade da mão-de-obra (turn-over) se aproximasse da surpreen-dente marca de 380% ao ano. Para evitar esse alto índice de pedidos de de-missão, Henry Ford triplicooos salários, medida considerada um marco nasremuneraçõesootFabalho. Entretanto, a repetição das atividades e o tédio deum trabalho no qual os operários passavam a maior parte do tempo calados,segundo observação do próprio Ford, faziam com que os trabalhadores (princi-palmente os mais inteligentes) não suportassem por muito tempo essa atividade.

De fato, em momentos de pleno emprego, esse modelo clássico de pro-dução não consegue manter o operário "amarrado" à bancada de operações,pois ele perde o medo do chamado "chicote da demissão e do desemprego".Assim, a rotatividade da mão-de-obra em algumas indústrias automobilísti-cas americanas nos anos 60 chegou à marca de 100% ao ano. A seleção e orecrutamento de novos empregados elevam o custo das companhias. Portan-to, o taylorismo não se mostra o método mais adequado em determinadasépocas. Uma grande empresa de telefonia dos Estados Unidos chegou a en-

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trevistar 2 milhões de pessoas para recrutar 250 mil funcionários. Na Europa,na mesma época, em algumas empresas o índice de faltas ao trabalho às se-gundas-feiras variava de 5 a 25% do quadro funcional.

É cada vez maior a mão-de-obra feminina nas linhas de montagem.

Atualmente acredita~seque,~com a revolução microeletrênica,.a&~mpli~fiGaçã.@'ci.astm"{Jtasc!legai'á,a.,tal.pontoque qualquer btaç,o:mecâniêo dê robô150êê't1f'sum,tituir'parte.oo;4!EaballIDhU'tl'lml9.Estudos recentes atestam a exis-tência de dirigentes empresariais maravilhados com a generalização dessapotencialidade. Parafraseando o filósofo Michel Foucault, isso seria mais umautopia patronal em vias de se realizar: a fábrica sem operários, suprimindoassim todos os conflitos que deles advêm.

"Grande parte do trabalho nas fábricas consiste em levantar ob-jetos, deslocá-los e colocá-los novamente em outro lugar. Praticamentetodo o trabalho desse tipo já pode ser feito por robôs, apesar da mão-de-obra humana ser mais barata. ( ... )

( ... ) como disse T .•A. Heppenheimer (... ), eles [os robôs] 'nãoficam entediados, nem tiram férias, nem têm necessidade de benefíciossociais ou esquecem latas de refrigerante dentro dos produtos manu·fa-turados'. Além disso, 'eles se sujeitam ao calor, radioatividade, vaporesvenenosos, barulhos estridentes - sem um murmúrio sequer'. E, prin-cipalmente, eles são capazes de trabalhar 24 horas sem cansaço, sem irao banheiro, sem ter que assoar o nariz e, portanto, são mais produtivosque qualquer ser humano, e um homem ou mulher pode, freqüentemente,supervisionar o trabalho de vários robôs. O aumento de produção porhora é potencialmente enorme.

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( ... ) A idéia de que os robôs irão criar mais empregos do queeliminá-los é somente mais uma das ilusões fundamentais do setor. Aoutra é de que os robôs necessariamente irão liberar a humanidade 'dotrabalho alienante'. Na verdade, eles tanto criarão quanto eliminarãoempregos, porque os engenheiros que projetam robôs tentam garantirque sua utilização implicará a mais barata mão-de-obra humana pos-sível, e preferivelmente nenhuma. ScoU citou o caso de um homem de28 anos, retardado mental, que supervisiona as máquinas de controlenumérico instaladas numa loja em Lincoln, Nebraska, 'porque suas li-mitações lhe garantem o nível de paciência e persistência' necessárias àfunção (... )" (Roger Draper. "O mundo dos robôs". In: O Estado deS. Paulo, Caderno de Cultura. 1.° dez. 1985.).

A experiência humana

Mas essa utopia patronal ainda pode estar longe de ocorrer, pois.aautomati,(l,{lÇ:ãQ,4otal.deurnaJábricaeontinuam\'lávek,não·.s-Q1.pe.loaltoeCltsto,com\')' tamliJérnpeJ:aff~petiti"..idadefeadav~maiQr da produção atual, quedepende.da,babiÜdade;dos,tcabaJhadores. Para fazer frente à concorrência,crescente em escala planetária, há uma luta nas empresas contra a planifica-ção burocrática da produção. Com empresas cada vez mais gigantescas ecomplexas, somente através do empenho humano é que se consegue uma pro-dução mais ágil de bens de consumo.

Estudos constatam que, se fosse possível concentrar todo o saber nacúpula da empresa, como quer o taylorismo, isso criaria um abismo tão gran-de entre a gerência científica (diretores, engenheiros e técnicos) e a base dafábrica que o sistema não funcionaria. Em alguns casos a produção só funcio-na porque os trabalhadores "se organizam entre si" para "tapar os buracos",ou seja, retocando os absurdos esquemas de planificação burocrática através datransgressão de regras e de instruções oficiais sobre a organização do trabalho.

Apesar de os empresários procurarem não depender do saber práticodos trabalhadores, o capitalismo só tem possibilidade de funcionar "com acontribuição constante da atividade propriamente humana" (CorneliusCastoriadis). Os trabalhadores, de forma criativa, vão fazendo retoques nosesquemas irracionais dos técnicos, desdobrando-se contra as diretrizes ofi-ciais, muitas vezes fingindo observar as prescrições do regulamento para quea produção possa ser efetivada. Em uma era de superespecialização ecompartimentalização da produção, o técnico ou o especialista muitas vezesdesconhece as conseqüências das normas baixadas ou as implicações delasem outros departamentos da empresa. Na busca da concentração do saber, acúpula se "aliena" acerca do que se passa lá na base, onde se dá a produção ..

Quando os trabalhadores resolvem fazer' a "greve do zelo", ou seja,quando assumem rigorosamente as diretrizes prescritas pela gerência científi-ca, aparecem, então, os problemas e os defeftos de fabricação, revelando mui-

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tas vezes a incoerência dos organogramas oficiais. Essa atitude põe em ques-tão a ideologia do discurso da competência dos "homens lá de cima". Dando-se conta disso, a empresa evita a tática do conflito e é forçada a levar emconsideração o saber real, a experiência dos trabalhadores, conclamando-os aparticipar, a se engajar na sua gestão. A razão dessa preocupação tem muitoque ver com os conflitos sociais da década de 60 (Estados Unidos e Europa) etambém com os períodos de prosperidade econômica, que levaram à carênciade mão-de-obra e à neutralização da ameaça de desemprego. Nesse momento,o taylorismo e o fordismo mostraram a sua fragilidade: não conseguiramprender o trabalhador à empresa nem evitaram a apatia e as faltas ao trabalho.O esgotamento desses métodos (surgindo daí novas facetas como o neo-taylorismo, o neofordismo, os círculos de controle de qualidade etc.) levou auma revalorização da força de trabalho como saída para se evitar a crise daprodução.

As empresas passaram, então, a incentivar a participação dos emprega-dos ou a co-gestão com grupos de trabalhadores, que atuam dentro do local detrabalho, preocupados com o controle de qualidade. Imbuídas do espírito decooperação entre o trabalhador e a direção da empresa, as equipes se esme-ram em dar sugestões e soluções que possibilitam a melhoria e o aumento daprodução, a redução dos custos e o aperfeiçoamento dos produtos. Mesmoque não redunde em ganhos econômicos, o engajamento dos grupos servepara criar um clima de harmonia e espírito de equipe. Propicia, também, adescoberta de novas lideranças que se contraponham às lideranças sindicaisjá existentes, que, ao relutar em participar de acordo com as exigências daempresa, sofrem um processo de exclusão ou marginalização.

A História tem mostrado, no entanto, que esse embate não está termina-do, pois a cada ação do capital há uma reação do trabalho.

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7.A MÃO (IN)VISÍVEL DO ESTADO

"Nós só queremos operários fiéis, que nos tenham nofundo do coração pelo reconhecimento do pão que os dei-xamos ganhar." (Alfred Krupp, industrial alemão.)

No século XX vemos a preocupação com o trabalho ultrapassar o âm-bito da empresa e ganhar o interesse do Estado, que, em alguns casos, passoua assumir, por conta própria, a tarefa de ditar as normas do ato produtivo,interferindo no dia-a-dia do trabalhador. Os acontecimentos históricos têmdemonstrado que excluir o trabalhador da participação nas riquezas oriundasdo processo produtivo pode abalar a estrutura de poder de um país. O descon-tentamento agravado pelo conflito capital versus trabalho pode, em últimainstância, gerar uma revolução contra o Estado. Como exemplo, o fascismo eo comunismo, que falavam em nome dos trabalhadores e para eles voltavamsuas atenções.

Muitas nações européias, sofrendo os reflexos da Primeira Guerra Mun-dial e diante da crescente estagnação econômica, foram arrastadas por todos osefeitos dessa crise, como inflação, greves, desemprego, ocupações de fábricas eo fortalecimento dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Setores mais con-servadores da sociedade, temerosos do que pudesse acontecer (após o exemploda Rússia), ansiavam por um regime que pusesse fim à desordem.

A nova ordem

Como resultado desse clima, vinte anos após a Revolução Russa, ocor-rida em 1917, quase toda a Europa se viu tomada pelo fascismo, ou, de formamais abrangente, pelo nazi-fascismo, que no universo ideológico da burgue-sia funcionou principalmente como um forte componente anticomunista. Foi,além disso, um movimento de massa, vitorioso política e ideologicamente,com adeptos em todas as camadas sociais, inclusive com ramificações naclasse operária e junto aos trabalhadores do campo. Não casualmente suamaior penetração ocorreu nas camadas sociais politicamente mais desor-ganizadas.

As classes dominantes, abaladas com a intensa luta ideológica dos anos20 e 30, na Europa, encontraram no movimento o instrumento ideal paraerradicar a perigosa e inaceitável convivência com os comunistas na vida SOe

cial. Os "excessos" cometidos pelo nazi-fascismo eram tolerados, porém, pelaburguesia, dada a impossibilidade dessa classe de impor plenamente seu ideal, eli-minando, assim, movimentos contestatórios de ordem econômica e política.

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A pequena burguesia (os pequenos proprietários e comerciantes), cadavez mais empobrecida, sentiu-se ameaçada, de um lado, pelo capitalismomonopolista e, de outro, pelo socialismo. Deixou-se, então, seduzir pelo nazi-fascismo, que acenava com o fim dos "abusos" do capitalismo especulativoou parasitário, com a glorificação da pátria e com a inviolabilidade da proprie-dade privada. Sutilmente os nazi-fascistas se apropriavam de muitas das ban-deiras de luta dos socialistas e as enfraqueciam. Com o objetivo de despolitizaras massas trabalhadoras, a luta de classes, quando não era negada, era deslocadapara outra esfera: o nacionalismo contra o capitalismo internacional.

Carregado de ranço autoritário, esse nacionalismo logo mostrou suahostilidade aos princípios da democracia, pois alegava que o pretensoigualitarismo democrático escondia a dominação de uma classe (burguesa)sobre as outras. Aos trabalhadores, impunha a necessidade de disciplina eordem, com o controle absoluto e arbitrário exercido pelo Estado. Os nazi-fascistas eram francos ao exigir a obediência ao chefe (o "Duce" ou "Führer").

Ao assumir o poder, o Estado autoritário mostrou sua verdadeira face: apequena burguesia foi afastada, as teses anticapitalistas abandonadas e as or-ganizações independentes dos trabalhadores desmanteladas, sendo seus líde-res perseguidos e substituídos pelo dirigismo estatal. Tais medidas podem serexemplificadas com o ocorrido na Alemanha em 1933 e que consolidou defi-nitivamente a ditadura de Hitler:

"Na 'festa do dia nacional do trabalho' (l.0 de maio), o governoanunciou a 'sincronização', isto é, dissolução e fusão de todos os sindi-catos e associações profissionais, enquanto as SA ocupavam as sedes,prendiam e assassinavam seus dirigentes. O passo seguinte foi a consti-tuição, em 10 de maio, da Frente do Trabalho Alemão que, além deagrupar toda a estrutura sindical, centralizava daí por diante todas asmedidas de controle, moralização, propaganda, lazer, educação,mobilização, dentro e fora dos locais de trabalho, de todas as categoriase ramos de produção. Patrões, empregadores, pequenos proprietários,funcionários, todas as pessoas da 'produção' nela também eram repre-sentadas na condição de membros de uma só 'comunidade de trabalho'.Por enfeixar tantos poderes, a Frente agia sintonizada e subordinadaaos órgãos de governo e de repressão (ministérios do trabalho e daguerra, SS, Gestapo e o Partido), e necessariamente acabava cedendoaos interesses patronais ...

Paralelamente, outras organizações dentro da Frente, tais como a'Força para a Alegria', o 'Serviço do Trabalho' e a 'Beleza do Traba-lho', foram sendo criadas para moldar o 'novo homem', ou seja, invadiro espaço de existência dos trabalhadores na fábrica e na privacidade,apagar neles a idéia de 'classe' pela reinvenção da noção de 'indivíduo'e de 'pessoa' como seres produtivos, úteis, moral e fisicamente sadios,belos e confiantes, e identificá-los como órgãos integrados afetiva ementalmente à 'comunidade popular-racial', a imagem do corpo-Umpersonificado no Führer." (Adalberto Marson. "O éter da comunidade:política e legislação do trabalho sob o nazismo". In: Revista Brasileirade História, n.O 7. São Paulo, 1984.)

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Um novo homem

o Estado nazi-fascista representou uma das formas possíveis de domi-nação burguesa, uma saída para as crises cíclicas do capitalismo, e funcionoucomo uma alternativa à alienação na atividade industrial e ao descontenta-mento oriundo da exploração do trabalho. Houve preocupação com a criaçãode organizações voltadas para a formação de atividades recreativas e cultu-rais para o trabalhador. Essas instituições populares, patrocinadas pelo Esta-do e por empresas privadas, visavam a defender o espírito de competição e oculto ao corpo através dos esportes, com a intenção de formar operários sau-dáveis, puros e viris. Esse regime ditatorial não descuidou da manipulaçãopsicológica da massa, canalizando a energia oriunda dos recalques, ressenti-mentos e impulsos reprimidos dos cidadãos para servir aos interesses da do-minação pelo Estado. Para manter os operários mobilizados, eram promovi-das manifestações públicas pomposas, com marchas e desfiles em que a es-pontaneidade era deixada de lado para dar lugar a ruidosos espetáculos, comcoreografia supervisionada pelo Estado. O regime buscava também a solida-riedade do setor produtivo, para estreitar os laços entre patrões e empregados.

Alemanha, anos 30: a multidão, manipulada pelo ditador, via nele a solução dacrise econômica e até mesmo da psicológica.

A ideologia nazi-fascista cercou-se de toda uma parafernália de idéias etécnicas produtivistas a fim de compelir o trabalhador a produzir para o enri-quecimento da nação. A crescente militarização do trabalho (onde os operá-rios eram tidos como "soldados do front") teve a sua sinistra conseqüência:redundou nos campos de concentração e na imposição de trabalhos forçados.

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Quando o regime veio abaixo, o mundo pôde ler o que estava escrito na portade entrada do campo de concentração de Auschwitz: "Só o trabalho liberta".

Resquícios do passado

o nazi-fascismo, com todos os seus resultados sinistros, é um fenôme-no político único, restrito à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini noperíodo entre as duas grandes guerras. Essa forma de ditadura foi implantadano mesmo período em outros países, embora com feições diferentes. Entre-tanto, mesmo após a derrocada desse regime, tornou-se comum o emprego dapalavra fascista a regimes autoritários que impedem qualquer manifestaçãopolítica e em que o monopólio do poder econômico está nas mãos do Estado.Os beneficiários de tais regimes aparecem em determinados setores da eliteagrária e industrial que mantêm estreitos vínculos com o Estado. À classeoperária são impostos forte achatamento salarial e o impedimento de todaatividade política e sindical.

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8. RUMOAO PARAíso

"Aprender a trabalhar é, no momento, a tarefa princi-pal da república dos sovietes, uma tarefa que diz respeito aopovo inteiro." (V. I. Lênin)

Em uma direção inversa à do nazi-fascismo, vimos nascer neste séculoum dos maiores ideais revolucionários: a Rússia de 1917.

A participação do país na luta por conquistas territoriais e a sua entradana Primeira Guerra Mundial contribuíram para agravar a crise econômica quede longa data já se avizinhava. Isso gerou o descontentamento de operários ecamponeses, cansados de conviver com a inflação e a falta de alimentos.

Grandes proprietários de terras oprimiam os camponeses através do re-gime de servidão, presente até há algumas décadas antes da revolução. O país,governado por uma decadente dinastia, sustentava uma enorme burocracia,sugando parte dos recursos econômicos do Estado. O descontentamento ope-rário era duramente reprimido por um regime que considerava como subver-são da ordem reivindicações mínimas de coisas já conquistadas pelo proleta-riado de outras nações capitalistas mais adiantadas.

Os operários, cansados de se submeter à exploração de um capitalismoincrustado num regime semi feudal, munidos de teorias e com uma liderançaresoluta e dedicada que os incentivava a reverter a estrutura do poder, criaramo Estado operário e camponês.

Nas sociedades socialistas implantadas após a Revolução Russa haviatambém a preocupação de obter a produtividade e eficiência do trabalho, maspor uma ótica diferente daquela da economia capitalista, isto é, prometendouma sociedade em que não haja exploração do trabalho humano. Os inúmerosdiscursos dos líderes soviéticos, que eram dirigidos às massas ou proferidosnas conferências do partido, revelavam a necessidade de integrar o trabalha-dor à produção e de obter dele a excelência produtiva.

Desencadeada a revolução, a preocupação seguinte era a sua consolida-ção. Mas o país envolveu-se numa anarquia e desintegrou-se econômica, so-cial e financeiramente. Ao assumir o poder, os revolucionários depararamcom a desorganização da administração estatal, vandalismo, motins e saques.Evitar a propagação da desordem tornou- se, então, a primeira medida a sercombatida. A hostilidade das nações capitalistas e o cerco levado a cabo porelas obrigaram a criação de um exército capaz de defender o país tanto no

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plano externo quanto no plano interno, onde grassavam os contra-revolucio-nários e os sabotadores.

Com o estado de anarquia e de caos social, começa a guerra civil. Emvirtude do aumento do poderio militar, os alimentos eram requisitados aoscamponeses e os operários eram impelidos a intensificar a produção da indús-tria bélica, aumentando, assim, o descontentamento. Para vencer a crise foiimplantado o "comunismo de guerra". A partir de então impera o lema "Quemnão trabalha não come", que passou a ser o credo socialista. Começam a sur-gir de forma discreta os primeiros campos de trabalho forçado, para ondeeram enviados contra-revolucionários, vândalos e sabotadores.

Como o Estado estava voltado para os interesses dos trabalhadores, comuma política de pleno emprego e de erradicação da pobreza, acreditava-se serisso fator suficiente para a abolição de qualquer disciplina imposta aos traba-lhadores. Nesse primórdio de um Estado idealista, a disciplina no trabalhodeveria advir da consciência voluntária do trabalhador na tarefa árdua e com-petente de quem se empenha na eficiência do trabalho. Mas, com o correr dotempo, há um cansaço ao alerta mobilizatório permanente e a massa vai per-dendo o fervor revolucionário.

Lênin (1870-1924), o líder da revolução, cria em 1919 os chamados"Sábados Comunistas", quando era incentivado o trabalho voluntário realiza~do além do expediente normal e sem remuneração em prol da revolução.Apesar de todo o entusiasmo e idealismo carregado de paixões políticas, oproletariado russo era na época muito pequeno e inexperiente.

"A classe trabalhadora russa de 1917 foi uma das maravilhas daHistória. Pequena, jovem, inexperiente, sem instrução, era rica de pai-xão política, generosidade, idealismo e qualidades heróicas raras. Tinhao dom de sonhar grandes sonhos sobre o futuro e de morrer morteestóica em combate. Com seus pensamentos semi-analfabetos, abraçoua idéia da república dos filósofos, não em sua versão platônica que serveà oligarquia para governar o rebanho, mas a idéia de uma repúblicapróspera e bastante sábia para fazer de todo cidadão um filósofo e umtrabalhador. Das profundezas de sua miséria, a classe operária russaempenhou-se em construir tal república.

Mas, lado a lado com o sonhador e o herói, vivia no trabalhadorrusso o escravo, preguiçoso, praguejador, esquálido, trazendo o estigmado passado. Os líderes da Revolução falavam ao sonhador e herói, maso escravo os fazia sentir, rudemente, a sua presença. Durante a guerracivil, e mais ainda depois dela, Trotski, em seus discursos militares,queixou-se repetidamente de que o comunista russo e o soldado doExército Vermelho sacrificariam sua vida pela Revolução, mas seriamincapazes de limpar seu fuzilou engraxar suas botas. Esse paradoxorefletia a falta, no povo russo, daquelcs inumeráveis pcquenos hábitosde disciplina e vida civilizada, em que o socialismo esperava basear-se.Era esse o material humano com o qual os bo\cheviques começaram a

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construir seu novo Estado, a democracia proletária, na qual 'todo cozi-nheiro' devia ser capaz de realizar as tarefas de governo. E foi talvezessa a mais grave de todas as graves contradições que a Revolução tevede enfrentar." (Isaac Deutscher. Trotski - O profeta armado. SãoPaulo, Civilização Brasileira, 1968.)

Um país arrasado

Os reflexos da guerra civil e da desorganização política, a anarquia, aseca e o inverno rigoroso fizeram com que o país fosse esmagado pela fome,com mais de 1 milhão de desempregados, pessoas vagando pelos campos epelas cidades em busca de algumas migalhas de pão.

Para aumentar a produção de alimentos foi criada a NEP (Nova PolíticaEconômica), que incentivava o trabalhador do campo a produzir e a vender oexcedente. Essa política provocou o descontentamento de alguns sindicatosopositores, os quais denominavam a medida governamental de "nova explo-ração proletária". Eles queriam uma política econômica que desse conta daescassez de alimentos, comprados a preços altos numa época de salários re-duzidos pagos com atraso e muitas vezes sob a forma de produtos fabricadospelos próprios operários.

A luta sem trégua do Estado pela consolidação do regime tinha comojustificativa o atraso do país e o boicote imposto pelas nações capitalistasinimigas. Para superar o Ocidente, a meta era desenvolver "a indústria maisavançada do mundo". Esse espírito triunfalista pedia o exercício da autorida-de dentro das empresas para formar as massas dentro da disciplina do traba-lho. Aos poucos, as metas produtivistas foram se tomando obsessão e servi-ram mais tarde a Stálin (1879-1953) para justificar a consolidação do regime,a necessidade da industrialização forçada. Nos anos seguintes à revolução,todo esforço foi feito para elevar o desempenho do trabalhador.

Essas sucessivas ondas de apelos ideológicos com a preocupação deerguer a nação socialista levaram Lênin a procurar em Taylor, isto é, no mo-delo capitalista, uma adaptação do seu método para o socialismo. SegundoLênin, estaria aí a chave do sucesso do socialismo: "É preciso organizar, naRússia, o estudo e o ensino do sistema Taylor, sua experiência e sua adapta-ção sistemática". Lênin enfatizava, como condição essencial para o triunfo dosocialismo, a rigorosa disciplina do proletariado, concentrando, para isso, todoo poder nas mãos dos diretores das fábricas. Deveriam ser encontrados no-vos meios de estimular as pessoas a trabalhar e a observar a disciplina notrabalho.

Diferentemente do que ocorreu em países como a Inglaterra, onde otrabalhador foi adestrado pela "escola do trabalho" durante a Revolução In-dustrial, o trabalhador russo ainda estava preso a um tradicionalismo quasefeudal, o que levou Lênin a assinalar que o governo soviético teria como tare-fa empenhar-se com todo afinco em "ensinar o povo a trabalhar".

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Industrializar a qualquer custo

Com a morte de Lênin e o banimento de Trotski (1879-1940), outrodestacado líder da revolução, começa a era Stálin, com o desenvolvimento daindústria pesada visando ao crescimento rápido. Intensifica-se a campanha deeficiência do trabalho, travada em todas as frentes. Embriaguez, ausência noserviço e lentidão no trabalho foram as preocupações do regime. No campo,foi estabelecida a coletivização forçada da produção agrícola, com a aboliçãoda propriedade privada. Aos poucos a apatia tomou conta da classe operária,acrescida do problema da migração, para a cidade, de camponeses sem cons-ciência de classe e acostumados à opressão e à submissão, herança do regimesemifeudal czarista.

Seguindo as pegadas de Lênin, pudemos assistir, principalmente noperíodo stalinista, que perdura até 1953, a uma valorização moral do trabalho.Difundiu-se entre as massas uma ética segundo a qual toda dedicação ao tra-balho deveria ser uma prova de camaradagem e de fidelidade ao regime,voltado para uma "causa comum". Campanhas contra indivíduos parasitasapelavam para a sua responsabilidade perante o novo sistema. Era freqüenteapontar-se o caráter anti-social da indisciplina, com o objetivo de incitar acooperação voluntária na produção. Demandava um especial esforço explicara necessidade e o objetivo de se construir uma nova sociedade.

Do "direito sagrado ao trabalho", aos poucos se passou ao trabalhocompulsório para todos. Era reconhecidamente um direito do Estado do Tra-balhador punir aqueles que se negassem a seguir suaS ordens, e a recusa aotrabalho era vista como um ato de rebelião política. Foram instituídos passa-portes internos para evitar o desequilíbrio populacional. Foram lançadascampanhas contra os "desertores", submetendo-os a um comitê de fábricaspara analisar suas intenções de mudança de emprego. As greves foram proibi-das e os sindicatos sofreram transformações ao ser integrados ao Estado,tornando-se instrumentos auxiliares da gerência e da produção.

O Estado burocrático soviético imprimiu forte sentido militar à organi-zação do trabalho: os campos de trabalho forçado, também chamados "cam-pos de reeducação pelo trabalho", acabaram se tornando uma questão delica-da para a União Soviética, que, por longo tempo, os ocultou. O primeiro cam-po surgiu em 1919 e não tinha, no seu estágio inicial, a significação sinistramais tarde adquirida. Estima-se entre 8 e 10 milhões o número de trabalhado-res no campo em 1938. Nesse tipo de trabalho forçado o número de mortosera enorme. Embora importante para a economia, o trabalho compulsório era ine-ficiente, em virtude da apatia e da baixa produtividade. Requeria um fabulosoaparato policial de controle, transformando-se em um fenômeno político quemanchava a imagem do regime.

Durante a Segunda Guerra, os dirigentes que. fracassassem no comandoda disciplina rigorosa do trabalho eram passíveis de punição. A argumenta-ção era de que, se nos países capitalistas o trabalhador era compelido a dedi-car uma jornada de dez a doze horas à burguesia, então na União Soviética o

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operário poderia e deveria trabalhar mais do que as oito horas regulamenta-res, uma vez que trabalhava para si próprio, isto é, para o Estado socialista, ouseja, para o bem do povo.

A educação das massas

A propaganda ideológica levada a efeito na União Soviética através doEstado muitas vezes se assemelhava à psicossociologia industrial aplicadapelas empresas norte-americanas. Uma série de campanhas persuasivas ti-nham por objetivo a elevação moral da massa trabalhadora. A burocracia es-tatal chegou a publicar milhões de cartilhas e manuais visando a umaconscientização da necessidade de intensificar a produção. Centenas de mi-lhares dos chamados "agitadores" atuavam como propagandistas que, comnovas diretrizes, desenvolviam um trabalho pedagógico junto às massas. Cria-ram-se as "brigadas de trabalho comunista", por iniciativa da juventude co-munista, cujos membros pretendiam contribuir, com seu trabalho exemplar,para a edificação do socialismo. As obras teóricas de Lênin foram utilizadascomo palavras de ordem junto aos trabalhadores.

Nos primeiros anos da revolução houve uma intensa fermentação cul-tural na tentativa de aplicar o experimentalismo à arte e à literatura, no esfor-ço de celebrar a construção de um novo país. Todo empenho era dado nosentido de a arte contribuir para a realização da vida social, para a implanta-ção e o desenvolvimento do socialismo.

Aos poucos toda essa inquietação intelectual foi se arrefecendo,desencorajada pela resistência da junta dirigente soviética, empenhada no re-trocesso da arte ao modelo tradicional de simplicidade para que pudesse serentendida até mesmo pelo mais humilde operário ou camponês. Com o decor-rer dos anos, cada vez mais a censura se intensificava. A arte chamada de"Realismo socialista" foi vulgarizada nas mãos dos burocratas da cultura.Partiam eles do princípio de que a arte burguesa retletia o estado de perplexi-dade do artista diante de uma sociedade capitalista confusa, carregada de con-tlitos e absurdos. O socialismo deveria, pois, impor uma nova arte, que ex-pressasse o surgimento de um novo homem, em uma nova perspectiva deotimismo. O individualismo burguês, em que o artista vivia em estado desolidão, seria substituído pela solidariedade social, interagindo com as mas-sas. Se o Realismo socialista não pudesse ainda mostrar a sociedade tal comoela era, que pelo menos os esforços se voltassem para aquilo que ela deveriaser. Daí por diante, uma parte significativa da literatura e da arte foi feita como intuito de idealizar o trabalho e mobilizar as massas para seguir normas evalores da atividade em grupo e da causa proletária. Assim, na apoteoseprodutivista figuravam nas obras saudáveis camponeses e operários venden-do saúde, vigor físico e otimismo, em visão idealizada. Essa era uma das for-mas de a arte e a cultura servirem de veículos de propaganda do socialismo edarem ênfase à "educação das massas".

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Cartaz de 1927 exal-tando o engajamentodo trabalhador soviéti-co na construção dosocialismo.

Várias tipos de competição foram utilizados para manter o trabalhadormotivado, como, por exemplo, a escolha do "Herói do Trabalho Socialista",com distribuição de medalhas, distinções e prêmios para aqueles que se des-tacavam em suas atividades.

O momento de maior impulso ao trabalho ocorreu em 1935, com omovimento stakhanovista, que pode sugerir uma equivalência com otaylorismo. Alexei Stakhanov conseguiu a façanha de cavar 102 toneladas decarvão em seis horas. Seu ato heróico deu-lhe o título, outorgado pelo jornalPravda, de "operário padrão". De acordo com o que passou a ser chamado de"movimento stakhanovista", esse trabalho exemplar era o melhor meio de ocidadão soviético provar seu patriotismo e, ao mesmo tempo, sua fé política.Merece destaque também a formação de grupos destinados a incentivar o usoadequado e econômico do tempo. Um desses grupos chamava-se "Liga doTempo", e sua cartilha ditava: "Economize tempo, meça o tempo, trabalherápido! Divida seu tempo corretamente: tempo para trabalhar e tempo para olazer! Utilize bem o seu tempo livre para trabalhar melhor depois!"

Passado o período de consolidação do regime, os dirigentes se viramobrigados a manter com determinação o princípio do "direito ao trabalho", a

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fim de evitar o fantasma do desemprego. A questão, porém, era como conci-liar esse direito com a liberdade de escolha de emprego, num modelo de eco-nomia planejada, em que os recursos humanos são submetidos ao controleabsoluto do Estado. Criaram-se postos de trabalho economicamente desne-cessários, mas que serviam para manter o indivíduo em atividade. Aospoucos, devido à farta mão-de-obra, a eficiência em alguns setores da eco-nomia foi esquecida.

Sem voz ativa

A respeito da participação do trabalhador no processo produtivo, en-contramos uma posição bastante radical e de crítica feroz até mesmo em inte-lectuais que ainda eram simpáticos à causa socialista, como o filósofo grego,naturalizado francês, Cornelius Castoriadis. Esse autor não via nenhuma dife-rença entre o trabalho na sociedade capitalista e no regime socialista. Mesmona União Soviética de então, o trabalhador era apenas um simples executordas tarefas impostas pelo Estado. Continuando na condição de assalariado,não dispunha "dos meios de produção e nem do produto de seu trabalho, ouda gestão da produção da empresa, da economia, do Estado e da sociedade";suas atividades na fábrica eram decididas (como nos regimes capitalistas) porum aparelho burocrático de direção da produção. Acrescente-se ainda que aclasse operária, desprovida de direitos políticos, civis e sindicais, era assedia-da pela "propaganda oficial mentirosa", que pressionava e controlava os tra-balhadores, a fim de impedi-los de contestar, de maneira explícita e aberta, aordem social vigente.

Assim como Castoriadis, diversos estudiosos constataram que a aliena-ção era ainda o mais sério problema tanto na União Soviética quanto no Oci-dente. Não que na União Soviética o trabalhador fosse mais alienado, mas asituação ali se agravava pela ausência de participação política e pela extensãode sua integração no processo produtivo que, até há pouco tempo, era total.Como assinala o intelectual francês André Gorz, em todos os regimes socia-listas vigorava - e ainda vigora naqueles que permanecem ---, essa espéciede "religião do trabalho", cuja pretensão é negar a alienação para glorificá·lo.Segundo Gorz, o bom cidadão ou "herói do trabalho" é o que se sacrifica,com ou sem satisfação, na realização de tarefas ingratas.

Hoje, com a abertura à economia de mercado, o trabalhador dos paísessaídos de regimes socialistas vive a mesma situação enfocada por Lênin: a dereaprender a trabalhar, agora, nos moldes do capitalismo, em que o indivíduotem de competir dentro e fora do ambiente fabril. O paradoxo está em quemuitos têm como ideal a manutenção da segurança oferecida pelo antigo re-gime e as supostas vantagens do novo sistema econômico.

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9. O ESCRAVO FELIZ

"Não se pode contratar apenas um braço; uma pessoainteira vem junto com ele." (Peter Drucker, Fator humano edesempenho.)

A administração científica desenvolvida por Taylor teve seus méritosreconhecidos devido ao pioneirismo na atenção dispensada às técnicas e aosfatores fisiológicos no trabalho. Sofreu, porém, duras críticas por ter deixadode lado os aspectos psicológicos do ser humano.

Em contrapartida, surge também, nos Estados Unidos, a Escola de Re-lações Humanas, cujo objetivo é enfatizar os elementos emocionais e psico-lógicos que influenciam o desempenho no trabalho. O taylorismo foi critica-do por se preocupar apenas com os aspectos/armais, como, por exemplo, ahierarquia, o fator salário por produção ou a resistência física para uma jorna-da longa e estafante - questões insuficientes para solucionar as causas daapatia, o tédio, as tarefas despersonalizadas, a desatenção no trabalho e o con-flito entre o trabalhador e a organização.

o lado informal

Para buscar respostas a situações conflitantes, o estudo das relaçõeshumanas acentua a importância que deve merecer o lado emocional dos tra-balhadores. A atenção principal se desloca para o fator grupal, pois os empre-gados não agem apenas como indivíduos, seres isolados, mas como membrosde um grupo social dentro da empresa. Um exemplo da forte influência dogrupo: embora podendo dar mais de si, o trabalhador muitas vezes sofre pres-são do grupo para seguir a média de produção, sem atingir, portanto, extre-mos, seja para o alto seja para baixo. Os que trabalham em demasia são tidoscomo "caxias", e os que trabalham menos são os "sanguessugas". É, assim,fixada uma média, compatível com a maioria do grupo. O trabalhador temgarantidas a afeição e a estima geral dos companheiros pela aceitação dasnormas "convencionadas" entre eles. A influência grupal é que dita os rumosde uma greve ou coíbe a ação de um indivíduo arrivista.

A coesão grupal pode ser benéfica também para o patronato, pois mui-tas vezes o individualismo não é do interesse da companhia. Para atividadesque não podem ser feitas por indivíduos isolados busca-se o potencial do tra-balho em grupo.

Como resposta patronal, o estudo das relações humanas veio atenuar osdescontentamentos gerados pelo trabalho alienante, o baixo desempenho, a

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"fadiga" emocional, e visou também a reduzir a rotatividade da mão-de-obra.Os patrões perceberam que, enquanto os sindicatos influenciavam os traba-lhadores fora das fábricas, eles, patrões, também tinham um vasto campo demanobra no interior da empresa para tentar convertê-los aos interesses daadministração.

Para se ter uma idéia da importância desse estudo, vale lembrar a obser-vação de uma associação americana de administração. Ao admitir que não sepoderia mais tratar o fator humano como "negligenciável", salienta ela aatenção que deve ser dada ao desempenho humano no comércio e na indús-tria: "Devemos dedicar-lhe o mesmo estudo cuidadoso reservado nas últimasdécadas aos materiais e às máquinas" (apud H. Braverman).

O psicólogo Elton Mayo (1880-1949) foi o pioneiro no estudo das rela-ções humanas no trabalho, com experiências realizadas em 1923, em umatecelagem nos Estados Unidos. Posteriormente obteve excelentes resultadosnos experimentos realizados, entre 1927 e 1932, em uma fábrica de compo-nentes eletrônicos da Western Electric Company, no bairro de Hawthorne,em Chicago, onde o índice de descontentamento e a rotatividade no trabalhoeram altos. Após exaustivas experiências Mayo constatou que as normas so-ciais exercem, também, uma força poderosa sobre o indivíduo. Fazendo algu-mas concessões aos funcionários, mostrou que as pessoas, quando motivadase tratadas com atenção, agem positivamente e passam a realizar com afincosuas tarefas.

A grande família

As ciências humanas entram em cena como dispositivos que devem"integrar" o trabalho e a estrutura da organização às necessidades sociais dosempregados. Desse modo, ao tornar o empregado "feliz", a organização obte-ria dele total cooperação e esforço, o que aumentaria sua eficiência. Em algu-mas publicações as descrições dos resultados obtidos pelos estudiosos da ati-vidade humana na empresa muitas vezes mostraram-se "quase líricas". O tra-balhador era descrito como "ansioso por não perder um dia na fábrica, ou nãochegar muito tarde, temendo perder algum tempo de convívio com seusamigos, e mesmo ansioso por não desapontar seu mestre, que para ele é comoum pai afetuoso e compreensivo" (Amitai Etzioni). A empresa, fazendo crerque seus interesses são coincidentes com os dos empregados, gera nestes osentimento de participar dos objetivos da companhia, a qual, por sua vez, devemerecer seus esforços, contribuindo, assim, para seu sucesso econômico.

Há até mesmo a tentativa, por parte de certas empresas, de aproveitar avivência solitária do empregado das grandes cidades, desligado de seu am-biente familiar e comunitário. A empresa se apresenta como família, cujaequipe é capaz de proporcionar um novo lar, dando proteção social e emocio-nal para o indivíduo. Explora, assim, a sua necessidade de segurança, afeto,prestígio e auto-realização. Em retribuição, a empresa espera ser recompen-sada com uma força de trabalho dedicada, esforçada e satisfeita.

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A crítica e os críticos

Criar o "escravo feliz" ou, como diz o operário americano, "tirar maisleite", formando "vacas felizes", é visto como um disfarce para tornar o tra-balho menos alienante. Visa a limitar as perdas causadas pela desatenção,pelo tédio e pelo descontentamento. Para fazer o funcionário "vestir a camisada empresa" surgiu um número enorme de técnicas motivacionais que se tor-naram modismos na administração. Há quem critique o fato de haver muitasdessas "quinquilharias teóricas" revestidas com as novas roupagens de "téc-nicas" e artifícios de administração de pessoal. Basta lembrar que a literatura arespeito das relações humanas excede qualquer outra relativa à administração.

Por meio das ciências humanas ergueu-se um "laboratório" do podergentro da empresa, que se manifesta por um profundo saber obtido ao se re-gistrar, medir, observar, cronometrar tudo da conduta humana no processoprodutivo. As grandes empresas passaram a doar altas somas para universida-des, ou, então, criaram fundações próprias para estudar o trabalhador, con-centrando, também, enormes esforços para formar uma elite dentro dos mol-des da ideologia dos diretores e presidentes.

Século XX: o crescimento em massa do chamado "trabalhador de colarinho branco".

Esse estudo tem sido duramente criticado pelo fato de desenvolver umasutil estratégia para envolver os empregados numa ideologia manipulatória,levando-os a acreditar que, de fato, estão fazendo algo que vem ao encontrode sua vontade. Visa a manipular o comportamento do empregado ao

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condicioná-lo a trabalhar mais, sob uma autoridade discreta e sob um falsorelacionamento "igualitário", em favor dos interesses da organização. Acre-ditando exercer algum poder, o trabalhador julga participar do processodecisório, tendo a impressão de influir em decisões muitas vezes já tomadas.Aumenta, assim, a sua sujeição. A literatura acerca das relações humanas temcolecionado depoimentos de empresários orgulhosos com o fato de suas em-presas terem passado anos sem uma greve. Aliás, o..fi.lR<rdeHenry Ford, cujonome era idêntico ao do pai, foi um dos grandes entusiastas e incentivadoresdos estudos nessa área. Sua postura mais liberal o diferenciava de Ford, opatriarca, que por ojeriza aos sindicatos impedira, até determinada época, queseus empregados se sindicalizassem. ri

Nem tudo, porém, ocorre como se espera. Quando o grau de exploraçãoatinge níveis elevados, os descontentamentos explodem com mais vigor e asmáscaras patronais sustentadas por longos anos despencam. Os conflitos e ascontradições latentes são atenuados até um limiar aceitável, mas não suprimi-dos. Assim, a dificuldade para os empresários está em dosar a participaçãodos trabalhadores nas decisões, de modo que ela não fuja do controle regula-do, voltando-se contra seus criadores. Quando os empregados se organizampara reivindicar, muitos empregadores chegam a culpar essa técnica adminis-trativa de conceder pequenos poderes que despertam, no entanto, apetitesmaiores. A decepção de alguns reside no fato de a teoria das relações huma-nas não ser uma doutrina infalível, capaz de aniquilar sindicatos e greves.Freqüentemente parte-se da idéia de que o empregado é que precisa mudar,quando, na verdade, na maioria das vezes, é a própria administração que pre-.cisa ser transformada.

Apesar de criticados, o taylorismo e o estudo das relações humanascontinuam em voga, reatualizados com um verniz modernizador. São consi-derados um complemento e não uma contradição das recentes técnicasmotivacionais. Hoje as atenções voltam-se para o Oriente, mais especifica-mente para o Japão, cuja mística do trabalho e do sacrifício pela empresa temsido bastante difundida.

Os ventos do Oriente

Comparadas a outros países, a obsessão pelo trabalho e a lealdade àempresa desenvolvidas pelos japoneses não encontram equivalentes no mun-do. O modelo americano de administração vem concentrando sua atenção noJapão. Executivos americanos retomam admirados de viagem àquele país; alidescobrem o orgulho que o operário japonês tem pelo trabalho e pela discipli-na, o empenho nas horas extras e o baixo índice de faltas, além do fato de agrande maioria dos trabalhadores gozar de reduzidas férias.

Essa conduta do operário japonês está intimamente ligada ao seu passa-do feudal, à necessidade de superar a falta de matérias-primas e, também, aoafã de reconstruir o país do pós-guerra. Nessa época, com a intervenção dosEstados Unidos, seguida da preocupação de conter o comunismo na Ásia,

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proibiram-se as greves, eliminaram-se os sindicatos e o poder ficou nas mãosde forças conservadoras. Atualmente criam-se sindicatos por empresa e nãopor categoria profissional. Cerca de 30% das empresas oferecem empregosvitalícios, embora essa atitude esteja em recesso por ser incompatível com odinamismo da economia mundial.

Em algumas empresas japonesas a dedicação ao trabalho pode serconstatada pelo cumprimento de um cerimonial diário: a execução, no iníciodo trabalho, do hino da empresa; o exercício da ginástica ou o pronunciamen-to de palavras de ordem para manter elevado o espírito corporativo. Conhece-dor da cultura japonesa, Kamata Satoshi, em sua obra Japão - A outra facedo milag re, reproduz o hino da empresa Matsushita: "Para construir um novoJapão/Trabalha duro, trabalha duro/Aumentemos nossa produção/Vamosenviá-la a todas as nações/Sem trégua, sem repouso/Como um gêiser/Jorra anossa indústria/Sinceridade e harmonialÉ isso a Matsushita Electric". Osfuncionários chegam a se apresentar dizendo "Eu sou Toyota" ou "Sou umindivíduo Sumitomo", em vez de afirmar "Eu trabalho na firma tal".

Os resultados econômicos demonstram que esse apego ao trabalhptrouxe um progresso sem precedentes. No entanto, há mesmo quem constatl~'que o Japão deu "um salto econômico para a frente e um salto social paratrás". Por trás desse triunfalismo, admirado pelo Ocidente, certamente se es-conde o descontentamento de uma parte dos trabalhadores, francamente de-monstrado pelas greves. Há, inclusive, especialistas que, baseados em padrõeseuropeus, têm derrubado alguns mitos ao denunciar, por baixo do pano, umsilencioso processo de exploração: os "piores" trabalhos para os coreanos, aaposentadoria forçada, a redução de salários quando necessário, doenças pro-fissionais devido à intensificação do ritmo de trabalho. No entanto, esse "mi-lagre econômico", segundo Kamata Satoshi, não conduziu a uma ideologiade passividade, como se poderia crer, pois grande parte dos trabalhadoresjaponeses, ao cantar o hino da empresa com play-back, na verdade apenasmexe os lábios.

Outro grande fascínio que nos vem do Oriente é a prosperidade obtidapelos chamados tigres asiáticos: Taiwan, Coréia do Sul, Hong Kong eCingapura. São países conhecidos por seus regimes políticos autoritários, pelacarência de recursos naturais e por suas economias voltadas à exportação dequinquilharias eletrônicas. Nesses países a jornada de trabalho excede qua-renta e oito horas semanais e os trabalhadores não têm mais do que quatorzedias de férias. Em alguns não há nem direito a férias nos primeiros anos detrabalho. Com folgas semanais não coincidindo para todos no domingo -como é o caso da Coréia do Sul -, o país não pára de trabalhar nem mesmonos fins de semana.

Hoje, com medo de perder a competitividade com os orientais, os em-presários ocidentais estão lançando apelos ao operariado para uma maior par-ticipação no trabalho. As empresas mais avançadas do Ocidente, ao promo-ver á redução dos níveis hierárquicos, aproximando o topo da base, buscamuma gestão conjunta com os funcionários, permitindo que estes opinem e de-cidam acerca de diversos temas inerentes à produção e ao trabalho.

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10. UM PAÍS SEM POVO

"O caipira, se não anda nas suas aventurosas excur-sôes, encontrá-lo-eis sentado à porta do lar, fumando seucigarro de fumo mineiro e olhando o seu cavalo, que rumina,tão preguiçoso como ele, a grama da estrada. Essa gente,mais guerreira do que agricultora, não trabalha, lida, e a suaatividade não produz, consome-se." (A. E. Zaluar, Peregri-nação pela Província de São Paulo - 1860-61.)

A imagem que o povo brasileiro tem de si mesmo vem acompanhadade uma forte carga de preconceito em relação ao trabalho, e isso tem sidosalientado como um dos traços do caráter nacional. Para dissipar esse equívo-co, Sérgio Buarque de Holanda, em Raí~es do Brasil, esmiúça atentamente otema da preguiça em suas origens históricas.

Num país carente de mão-de-obra, os primeiros indivíduos a ser sub-metidos ao trabalho, com desempenho negativo, foram os silvÍColas. Não es-tando habituados a ambientes fechados, à disciplina rígida e a uma jornadalonga de trabalho, o resultado final foi a baixa produtividade e as constantesfugas para o mato. Indispostos para o trabalho escravo, pois relutavam emdeixar-se explorar, os silvícolas foram, no entanto, muito eficientes nas suaspróprias tarefas - caça, pesca, agricultura - e nas pelejas de guerra.

Seriam bons selvagens?

Segundo o antropólogo Marshall Sahlins, o trabalho do primitivo é di-versificado, descontínuo, cessando no momento em que não é exigido, umavez que suas necessidades são limitadas. Apesar de todo o avanço tecnológicoda sociedade moderna, os povos tribais ainda trabalham menos do que nós eem condições menos desumanas. Provavelmente também dormem mais du-rante o dia, daí o estigma da indolência das tribos tropicais, fixado pelos rela-tos dos viajantes. O antropólogo constata que não se trata de um trabalhoalienado e que a terra tem para eles um valor espiritual. Trabalham apenas osuficiente para suprir as necessidades da tribo; "trabalhador" não é um statusem si mesmo, nem "trabalho" uma categoria real da economia tribal. O traba-lho não está divorciado da vida; não existe "o lugar do trabalho", nenhumahora e lugar onde o indivíduo passe a maior parte do seu tempo não sendo elemesmo, na sua autenticidade.

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Outro antropólogo, Pierre Clastres, diz haver uma crença falsa de queas sociedades primi tivas não possuem excedentes por serem incapazes deproduzi-los, e também de que vivem famintas, numa busca angustiante dealimentos. Ao contrário, a condição de vida dos selvagens surpreendeu osprimeiros viajantes europeus ao observarem sua aparência saudável e a varie-dade alimentar desses povos que ignoravam a exigência do trabalho como umfim último.

Os primitivos praticavam a agricultura em algumas estações do ano ededicavam o resto do tempo a atividades não consideradas trabalho: caça,pesca, festas e bebedeiras. O que é mais surpreendente: reservavam ao traba-lho diário uma média de menos de quatro horas, segundo Clastres. Para oantropólogo, as sociedades primitivas, sociedades de recusa ao trabalho, fo-ram consideradas as primeiras sociedades de lazer e de abundância.

Os escravos

Aos poucos, os colonizadores do Brasil foram descartando o trabalhoindígena, uma vez que a cultura do açúcar, a partir do século XVI, e a do café,no século XIX, criaram um sistema produtivo que necessitava de grande con-tingente de mão-de-obra. Dessa forma, fez-se necessária a introdução do tra-balho escravo, com escravos oriundos da África. Esse tipo de trabalho, pormuito tempo, mostrou-se muito vantajoso. Análises históricas ressaltam quea exploração da mão-de-obra escrava criou, no entanto, um sistema produtivoque levou à marginalidade os indivíduos não-integrados à rígida ordemescravocrata, dividida entre senhores e escravos.

Alguns historiadores destacam a condição de "desajustados" conferidaà população livre, mas pobre, que não se encaixava nesse sistema econômico.Como o parâmetro de trabalho era somente o escravista, trabalhar para al-guém significava a forma mais aviltante de experiência. Isso fez com que, nodecorrer dos séculos, se avolumasse uma massa de indivíduos de várias ori-gens e matizes sociais que não se transformou em força de trabalho, já que aprodução disciplinada e regular era levada adiante pelos escravos.

Deve-se ressaltar que a violência praticada pelos senhores afastavaqualquer aproximação dos indivíduos livres, marginalizando-os cada vez maisdo trabalho disciplinado das fazendas. Para se ter um exemplo, o naturalistainglês Charles Darwin, no relato de sua passagem pelo Brasil, ficou estarre-cido com a brutalidade com que eram tratados os escravos. A violência queimperava nas fazendas levava à redução do tempo médio de vida produtivados escravos (por volta de quinze anos), que suportavam diariamente umregime de trabalho incessante (de até dezesseis horas) e condições de vidaaviltantes. Assim desgastados, tomavam-se prematuramente inválidos. Haviatambém os indivíduos pertencentes às fazendas ou moradores nos arredores,que executavam serviços esporádicos. Viviam sob a autoridade senhorial, sofren-do todo tipo de instabilidade que a dependência econômica impunha, inclu-

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sive a de serem expulsos a qualquer momento. O maior contingentepopulacional, no entanto, era constituído por indivíduos desenraizados que,pela inaptidão ao trabalho fixo e disciplinado, viviam na mendicância e navagabundagem.

Não sendo escravos nem senhores, a maioria, excluída do sistema pro-dutivo, preferia viver dos minguados recursos naturais da terra, da caça e dapesca, a deixar-se explorar. Ao longo dos séculos, formou-se uma "ralé" querealizava tarefas impossíveis para os escravos: trabalhos ocasionais de capa-tazes, vigilantes, capangas ou cabos eleitorais, sempre à disposição do livre-arbítrio dos senhores.

"Marginalizado desde os tempos coloniais, o homem livre e li-berto tende a não passar pela 'escola do trabalho', sendo freqüentementetransformado num itinerante que vagueia pelos campos e cidades, vistopelos senhores como a encarnação de uma corja inútil que prefere oócio, a vagabundagem, o vício ou mesmo o crime, à disciplina do tra-balho nas fazendas ...

Recusando o trabalho disciplinado nas fazendas, pôde dispor dafertilidade das terras, da pesca, caça ou coleta, que proporcionavam omínimo para viver com larga margem de ócio e lazer. Fugindo dos ri-gores da produção organizada, passou a ser visto pelos dominantescomo corja inútil, ralé instável, vadio que para nada servia. Durante oshorrores da escravidão, foi forçado à vida errante, ao expedienteocasional ou até mesmo à esmola, pois trabalhar significava a degrada-ção de sua liberdade. Aos olhos dos senhores, essa massa numerosa ecrescente era vista como ignorante e viciada ...

Nesses tempos, o desamor ao trabalho organizado serviu parafundamentar a ideologia da vadiagem e, em contrapartida, para reforçara ordem escravocrata, pois, como refugava o trabalho, era necessárioque este fosse compulsório." (Lúcio Kowarick. Trabalho e vadiagem.São Paulo, Brasiliense, 1987.)

Uma das implicações sociais que o preconceito contra o trabalho es-cravo nos legou foi o processo de rejeição a qualquer atividade manual, popu-larmente referida como "coisa de escravos", e, portanto, aviltante e repugnante.

O desestímulo era ainda maior quando os senhores, acostumados a tratar oescravo com todo o rigor repressivo, estendiam essa conduta despótica a todos osseus subordinados. Procurando, então, de alguma maneira, escapar da submissãosenhorial, os homens livres só trabalhavam quando precisavam, indiferentes aosapelos e ofertas de empregos. Dedicavam longos períodos ao descanso ou a ati-vidades provisórias, passando uma imagem de seres inúteis e vadios.

Enquanto puderam, os senhores utilizaram o trabalho escravo disponível,mesmo se de baixa produtividade, como a única alternativa viável, retardando,assim, o florescimento do trabalho livre, característica do sistema capitalista.

Com o encarecimento, o rareamento e a emancipação da mão-de-obraescrava, além do risco de imobilização do capital, o recurso, a partir de 1880,

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foi lançar mão do imigrante, principalmente para a lavoura de café, em SãoPaulo. Houve, inicialmente, além do interesse econômico, um interesse ideo-lógico em acentuar no trabalhador nacional o estigma de imprestável e inca-paz para o trabalho, com o objetivo de reproduzir a escravidão e, posterior-mente, incenti var a vinda de estrangeiros.

Os imigrantes

Repete-se com o imigrante a mesma conduta exploradora. Aqueles queaqui chegavam enfrentavam condições piores que as enfrentadas pelos nati-vos, pois, além de sua cultura ser diferente, eles não possuíam terras. Decidi-dos a "fazer a América", porém, sujeitavam-se à disciplina, na esperança de,um dia, enriquecer. Ludibriados pelos agricultores, conseqüentemente desco-nhecendo as condições de trabalho que iriam encontrar, os estrangeiros seembrenhavam no grande latifúndio, onde a lei era a vontade do senhor. Mui-tas vezes eram submetidos a formas de violência das quais o próprio elemen-to nacional procurava escapar.

Herança da ordem escravocrata, o ranço autoritário das elites agráriasmuitas vezes foi estendido ao imigrante e ao trabalhador nacional. Em suasviagens pela então Província de São Paulo, o francês Auguste Saint Hilairedeixa registradas suas impressões, que dão bem o tom desse tratamento:"Sempre rodeados de escravos,os brasileiros estão habituados anão ver senão escravos em todosos seres a quem são superiores,seja pela força, seja pela inteli-gência".

Capa do popular livreto do labora-tório Fontoura que conta a históriado Jeca Tatu, criado por MonteiroLobato no início do século XX.Considerado por alguns como o re-trato fiel do caipira brasileiro, re-presentava nosso homem rural an-terior a este século: morador emcasebre de sapé, barro e chão bati-do, contentava-se com o plantio damandioca. Indolente, sem ambiçãoe muitas vezes doente, conviviacom a miséria, lutava contra as for-migas e o mato, que não parava decrescer.

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Através do aparato coercitivo, os colonos eram obrigados a saldar dívi-das intermináveis de traslado e a cumprir o contrato até o fim. Endividados esubmetidos a aviltante remuneração, eram rebaixados à categoria de quaseescravos, ou se encontravam mesmo sob regime de escravidão disfarçada. Aexploração era tamanha que o governo italiano proibiu, por algum tempo, aemigração para o Brasil.

A importação dessa força de trabalho abundante e barata atingiu, até1920, a cifra de I milhão de estrangeiros. Influentes no poder, os agricultoresobtiveram do Estado subsídios para o transporte de estrangeiros. Com o pas-sar do tempo, para benefício dos senhores e, mais tarde, dos dirigentes dasindústrias nascentes, chegou a haver excesso de mão-de-obra no país, a pontode o número de estrangeiros em atividade chegar a 92% do efetivo de traba-lhadores.

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11. O POVO, ORA O POVO!

"É pois incontestável que o trabalho é o único dique aopor os desmandos do povo, e o processo eficaz para contê-lo nos limites das conveniências morais e sociais." (Asso-ciação Industrial, Rio de Janeiro, 1881.)

Sem tradição no trato do trabalho livre, a elite brasileira assimila comdificuldade os poucos direitos a que fazia jus a ainda incipiente classe operá-ria que então despontava.

No rastro da cultura do café veio a expansão da atividade industrial ecomercial, com o incremento de ferrovias, navegação, indústria têxtil, bancosetc., fazendo com que, finalmente, no século XX, entrasse em cena com maisvigor a figura do operário brasileiro, vinculada ao moderno modo de produ-ção capitalista.

Com a decrescente imigração, vai sendo abandonada a ideologia da va-diagem atribuída ao elemento nacional, para dar lugar a um discurso aprecia-tivo e de enaltecimento: o trabalhador brasileiro tinha então o mérito de nãoter sido ainda contagiado pelo vírus do movimento anarquista trazido peloimigrante.

Nas primeiras décadas do século XX, tem-se o surgimento de correntesanarco-sindicalistas, empenhadas em mobilizar os trabalhadores para as gre-ves, e de uma crescente imprensa operária; mais tarde, cria-se o Partido Co-munista, que impulsionará a organização da classe trabalhadora e contribuirápara o crescimento do número de conquistas trabalhistas.

o empresariado

Em geral o empresariado brasileiro, no período de industrialização, énitidamente conservador e muitas vezes reacionário; sua atitude visa a impe-dir ou retardar a regulamentação dos direitos sociais já conquistados, aoignorá-los na prática. Podemos encontrar traços de resistência empresarial nadiscussão da lei de férias, aprovada em 1925. A grita geral dos empresáriosera de que as férias do operário acarretariam um acréscimo no custo total daprodução e a parada da produção causaria "a ruína de promissoras empresas".

Já no final do século passado, quando um comerciante no Rio de Janei-ro deu férias espontâneas aos seus empregados, foi censurado por estar "es-

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tragando a caixeirada com essas novidades". Quanto ao fechamento do co-mércio aos domingos, temia-se um possível "mau uso" do tempo livre. Foidada grande ênfase ao fato de o trabalho braçal do operário, cujo cérebro fica"inativo" durante as horas de produção, não precisar de férias, pois a fadiga écurada de um dia para o outro.

Segundo o Centro das Indústrias de São Paulo, a lei de férias era desne-cessária também porque o operário mudava constantemente de emprego; alémdo mais, o trabalho fabril praticado no Brasil mostrava que o nosso operárionão era "compelido a dar o máximo de rendimento: somos um povo de senti-mentais, não exigindo aquela férrea e inflexível disciplina". Enfim, para essaentidade patronal, o lazer poderia tornar-se fator de perturbação para quemnão soubesse usá-lo corretamente.

Outra discussão acalorada teve ocasião na década de 20, a propósito daredução da jornada de trabalho do menor e do aumento da idade mínima paraingresso na fábrica (de treze para quinze anos), pois, segundo a posição dopatronato, a escassez de mão-de-obra tornava imprescindível o trabalho domenor. Essas leis eram consideradas nocivas à lucratividade da empresa elevariam à desestruturação da economia doméstica do proletariado, tão de-pendente da remuneração do menor. Propunham para o trabalho do menor aaplicação da mesma legislação do adulto, com a distinção entre trabalho leve(para menor) e trabalho pesado (para o adulto).

O argumento mais forte utilizado pelo patronato em prol do trabalho domenor era a função pedagógica que o trabalho exercia sobre a criança. Dizuma entidade patronal, no Diário do Comércio, em 1917, que a retirada dosmenores das fábricas, "longe de lhes dar amparo, abre-lhes as portas para avagabundagem e para o vício, a que serão conduzidos com todo o seu cortejode misérias e ignomínias". Com o pretexto de impedi'r que os menores fossemexplorados nas ruas, os patrões os exploravam nas fábricas.

Essa visão era muitas vezes endossada pelos pais, que viam no trabalhodos filhos - absorvidos, sobretudo, pela indústria têxtil - um complementopara sua tão baixa remuneração e um saudável encaminhamento para a éticasagrada do trabalho, formadora dó bom caráter ~ da virtude. O controvertidoindustrial Jorge Street, por exemplo, chegou a empregar trezentos meninos emeninas de doze a quinze anos, para uma jornada de trabalho de até dez horasdiárias, num ofício que ele considerava "leve e sem grandes esforços" -constatação advinda da vivacidade observada nas crianças durante toda ajor-nada. É interessante ressaltar a extrema candura com que o industrial descre-ve as crianças saindo da fábrica: "É uma verdadeira revoada alegre e gritanteque sai à frente dos maiores, correndo e brincando". Segundo uma entidadepatronal da época, faziacse necessário incutir hábitos de trabalho nas criançaspara afastá-las "da falange de menores vagabundos que infestam a cidade".

A eclosão de greves, como a que se deu entre 1917 e 1919 nas princi-pais cidades do Brasil, era considerada pelo patronato totalmente injustificadae fruto da atuação de elementos estranhos à classe. Por ser a questão social"caso de polícia", atribuía-se a responsabilidade da greve aos "agitadoresprofissionais", acusados de insuflar a massa ordeira ao descaminho.

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Na década de 30 é que as entidades patronais irão criar instituições para<) estudo do processo de trabalho, com base no taylorismo e no fordismo. Parao empresariado, o trabalhador brasileiro, quase sempre oriundo do campo,não era avesso ao trabalho mas precisava ser "educado'7 pelas novas técnicascientíficas testadas em outros países.

o Estado interfere

Junto às novas necessidades empresariais, a direção política do Estadotomava posições. Com a Revolução de 30, comandada por Getúlio Vargas, asquestões trabalhistas passam a ser objeto de atenção do novo regime. Sãocriados sindicatos oficiais atrelados ao Estado com o intuito de domar o ím-peto organizativo da classe operária, até então sem controle oficial. Instituídoo regime ditatorial, Getúlio Vargas elaborará a legislação trabalhista, colo-cando o Estado como único juiz na manutenção da ordem social. Algumasconcessões, oferecidas por Vargas aos trabalhadores como válvula de escape,encontram resistência por parte do patronato, que não havia percebido ainda aintenção do governo de salvar seus patrimônios, como foi afirmado certa vez.

Um membro de uma entidade patronal de São Paulo, não se confor-mando com a interferência governamental nas questões trabalhistas, acusa ogoverno de ter criado a luta de classes, "que não conhecíamos e que nem aomenos se pronunciava nesse remanso". Afirmava, ainda, ser os patrões quementendia de trabalho e de trabalhadores e não os técnicos do poder público,que não passavam de "teóricos sonhadores que vivem à margem do própriotrabalho". Essa crítica era dirigida aos intelectuais do governo; o operariado,por sua vez, só será objeto de consistentes estudos nos meios acadêmicosdécadas mais tarde.

o samba comportado

É interessante salientar a preocupação do Estado Novo em forjar umaideologia de enaltecimento do trabalho à semelhança dos regimes fascistas.Para tanto, lançou mão da censura prévia com o fim de coibir qualquer mani-festação rebelde à sua diretriz. Um bom exemplo disso é a difusão do sambade Ataulfo Alves e Wilsinho Batista, a bonde de São Januário, em que háfortes indícios de que a palavra otário foi substituída por operário, por su-gestão dos censores, para evitar uma exaltação à malandragem. Refeitos osversos, o samba resultou em uma espécie de hino ao trabalho: "Quem traba-lha é que tem razão/Eu digo e não tenho medo de errar/a bonde de SãoJanuário/Leva mais um operário/Sou eu que vou trabalhar ... " Assim fruti-ficaram canções de enaltecimento do trabalho e do próprio regime. Dos mes-mos autores, temos: ".:. a Estado Novo veio para nosorientarlNo Brasil nãofalta escola/Mas precisa trabalhar ... "

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Todo ano o Primeiro de Maio era comemorado com um discurso, trans-mitido pelo rádio para todo o Brasil, em que o ditador assumia nítido tompaternalista. Enaltecia o papel patriótico desempenhado pelos trabalhadores eelogiava sua conduta exemplar: "Nem greves, nem perturbações, nem desa-justamentos". Condenando a ociosidade, Vargas acrescentava que "não sepode tolerar a desocupação quando há tantas tarefas urgentes a se realizar".

E os sambas continuavam espelhando os interesses governamentais.Uma canção de R. Roberti e J. Farah dizia: "Eu hoje tenho tudo, tudo que umhomem quer/Mas pra chegar até esse ponto que eu cheguei/Eu trabalhei, tra-balhei, trabalhei .. .IE quem diz que o trabalho/Não dá camisa a ninguém/Nãotem razão, não tem, não tem". Em outra canção a boêmia era abandonada:"Eu digo adeus/Pra nunca mais/Adeus orgia, eu vou trabalhar/Pois já étempo/De me regenerar ... "

Ao lado das inúmeras canções cujo mote era a apologia do trabalho,encontravam-se, é claro, aquelas de resistência a esse ideal, mantendo vivo otema da malandragem. Um samba de 1945, da autoria de Almeidinha, dizia:"Quem quiser suba o morroNenha apreciar nossa uniãoífrabalho e não te-nho nada/De fome não morro nãoífrabalhar eu não, eu não/Eu trabalheicomo um louco/Até fiz. calo na mão/O meu patrão ficou rico/E eu pobre semum tostão/Foi por isso que agora/Eu mudei de opiniãoífrabalhar, eu não, eunão, eu não ". Aqui a figura do malandro, em geral idealizada, tem a sua jus-tificativa, pois, recusando o trabalho alienado, assume uma atitude de protes-to, ainda que silenciosa.

Dentro desse quadro o país se preparava para o período desenvolvi-mentista, que ocorreu entre 1956 e 1961, no governo de Juscelino Kubitschek,quando se deu a entrada em grande escala de empresas multinacionais. Nesseperíodo enalteciam-se as qualidades do trabalhador brasileiro, cuja habilidadeera igualada à do americano. Essa valorização perduraria até o regime militar,como fator ideológico de elogio ao pacifismo do nosso operário.

Os vestígios de 64

o regime militar implantado no Brasil a partir de 1964 assume o podercerceando todas as atividades sindicais e políticas. Com a sociedadeamordaçada, continha-se qualquer descontentamento popular. Campanhaselogiavam o clima de ordem e pacifismo que o país vivia. Intensificou-seainda mais a imagem do brasileiro como um povo não-violento e de índolepacífica. Sob esse mecanismo ideológico, forjava-se um mito capaz de dissi-mular qualquer descontentamento e se fazia crer que qualquer manifestaçãocontrária à ordem vigente não contava com a aprovação popular. Os protestoseram vistos como obra de uma minoria de "agitadores", interessada em insu-flar a massa e tumultuar a "paz social", desviando o país do curso normal daHistória. Assim, difundiu-se, até os dias atuais, o dispositivo ideológico de

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apregoar que "o povo cordial, ordeiro e trabalhador" pode servir de massa demanobra a grupos de interesses escusos. Criou-se a falsa imagem de que otrabalhador brasileiro não tinha vontade própria. Como essa situação não pôdeperdurar por muito tempo, o trabalhador foi forjando, no caminho, a constru-ção de sua história e de sua identidade, revigorando seus sindicatos, forçandoa abertura política e levando as elites a aceitar suas reivindicações.

o brasileiro faz "corpo mole" para ir ao trabalho?

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Estudos e estatísticas apontam que o povo brasileiro trabalha bastante.Mais da metade da população ativa começa a trabalhar aos 14 anos, fator quecontribui para o aumento da evasão escolar. Costuma-se atribuir a uma parce-la dos trabalhadores brasileiros a pecha de inoperantes, mas não se pode con-fundir lentidão ou falta de técnica com indolência. Assistimos diariamentenas grandes cidades ao espetáculo de inúmeras pessoas viajando dependura-das em ônibus e trens de subúrbio, a caminho do trabalho. A imagem de "pre-guiçosos" que muitos trabalhadores têm de si mesmos é proveniente da idéiade que quem vive do trabalho e não sobe na vida é acomodado, indisciplinado,incompetente ou avesso ao hábito de poupar.

A crise e a queda da maioria dos regimes socialistas mostraram que oser humano necessita não só de bens materiais mas também de bens simbóli-cos que dêem vazão aos seus sonhos, à sua imaginação. E a indústria culturaltem importante papel na manipulação desses anseios. No Brasil, onde a maio-ria dos trabalhadores ainda tem seu salário vinculado a uma cesta básica quemal garante as necessidades mínimas de alimentação, nem de longe se almejapropiciar-lhe algo além disso. A impossibilidade de se garantir até mesmouma ração básica ao trabalhador fica patente no Brasil, principalmente quan-do comparado com as nações desenvolvidas. A extensão dessas carênciaspode ser assim expressa:

Comida

Bebida é água.Comida é pasto.Você tem sede de quê?Você tem fome de quê?A gente não quer só comida,A gente quer comida, diversão e arte.A gente não quer só comida,A gente quer saída para qualquer parte.A gente não quer só comida,A gente quer bebida, diversão, balé.A gente não quer só comida,A gente quer a vida como a vida quer.

Bebida é água ...

A gente não quer só comer,A gente quer comer e quer fazer amor.A gente não quer só comer,A gente quer prazer pra aliviar a dor.A gente não quer só di)l'heiro,A gente quer dinheiro e felicidade.A gente não quer só dinheiro,A gente quer inteiro e não pela metade.

(Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto. In Titãs.Jesus não tem dentes no país dos banguelas. 1988.)

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12. UM REINO AMEAÇADO?

"O triunfo do trabalho parece total. É ele que comandaas pulsações sociais, econõmicas e políti.:;as de nosso tempo;é ele ainda que forja a armadura cultural. Pode-se, entretan-to, perguntar se seu reino não está, no presente, ameaçadopela História." (H. Harvon, La phiJosophie du travaiJ.)

Com freqüência aparece alguém prevendo o fim da sociedade do traba-lho. Sua abolição teria como causa, num futuro próximo, o avanço da revolu-ção microeletrônica, que inauguraria uma nova era. O economista John K.Galbraith previra na década de 60 não exatamente o fim do trabalho, mas queem breve o trabalho penoso, monótono e repetitivo seria considerado coisa dopassado. Esse momento tão esperado, esse grito de liberdade, já havia ecoadona Inglaterra no século XVIII, com o advento da máquina a vapor. Os fatos,porém, mostraram que ainda não era daquela vez.

Retomemos o fim da década de 50, quando a filósofa Hannah Arendtpreviu que talvez dentro de algumas décadas as fábricas seriam esvaziadas ecom isso se libertaria a humanidade do fardo do trabalho. Segundo Arendt, oprogresso científico e a realização técnica colocariam ao nosso alcance essegrande sonho, tão antigo quanto a própria humanidade, que é livrar o homemdo trabalho. Mantido em silêncio por ser considerado utópico, esse sonho érealizado por alguns à custa do trabalho de outros.

No entanto, para uma plena realização desse sonho há uma importantequestão a ser colocada, objeto inclusive do interesse de alguns pensadorescontemporâneos, e que a filósofa deixa em aberto: a era moderna trouxe con-sigo a glorificação do trabalho e, conseqüentemente, transformou o mundoem que vivemos em uma "sociedade operária". À medida que essa "socieda-de de trabalhadores" caminhasse para a libertação do trabalho, criar-se-ia umvazio, pois ela "não conhece outras atividades superiores e mais importantesem benefício das quais valeria a pena conquistar essa liberdade". De acordocom Hannah Arendt, a era moderna, ao glorificar o trabalho, defronta-se pa-radoxalmente com a possibilidade de se tornar uma sociedade de trabalhado-res sem trabalho.

De fato o desemprego é a preocupação maior dos governantes de quasetodos os países. Os postos de trabalho são mantidos graças à prática contínuada fabricação de bens de consumo imediato e aos grandes investimentos naindústria armamentista. Os produtos fabricados são feitos para durar pouco. É

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o que se chama de obsolescência programada. É da lógica do sistema fabricarprodutos frágeis e rapidamente deterioráveis - sejam lâmpadas, automóveisou eletrodomésticos -, que logo serão substituídos por outros, geralmentemais sofisticados. O desperdício e as necessidades artificiais fornecem essalógica absurda para manter a economia. Trata-se de um paradoxo, quando sesabe que a grande maioria desgosta de seu trabalho. Também o lazer burocrá-tico, preocupado em "administrar o tempo livre", é uma nova forma de alie-nação: para consumir os produtos da indústria do lazer, os indivíduos têm detrabalhar mais, completando assim o círculo vicioso.

A garantia do empregoexige constante investi-mento econômico.

Georges Friedmann, estudioso do processo de trabalho, ao visitar di-versas fábricas em todo o mundo (inclusive no Brasil) nas décadas de 50 e 60,desencantou-se com os trabalhadores que supriam seu tempo livre com outroemprego. O principal motivo não era o baixo salário de um emprego, mas afalta do que fazer com o tempo livre e a "avidez" de ganhar mais para poderconsumir mais. "Acho que a tentação do consumo é o melhor estímulo para otrabalho", afirmou uma pequena empresária da União Soviética pós-perestroika.

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As nossas carências

Nossos desejos, gostos e vontades são manipulados ao extremo em umasociedade alimentada pela ideologia da produção e do consumo, mantidospor falsas necessidades de bens materiais. Mas certamente o impacto da des-truição desenfreada da natureza brecará a crença na inesgotável uni-versalização do consumo, incentivada por uma cultura do desperdício de re-cursos não-renováveis.

Mas há também outra razão para essa intensa devoção ao trabalho: amaioria das pessoas muitas vezes tem nele o único elo social fora do convíviofamiliar. O trabalho é, em alguns casos, o único local de vida comunitária.Segundo Fteud, o trabalho não somente assegura aos homens a sua necessáriasubsistência, mas também justifica a vida em sociedade e oferece ao indiví-duo a possibilidade de se libertar das pulsões narcisistas, agressivas e mesmoeróticas que constituem a sua libido. Daí a crença, difundida na era vitorianado século passado, de que a energia sexual reprimida poderia ser canalizadapara o trabalho.

O trabalho também pode nos oferecer compensação para a vida dema-siadamente dura dos sofrimentos e das decepções existenciais, possibilitandouma satisfação particular de realização de algo e, ainda, a sublimação de ins-tintos primários que precisam ser liberados. Ele preenche grande parte denossa existência, mas tudo isso vai perdendo sentido à medida que nos torna-mos submissos aos seus ditames.

Outra explicação possível para o excessivo devotamento ao trabalho éque, ao nascer, encontramos o mundo social já pronto, com seus valores esta-belecidos de geração a geração. É comum ignorarmos por que agimos, pensa-mos ou sentimos de determinada forma; não nos damos conta da maneiracomo uma tarefa nos foi inculcada. Muitas vezes aceitamos, sem questionar,um ato ou uma conduta. Não percebemos que nossa maneira de ver, sentir eagir é resposta a um hábito cuja origem desconhecemos. Também é nossoímpeto natural evitar mudanças que interrompam a continuidade rotineira esegura da vida.

Nesse sentido, podemos introduzir uma pergunta, aqui, fundamental:"Por que trabalhamos?" A primeira resposta, a mais "natural" é: "para nosmanter vivos, ganhar dinheiro, deixar algo para os filhos ou para garantir umaboa aposentadoria". Aos poucos, porém, vemos que o trabalho deixa de ser ummeio para se tomar um fim em si mesmo, ocupando todo nosso tempo. Inde-pendentemente da necessidade de subsistência, para muitos é necessário traba-lhar "porque todos trabalham", "porque é normal'", "porque tem de ser assim",

A razão de ser

Podemos nos aprofundar nessa questão com o pensamento de filósofoscontemporâneos como Sartre e Heidegger, que muito contribuíram para aquestão existencial.

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Deixando de lado a complexa pergunta sobre o Ser, feita pelos filóso-fos, passemos para outra pergunta fundamental: "Qual a razão de nossa exis-tência?" Todos já a fizeram algum dia. Sentimos necessidade de buscar umsentido para a nossa vida e não podemos escamoteá-la. Muitos encontram aresposta através do escapismo dogmático da religião; outros mantêm-se ocu-pados demais para se deter em tal pergunta e justificam sua atitude afirmandoque estão sempre "pré-ocupados", perdendo-se nas coisas, fugindo de si mes-mos, imergindo na correria do dia·a-dia.

A constante atividade impede essa "parada" para pensarmos na razãode nossa existência. Quando esse complexo instrumental se rompe, surge apossibilidade de "cairmos na realidade". Acompanhemos um exemplo: umapessoa muito ativa, se seqüestrada e mantida em cativeiro, incomunicável,por dezenas de dias, depara com o vazio, vê a iminência da morte, faz um"balanço" da vida. Após essa experiência involuntária, possivelmente essapessoa jamais será a mesma. Ela terá "dado conta de si"; terá percebido queantes estivera "ausente de si".

Ao levar às últimas conseqüências a pergunta sobre a "razão da nossaexistência" podemos cair na angústia, na sensação do nada, no estranhamento.Damo-nos conta do absurdo de muitos valores, crenças e atitudes praticadosaté então. Essa experiência demarca nosso estado de perplexidade diante dapergunta sobre o "sentido da vida". Após esse vazio, ocorre imediatamente avolta à "normalidade". Para continuar vivendo é normal e até natural esse"esquecimento" e a volta à atividade cotidiana. Para muitos, porém, esse re-tomo se dá com lucidez, prazer e originalidade.

Os caminhos do paraíso

Para o intelectual francês André Gorz, um futuro promissor está reser-vado à humanidade - basta que o queiramos. A revolução tecnológica abo-liu enorme quantidade de trabalho e, para sanar o custo social elevado, propôsuma escolha à sociedade: "De um lado, uma elite de trabalhadores protegidose estáveis, empregados com tempo integral; de outro, uma massa de desem-pregados e de trabalhadores sem qualificação". É necessário unir esses doispólos e aumentar a eficiência produtiva, sem cair, porém, no produtivismo, afim de que cada um tenha bastante tempo para fazer o que quiser. A reduçãodrástica da jornada de trabalho proposta por ele já é possível, de imediato.Assegura o autor: "Se me disseres que é utópico, eu respondo que o que éutópico é pensar que se pode continuar como se está".

A revolução microeletrônica tem oferecido surpreendentes resultados,que dão margem à esperança. Isso nos faz lembrar Aristóteles quando dizia,de forma um tanto irônica, que a humanidade poderia dispensar os escravosse um dia existissem máquinas que se movessem sozinhas.

As recentes discussões acerca da tecnologia podem ser destacadas aquicom a questão lançada pelo professor espanhol Mariano F. Enguita ao nos

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,.proporcionar uma reflexão acerca da organização do trabalho na sociedadecontemporânea:

"Poucas coisas despertam, hoje, dose tão elevada de fetichismoquanto a tecnologia. Assim como as gerações passadas atribuíram todosos bens e males aos espíritos, ao destino e à vontade divina, hoje somoslevados a nos extasiar diante da marcha triunfante da Tecnologia -assim, com maiúscula, como Deus e o Estado. Na versão otimista, aciência e a técnica nos libertarão do esforço, dos trabalhos desagradá-veis e rotineiros. Na versão pessimista, que é a imagem da primeiradevolvida pelo espelho, a tecnologia nos trouxe e nos trará desde aalienação do trabalho até o esgotamento dos recursos e a destruiçãouniversal. Em um e outro caso, o lugar dos motores da História é ocu-pado pela história dos motores.

A otimista é a versão do consumidor de tecnologia, do 'cientista'social que tira conclusões sobre os efeitos da inovação tecnológica, ob-servando os utensílios da cozinha familiar; a máquina de lavar poupa àesposa o trabalho de lavar e protege suas mãos do desgaste, o aspiradorde pó livra-a do pó levantado pela vassoura, o liquidificador ou a bate-deira livram seu braço do trabalho de dar voltas à manivela ou de pre-parar a maionese sem que se separe, etc. e tudo isso faz com que chegueà noite, limpa, bem-humorada, descansada e disposta. Mas também fazcom que, para evitar aborrecer-se, sentir-se inútil ou cair no alcoolismoanônimo, se tenha que inventar sempre novas ocupações para preenchero tempo, mas nosso cientista social, porém, não se dedica aos problemasfamiliares, mas aos de trabalho, e se pergunta: Por acaso a pá mecânica,a cinta transportadora, a máquina ferramenta de controle numérico ou orobô não são os eletrodomésticos do operário? O problema está em quenem o operário tem tanto poder de decisão como a dona-de-casa, naescolha de seus instrumentos, nem a autoridade empresarial é tão be-névola com ele, quanto a autoridade patriarcal com ela. E o empresárionão está interessado em que o trabalhador, ou a trabalhadora, conservea saúde de seus pulmões e a elegância de sua pele, nem que se aprese~ltebem em sociedade, nem que chegue descansado ao leito conjugal, masque se tome mais barato e mais controlável. Mas, para nosso sociólogootimista não existe o empresário e, se existir, é, como o trabalhador,mais um dos agradecidos súditos de Sua Majestade, a Tecnologia, sub-metido a seus benévolos ditados. Nosso sociólogo também ouviu e leuque as máquinas substituem os trabalhadores, que destroem velhos lu-gares de trabalho, porém, por acaso, não terá sempre sido assim? E, nãoobstante, os trabalhadores deslocados têm encontrado emprego em ou-tras empresas e setores. Não é verdade que, se abandonarmos o pontode vista conjuntural e adotarmos o da,História, não é cada vez maior aforça de trabalho nos países industriais? Em definitivo, o raciocínioprocede assim: A ciência, e atrás dela a tecnologia, avança e nos permite

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produzir mais bens com menos trabalho, ao aumentar a produtividadedeste; a adoção das inovações tecnológicas é inevitável, pois seria sui-cídio não adotá-las, tanto para a humanidade em geral, como, dentro doconjunto da economia internacional ou doméstica, para qualquer so-ciedade ou empresa em particular; a tecnologia, enfim, libera o traba-lhador das tarefas mais pesadas e rotineiras.

A versão pessimista é obtida, como já indicamos, virando doavesso, como se faz a uma luva, a anterior. A tecnologia continua sendoo resultado 'natural' da ciência em uma sociedade orientada pela buscado lucro empresarial. Sua aplicação é, também, em certo sentido, ine-vitável, devido aos mercados competitivos. Seus efeitos, contudo, nãosão já positivos, mas negativos: ela destrói lugares de trabalho, condenaos trabalhadores a empregos desqualificados, monótonos e rotineiros,induz ao consumismo, desumaniza as relações sociais e, enfim, nosconduz ao holocausto universal. Os trabalhadores, o movimento ope-rário, a esquerda tradicional e o marxismo não souberam responder àcivilização produtivista que acompanha o mito do progresso e agora é avez dos coletivos ecologistas, verdes, marginais, feministas, etc. O tra-balho não será nunca reino de liberdade, de forma que se torna neces-sário começar a falar de uma cultura do ócio e do tempo livre ... "(Mariano F. Enguita, "Tecnologia e sociedade: A ideologia daracionalidade técnica, a organização do trabalho ... " In Tomaz T. daSilva (org.). Trabalho. educação e prática social. Porto Alegre, ArtesMédicas.)

Dizia Marx que a riqueza de uma sociedade pode ser medida pela redu-ção da quantidade de trabalho necessária para a sobrevivência. A liberdadecomeçaria no momento em que desaparecesse definitivamente o trabalho. NaIdeologia alemã, o autor deixa uma controversa questão, que muitos conside-ram utópica: a sociedade ideal é aquela onde todas as profissões se tornam,por assim dizer, passatempo. Uma parte do tempo seria ocupada com a pintu-ra, de manhã as pessoas iriam à caça, à tarde pescariam ou criariam gado,depois do jantar seriam críticas de arte, sem que isso se transformasse emprofissão.

Se esse reino da liberdade é impossível de se realizar, pelo menos deve-mos lançar a semente do imperativo fundamental exigido pelos trabalhadoreseuropeus: "Trabalhar menos para que todos trabalhem e vivam melhor".

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GLOSSÁRIO

Alienação. Genericamente a palavra é empregada no sentido de "perda daconsciência crítica acerca da realidade" ou com relação ao indivíduo queestá alheio ou desinteressado dos acontecimentos políticos e sociais. Espe-cificamente emprega-se quando o trabalho assume o caráter de algo força-do, rotineiro e o trabalhador se encontra à mercê de um patrão que se apro-pria do produto do seu trabalho. O trabalhador vê aquilo que produz comoalgo estranho, que não se originou dele e pelo qual ele não se reconhececomo responsável.

Anarco-sindicalisJ:ll0. Movimento operário radical, predominante na décadade 20, que, como anarquista, pregava a abolição do Estado e, também,como sindicalista, via no sindicato o instrumento para a ação libertária e onúcleo básico de organização da sociedade futura. Acreditava que atravésde greves e boicotes econômicos abrir-se-ia o caminho para a criação danova sociedade. No patronato da época, as idéias anarquistas difundidaspelo imigrante e a sua liderança nos sindicatos deram origem ao mito deque os movimentos grevistas e reivindicatórios eram incitados por "agita-dores estrangeiros".

Bucólico. Termo referente à vida e aos costumes do campo. O contraste entrea vida urbana e a campestre é bem-destacado por Raymond Williams emO campo e a cidade, um imaginário nostálgico da Inglaterra rural do sécu-lo XVI. O autor mostra que a abundância e a felicidade evocadas pelospoetas. nem sempre reais, vão se modificando à medida que o país se in-dustrializa.

Burguesia. Termo originalmente aplicado aos moradores que se agrupavamem tomo dos burgos (fortalezas) e viviam do comércio, do artesanato e dausura. Posteriormente passou a designar a classe social formada por pro-prietários de capital que vivem dos rendimentos por ele gerado. Em oposi-ção à burguesia, temos o proletariado.

Capital. Todo bem econômico (não apenas dinheiro mas máquinas, equipa-mentos, mercadoria etc.) passível de ser aplicado na produção de novasriquezas. Os detentores do capital são os industriais, os comerciantes, osbanqueiros, os grandes agricultores etc., que, para gerar riquezas, com-pram a força de trabalho do operário.

Capitalismo. Organização econômica baseada no predomínio do capital e naseparação entre os assalariados, que dispõem apenas da venda da sua forçade trabalho, e os capitalistas, que são proprietários dos meios de produção.Estes empregam os trabalhadores para produzir mercadorias visando à ob-

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tenção de lucros. O capitalismo é considerado pelo marxismo como ummodo de produção transitório, sujeito a crises econômicas cíclicas cujoagravamento o leva a sucumbir ao socialismo.

Classe social. Conceito de vital importância na teoria marxista. Foram as lu-tas de classes, decorrentes da oposição de interesses econômicos, tais comoburguesia versus proletariado, que constituíram a força motriz das trans-formações sociais. As classes sociais são a expressão do modo de produzirda sociedade. Dessa forma, a História universal é resultado da história daluta de classes.

Comunismo. Doutrina ou sistema social que defende a abolição da proprie-dade privada dos meios de produção e o fim das classes sociais, propondoa distribuição igualitária dos bens produzidos pela sociedade através dapropriedade coletiva. O comunismo proposto por Marx seria uma etapaposterior ao socialismo, onde haveria a extinção do Estado e o autogovernopela coletividade.

Contracultura. Originada nos anos 60, foi um movimento de contestaçãoradical de certos valores culturais vigentes que contrapunha à cultura con-vencionai uma cultura marginal. A rebelião da juventude se expressou namúsica (rock), nas universidades (Maio de 68 na França) e na vestimenta.O movimento hippie, opondo-se ao trabalho alienado da sociedade indus-trial (e criticando o consumo desenfreado), incentivou a prática da ativida-de artesanal é"triou um estilo de vida em comunidade que buscava novasformas de organização social e familiar.

Estóica. Escola filosófica fundada pelo filósofo grego Zenão no fim do sécu-lo IV a.C., que propagava suas idéias, como era costume na época, sob umpórtico guarnecido de colunas, cujo nome em grego é stoa, daí stoicus.Buscava meios de tornar o homem insensível aos males físicos e morais.Em sentido figurado, o termo estóico está ligado à austeridade de caráter, àimpassibilidade ante a dor e a adversidade.

Ética. Parte da Filosofia que estuda os princípios ideais da conduta humanasob o ponto de vista do bem e do mal. Estu<9aas determinantes morais dasnormas a que devem ajustar-se as relações entre os diversos membros dasociedade.

Fascismo. Sistema político nacionalista de partido único, antiliberal,antidemocrático e anticomunista, liderado na Itália por Benito Mussolini(1883-1945). Defendia a ação do Estado como principal dirigente da eco-nomia nacional.

Feudo. Terra pertencente à nobreza e ao clero, onde o servo prestava serviçoscomo pagamento pelo seu usufruto.

Liberalismo. Conjunto de idéias e doutrinas político-econômicas surgido noséculo XVII, que acreditava na livre concorrência como ordem natural parao equilíbrio dos fenômenos econômicos. As atribuições do Estado devemser restringidas ao máximo e a liberdade individual deve ser assegurada,em iguais condições, para todos. O liberalismo se opunha vigorosamenteao absolutismo.

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Linha de montagem. Sistema de produção industrial que emprega esteirasrolantes ou "varais" móveis por onde os componentes chegam até os traba-lhadores. Estes, por sua vez, dispostos em seqüência, ficam à espera dosprodutos a serem montados, ao passar por eles, por meio de operações su-cessivas.

Marxismo. Conjunto de idéias político-filosóficas desenvolvido por Kar!Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Assentado na luta declasses, propõe a derrubada da classe dominante, a burguesia, através deuma revolução comandada pelo proletariado, descontente com a sua cres-cente situação de miséria.

Modo de produção. Na concepção marxista, é a maneira pela qual a socie-dade organiza a produção ou produz seus bens e serviços, como os utiliza ecomo os distribui. O elemento fundamental para a definição de um modode produção são as relações sociais de produção que ligam o produtor aoexplorador. Conhece-se a História através dos diversos modos de produ-ção, como, por exemplo, o modo escravista (Grécia Antiga), o feudal (Eu-ropa na Idade Média), o capitalista (Estados Unidos, Brasil e outros) e osocialista (China).

Nazi-fascismo. Emprega-se o termo nazi como abreviatura de nazismo, mo-vimento ocorrido na Alemanha, liderado por Adolf Hitler (I889-1945) ebaseado em dogmas e preconceitos acerca de uma pretensa superioridadeda raça ariana. O termo nazi-fascismo refere-se aos aspectos comuns dosregimes nazista e fascista: antiliberalismo, partido único, anticomunismo editatorialismo.

Partidos de esquerda. Expressão que se aplica aos partidos que têm comodoutrina a teoria marxista e cujas pregações, conseqüentemente, sãodirigidas ao proletariado. Os termos esquerda e direita originaram-se daposição que cada grupo político ocupava na sala de convenções do Parla-mento, durante a Revolução Francesa, onde "o assento do Presidente fica-va no meio da sala. Os girondinos (alta burguesia conservadora) senta-vam-se à direita dele; os jacobinos (pequena burguesia e os profissionaisapoiados pela plebe de Paris) sentavam-se à esquerda. Para economizaresforços, o Presidente da Convenção passou a chamar os girondinos dedireita ( ... ) e os jacobinos de esquerda ... Acontece que os jacobinos que-riam a continuação das medidas revolucionárias; os girondinos, não. Asexpressões pegaram: esquerda é quem quer revolução ou reformas sociais;direita é quem não quer". (Joel Rufino dos Santos. História do Brasil, SãoPaulo, Ed. Marco).

Perestroika. Palavra russa que quer dizer "reestruturação". Está vinculada àpolítica econômica desenvolvida na ex-União Soviética por MikhailGorbachev e que objetivava maior produtividade, lucratividade, des-centralização econômica e privatização. Normalmente, vem acompanha-da da palavra glasnost, que significa "transparência", no sentido de maiorliberdade de expressão com relação aos problemas de ordem cultural,econômica e política.

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Pleno emprego. Ocorre quando há uma taxa baixíssima de pessoas desem-pregadas ou, até mesmo, uma oferta maior de emprego do que a quantida-de de pessoas dispostas a se candidatar ao trabalho.

Proletariado. Do latim prole, que significa "filhos". Classe de indivíduospobres, conhecidos pela capacidade de gerar filhos. Uma característicadessa classe são os trabalhadores assalariados que, no modo de produçãocapitalista, dependem da venda de sua força de trabalho.

Rerum novarum. Em latim significa "Das coisas novas". É o nome da pri-meira encíclica papal sobre o trabalho. Elaborada pelo papa Leão XIII em1891, tinha como subtítulo a expressão "Sobre a condição dos operários".Nessa encíclica, mesmo a Igreja negando o socialismo e a contradição en-tre o capital e o trabalho, nota-se o reflexo da crítica marxista à exploraçãodo trabalhador. O papa Pio XI, 40 anos depois, comemora a data com aencíclica Quadragesimo al1l1o.Comemorando cem anos da primeira, JoãoPaulo 11 lança a encíclica Laborem exercens e, em 1991, promulga aCel1tesimo annus.

Revolução Industrial. Ocorrida inicialmente na Inglaterra, vai do séculoXVIII ao século XIX. Proporcionando grande impulso à produção fabril,tem como principal fator, além de outros inventos mecânicos, o apareci-mento de máquinas movidas pela energia a vapor em lugar da energia hu-mana.

Servidão. Originada de servus, palavra latina que significa "escravo", embo-ra o servo da Idade Média não fosse considerado escravo. Há diversas for-mas de servidão, se se pensar na amplitude do privilégio para alguns eopressão para outros. A servidão é um regime de sujeição típico do feuda-lismo, que exigia dos camponeses um pagamento obrigatório aos senhoresfeudais, a ser efetivado sob a forma de dias de trabalho sem remuneração,ou com a entrega de parte da produção, ou ainda através de garantias emdinheiro.

Socialismo utópico. Expressão geralmente empregada para a primeira fasedo socialismo, cujos principais expoentes são Saint-Simon, Fourier eProudhon. O termo utópico origina-se de u-topos, ou seja, "em lugar al-gum", "irrealizável". Segundo os marxistas, os socialistas utópicos que-riam a transformação da sociedade apenas com as reformas dos meios deprodução e não com a sua transformação radical. Já o socialismo científi-co, baseado nas idéias de Marx e Engels, propõe o fim da luta de classes,com a eliminação da burguesia e a estatização dos meios de produção.

Sociedade aristocrática. Forma de organização social e política em que ogoverno é monopolizado por um segmento privilegiado da sociedade. Nasociedade medieval tratava-se de uma camada social pertencente à nobre-za, como proprietários de terras, senhores feudais e proprietários de bensde raiz.

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SUGESTÕES DE LEITURA

Por ser esta uma obra de introdução ao tema, procurei não sobrecarre-gar o leitor com excesso de citações. Embora a literatura acerca do trabalhoseja extensa, no que diz respeito especificamente à sua ideologia ela é escas-sa. Destaco, assim, as principais obras consultadas que possam ser do interes-se do leitor.

Sobre a ideologia do trabalho

ANTONY, P. D. The ideology ofwork. Londres, Tavistock Publ. Lt, 1977.Mesmo de difícil acesso para o leitor não-iniciado, e apesar de não ha-

ver tradução para a língua portuguesa, não poderíamos deixar de mencionaresta importante obra, que trata especificamente do nosso tema. Embora tratedo trabalho escravo e servil, o autor concentra o estudo no trabalho livre apartir do século XVII com o crescimento do processo de industrialização.Aborda como o trabalho se tomou cada vez mais o centro das atenções pelosideólogos empresariais e seus críticos radicais.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense-Universi-tária, 1981.

Deixando de lado o estudo da vida contemplativa, a autora centra suaatenção no exame das três atividades fundamentais da vida ativa: o labor, otrabalho e a ação. Dos gregos aos contemporâneos, as profundas análises dafilósofa centram-se na pergunta: "O que estamos fazendo?"

ENGUIT A, Mariano F. A face oculta da escola - Escola e trabalho no capi-talismo. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989.

Estimulante leitura que sintetiza as relações históricas e sociológicasdo desenvolvimento da organização do trabalho na Revolução Industrial esua conexão com a escola, passando pelas colônias e chegando aos nossosdias. Nesse sentido, a crença na concepção iluminista e edificante acerca daescola fica comprometida.

FARIA, Ana L. G./deologia no livro didático. São Paulo, Cortez, 1989.Como os livros didáticos de 1.° e de 2.° grau concebem o trabalho: a

difusão do preconceito e a valorização de certas atividades em detrimento deoutras.

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KOW ARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem - A origem do trabalho livre noBrasil. São Paulo, Brasiliense, 1987.

A partir do trabalho do escravo e do imigrante, o autor mostra "como aclasse dominante criou, usou e reproduziu a imagem de indisciplina e vadia-gem dos homens livres, unicamente como forma de manutenção de um exér-cito de mão-de-obra de reserva, que só iria entrar no mercado de trabalho como surto de industrialização dos anos 30".

LEME, Marisa S. A ideologia dos industriais brasileiros - 1919-1945.Petrópolis, Vozes, 1978.

O comportamento do empresariado industrial, com seu lado progressis-ta no campo econômico e conservador no campo social. Mostra "odistanciamento entre as classes operárias e a dos industriais". A atitude daburguesia com relação às greves, à repressão policial, à legislação trabalhista,e sua relação com o governo.

ROUSSELET, J. A alergia ao trabalho. Lisboa, Edições 70, 1974.Analisa a ideologia da veneração ao trabalho e a sua incompatibilidade

com as aspirações da juventude atual. Por que os jovens estão descrentes edesinteressados pelo trabalho, e a contestação dos valores tradicionais.

SEGNINI, Liliana. A liturgia do poder - Trabalho e disciplina. São Paulo,EDUC - Ed. da PUe. 1988.

A sacralização do trabalho no maior banco privado do país. A ética dotrabalho, o poder disciplinar na organização e sua ideologia.

Outras obras indicadas:

Sohre os gregos e o trabalho escravo

SCHULL, Pierre M. Maquinismo y Filo,\'(Jjfa.Buenos Aires, Galatca NuevaVisión, s.d.

VERNANT, Jcan-Pierre. Trabalho e escravidüo na Grécia Antiga. São Pau-lo, Papirus, 1989.

Sohre a Idade Média e a Idade Moderna

BOMBASSARO, Luiz e. (org.). Ética e trabalho. Cinco estudos. Ri,) G:;m-de do Sul, De ZOíli, PyR Ed., 1989.

GRAZIA, Sehastian. Tiempo, trabojo.' (hio, '\hd;i. T(~(ilO" SA. 191'16.HUBERMAN, Leo. História da nqu,'-:, di! il'lnem. Rio de Janeiro. Z"l1ar.

1983.PIRENNE. Henr;./ liis/(írio cconúmiCCl e ,\(leio! c/,I ldwlc Média. São Paulo,

Mestre jou, 1966.

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Page 86: Ideologia Do Trabalho

Sobre a Revolução Industrial

FOHLEN, Claude. O trabalho no século XIX. Lisboa, Estúdios Cor. 1974.FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. In Cadernos PUc. Rio

de Janeiro, n.a 16, 1974.MANTOUX, Paul. A Revolução Industrial no século XVIII. São Paulo,

Unesp/Hucitec, s.d.

Sobre a ideologia empresarial e seus críticos

BOGOMOLOV A, N. La doctrina de las "relaciones humanas". Moscou,Editorial Progresso, s.d.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista - A degradação dotrabalho no século XX. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

CORIAT, Benjamin. EI taUer y el cronômetro: ensayo sobre el taylorismo, elfordismo y la producción em masa. Madri, Siglo XXI, 1982.

ETZIONI, Amitai. Organizações modernas. São Paulo, Pioneira, 1984.FRIEDMANN, Georges. O trahalho em migalhas. São Paulo, Perspectiva,

1983.MOREIRA, Eduardo F. P. e RAGO, Luzia M. O que é taylorismo. São Paulo,

Brasil iense, 1984.TRAGTEMBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. São Paulo, Ática,

1977._____ . Administração - Poder e ideologia. São Paulo, Cortez, 1989.

Sobre o nazismo e ofascismo

POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo, Martins Fontes,1978.

REICR, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. Porto, Publ. Escorpião,1974.

Sohre o comunismo

BENDIX, Reinhard. Trabajo y autoridad en la empresa: Las ideologías de ladirección en el curso de la industrialización. Buenos Aires, Eudeba, 1966.

CARR, E. H. A Revolução Russa de Lênin a Stálin (1917-1929). Rio de Ja-neiro, Zahar, 1981.

CASTORIADIS, Cornelius. Socialismo ou harhárie. São Paulo, Brasilicnse.1983.

_____ .As encru:cilhadasdo lahirinto I!. Rio de Jané~ilO, Pai'" Terra. 10';1,7.UNHART, Robert. Lênin. os call1jJoneses e 7ú\'/ol'. São Paulo, Marco Zcrc

1983.

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Sobre o Brasil

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1978.

MATOS, Cláudia N. Acertei no milhar: Malandragem e samba no tempo deGetúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.

PEREIRA, Ângela M. C. Burguesia e trabalho. Rio de Janeiro, Campus,1979.

SAHL}NS. Marshall D. Sociedades trihais. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.TURAZZI, Maria I. A ellforia do progresso e a imposiçclo da ordem: A en-

genharia, a indústria e a organização do trabalho na virada do século XIXao XX. São Paulo, Marco Zero, 1989.

Sohre o trahalho na atualidade e perspectil'(l/Íltllra

GORZ, André. Les chemins dll par(ll/is: L' agonie du capital. Paris, Galilée,1983.

HANDY, Charles. Elfúturo deltrabqjo hllll1(///(}.Barçelona, Ariel, 1986.JACCARD, Pierre. Psicossociologia do trabalho. Lisboa, Moraes, 1969.

DAG GRAFlCA E EDITORIAL LTDA.Av. N. Senhora do O. 1782. tel. 857-6044

Imprimiu

COM FILMES FORNECIDOS PELO EDITOR

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A IDEOLOGIADO TRABALHO

"A economia de uma época suscitauma ideologia, porque é vivida porhomens que procuram realizar-senela."

Merleau·Pon,y

Trabalhar é uma atividade tão naturalque a grande maioria das pessoas nemse dá conta de quanto esse conceito estácarregado de influências ideológicas.

O objetivo deste estudo de PauloSérgio do Carmo, professor deSociologia e Filosofia, é mostrar como otrabalho foi exaltado ou desprezado pordiferentes classes sociais em diferentesépocas e nações.

Sob essa ótica, o autor aborda otrabalho na sociedade escravista grega,a atividade servil na Idade Média e oprodutivismo na Revolução Industrial.Trata das novas técnicas empresariais doséculo XX, como o taylorismo e asrelações humanas, e também da atençãoque o trabalho recebeu do Estado nofascismo e no comunismo. Com relaçãoao Brasil, aborda o assunto desde operíodo colonial até os dias atuais. Porfim, discute algumas perspectivas dotrabalho no mundo.