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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica IMAGINÁRIO, CIBERCULTURA E CIDADANIA A interferência do fenômeno glocal interativo na ressignificação da cidadania na contemporaneidade Lygia Socorro Sousa Ferreira DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA São Paulo/SP 2018

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica

IMAGINÁRIO, CIBERCULTURA E CIDADANIA A interferência do fenômeno glocal interativo

na ressignificação da cidadania na contemporaneidade

Lygia Socorro Sousa Ferreira

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo/SP

2018

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LYGIA SOCORRO SOUSA FERREIRA

IMAGINÁRIO, CIBERCULTURA E CIDADANIA A interferência do fenômeno glocal interativo

na ressignificação da cidadania na contemporaneidade

Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora, como

exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Semiótica pelo Programa de Estudos Pós-

Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo (PEPGCOS/PUC-SP).

Orientador: Prof. Dr. Eugênio Rondini Trivinho

Área de Concentração: Signo e Significação nos Processos

Comunicacionais

Linha de Pesquisa: Dimensões Políticas na Comunicação

São Paulo/SP

2018

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BANCA EXAMINADORA

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À Nazaré Sousa, dedico esta Tese.

Foi com ela que aprendi as primeiras palavras, a dar os primeiros

passos;

Foi com ela que aprendi a escrever e a ler e aprendi o valor da educação;

Foi com ela que aprendi a ser forte, a ter garra para enfrentar as

dificuldades;

É em seu colo que sempre busco refúgio nos momentos de dificuldades;

É em seu abraço que encontro o maior significado da palavra amor;

É com ela que partilho mais essa vitória.

Obrigada, mãe! Eu te amo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus. É Ele que sustenta as significações imaginárias que

fundamentam a minha vida: a Fé e o Amor.

A minha irmã Lourdes Ferreira pelo seu carinho, pelo seu apoio e pela sua amizade.

Alegria imensurável de nossa mãe, por ter, a partir de agora, duas filhas doutoras.

Ao meu orientador Prof. Dr. Eugênio Trivinho , por quem tenho profunda admiração,

amizade e carinho. Agradeço pelo seu incentivo, pela sua paciência e pela sua dedicação em

todo o meu percurso acadêmico iniciado em um curso e Pós-Graduação Lato Sensu na cidade

de Belém-Pará; e que, felizmente, se estendeu até o Doutorado. Sinto-me honrada em ter, como

orientador e amigo, um dos maiores pensadores da crítica da cibercultura. Sobretudo, em

tempos em que a crítica é o principal mecanismo de resistência dentro de uma sociedade

pautada na pós-verdade.

Aos professores do PEPGCOS-PUC/SP, que contribuíram sobremaneira para as

reflexões que deram ensejo a esta Tese. Principalmente, Prof. Dr. Norval Baitello, pelo seu

incentivo e a Prof. Dr. Lucrécia Ferrara pelo seu apoio e advertências necessárias para o meu

crescimento acadêmico. À querida Cida (do PEPGCOS/PUC-SP), pelo apoio necessário em

nosso caminho acadêmico junto ao COS. Aos colegas pesquisadores do CENCIB. A todos os

colegas do COS, pela acolhida amiga e pelo intercâmbio de conhecimentos.

Aos meus queridos familiares, tios e primos, pelo amor, carinho, amizade, orações e

apoio incondicional de sempre. Em especial à minha madrinha Conceição Fernandes.

Aos meus bons amigos, de Belém e São Paulo, cuja presença e apoio foram

fundamentais para a finalização deste trabalho. Destaco alguns nomes, porque estiveram ao

meu lado frequentemente ao longo desses quatro anos: Marlise Borges, Barbara Barbosa,

Márcio Wariss, Mário Tito Almeida e Leila Almeida. A eles, minha gratidão.

A coordenação da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e da Universidade da

Amazônia; a equipe gestora da Escola Estadual Santo Afonso pela compreensão e pelo

importante incentivo para que este Trabalho fosse finalizado.

As irmãs do Pensionato Santa Marcelina pela disponibilidade e acolhida tão necessária

para que os estudos de doutoramento fossem concluídos em São Paulo.

Ao meu pai (in memorian) que se foi...foi tão rápido. Não deu para esperar que eu

crescesse. Não pôde me ver chegar aqui. Mas, no meu imaginário, está ao lado de Deus

intercedendo por mim. Por isso, quando penso nele lembro Guimarães Rosa ao dizer... “as

pessoas não morrem, ficam encantadas”.

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Se a velocidade é luz, então aparência é o que se move.

Transparências momentâneas e enganosas, dimensões do

espaço que não passam de aparições fugitivas, objetos

percebidos no instante do olhar, este olhar que é, a um só

tempo, o lugar e o olho. (VIRILIO, 2005, p.19)

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RESUMO

A presente Tese de Doutorado tem como objeto de estudo a cidadania ressignificada – tanto no

modo de ser exercida, quanto conceitualmente – pelo fenômeno glocal interativo, em dimensão

transpolítica, no contexto social-histórico da cibercultura, entendida como configuração

material e imaginária de época, proveniente das transformações provocadas pela comunicação

tecnológica a partir da segunda metade do século XX. Nesse contexto, marcado por avanços

técnicos e científicos contínuos e pela utilização de equipamentos infotecnológicos conectados

à web, a interatividade e a velocidade logram valor absoluto, impulsionando para que cresça,

vertiginosamente, mobilizações políticas e sociais nas comunidades virtuais. As relações

estabelecidas nesses ambientes mediáticos pressupõem a produção e a articulação de um poder

descentralizado que tende, cada vez mais, a crescer ao sabor da visibilidade mediática. Assim,

o objetivo principal desta pesquisa trata-se em analisar a nova concepção do ser/fazer cidadão,

agora conformado nos ambientes em rede, atuando estrategicamente com contradições e

expansões, visibilidades e recuos, subvertendo a lógica da modernidade e emergindo como ação

imprescindível de resistência e disputa de status na sociedade dromocrática cibercultural. Por

isso, torna-se oportuno investigar quais os impactos causados pela ressignificação da cidadania

na sociedade?; e quais transformações e contribuições teóricas e práticas podem ser

proporcionadas pela ressignificação das ações cidadãs a partir das experiências nos ambientes

virtualizados? Como hipótese vislumbra-se que a cidadania ressignificada pelo fenômeno

glocal interativo colabora para o surgimento de uma nova forma de cidadania, cuja participação

imaginária em tempo real, favorece os cidadãos neonômades a se mobilizarem, via redes

sociais, em torno de questões referentes aos direitos civis, políticos e sociais a serem

diuturnamente alimentadas e executadas em contextos interativos móveis, ou fora deles, sem

que isso configure conscientemente obediência a regras do sistema dromocrático cibercultural.

A pesquisa se fundamenta nas reflexões de Bauman, Harvey, Jameson, Lyotard (pós-

modernidade); Breton (utopia da comunicação); Castoriadis (teoria do imaginário); Virilio

(sociodromologia); Trivinho (cibercultura, dromocracia cibercultural e fenômeno glocal);

Marshall e Carvalho (cidadania) e Foucault e Agamben (dispositivo e panoptismo). Tais

conceitos e tendências são articulados mediante reflexão crítica fincada na apreensão

fenomênica de processos socioculturais e históricos relacionados ao modo de ser da civilização

mediática atual, sempre na direção do questionamento sobre a condição do sujeito nessa mesma

civilização. Vale ressaltar que, este trabalho teórico, também se desenvolveu reflexivamente

analisando posts extraídos das redes sociais Facebook e Twitter, selecionados por hashtags com

temáticas que envolviam o tripé de direitos dos cidadãos. Esta pesquisa visa contribuir a crítica

da cibercultura no campo teórico e prático, a partir do entendimento de que o fenômeno glocal

interativo, em dimensão transpolítica, colabora para a ressignificação da cidadania, não

somente nos ambientes virtuais, como também na prática cotidiana.

PALAVRAS-CHAVE: comunicação; cibercultura; glocal/glocalização; interatividade;

cidadania.

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ABSTRACT

This thesis aims at studying the resignified citizenship – both in its exercise and conceptually

speaking – by means of the interactive glocal phenomenon in its transpolitical dimension in the

cyberculture, considering its social-historical context, also understood as a material and

imaginary configuration, stemming from the many transformations originated in the

technological communication sphere from the mid twentieth century on. In this context,

characterized by continuous improvement in technology and science and also by the application

of computing connected in the web, this interactivity possess absolute value, promoting a

vertiginous growth of political and social mobilizations associated with web communities. The

established relations in these media environments presuppose some level of decentralized

power internally articulated, which move towards the needs of media exposure. Hence, this

research main objective is to analyze this new concept of being/becoming a citizen, but now

framed in web environments, acting strategically in terms of contradictions and expansions,

exposure and retreat, in which there’s a subversion of modernity in the emergency as a language

of endurance and struggle for status in the dromocratic cybercultural society. Having this in

mind, it becomes advisable to investigate the impacts caused by this current resignification of

citizenship, asking what transformations and practical contributions derives from these

resignification phenomenon associated with this new model of web citizenship. As our

hypothesis we have that this resignified citizenship made by the interactive glocal phenomenon

collaborates for the rise of a new form of citizenship, whose imaginary participation, in real

time, favors neonomadic citizens to get mobilized through social media, around issues related

to civil rights that are going to be nourished in mobile interactive contexts, or outside them, not

characterizing it as a strict obedience to the rules of the cybercultural system. This research

relies on the thought of many authors: Bauman, Harvey, Jameson, Lyotard (post-modernity);

Breton (communication utopia); Castoriadis (imaginary theory); Virilio (sociodromology);

Trivinho (cyberculture, dromocracy and glocal phenomenon); Marshal and Carvalho

(citizenship); and Foucault and Agamben (dispositive and panoptism). These concepts and

trends are articulated through a critical analysis based on the phenomenical grasp of

sociocultural and historical processes related to the current media civilization layout,

emphasizing the questions concerning the subject – his/her condition – in the civilization. It is

important to highlight that this thesis has also found its development in a reflexive analysis of

posts, which were extracted from the social media (Facebook and Twitter), selected through

hashtags, and concerning issues linked to citizen rights. This research aims at contributing to a

critical approach to the cybercultural field study, based on the understanding that the glocal

interactive phenomenon, in its transpolitical dimension, collaborates to resignify citizenship not

only in the web environment, but also in daily life.

Keywords: communication; cyberculture; glocal/glocalization; interactivity; citizenship.

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LISTA DE FIGURAS

Imagem 1: MexeuComUmaMexeuComTodas.............................................................

Imagem 2: PEC 1818/15...............................................................................................

Imagem 3: #ELENÃO..................................................................................................

Imagem 4: #ELENÃO e #LOVEWINS........................................................................

Imagem 5: #NenhumDireitoAMenos...........................................................................

Imagens 6: #ESCOLASEMPARTIDO e #ESCOLASEMMORDAÇA.......................

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................

PARTE I

O IMAGINÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE E NA CIBERCULTURA...............

CAPÍTULO 1 - O IMAGINÁRIO...............................................................................

1.1. Sobre o imaginário...............................................................................................

1.2. As significações imaginárias...............................................................................

1.3. Os magmas de significações imaginárias da contemporaneidade.......................

CAPÍTULO II – AS SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS NA PÓS-

MODERNIDADE .........................................................................................................

2.1. A emergência do imaginário pós-moderno..........................................................

2.1.1. O imaginário pós-moderno no Brasil e na América Latina.........................

2.2 O regime da velocidade no contexto pós-moderno: o nascimento da

Cibercultura.....................................................................................................................

2.2.1. Cibernética e cibercultura............................................................................

2.2.2. A dromocracia como sistema articulador da civilização mediática.............

2.2.3. Fenômeno glocal..........................................................................................

2.2.4. A gênese do glocal.......................................................................................

2.2.5. A teoria do glocal como crítica conceitual da civilização mediática...........

2.2.6. A vida glocalizada........................................................................................

2.2.7. As utopias do imaginário tecnológico: o fascínio pelas práticas glocais

interativas.........................................................................................................................

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PARTE II

CIDADANIA COMO DISPOSITIVO.........................................................................

CAPÍTULO 3 – CIDADANIA......................................................................................

3.1. A cidadania..........................................................................................................

3.1.1. Evolução conceitual da cidadania 3.1.2. A cidadania no Brasil..................

3.1.2. A cidadania no Brasil....................................................................................

CAPÍTULO 4 – CIDADANIA E DISPOSITIVO.......................................................

4.1. O dispositivo como magma das significações imaginárias.................................

4.2. Dispositivo, cidadania e a cibercultura................................................................

PARTE III

O FENÔMENO GLOCAL E A CIDADANIA GLOCALIZADA............................

CAPÍTULO 5 – O GLOCAL........................................................................................

5.1. O dispositivo glocal.............................................................................................

5.2. O dispositivo cidadania e o dispositivo glocal....................................................

CAPÍTULO 6 – A CIDADANIA GLOCAL...............................................................

6.1. Cidadania ressignificada......................................................................................

6.2. A tríade dos direitos na cidadania glocal.............................................................

CONCLUSÃO................................................................................................................

BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................

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INTRODUÇÃO

Com o advento da pós-modernidade, inaugurou-se a era da civilização

mediática. Época histórica marcada pela presença da tecnologia em todas as dimensões da vida

humana, incluindo a esfera do trabalho até a esfera do tempo livre e de lazer. Indivíduos (jovens,

adultos, crianças), instituições (educacionais, religiosas, fundações), empresas (públicas e

privadas), Estados (desenvolvidos ou emergentes) são convidados ou pressionados a

adequarem-se às modificações sociais, culturais e imaginárias provocadas pelos media

interativos, principalmente, após terem se tornado o principal vetor de articulação da vida

humana. Nesse contexto, a cidadania, antes localizada exclusivamente no território da cidade

ou do Estado, passa a também vigorar nos ambientes virtuais. O “não-lugar” (VIRILIO, 1993b)

da rede é a “nova ágora”, o espaço de discussões de cidadãos neo-nômades (BAITELLO, 2012)

que, alojados em seus espaços de acesso, manifestam-se sobre os mais diversos assuntos,

incluindo os seus próprios direitos, fazendo com que a cidadania sofra ressignificação.

A presente Tese possui como fio condutor a teoria do imaginário de Cornelius

Castoriadis (1986), por entender que o processo de ressignificação ocorre, primeiramente, no

âmbito do imaginário social para depois se fazer presente nas práticas cotidianas. Sob essa

perspectiva, a utilização dos termos “ressignificação” e “ressignificado” pressupõem, de

imediato, algo já consolidado ou instituído socialmente. Por isso, nesta Introdução aborda-se a

história da cidadania, destacando elementos importantes, que serão aprofundados nos capítulos,

mas colaboram, antecipadamente, no entendimento da abordagem analítica do modo conceitual

e empírico pelo qual a cidadania se transforma até ressignificar-se por interferência do

fenômeno glocal.

O conceito de cidadania remete a três questionamentos basilares: [1] o que é

cidadania?; o que é ser cidadão?; e quem pode ser caracterizado como tal?. Na percepção

aristotélica, ser cidadão é possuir titularidade que garante poder público sem restrições e

permite tomar decisões visando o bem coletivo. No que toca aos critérios, Aristóteles restringe

a cidadania aos que não precisavam utilizar a força produtiva para viver, excluindo os escravos,

os estrangeiros e as mulheres que tinham funções específicas ligadas ao cuidado com os filhos

e com o lar. Opondo-se a concepção grega, a cidadania romana possuía caráter mais jurídico.

A palavra latina civis servia para diferenciar os cidadãos nativos, que possuíam direitos, dos

estrangeiros, Os direitos relativos aos cidadãos/civis estavam vinculados ao voto, ao direito de

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paz ou guerra, às eleições nas magistraturas, constituição de família, ou mesmo à propriedade

e libertação de escravos. Com o tempo, Roma expandiu os critérios de cidadania para todos os

habitantes do Império, afastando-se de vez do sentido strictu presente no termo civis, o qual

limitava os direitos do cidadão ao sangue e ao solo. (PINSKY, 2013).

Ao se desvincular de explicações naturalistas, a cidadania volta-se para a esfera

da política e, por influência de John Locke e de Jean-Jacques Rousseau, nos séculos XVII e

XVIII, passa a ser entendida como resultado de um contrato social realizado entre os cidadãos

e o Estado. Durante a modernidade, surge a ideia de jusnaturalismo entendida como condição

principal da liberdade humana, sendo um “estado de natureza”, que precede a construção da

comunidade política. Por isso, o pensamento de Locke representa um duro golpe na divisão já

consolidada entre homens livres e escravos. A Declaração Francesa de 1789, influenciada por

pensadores Iluministas, em especial Rousseau, foi fundamental para compreensão de que a

cidadania só pode ser construída por meio da liberdade e da igualdade de direitos entre os

sujeitos desde o nascimento, provocando um deslocamento no valor do sentimento de pertença

historicamente presente no significado da cidadania para a liberdade individual (BOTELHO;

SCHWARCZ, 2012), e, consequentemente, fazendo emergir a noção de que o bem estar do

indivíduo precisa se sobrepor ao bem estar coletivo. (FOUCAULT, 1972, p. 37).

Então, durante o processo de urbanização da era moderna, a cidadania atrelou-

se à luta pelos direitos civis, políticos e sociais, ganhando sentido por meio dos movimentos

sociais que eclodiram mundialmente logo no início do século XX, com destaque para a luta das

mulheres pelo direito ao voto nos Estados Unidos, em 1913. Nesse sentido, vale ressaltar que

uma das principais manifestações a favor do voto feminino deu-se ainda em 1893, na Nova

Zelândia, estimulando, posteriormente, a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino

em 1897, no Reino Unido, responsável por ações que não se restringiram ao voto, mas ao

reconhecimento da mulher como cidadã, dotada de liberdade e igualdade de direitos.

(BOTELHO; SCHWARCZ, 2012).

Como se pode perceber, as transformações históricas interferiram não apenas no

modo como a cidadania passou a ser exercida, como também agregou em sua semântica a

experiência subjetiva de pessoas e de grupos sociais carregada de satisfações, aproximações,

embates, negociações realizadas tanto no âmbito prático quanto no simbólico, por isso, o

conceito de cidadania modifica-se ao longo do tempo. O atual conceito possui duas questões

primordiais: [1] a ligação ao campo dos valores e das práticas dos direitos e, em uma esfera

distinta, a efetividade e/ou reconhecimento desses mesmos direitos; e [2] a validação desses

direitos, garante o reconhecimento de que cidadão é membro da comunidade política ou da

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nação responsável em assegurar a permanência de seus direitos, tendo em contrapartida a

execução de suas obrigações. É por meio dessa relação de interdependência entre cidadão e

Estado que se depreende a existência de dualidades entre direitos e deveres, inclusão e exclusão.

(BOTELHO; SCHWARCZ, 2012).

Nas sociedades contemporâneas, sob a interferência do capitalismo neoliberal,

como é o caso do Brasil, a luta pela cidadania está envolta numa aura conservadora que formata

um conjunto de características do cidadão “virtuoso” – também como forma de justificar os

benefícios que a elite possui em relação aos cidadãos comuns – e que favorece o aparecimento

da figura do “outro” desprovido de efetivo reconhecimento de cidadania, aquele cujas práticas

estigmatizadas permitem identificá-lo até como não cidadão (como por exemplo, é o que ocorre,

atualmente, com os imigrantes). A cidadania brasileira carrega em si a herança do processo de

colonização, por isso, o modo de exercê-la possui tantas contradições. Ao mesmo tempo em

que existe o discurso de liberdade e de igualdade entre todos os membros da sociedade, existe

a prática que está longe ser igualitária. Os desníveis de classes sociais, gênero e etnias foram

amenizados após a Constituição de 1988, mas ainda não foram superados. Nesse cenário em

que, efetivamente, nem todos os sujeitos gozam de todas as prerrogativas da cidadania, as

tecnologias da comunicação e da informação passam a vigorar como possibilidade de fazer com

que grupos não atendidos em seus direitos possam dar visibilidade as suas causas.

A partir de junho de 2013, inaugurou-se, em certa medida, a experiência de um

novo modo de exercício da cidadania no Brasil. O movimento liderado por jovens a favor da

redução do valor da passagem do transporte público que tomou conta do país e ocupou o centro

da agenda mediática da época, se originou e foi articulado via as redes sócias. O que seria uma

manifestação sem objetivos partidários, acabou desdobrando-se em sérias consequências no

cenário político, revelando à sociedade o quanto a internet havia se tornado espaço de

articulação de poder descentralizado. No cenário internacional, também em 2013, Edward

Snowden vazou informações confidenciais que fizeram vir à tona a vertiginosa estrutura de

espionagem liderada pelos Estados Unidos, mostrando ao mundo que a transparência total entre

as relações de governo e o direito à privacidade do usuário, no atual contexto da cibercultura,

residem como utopias.

A construção histórica da cidadania não ocorre, portanto, em um tempo e em um

espaço lineares. Ao contrário, sua dinâmica dialética desconstrói a noção de sucessão, de

progresso crescente, caracterizando-se como processo, construção social de grupos que

proclamam suas diferenças, suas identidades. A partir disso, é possível compreender que a

flexibilidade do conceito de cidadania permite que os dispositivos glocais interfiram em seu

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modo de exercício, bem como, em seu conceito, ressignificando-a.

Para qtraçar o percurso teórico crítico percorrido pela cidadania até a sua

ressignificação, esta Tese está organizada em três partes, tendo como fio condutor a teoria do

imaginário de Cornelius Castoriadis (1986). Na primeira parte, composta por dois capítulos,

tem caráter contextual, ao abordar, no primeiro capítulo, a Teoria do Imaginário de Castoriadis

(1986), a qual permitirá a compreensão da evolução da cidadania como magma de significações

imaginárias instituídas no imaginário social da sociedade. No segundo capítulo, é evidenciada

as transformações ocorridas pelo imaginário pós-moderno, responsável em estimular o

surgimento da cibercultura. A cibercultura permite a potencialização do uso continuo de

dispositivos glocais que promovem novas formas de relacionamento, de comportamento e de

percepção de mundo. A segunda parte, também divida em dois capítulos, aborda o objeto da

Pesquisa que é a cidadania. O primeiro capítulo amplia a história da cidadania, localizando o

Brasil na reflexão, a fim de perceber os avanços e retrocessos da cidadania brasileira. O

segundo capítulo, trata do dispositivo. Primeiramente, de modo conceitual, depois analisando a

cidadania como dispositivo social. A terceira e última parte, dedica-se ao fenômeno glocal.

Analisando-o como dispositivo panóptico (FOUCAULT, ) da civilização mediática. Para,

então, compreende-lo como mecanismo de interferência da ressignificação da cidadania. Por

fim, vale ressaltar que o discurso presente nesta Tese, fundamenta-se, essencialmente em

TRIVINHO (2001, 2007, 2012), VIRILIO (2000), CASTORIADIS (1986), FOUCAUT (1987;

2012) AGAMBEN (2009), MARSHALL (1967) e CARVALHO (2013).

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PARTE I

O IMAGINÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE E

NA CIBERCULTURA

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Esta primeira Parte da Presente Tese é composta por dois capítulos analíticos e

críticos . O primeiro capítulo dedica-se à teoria do imaginário de Cornérlius Castoriadis (1986),

por ser concebida como teoria imprescindível para argumentação analítica deste trabalho, uma

vez que as instituições políticas, civis e sociais são, primeiramente, instituídas pela via das

significações imaginárias para, posteriormente, concretizar-se na vida da sociedade. Esse

capítulo subdivide-se em três importantes aspectos para se compreender o imaginário: [1] a

evolução social-histórica do imaginário, incluindo as dimensões de Barbier (1984) que trazem

à tona o conflito epistemológico entre razão e imaginação numa tentativa de arrefecer o poder

criativo e articulador do imaginário; [2] a perspectiva crítico-reflexiva apresentada por

Castoriadis, a qual possibilita entender o modo como as significações imaginárias se instituem

na sociedade; e [3] reflete as transformações provocadas pelas significações imaginárias

tecnológicas que, convertidas em magmas, consolidam a velocidade como vetor de articulação

social em escala planetária, modificando o ser/fazer/dizer na contemporaneidade.

O segundo capítulo fundamenta-se na teoria crítica da pós-modernidade de

Lyotard (2002), Bauman (1998) e Jameson (2004), no pós-estruturalismo de Baudrillard e na

teoria crítica da cibercultura de Virilio (1993, 1996, 2002) e Trvinho (2001, 2007, 2012). A

argumentação do capítulo abrange o percurso histórico que resultou na pós-modernidade. Esta

originada da descrença dos ideais iluministas não concretizados, possibilitando o surgimento

de novas significações imaginárias, agora tecidas pela rede da tecnologia. As tecnologias da

comunicação e da informação passam a vigorar como articuladores da sociedade, ao estarem

presentes tanto na esfera do trabalho e do lazer, provocando o nascimento da cibercultura

(TRIVINHO, 2007). A cibercultura, entendida como época social-histórica, faz emergir

desdobramentos tais como: a implantação do sistema invisível da velocidade e o fenômeno

glocal, incluindo todas as suas dimensões.

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CAPÍTULO 1 - O IMAGINÁRIO

1.1. Sobre o imaginário:

A frase inicial do Livro de João, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com

Deus, e o verbo era Deus” (Jo, 1, 1), remete à criação do mundo. Deus é o personagem principal

da narrativa bíblica e responsável por toda existência terrena. Por ser divino, não possui

materialidade, mas é a partir dele que a força criadora da palavra (o verbo) converte-se em

matéria. Diante disso, pode-se perceber que tanto Deus, quanto a palavra usada como

instrumento da criação divina habitam o mesmo plano simbólico. Ambos podem ser

interpretados como metáforas da força criadora do imaginário, capaz de antecipar a concretude

de todas as coisas. Tudo aquilo que hoje habita o mundo material teve sua origem em forças

imaginárias. As produções artísticas; as construções arquitetônicas que ilustram as paisagens

das metrópoles; as crenças e os sentimentos são alguns exemplos de que nada escapa à força

imaginal. Por isso, é difícil definir o imaginário. Ele possui uma dimensão tautológica em que

a única via de acesso para sua compreensão é enxergar a própria realidade como produção

imaginária.

Assim, a questão dicotômica razão-imaginação sofre tensionamento,

principalmente, dentro de um contexto histórico em que a racionalidade consolidou-se como

valor absoluto. No entanto, não há como negar que a razão só se impõe por meio do imaginário,

uma vez que o imaginário é a pulsão mais íntima do sujeito, enquanto a razão é o fator

impulsionador da ação/concretização daquilo que se iniciou no campo imaginal. Desse modo,

a relação existente entre racionalidade e imaginário deixa de ser dicotômica e passa ser de

complementação, favorecendo a quebra do paradigma instituído ao longo da história da

humanidade, no qual o próprio termo imaginário/imaginação esteve associado à obscuridade,

ao irracional, ao mito, aos devaneios ou fantasias. Na verdade, ele está presente em todos esses

termos e, ao mesmo tempo, em nenhum deles, porque é impossível reduzi-lo a apenas uma

significação. Apesar de ser da mesma natureza da racionalidade, o imaginário não se fixa em

explicações racionais, devido à razão já ser uma produção imaginária, como citado

anteriormente. Inclusive, a máxima de Descarte “cogito ergo sun” ou “penso, logo existo” se

transformou em frase representativa do racionalismo moderno, não deixa de referenciar a

capacidade primeira do sujeito, que é o pensamento/imaginação.

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A imaginação funciona como bússola orientadora da existência humana,

conduzindo a história, a cultura e a subjetividade. As grandes revoluções, as ditaduras, a criação

de tecnologia de guerra possuem suas origens no imaginário. Assim como a palavra divina que

deu origem à vida terrena, no texto bíblico de Gênesis, o homem também herdou a capacidade

de criação. Entre o período clássico até o medieval, era reconhecido o valor das forças

imaginais. Com o passar do tempo, a razão assumiu a centralidade da história, deixando o

imaginário em posição inferior, possibilitando, assim, a origem da dualidade razão-imaginação

presente até os dias de hoje. A concepção de inferioridade do imaginário é reflexo das

transformações históricas. A partir delas, Barbier (1984) classifica o imaginário em três fases:

[1] a fase de sucessão, [2] a fase de subversão e [3] a fase de autorização.

A fase da sucessão caracteriza-se pelo reconhecimento da função imaginante do

sujeito. Após os pré-socráticos, o pensamento grego impôs o dualismo entre o real e o

imaginário, numa tentativa de separar a sensação e a percepção dos mitos. Segundo Détienne e

Vernant (1978), desde a epopeia homérica até a primeira metade do século III a.C, começou a

ser disseminada a ligação do imaginário com os poderes sobrenaturais, contribuindo para o

início do processo de marginalização do imaginário. Em Atenas, por volta de 432 a.C, tornou-

se delito misturar crenças do senso comum com os conhecimentos astronômicos. A astronomia

possuía status de superioridade por representar o primeiro contato com a experiência científica,

apesar de a época não ter estrutura suficiente para que a ciência triunfasse. Por isso, Platão

precisou recorrer à alegoria mítica para explicar a importância da descoberta da verdade;

Sócrates também não hesitava em invocar sua força interior para orientar suas condutas;

Aristóteles acreditava nos sonhos premonitórios como representações dos desejos ou temores

suscitados na representação onírica de algo provável de acontecer; e, com o advento do

cristianismo, os símbolos religiosos estimulavam a conexão com o divino por meio da fé,

perfeita tradução das forças imaginárias. Somente após o Renascimento, houve o verdadeiro

abandono da contemplação para dar lugar à experiência concreta e ao rigor intelectual. O

método cartesiano de Descarte ocupa centralidade no modo de o sujeito entender o mundo,

colaborando para que o imaginário passasse a ser concebido como forma de mascarar o real.

Sartre (1971) afirmava que os objetos “fantasmas” alteram a realidade e tornam o sujeito inábil

diante da complexidade da vida. Segundo o autor, existe “um abismo que separa o real do

imaginário” (SARTRE, 1971, p. 168).

A segunda fase, denominada por Barbier (1984), de Subversão, caracteriza-se

por nova tentativa de retomar as bases gregas de valor do imaginário, apesar do abismo que o

racionalismo cartesiano havia criado entre imaginação e razão. Na tentativa de resolver o

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problema fortaleceu-se a busca pelo entendimento do inconsciente humano por meio dos

estudos da psicanálise. Contudo, só reforçou ainda mais a relação abismal entre o real e o

imaginário, fazendo com que as ações imaginárias permanecessem subversivas executando suas

funções e sendo voluntariamente ignoradas. A terceira e última fase, a da autorização, visa

encontrar o ponto de equilíbrio. É um período rico de contribuições intelectuais de Barchelard

(1974), Durand (1969) e Castoriadis (1986). Barchelard (1974) considera a função do irreal tão

útil quanto à função da realidade. Para o autor, o homem da ciência – diurno – deve atuar no

domínio da consciência, no locus da técnica e da razão. O homem da poiesis –noturno –

enraizado nos domínios do arcaico, na profundidade de sua história ainda desconhecida da

psique, tem responsabilidade de atuar no locus da criação. Desse modo, Barcherlard

potencializa a razão, ao mesmo tempo em que referenda a incapacidade dela atingir sozinha o

nível ontológico. Nível que só pode ser atingindo por meio da imaginação. Durand (1969)

propõe “recensear” as imagens que constituem o “capital homo sapiens” (ibid., p.12). Essas

imagens geram conjuntos constituídos de núcleos organizadores (constelações e arquétipos)

com a finalidade de servir como instrumento de normalização para estudos com fins científicos.

Paralelamente, aos estudos de Durand (1969), Cornelius Castoriadis (1986) também apresenta

uma via de acesso para a compreensão do imaginário, analisando ações provocadas por ele no

contexto social. Castoriadis procura se distanciar das teorias já instituídas, criando uma análise

poliforma de variados eixos do imaginário, entre eles o imaginário radical, o social e o magma

de significações.

Castoriadis (1986) compreende o sujeito como fonte inesgotável de imaginação

e, consequentemente, de criação, “o que faz a essência do homem, precisamente, é a imaginação

criadora” (CASTORIADIS, 1986, p. 285). O autor constrói seu pensamento a partir da relação

do imaginário com três dimensões: com a sociedade (imaginário social), com o sujeito

(imaginário radical), ambos articulam a terceira dimensão que é o social-histórico. Ele enfatiza

que as ações imaginárias não são opositoras ao real, nem derivação de algo, mas força criadora

que fundamenta o que chamamos de realidade.

O imaginário que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente

indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/imagens, a partir das

quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que

denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos.

(CASTORIADIS, 1986, p. 13).

O imaginário é criação a partir do nada, assim como a palavra proferida por Deus

descrita no Livro de Gênesis. Nada existia antes dela. Essa é a função do imaginário,é

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responsável em criar o mundo, pois está na base de todo modo de pensamento e de qualquer

possibilidade de sentido. O real, o ser, a racionalidade são produtos da força imaginária.

Enquanto criação, o ser não se fecha em uma única determinação possível, pelo contrario, está

aberto, sempre em processo de construção, o que Castoriadis denomina de “por-ser”

(CASTORIADIS, 1986, p. 233).

Na ontologia tradicional, o tempo não é um fator absoluto, mas sim o caminho

para se chegar ao eterno, ao imutável. Já o sentido de “por-ser”, criado por Castoriadis, dá

protagonismo ao tempo, ao acreditar que o sujeito se constrói no tempo para transformar o seu

próprio tempo. Esse processo de construção só é possível por meio da criação incessante do

imaginário. Aquilo que escapa da ação imaginária já foi instituído pelo pensamento herdado.

Por isso, o autor diferencia duas dimensões na qual a sociedade opera: a dimensão da lógica

conjuntista-identitária e a imaginária. A primeira tem como característica a determinidade

causada pela submissão ao pensamento instituído oriundo da herança histórica. A segunda está

ligada ao processo criativo humano que permite dar significações ao mundo. As significações

se fazem no tempo e estão conectadas umas as outras, construindo magmas que se consolidam

na sociedade. Por isso, a sociedade e suas instituições não podem ter seu sentido reduzido à

perspectiva biológica ou somente ontológica, uma vez que o imutável ontológico também

sobrevive por meio do imaginário.

1.2. As significações imaginárias

Mesmo após a fase da autorização – quando muitos autores se dedicaram ao

estudo do imaginário, a razão permaneceu com o status de superioridade, principalmente, em

virtude dos avanços tecnológicos e científicos surgidos no século XX. As ações imaginárias

desfavorecidas permaneceram ligadas ao obscurantismo ocupando lugar marginal. Um bom

exemplo é o modo como, no senso comum, a Alegoria da Caverna de Platão continuou sendo

interpretada. As sombras refletidas na parede da caverna (imaginário) são, de acordo com o

senso comum, associadas à superficialidade ou ao obscurantismo, como se o mundo das

aparências não tivesse implicado forças criativas do imaginário. No entanto, ao sair da caverna,

o sujeito depara-se com a luz, revelando a razão. .

Nessa interpretação, ignora-se o poder criativo que, se por um lado estimulou os

sujeitos a darem sentido a sua limitada vida por meio das imagens projetadas nas paredes da

caverna, também impulsionou o sujeito a quebrar os grilhões que o prendiam em busca da

revelação do desconhecido. Ainda do lado de fora da caverna, a ação imaginal se faz presente

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na internalização das experiências vividas somadas às novas que permitiram modificar sua vida,

a sociedade e, consequentemente, transformar a história. Esse processo, de experiência vivida

no tempo que constrói a história, pode ser compreendido pelo viés do imaginário, afirma

Castoriadis (1986). Para o autor, a história é composta por instituições que vão sendo

consolidadas na sociedade porque produzem significados nelas.

As instituições são responsáveis pela coesão da sociedade. Essa coesão só é

possível por meio do “magma das instituições imaginárias sociais”. Castoriadis define as

instituições como magmas porque elas possuem realidades fluidas, inconscientes, criações

instituídas e compartilhadas por um pensamento coletivo e anômino, repleto de significações

que, algumas vezes, fogem da logica conjuntista-identitária do pensamento herdado.

Tais significações imaginárias sociais são, por exemplo: espíritos, deuses,

Deus, polis, cidadão, nação, Estado, partido; mercadoria, dinheiro, capital,

taxas de juros; tabu, virtude, pecado, etc. Mas também: homem, mulher,

criança, tais como são especificados em uma sociedade dada”.

(CASTORIADIS, 1986, p. 239).

É a instituição imaginária da sociedade que estabelece o mundo de significações,

determinando o que é importante e o que não é, diferenciando o verdadeiro do falso, o que tem

sentido e o que não tem. Porque “toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma

criação de um mundo, de seu próprio mundo” (CASTORIADIS, 1986, p. 241). Por isso,

Castoriadis propõe superar o significado recorrente de imaginário sempre ligado à invenção, ao

engano ou falso, para, finalmente, apreende-lo como movimento criador que articula a

sociedade e transforma a história. O social e o histórico são indissociáveis para o autor. O termo

“social-histórico”, criado por ele, possui o emprego do hífen com o objetivo de evidenciar o

movimento permanente de atividades criativas produzidas pela sociedade ao longo dos anos.

Esse movimento criativo se faz dentro de uma lógica conjuntista-identitária, ou seja, uma lógica

que carrega em si traços daquilo que a humanidade já foi (pensamento herdado instituído),

unida à emergência do presente (pensamento instituinte) que influenciam na construção do

futuro (CASTORIADIS, 1986, p. 241). A lógica conjuntista-identitária é a marca da sociedade,

tudo aquilo que pode ser reconhecido, seja pelo modo de pensar ou agir que se faz no presente,

influencia o futuro, mas possui raízes no passado, construindo assim os magmas de

significações.

Contrariamente à sistematização, característica da lógica identitária, segundo o

qual o mundo deve ser organizado de forma coerente e absoluta (conjuntista), o magma de

significações aponta para o mundo sempre aberto, como acontece com a linguagem. Toda

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palavra é aberta e os seus significados (magmas) que, algumas vezes, ultrapassarem os limites

das regras sociais (lógica-conjuntsita identitária). Como no caso, da palavra cidadania, de

imediato, se refere ao exercício politico e social de um sujeito na sociedade. A ligação

indissociável entre objeto/finalidade-nome é algo da ordem da lógica conjuntista-identitária,

por seu sentido já ser herdado pelo pensamento instituído. Porém, a constituição do

objeto/finalidade jamais vai reduzir os múltiplos sentidos que a palavra proporciona (magmas).

Uma única palavra pode reportar a infinitas “remissões”, mas nunca esgotará “no que seria a

coisa em si” (CASTORIADIS, 1986, p. 394). Essa impossibilidade de esgotamento dos sentidos

deve-se a permanente movimentação do magma de significações.

Então, o movimento de articulação da vida humana está ligado ao imaginário.

Ele tanto compõe o processo social-histórico por meio da lógica conjuntista-identitária, quanto

consolida a lógica conjuntista-identitária e movimenta o magma de significações da sociedade.

A extensa ação imaginária é subdivida por Castoriadis (1986) como imaginário radical e

imaginário social. O imaginário radical origina-se no interior da mente humana. Ele é a força

que dava sentido para as sombras projetadas nas paredes das cavernas. Depois, passa a fazer

parte do fluxo do social-histórico, absorvendo as significações imaginárias coletivas e anônimas

e como “psique-soma” exerce funções no âmbito representativo, afetivo e intencional. O

imaginário social, por sua vez, é posição, criação, fazer ser, articulando e dando sentido a

sociedade instituinte, impulsionando o movimento e o processo criativo dos magmas. Sendo

assim, o ser, para Castoriadis, é o caos, é o “sem fundo”, é o tempo (CASTORIADIS, 1986, p.

233). A sociedade cria, faz emergir o novo, institui e é instituída no tempo, mas também cria o

tempo, pois esse é um imaginário social. A história é gênese ontológica, o por-vir-a-ser se faz

na história segundo as auto-alterações da sociedade. Essa muda constantemente e se impõe aos

núcleos de psiques individuais, resultando em sujeitos que fabricam e são fabricados

imaginários sociais.

As contribuições imaginárias estão presentes em todos os momentos da vida

humana. Seja na descoberta do fogo, nas pinturas no interior das cavernas primitivas, no modo

de vida dos nômades, nas construções de apetrechos para guerra, nos sistemas de governança

dos estados, nos sofrimentos dos exilados, nos esquemas dos grupos terroristas, nas narrativas

emancipatórias, nos golpes políticos, nos meios de comunicação, nas relações afetivas. Tudo

só tem sentido se for por meio do imaginário. Castoriadis (1986) ressalta que “falar das

significações imaginárias sociais quer dizer também que essas significações são presentificadas

e figuradas pela efetividade dos indivíduos, dos atos e dos objetos que eles informam” (Ibid.,

p. 514). O imaginário instituído na sociedade determina o que é “real” e o que não é. Habita no

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que tem sentido e no que é desprovido dele. Uma sociedade não vive sem crenças, utopias ou

projetos, pois, facilitam na interpretação do mundo e incentivam a humanidade a reconstruir a

sua própria história.

1.3. Os magmas de significações imaginárias da contemporaneidade

Como abordado anteriormente, segundo Castoriadis (1986), as instituições

apresentam-se como rede simbólica que é, primeiramente, tecida no imaginário e, depois,

definida socialmente. Essa rede não é produto de uma criação totalmente livre, mas de uma

construção histórica consolidada pelas experiências vividas. Sendo assim, de acordo com o

autor, a instituição da sociedade e as significações imaginárias estão incorporadas em duas

dimensões indissociáveis: [1] a dimensão conjuntista-identitária (lógica), na qual operam a

ação e pensamento mediante elementos, classes, propriedades, relações econômicas, políticas e

sociais. Ela carrega em si a cristalização do passado que é inserido no presente, sendo

responsável pelo fluxo de continuidade da história. [2] a dimensão propriamente imaginária,

o magma, que corresponde a existência da significação que se conecta indefinidamente umas

às outras, sob o controle da lógica conjuntista, fazendo com que toda significação remeta a um

número indefinido de outras significações. Então, a ligação existente entre passado e presente

ocorre por meio da cristalização das regras, dos comportamentos, das ideologias, das crenças e

de tudo que compõe o pensamento/ação da humanidade.

O imaginário social vive em permanente transformação, promovendo a

ressignificação da lógica conjuntista em novos contextos. Para isso, precisa dos magmas

compostos por tudo aquilo que já existiu, dando suporte ao que ainda vai existir, numa

incessante atualização, nunca de exclusão. Por esse motivo, muitas vezes há impressão de que

a sociedade avança em alguns setores, por exemplo, como na ciência e na tecnologia e retrocede

em outros, como no nefasto discurso conservador no âmbito da política. Esse movimento de

ida e vinda só é possível por causa das cristalizações inseridas no magma das significações

imaginárias.

O mundo das significações tem que ser pensado não como uma réplica irreal

de um mundo real [...]. Temos que pensá-lo como posição primeira, inaugural,

irredutível do social-histórico e do imaginário social tal como se manifesta

cada vez numa sociedade dada; posição que se presentifica e se configura na

e pela instituição das significações [...] que coloca, para cada sociedade, o que

é e o que não é, o que vale, o que não vale o que pode ser ou valer. É ela que

instaura condições e orientações comuns do factível e do representável, e

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através disso dá unidade, previamente e por construção, se assim podemos

dizer, à multidão indefinida e essencialmente aberta de indivíduos, de atos, de

objetos, de funções, de instituições no sentido secundário e corrente do termo

que cada vez, concretamente, uma sociedade. (CASTORIADIS, 1986, p. 413).

Se a instituição da sociedade é sempre a instituição de magmas de significações

imaginárias compostas por essas lógicas conjuntistas cristalizadas que se ressignificam no

fazer/dizer social, é possível compreender que o magma da contemporaneidade não é recente,

pois possui suas bases na lógica conjuntista-identitária do início da cultura tecno-

industrializada, pós-advento da Revolução Industrial. A partir desse momento, as pessoas

começaram a manter relacionamento paradoxal com a tecnologia, modificando, inclusive, seu

comportamento por influencia dos meios de comunicação de massa. Adorno e Horkheimer

(1947), na obra Dialética do Esclarecimento, refletem sobre a “ação alienadora” dos media,

concebidos como reprodutores das ideologias vigentes. Para os autores, a indústria cultural

colabora para limitação do senso crítico e para o fortalecimento do sistema, no caso, o

capitalismo. Sob a perspectiva de Castoriadis (1986), os mass media se instituem na sociedade,

por meio do conjunto de magmas composto pelo capitalismo e pelas ideologias que o mantem.

O sentido social desses magmas originam-se da lógica conjuntista cristalizada no início da

história da humanidade, a qual visava à manutenção do status quo das classes mais abastadas

da sociedade. Afinal, sempre houve, ao longo da história, o dominador e o dominado, o

colonizador e o colonizado. Assim, o capitalismo é resultado de todo esse movimento histórico,

só que atualizado, mas sem perder a sua natureza de controle de poder.

Os mass media passaram a ocupar status de valor na sociedade até o surgimento

dos media interativos, na primeira metade dos anos 90. A instituição dos media interativo

provocou atualização das significações imaginárias, ao mesmo tempo em que consolidou um

novo magma reconhecido como imaginário tecnológico. O imaginário social tecnológico rompe

com o paradigma comunicacional, ao proporcionar a superação do obstáculo espaço-tempo e,

assim, gerando um fascínio sem igual pela tecnologia da informação e da comunicação. Porém,

esse novo magma não apenas deixa intacta a lógica-identitária que reafirma o status quo, como

também, enraíza o sistema vigente ao incluir a lógica da velocidade como vetor estimulador das

atividades concretas e como forma de imprescindível de se viver na contemporaneidade.

(TRIVINHO, 2001; 2007)

Os media interativos são dispositivos pelos quais o imaginário tecnológico se

concretiza, realizando o sonho imemorial da humanidade, superar do espaço-tempo. Algo que

seria impossível – de acordo com Virilio (1993) – pelos limites do corpo material, mas que

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converte-se em realidade por meio do fenômeno, denominado por Baitello (2012), de

neonomadismo. O neonomadismo é a capacidade de o sujeito movimentar o corpo espectral no

ambiente de rede, sem precisar deslocar o corpo físico. Esse corpo virtual é veloz, volátil e

possuidor de experiências únicas, sobretudo, ao estar protegido por um bunker tecnológico

(TRIVINHO, 2007). Todos os elementos que compõem esse cenário, só têm sentido porque

fazem parte do imaginário social da época. Os elementos não são reais pela concretude da

matéria, porém, estão no plano do real na medida em que a lógica identitária opera e se legitima

pelo uso e pela crença dos usuários.

Agregada a toda novidade trazida pelo magma das significações ao serem

instituídas na sociedade, após as tecnologias interativas, reside à teleologia da emancipação

humana presente nos ideais iluministas, agora, ressignificada. O sonho emancipatório se mostra

não apenas possível, mas concretizável por meio da globalização da comunicação. A

miniaturização das máquinas de comunicar, bem como, a crescente mobilidade presente nos

aparelhos informáticos tornou o fenômeno comunicativo ubíquo. As crenças (mitos,

metanarrativas, ideologias) aparentemente superadas pelo conhecimento tecno-científico da

modernidade, retornam em forma de “fetichismo” tecnológico, no qual máquinas adquirem

valor absoluto, ao se fazerem presentes de modo frequente e imprescindível na vida dos sujeitos

contemporâneos.

Vale ressaltar que o magma das significações tecnológicas, além de ser

composto pela lógica emancipatória da humanidade e pelas crenças atualizadas em forma de

fetichismo, também atualiza a lógica do sistema de controle e de poder sob as bases da

megatecnoburocracia da informatização, virtualização e ciberespacialização das sociedades

contemporâneas (TRIVINHO, 2001, p. 214). Na megatecnoburocracia estão implicadas as

interferências do capital, porém dentro de uma narrativa organizadora e lúdica confortada no

imaginário social. Não há como perceber a existência “ditatura invisível” do tempo real,

instituído pela significação imaginária tecnológica da dromocracia, na qual estão implicados

dispositivos de controle dos corpos dos sujeitos que se veem, cada vez mais, imersos num

cotidiano regido pela velocidade.

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CAPÍTULO 1I – AS SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS NA

PÓS-MODERNIDADE

2.1. A emergência do imaginário pós-moderno

Como apresentado no subitem anterior, o imaginário social corresponde à

operação mental que conduz à práxis humana. As significações imaginárias possuem

características agregadoras, capazes de organizar o comportamento dos sujeitos e,

consequentemente, as relações sociais, colaborando para a construção de uma rede de sentidos

que são incorporados pela sociedade. Na modernidade, essas significações estavam sustentadas

pelo tripé iluminista constituído de propostas revolucionárias e de práticas inovadoras com a

promessa da emancipação humana baseada na razão e no domínio da ciência. Porém, aos

poucos, as redes de sentidos do tríplice pilar ciência-técnica-razão foram sendo desfeitas ao

mostrar, na prática, a impossibilidade de serem realizadas, pelo contrário, ao invés de

impulsionar o processo emancipatório, converteram-se em ações que levaram à barbárie da

segunda guerra.

Vale destacar que toda rede de sentidos é construída e perpetuada ao longo de

determinada época, podendo ser transformada ou substituída por outra de acordo com a

evolução da humanidade. A questão moderna apresentada no parágrafo anterior ilustra essa

transformação. Nenhuma significação imaginal é anulada, mas transformada, levando em seu

bojo a própria história. Logo, nas bases da rede de sentidos da modernidade existia a herança

medieval, assim como a pós-modernidade virá no lastro da modernidade e ressignificará suas

utopias. Para Agamben (2012), só é possível compreender uma determinada época quando,

dela, o sujeito toma distância. A conexão com o tempo é mais bem entendida por meio do

processo de desconexão. Somente dessa forma, enxerga-se o quanto os elementos do passado

compõem os fios que tecem a rede de significados do presente. Ainda para o autor, cada sujeito

torna-se contemporâneo do tempo que já se foi. A partir do deslocamento temporal se faz

melhor a leitura de seu momento histórico.

[...] Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente

contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está

adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual: mas,

exatamente por isso, exatamente através deste deslocamento e desse

anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o

seu tempo. (AGAMBEN, 2012, p. 58).

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Então, o atual desliga-se do passado, apesar de trazer consigo elementos

herdados dele, criando uma nova condição, um novo estado de espírito que somente pode ser

sentido no momento presente e entendido após seu afastamento. A pós-modernidade, bem como

cada período da história, é a expressão da contemporaneidade, afinal, para enfatizar: “a

contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo

tempo, dele toma distância” (AGAMBEN, 2012, p. 59). Nesse sentido, torna-se evidente

perceber que a lógica iluminista da modernidade estava mesmo fadada ao fim trágico, como

afirma Harvey (2004). O excesso de racionalidade, a crença absoluta no sujeito e a exacerbada

valorização da técnica aprisionaram o homem, ao invés de libertá-lo. E à medida que o projeto

iluminista caiu em descrédito, outros característicos da época nascente tomaram o seu lugar. A

transição de um período para o outro permitiu às significações passadas deixarem suas marcas

nas atuais. Não por outro motivo, ainda hoje se presencia – sob outras bases – traços da política

de exclusão purificadora do passado. Antigamente, a exclusão residia na separação entre “povo

eleito” e os “pecadores”, tendo os pecadores a punição por não serem capazes de corresponder

às normas dominantes, como é o caso dos hereges no cristianismo medieval e dos judeus para

o nazismo. Atualmente, as exclusões acontecem no plano simbólico dos media interativos. Uma

dessas exclusões é concebida por Trivinho como apartheid da civilização mediática, capaz de

criar um fosso entre os indivíduos que possuem capital cognitivo e econômico necessário para

o pleno domínio das linguagens infotecnológicas, bem como para participar da lógica da

reciclagem estrutural imposta pelo mercado, e os indivíduos que não conseguem acompanhar a

frenética atualização da informática. Tal fato comprova o quanto as significações imaginárias

modernas ainda sobrevivem na pós-modernidade, mas ao serem aplicadas em novo contexto

têm os seus sentidos alterados que passam a ser identitários à nova época (TRIVINHO, 2001,

p. 147).

Não há como precisar data ou acontecimento específico para o início da pós-

modernidade. Autores como Lyotard (2002), Harvey (2004) e Bauman (1998) acreditam que

ela tenha emergido dos escombros deixados pela segunda Guerra Mundial. A barbárie dos

campos de concentração deixou marcas profundas na sociedade, instalando um clima de

descrença e de incerteza capaz de causar negação de todo e qualquer pensamento legitimado na

modernidade, como destacado anteriormente. A ineficiência do projeto moderno decorreu do

discurso totalizante que anunciava a verdade única e aceitável, por meio da razão, da ciência e

da técnica. E, ao longo da história, comprovou-se: todo o pensamento totalizador carrega em si

a própria barbárie. Com o passar do tempo, a sociedade tem testemunhado o desfecho trágico

de seus projetos de emancipação construídos na tentativa de unicidade social a qualquer custo.

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O cristianismo desembocou num império medieval de dez séculos e na

Inquisição sob o álibi da libertação da alma pecadora e da condução final dos

homens ao paraíso; os religiosos fragmentários geraram mais preconceito,

intolerâncias étnicas e espíritos belicosos em nome do Deus monoteísta, em

vez de levarem ao enunciado encontro harmonioso com a divindade. O

iluminismo redundou na falácia do progresso técnico e na industrialização da

cultura de massa a pretexto de, por elas, emancipar a totalidade da espécie

humana da ignorância, do mito e do obscurantismo. O liberalismo preservou,

em novas bases, as desigualdades sociais e econômicas sob a evasiva de

equacioná-las para melhor distribuição de uma forma obscura e obsoleta de

Estado que o nazismo e o socialismo, por má fé da história, acabaram, cada

qual a sua maneira, por confiscar para si e por encarnar: os três culminaram

no totalitarismo estatal-burocrático sob o pretexto dos fins emancipatórios. O

marxismo, em particular, sob o pilar da dialética como princípio teórico-

metodológico e da luta de classes como motor da história e como práxis

acabou por reduzir – conforme já assinalado –, depois de realizadas as

revoluções proletárias, a lógica da dominação contra a qual se lançou desde

cedo. E, agora, o neoliberalismo triunfante no âmbito da política burocrática

e do valor de troca, bem como, o neonazismo que insurge em diversas partes

do mundo colocando-se como repetições cínicas da catástrofe pregressa de

seus originais. (TRIVINHO, 2001, p. 383).

Dessa forma, com a desconstrução das utopias modernas somada à crise

econômica e societária do pós-guerra e à emergência dos meios de comunicação, favoreceu-se

a emergência da época pós-moderna. Trivinho (2001) concebe a pós-modernidade como

fenômeno justamente pela impossibilidade de determinar sua origem histórica e de defini-la

com exatidão. Para o autor, o pós-moderno vigora como sprit du temps originado de uma teia

de acontecimentos conflitantes concentrados a partir da segunda metade do século XX

(TRIVINHO, 2001, p. 45). A maioria das literaturas ensaísticas, que versam sobre o tema da

pós-modernidade, a define destacando três aspectos distintos: [1] como época histórica capaz

de determinar novas formas de economia, como a globalização; [2] como condição cultural

relacionada à novidade e a superação de conceitos tradicionais, modificando as formas de ser e

de atuar no mundo; e [3] como corrente propositiva capaz de justificar novas formas de

manifestação literárias, filosóficas e artísticas. Porém, o fenômeno pós-moderno não pode se

restringir em apenas um dos enfoques elencados acima, porque trata-se da soma de todos eles,

nutrindo-se de todos os fatores ao mesmo tempo (TRIVINHO, 2001, p. 47).

De acordo com Lyotard (2002), a incredulidade em relação às teleologias

proporcionou o aparecimento de características marcantes da nova era, tais como a

pulverização, a hibridização e a liquidez. Inclusive, Bauman (2001) compara a fluidez do

espírito pós-moderno ao efeito característico dos líquidos. Esses, ao serem submetidos às

pressões externas, têm suas partículas facilmente modificadas. O mesmo ocorreria com o

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“clima” da pós-modernidade. A cada nova situação, as formas de pensar e de agir transformam-

se, provocando confusão de sentidos na sociedade. Para Jameson (2000), tal fluidez, liquidez,

aumenta a avidez pelo consumo, favorecendo o enraizamento da lógica capitalista no cerne da

sociedade por meio de dois aspectos conexos: [1] a globalização do comércio impulsionado

pelo avanço da tecnologia informática e [2] a forma com que os indivíduos interagem com os

media.

Como o advento do fenômeno pós-moderno, a comunicação tecnológica passou

a dominar o campo cultural, político e econômico ao tornar-se presente no reduto da vida

privada e do lazer. Assim, consolida os interesses das grandes corporações que transformam a

cultura em produto de consumo, perpetuando a lógica capitalista no imaginário da sociedade.

O capital supera sua dimensão econômica e política para fazer-se presente na esfera simbólica.

Nesse caso, Baudrillard (1991) enfatiza que, no transcurso da história, o mercado passou por

três estágios: [a] a primeira fase relacionada à forma de produção primitiva, baseada na

agricultura, sendo mantida pelo sistema de trocas visando a subsistência; [b] a segunda fase

refere-se à modernidade, período de industrialização do mercado com introdução de novas

formas de produção e de valorização da técnica. O homem migra do campo para a cidade,

deixando de trabalhar no cultivo da terra para enfrentar a jornada de trabalho nas indústrias em

troca de salários; [c] na terceira fase, a industrialização atinge o seu ápice. Tudo passa a ser

comercializado. A cultura torna-se objeto de consumo. Os meios de comunicação constituem o

principal articulador de produção e venda dos produtos simbólicos, aumentando o consumo –

primariamente – no imaginário do sujeito e, posteriormente, compondo a rede de significações

convertidas em mercadoria no plano real.

Segundo Agamben (2009), inspirado em Walter Benjamin, na pós-modernidade,

o capitalismo vigora como fenômeno religioso, em que o mecanismo de sacrifício-redenção

consiste em transformar tudo o que compõe a existência humana, mesmo a sexualidade e a

linguagem, em mercadoria. Nesse cenário, o consumo não corresponde à aquisição de algo para

ser utilizado, mas em algo que será inutilizado. Ao retirar a função do objeto, esvai-se seu

sentido, sendo, então, profanado. Por isso, para o autor, o capital põe a sociedade diante do

improfanável1. Uma vez que somente à primeira vista parece ser possível resistir às seduções

1 Para Agamben, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a

separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (2007, p. 65). Profanar um objeto significa retirá-lo da esfera do

sagrado e trazê-lo de volta para o livre uso dos seres humanos. Agamben (2007, p. 66) sustenta que “parece haver

uma relação especial” entre usar e profanar, uma vez que na profanação se desrespeita ou se negligencia o

significado dado às coisas quando consagradas, ou seja, quando retiradas da esfera humana e depositadas num

lugar especial que corresponde à esfera do sagrado. O uso profano é, portanto, o uso que ignora a separação

proposta pelo Sagrado. Esse uso particular ocorre por meio de um reuso ou uso especial do sagrado. O reuso que

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das mercadorias ou que todos os objetos consumidos terão a sua funcionalidade. Mas, na

verdade, não há possibilidade de resistência. O consumo exagerado causa inutilidade daquilo

que é adquirido, porque o sujeito pós-moderno passa a sobreviver numa simbiose com os media

e o mercado. Essa simbiose media-mercado-sujeito resulta no aparecimento da visão niilista

nos modos de encarar a existência humana, na fugacidade das relações pessoais, no

neonarcisismo (glamorização da autoimagem) e no hibridismo fortalecido pelo uso frequente

dos recursos infocomunicacionais.

Encontramo-nos diante de sujeitos dotados de uma elasticidade cultural que

se assemelha a uma falta de forma, são mais bem receptivas as mais diversas

formas, e de uma plasticidade neural que lhes permite uma camaleônica

adaptação aos mais diversos contextos e uma enorme facilidade para os

idiomas da tecnologia. (SANTOS, 1996, p.13).

A ação camaleônica define bem a identidade plural, performática e híbrida,

característica da pós-modernidade, como afirma Hall (2003). A nova concepção de sujeito se

caracteriza pelo provisório, variável e problemático, alguém como não tendo uma identidade

permanente. Se a identidade moderna era construída a partir da linearidade dos discursos

emancipatórios e da clareza dos valores, a identidade pós-moderna é alicerçada no consumo,

conforme explica Silverstone (2002, p. 28): “Posso ser homem pela manhã, mulher à tarde e

talvez algo completamente diferente após o jantar, e onde meus gostos, estilos e minha pessoa

podem mudar com cada momento de consumo”. O autor ainda conclui que:

Falamos da fatura de identidades numa era pós-moderna, das indeterminações

de etnias, classes, gêneros e sexualidade em torno dos quais as culturas se

formam, oferecendo-nos uma grande coisa agora, outra depois; aqui e acolá,

em toda parte, enquanto vagueamos nômades, pelo tempo e pelo espaço.

Como visto como foliões num carnaval sem fim; num baile de máscaras no

hiper-real, e cercado por ele. (SILVERSTONE, 2002, p. 83).

Além da efemeridade nas relações sociais, da pluralidade de identidades, da

mundialização da cultura e do relacionamento íntimo existente entre sociedade e tecnologia,

outra característica da pós-modernidade é a liberdade. A excessiva busca pela liberdade acentua

os sentimentos de insegurança, de incerteza e de solidão. A afetividade passa a ser

se dá aos objetos ao perderem sua aura consagrada na profanação “não restaura simplesmente algo parecido com

um uso natural” (AGAMBEN, 2007, p. 74), preexistente à separação, mas, antes, permite atribuir um novo uso

àquilo que era sagrado. Trata-se, antes, de uma emancipação, de um esvaziamento de sentido em relação a uma

determinada finalidade, abrindo e dispondo o sagrado a novos usos. No olhar diagnosticador de Agamben, o

consumo é um ato ritualístico improfanável, pois não permite abolir a separação que atribui estatuto especial à

mercadoria, originando a “absolutização capitalista da mercadoria” (AGAMBEN, 2007, p. 77).

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compreendida apenas como fonte de prazer passageiro, impossibilitando a solidificação dos

sentimentos e causando o vazio existencial. Planejar algo para ser alcançado no futuro não é

uma atitude atraente, pois, “qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma

oportunidade perdida” (BAUMAN, 2001, p. 187). Laços e parcerias humanas não são baseados

no utópico sonho de completude, afinidade, ideais partilhados; pelo contrário, são utilitários,

mantendo a mesma lógica do mercado.

O mercado, impulsionado pela comunicação tecnológica, migra do espaço físico

para o virtual, assim, desmaterializando o capital e reorganizando os modos de produção e de

consumo. O capitalismo, no contexto pós-moderno, é ressignificado, apesar de continuar

vigorando sobre as mesmas bases. As hierarquias, as zonas privilegiadas, os polos de produção

e toda sua estrutura não se encontram em estágio autocrático, pelo contrário, o sistema

capitalista continua cumprindo seu papel totalitário por meio da lógica da mais potência: a

velocidade é o produto. O sujeito vive sob o imperativo da atualização constante, da necessidade

de dominar as linguagens de acesso dos objetos infotecnológicos cada vez mais avançados e

que mantêm o mercado sempre revigorado. Cazeloto (2008) concebe a forma cultural e

imaterial do capitalismo agindo num campo fluido e indeterminado geograficamente, buscando

possibilidades mais rentáveis que a civilização mediática possa oferecer.

2.1.1. O imaginário pós-moderno no Brasil e na América Latina

A América Latina, em destaque, o Brasil, já emergiu pós-moderno. As suas redes

de significações são multiculturais, devido às diferenças étnicas e culturais provenientes da

miscigenação resultante do processo de colonização. Canclini (2003) recorre à história para

compreender as contradições latino-americanas, principalmente, para esclarecer a origem dos

problemas ainda enfrentados nos dias de hoje. Ele afirma que, como os países latino-americanos

foram colonizados por nações europeias mais atrasadas, submetidas às Contra Reformas e

outros movimentos, tardou em conhecer plenamente a manifestação moderna, vivenciando

somente as chamadas “ondas de modernização” (CANCLINI, 2003, p. 67). Essas ondas

modernas foram impulsionadas por fatos ocorridos entre o início do século XIX e XX.

[...] a oligarquia progressiva, pela alfabetização e pelos intelectuais

europeizados, entre os anos 20 e 30 deste século, pela expansão do capitalismo

e ascensão democratizadora dos setores médios e liberais, pela contribuição

de migrantes e pela difusão em massa da escola, pela imprensa e pelo rádio;

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desde os anos 40, pela industrialização, pelo crescimento urbano, pelo maior

acesso à educação média e superior, pelas novas indústrias culturais.

(CANCLINI, 2003, p. 67).

Como a América Latina não conseguiu atingir o patamar de desenvolvimento

moderno europeu, ela passou a sobreviver num contexto visível de desajuste entre modernidade

e modernização. Ainda de acordo com Canclini, o desajuste não é apenas um fator resultante

do processo histórico de colonização, outros fatores colaboraram para isso. Entre o principal

fator está a organização política e social instituída nos países da América Latina, uma vez que

o poder foi tomado por uma determinada classe dominante fortalecida pela ideologia da

desigualdade.

Enquanto a modernidade europeia propagava o desenvolvimento científico, a

autonomia pessoal, a renovação das ideias e a remuneração pelos serviços prestados, o Brasil

ainda vivia em situação de escravidão. A dependência econômica agrária latifundiária

brasileira, com o mercado externo, influenciou o surgimento da racionalidade econômica

burguesa ainda sob os moldes serviçais. Se a intenção era introduzir a prática do trabalho com

retorno remunerado, transformou-se em dominação da classe dirigente condutora das forças de

trabalho. A falta do retorno compatível com a força de trabalho dispensada revelou-se nos

maiores problemas sociais vivenciados nos dias de hoje, a pobreza, o desemprego e a

criminalidade.

Se, por um lado, o Brasil e a América Latina não conseguiram viver plenamente

a modernidade, contraditoriamente, já nasceram pós-modernos, como foi afirmado

anteriormente. A pós-modernidade compreendida pelas (con)fusões de sentidos e na

multiplicidade cultural sempre esteve presente no cotidiano latino-americano. Inclusive, a

diversidade cultural, as desigualdades entre as classes e o preconceito demonstram a

impossibilidade da construção de metanarrativas totalizantes. Cada grupo, cada minoria, clama

para serem enxergados, unindo-se a partir de suas necessidades. Gardea (2007) afirma que, na

pós-modernidade latino-americana, emerge uma nova lógica de ação de atores coletivos e

movimentos sociais não mais voltados para uma política de movimento que, obrigatoriamente,

deva resultar numa resposta positiva do estado, mas numa lógica de campanha em que o

importante é ter a oportunidade de ser ouvido. Ou seja, a lógica movimentalista não promove

projetos universalizantes e tampouco emancipatórios, em sentido amplo. Os objetivos desses

movimentos são menos ambiciosos e não são projetados em longo prazo. Eles passam a ser

localizados e reduzidos e, dessa forma, o sentido pragmático da ação coletiva ganha

proeminência sobre a lógica redentora da visão moderna dos movimentos sociais. Nesse

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sentido, os media colaboraram para dar evidência às necessidades desses movimentos.

No que diz respeito à relação com os media interativos e à influência deles no

contexto social, o Brasil destaca-se pelo número de acessos à internet. De acordo com a décima

primeira edição da pesquisa TIC Domicílios2 que tem como objetivo medir a posse, o uso, o

acesso e os hábitos da população brasileira em relação às tecnologias de informação e de

comunicação, mostrou-se o quanto aumentou o uso da internet em relação à última pesquisa

realizada em 2014. Atualmente, 58% da população acessam irrestritamente a web e, para isso,

prioritariamente, utilizam-se de smartphones e tablets. O crescimento ficou mais evidente nas

classes C, D e E, como são denominadas na pesquisa. São essas classes que passaram, inclusive,

a trocar com mais frequência os aparelhos infotecnológicos, com o objetivo de facilitar o acesso

à rede. Então, apesar da crise política e econômica brasileira, o imperativo pós-moderno da

lógica da mais potência domina o imaginário social, fortalece o mercado e, consequentemente,

consolida o capitalismo no cerne da sociedade.

2.2 O regime da velocidade no contexto pós-moderno: o nascimento da Cibercultura

O desenvolvimento da cultura pós-moderna aliado à comunicação como valor

utópico, em meados do século XX, favorece o surgimento da cibercultura. Para Trivinho

(2007), a cibercultura não está restrita somente ao âmbito cultural ou ao contexto econômico-

financeiro de produção das infotecnologias presentes na atualidade, mas engloba toda a

estrutura societária, articulada por meio de investimento planetário nas tecnologias e redes

digitais em todas as dimensões da existência humana: material, simbólica e imaginária.

[...] comunicação eletrônica e pós-modernidade são, no fundo, uma só e

mesma coisa. Se a ascensão do fenômeno pós-moderno coincide com a

progressiva mistura homogênea da comunicação com o tecido social, a cultura

protagonizada pelos media de massa, por sua vez, condiciona e otimiza a

realização da pós-modernidade. (TRIVINHO, 2001, p. 72).

Trata-se de uma cultura marcada por fronteiras pulverizadas, pelo fragmento,

pela personalização e individualismo, além do ceticismo em relação às metanarrativas. Essas e

outras características da condição pós-moderna estiveram, e ainda estão misturadas aos mass

2 A pesquisa TIC Domicílios é realizada anualmente desde 2005. Objetiva mapear o acesso à infraestrutura das

TIC nos domicílios urbanos e rurais do país e as formas de uso destas tecnologias por indivíduos a partir dos 10

anos de idade. A partir de 2013 a TIC Domicílios também incorporou em seu escopo a TIC Crianças, que investiga

o uso de TIC entre indivíduos de 5 a 9 anos, e é realizada separadamente desde 2009.

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media e se interligam às experiências vividas nas redes informáticas. Por esse motivo, a

cibercultura se apresenta como um dos vetores da pós-modernidade. Trivinho (2007) reforça

que os sistemas políticos convencionais passam a ser submetidos à lógica do modo de vida

cibercultural. Os estados subordinam-se às estratégias comunicacionais e tendências

tecnológicas de mercado para se autolegitimar, isso acontece devido ao caráter transpolítico da

cibercultura (TRIVINHO, 2001, p. 70-72).

As formas individualizadas e descentralizadas dos meios interativos

correspondem a contendo à efemeridade e à descontinuidade pós-modernas. A comunicação,

na cibercultura, torna-se vetor de articulação da sociedade, a partir da emergência das redes

digitais, da globalização mundial e do imaginário de integração do mundo, assumindo valor

absoluto no centro da sociedade, por meio da promessa da transparência e da democratização

do acesso à informação herdada da teoria cibernética – que será aprofundado no item anterior.

A gênese cibercultural está ligada à revolução da microeletrônica que

proporcionou o desenvolvimento da indústria de hardwares e softwares capaz de impulsionar a

expansão da informação em escala mundial, concomitantemente aos avanços na área das

telecomunicações. Dessa forma, a cibercultura decorre da interseção entre os avanços

tecnológicos e os meios de comunicação em sua versão eletrônica. Se na sociedade moderna, a

técnica era compreendida como elemento fundamental no progresso civilizatório, na sociedade

atual existe um conjunto fatores, entre eles a tecnologia, o mercado, as iniciativas estatais e

empresariais e a contínua aceleração na produção e utilização de bens e serviços informáticos,

que passam a ser responsáveis pelas profundas transformações no cotidiano dos indivíduos. Os

equipamentos infotecnológicos tornam-se, assim, instrumentos imprescindíveis do estilo de

vida tecnocultural, consolidado pelo sistema econômico capitalista. Na era pós-industrial,

denominada dessa forma devido às mudanças nas relações de produção, de trabalho e no

consumo, sobretudo, das tecnologias de informação e de serviços de telecomunicação, a ampla

procura por novidades de acessórios tecnológicos e informacionais é característica intrínseca

da cibercultura. Para Bauman (2008, p.108-109), essa cultura de consumo exacerbado exige

constante busca de “estar à frente” das “tendências de estilo”, que promete aos indivíduos o

reconhecimento, significando inclusão e sentido de pertença nessa mesma sociedade. O autor

afirma que existe a preocupação dos indivíduos de ficarem à margem de uma nova tendência

caso os atuais objetos/produtos desejados sejam postos fora de circulação.

Desse panorama, fazem parte a produção e o consumo acelerados e ininterruptos

de tecnologias da informação que levam os indivíduos a se apropriarem dos produtos

infotecnológicos com funções cada vez mais sofisticadas, tanto em recursos e aplicativos,

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quanto em acessórios e design. Essa veloz atualização de bens materiais e imateriais

informáticos garante a reprodução social e histórica da lógica cibercultural. Por isso, segundo

Trivinho (2001, 2007), a velocidade, somada à comunicação tecnológica e à cultura pós-

moderna, resulta num dos principais vetores estruturais da cibercultura, provendo dinamismo

para a atual civilização tecnológica se firmar e se autoconservar.

Paul Virilio (1996b) define a lógica da velocidade como dromocracia. O termo

origina-se do conceito de dromologia, fenômeno baseado no deslocamento, na corrida ou

movimento e que tem seu sentido derivado do grego dromos. Para o autor, a velocidade possui

valor primordial nas estratégias políticas e militares de cada época, sem exceção dos dias atuais.

Trivinho amplia e aprofunda a análise do impacto da dromocracia na sociedade atual, ao

enfatizar que, embora a velocidade estivesse presente ao longo da história, pautando a

existência humana, no contexto atual, ela se constitui como regime totalitário e invisível a partir

do advento da sociedade marcada por instrumentos infotecnológicos amplamente saturados

pelo uso cotidiano. E, por alcançar seu ápice como articuladora de todos os processos sociais,

indo da esfera do trabalho à do lazer, a velocidade impacta na constante produção, distribuição

e reciclagem de tecnologias informáticas e no consumo de bens e serviços informáticos que

mantêm o sistema dromocrático contemporâneo.

Existem conexões íntimas entre a velocidade tecnológica como princípio de

estruturação e modulação da vida social e o imperativo da saturação ad

infinitum como telos inexorável de qualquer produção [...]. A primeira

coordenada propende para a segunda, otimizando-a, e esta, por sua vez,

fomenta aquela, num inacabável círculo vicioso em que se confundem causa

e efeito, origem e destino. (TRIVINHO, 2007, p. 64).

A partir desse contexto, Trivinho enfatiza que a velocidade está relacionada à

violência ao longo da história, principalmente, por ter servido às conquistas de territórios e, na

atualidade, engendra os processos sociais, culturais, políticos, econômicos e de mercado, por

meio do processo de reciclagem de bens informáticos que acabam por obrigar o sujeito a possuir

capital financeiro e cognitivo para acompanhar a frenética evolução dos produtos cada vez mais

sofisticados. Em vista disso, o autor lembra que a maior parte dos usuários permanece

desatualizada em relação aos avanços tecnológicos. Esse panorama demonstra o quanto

dromocracia, comunicação e cultura pós-moderna estão imbricadas ao contexto cibercultural,

como será aprofundado no item a seguir.

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2.2.1. Cibernética e cibercultura

Como tratado anteriormente, o advento da pós-modernidade colaborou para que

os meios de comunicação passassem a ocupar o epicentro social, principalmente, após a

absoluta expansão na produção, circulação e consumo de objetos infotecnológicos capazes de

conexão de rede. A cibercultura consolida-se a partir da segunda metade do século XX,

irradiando-se para todos os segmentos da vida humana, à medida que todas as atividades do

cotidiano estão atreladas à tecnologia informática (TRIVINHO, 2001).

A origem da cibercultura coincide com a disseminação da teoria cibernética.

Essa influenciou diretamente na concepção de comunicação tecnológica como valor utópico

articulador da sociedade pós-moderna. No entanto, para compreender melhor o processo

evolutivo da tecnologia, é necessário recorrer à história, mais precisamente no período

moderno, marcado pela Revolução Industrial, quando a técnica unida à ciência passa a compor

as bases propulsoras das transformações sociais da época.

Diante da valorização da técnica no período moderno, Heidegger analisa que “a

essência da técnica não é, de maneira alguma, nada técnico” (2008, p. 12). A essência está

relacionada propriamente ao modo de revelação do ser no fazer técnico, ou seja, o desvelamento

do ser pode ocorrer tanto no modo de desenvolvimento da técnica tradicional, quanto da técnica

moderna. A primeira consolida-se, para o autor, como poética (artesanal) e a última se

estabelece pelo apelo exploratório da natureza como dis-ponibilidade, pautado no

gerenciamento, no controle, no asseguramento e no automatismo. Essa concepção da metafísica

heideggeriana tornou-se base para os princípios da cibernética, além de colaborar para a difusão

dos efeitos da técnica e da tecnologia até a civilização atual sob os moldes ciberculturais.

O início da teoria cibernética remonta aos avanços da informática. O progresso

informático se fortaleceu por meio da confluência dos avanços técnico-científicos que

impulsionaram a criação da microinformática, provocando inevitáveis transformações sociais,

culturais e ideológicas. Breton (1991) destaca três importantes fases do processo: [a] a primeira

fase ocorre entre as décadas de 40 a 60 e estavam pautadas no desenvolvimento da teoria

cibernética. As universidades norte-americanas, subsidiadas por verba militar, desenvolviam

tecnologia para atender às forças armadas. O interesse residia na criação de máquinas capazes

de simular o funcionamento do cérebro humano; [b] a segunda fase, de 1960 a 1970,

caracteriza-se pelo surgimento de sistemas centralizados, compostos por representantes da

tecnocracia estatal, militar, científica e empresarial. Foi nessa fase que houve a ruptura entre

informática e cibernética. O principal motivo era o interesse na comercialização de produtos

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informáticos, apesar de as pesquisas para o desenvolvimento da microeletrônica continuar a

serem mantidas pelos militares. Por isso, os primeiros microcomputadores foram introduzidos

nos setores governamentais, até que as empresas privadas passassem a investir na produção de

computadores; e [c] a última, a partir da década de 70, é marcada pelo surgimento dos

computadores pessoais e das redes telemáticas. A comercialização da microinformática, após

ser inserida na sociedade civil, rompeu com os sistemas burocráticos e centralizados do reduto

governamental e militar, para tornar-se a principal utopia pós-moderna: reencantar o mundo por

meio da comunicação informática.

Deve-se a Nobert Wiener (1978) as sementes do processo de reencantamento do

mundo promovido pela comunicação tecnológica. Wiener é responsável pela teoria social que

tinha como objetivo criar um campo interdisciplinar com várias áreas do conhecimento

organizadas em torno do eixo da comunicação. A teoria possuía forte caráter ideológico, pois

acreditava na emancipação do mundo por meio da liberdade total das informações,

possibilitando, assim, a renovação da sociedade. Essa renovação assume fundamental

importância na reconstrução social pós Segunda Guerra. O autor se inspirou nas leis da física

para desenvolver suas pesquisas, buscando associar os princípios físicos às relações sociais. A

comunicação e o controle, na concepção de Nobert, teriam a importante função de impedir o

caos social causado pela tendência entrópica, a qual poderia gerar a degradação natural da

sociedade. “Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida

por um grupo de mensagens é a medida de organização”, afirma o autor (WIENER, 1978, p.

21).

Dessa forma, a manutenção da ordem social e a harmonia dos laços sociais

compunham o imaginário da teoria cibernética e representavam o retorno à esperança de

reerguer o mundo sob as bases de uma sociedade autogovernada e livre, tendo a informação

como o principal mecanismo de auto-organização e harmonia da sociedade. A auto-organização

dependeria de dois articuladores: os sujeitos que deveriam estimular a sua potencialidade

comunicativa e as máquinas, dotadas de inteligência, capazes de se nivelar aos humanos pela

troca informacional complexa, gerando a simbiose sujeito-máquina (BRETON, 1995). Dessa

experiência interativa surgiriam novas formas comunicativas e um novo aprendizado. Esse

nivelamento, o indivíduo e a máquina de pensar possuem quatro proposições, de acordo com

Breton:

O texto de Nobert Wiener apoia-se, assim, em quatro grandes proposições.

Todos os objetos do universo existem sob uma forma informacional, que lhes

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é essencial. Todo o universo é constituído pelas diferenças equivalentes ao seu

comportamento. O comportamento de todos os objetos no universo é

compatível numa mesma escala, que apenas toma em conta o critério de

complexidade. De um ponto de vista informacional, não há fronteiras de

separação entre o humano e os outros objetos que compõem o universo. Destas

quatro proposições nasce uma representação do humano como ser

transparente e racional. (BRETON, 1995, p. 125).

Essas proposições impulsionaram o desenvolvimento da microinformática com

o intuito de produzir máquinas que pudessem interagir entre si e com os humanos, culminando

no amplo projeto tecnológico vivido na atualidade. O primeiro computador foi comercializado

ainda nos anos 70 e, na década de 80, houve a fusão entre a informática com as

telecomunicações. Mas a expansão mercadológica dos objetos infotecnológicos somente

tornou-se possível nos anos 90, com a difusão da web. Em decorrência disso, a comunicação

ampliou seu conceito e passou a ser o mecanismo de articulação social, assumindo o epicentro

da sociedade da informação a partir da segunda metade do século XX e consolidando-se no

século XXI.

Mesmo que a cibernética tenha arrefecido depois da morte de Nobert Wiener,

seus princípios continuaram servindo de fundamento não apenas para o desenvolvimento de

tecnologias, mas para sustentar a principal ideologia que compõe a metanarrativa pós-moderna:

a de a harmonia social estar ligada à livre circulação de informação. Vale ressaltar que alguns

conceitos como informação, feedback e transparência são herdados da cibernética e tornam-se

pilares da comunicação tecnológica e ganham amplo significado na cultura mediática. Diante

disso, Trivinho (2001, 20017) enfatiza que a civilização tecnologicamente assentada em

princípios gestados na teoria cibernética é engendrada pelos ditames do processo

comunicacional levado às últimas consequências ao ser imprescindível para a manutenção dos

vínculos sociais.

A partir da segunda metade do século XX, a comunicação passou a ser o motor

de propulsão da cultura tecnológica denominada de cibercultura. Como exposto, a cibercultura

é uma época marcada pelo uso contínuo de objetos informáticos e comunicacionais e pela

manutenção da lógica de reciclagem de aparelhos infotecnológicos e aplicativos que propõem

um novo condicionamento psíquico, cognitivo e comportamental aos sujeitos. As linguagens

estruturantes do ambiente virtual passam por constante atualização, implicando em aprendizado

contínuo. A apreensão das senhas infotécnicas de acesso são fundamentais neste novo modelo

de civilização.

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Se o pleno domínio das senhas infotécnicas promove inserções, a inexistência

desse domínio envolve uma exclusão em cadeia, uma hiperexclusão: exclusão

do mercado de trabalho, exclusão do lazer, exclusão do cyberspace, exclusão

da época, exclusão da vida. (TRIVINHO, 2001, p. 225).

Essa revolução provocada pela cultura tecnológica, então, implica em

consideráveis transformações, pois [1] a memória cultural e social expande-se para além do

corpo, para ser armazenada na extensão da memória informática; [2] as informações convertem-

se em produto mercadológico; e [3] o corpo e as relações sociais desmaterializam-se no

ambiente de rede. A vida humana vigora sob a lógica da instantaneidade. A velocidade torna-

se o principal motor que movimenta a cibercultura.

2.2.2. A dromocracia como sistema articulador da civilização mediática

Os conceitos de dromocracia, dromologia e as possíveis variações são creditados

às obras de Paul Virilio. O autor utiliza-se desses termos para compor a base da categoria

epistemológica crítica capaz de revelar a velocidade como vetor de condução da história da

humanidade. Dromos, prefixo grego que designa rapidez, remete às ações da urbis na qual estão

imbricados os planos estratégicos e táticos com os fins bélicos. Então, o progresso humano, sob

o ponto de vista de Virilio, sempre esteve mais ligado à ditadura do movimento fomentado pela

guerra, do que a projetos dos pensamentos tradicionais grego-clássicos, cristãos, cartesianos

e/ou positivistas (TRIVINHO, 2007).

O processo de dromocratização da vida passou por diversas transformações até

configurar-se como sistema que rege a vida social na cibercultura. A dimensão dromológica da

existência está implicada desde a descoberta de “vetores de movimentação de corpos, objetos

e valores materiais e/ou simbólicos” (TRIVINHO, 2007, p. 71-72) presente nos planos

estratégicos de conquistas por território na sociedade primitiva, passando pela superação dos

limites do mar e do ar com ajuda dos meios de transporte até chegar à anulação do tempo e

espaço provocada pela instantaneidade da comunicação tecnológica que, para Virilio (1997),

representa o último veículo. Na concepção do autor, os meios de transporte comparecem no

mesmo plano epistemológico dos meios de comunicação, porque os dois são condutores de

velocidade.

Os vetores de produção de movimento convencionais cedem espaço aos de

transmissão e circulação de produtos simbólicos (informação e imagem),

representativos ou não de referentes concretos. O secular império sucede o

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último veículo, fadado a mais alta velocidade praticável, a velocidade da luz.

A subtração do território geográfico que se confunde com a diminuição

anuladora do planeta. (TRIVINHO, 2007, p. 57).

A dinâmica da dromocratização cibercultural converge para uma nova forma de

pressão social, identificada por Trivinho (2007, p. 223) como o “gerenciamento infotécnico da

existência” que rege a civilização mediática, na medida em que o cenário mundial torna-se cada

dia mais dependente das tecnologias de tempo real.

2.2.3. Fenômeno glocal

Trivinho (2007) traça o percurso da conceituação do glocal, desde a

conceituação utilizada no âmbito corporativo em tom celebrativo, por apresentar o princípio

pragmático de que toda iniciativa econômica relevante deve seguir os padrões técnicos aceitos

no nível de mercado, até a apropriação do conceito pelas ciências humanas e sociais, incluída

como epistemologia crítica, ultrapassando a esfera da constatação e descrição contextual. Para

o autor, o glocal – como reflexão teórica orientada pela crítica – torna-se uma categoria

conceitual que permite mapear as bases e consequências desse mundo em sua significação

social-histórica e que possibilita o tensionamento teórico do modo de ser no atual arranjamento

da civilização mediática. Dessa forma, a gênese do glocal vigora como categoria conceitual e

de potencial crítico, pois suas características nos âmbitos empírico e sociocultural colaboram

para o entendimento do processo expansão e de conservação da glocalização.

Semanticamente, o glocal funde o local e o global para conceituar o contexto

tecnocultural de acesso e recepção ou de retransmissão de signos ou produtos mediáticos em

tempo real. O glocal, de acordo com Trivinho (2007) é um fenômeno típico da civilização

mediática e dela emergido, formado pela imbricação de processos de contrastantes, sem redução

do global e do local e sem destituir a sua natureza da terceira via:

Como o significante indica “glocal” é neologismo resultante da hibridação

cumulativa de dois termos, “global” e “local”. O plasma semântico, sem

ruptura visível, entre eles faz do glocal alternativa de terceira grandeza, não

redutível a mero somatório daquele, tampouco a um ou a outro, isolado. Na

nova via, global e local são um e mesmo e, simultaneamente, nenhum:

globalização (ou globalismo) e localização (ou localismo) restam dissolvidos.

(TRIVINHO, 2007, p. 283).

O glocal vislumbra a possibilidade de melhor apreender o processo civilizatório

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satelizado, operando – ao mesmo tempo – a releitura de sua natureza de seu desenvolvimento

e as suas implicações no cotidiano. Por isso, Trivinho acredita que, por meio desse prisma

conceitual, é possível um reexame das problemáticas e dos consequentes impactos dessa

configuração mediática que precisa de aprofundamentos e desdobramentos reflexivos.

2.2.4 A gênese do glocal

Ainda que tenha sido apreendido a partir do contexto cibercultural, o glocal

remonta ao próprio início da comunicação mediática no século XIX, com a invenção do

telégrafo sem fio – por apresentar características de transmissão simultânea em tempo real – e,

posteriormente do telefone, até o desenvolvimento da comunicação mediatizada ao longo do

século XX, passando pela invenção do rádio, da televisão e dos media interativos. Em síntese,

é por meio da categoria glocal que se realiza a revisão social-histórica do desenvolvimento da

comunicação, tornando-se o principal imaginário da cibercultura. Trivinho (2007) aponta

alguns elementos básicos presentes no processo de evolução da condição glocal: [1]

equipamentos de telecomunicações; [2] infraestrutura de rede; [3] acoplamento humano-

máquina; [4] tempo real; [5] procedimento de emissão e de recepção; [6] fluxo de sentido e

não-sentido; [7] alteridade como espectro; [8] desejo comunicacional de interatividade humana.

Embora o fenômeno glocal já se fizesse presente desde o final do século XIX, é

no âmbito da cibercultura que se torna mais apreensível o acoplamento material, simbólico e

imaginário entre o humano e as máquinas capazes de conexão em tempo real. Para Trivinho,

isso decorre da tendência de discussões em nível internacional da ascensão da globalização e

dos localismos. Esses dois fenômenos são equivocadamente, segundo o autor, “considerados

hegemônicos e mutuamente excludentes” (TRIVINHO, 2007, p. 247), porém, eles suscitam

obviamente reflexões sobre a contextualização do fenômeno glocal.

Pelo fato de dar origem à sociedade mediática, o glocal é considerado um

acontecimento inédito e de maior relevância deste século. Os contextos mediáticos incluídos

no processo de glocalização formam a própria empiria do esquema mediático presente no reduto

imediato de ação do corpo, permitindo a sustentação material da recepção e irradiação simbólica

e imaginária de todos os signos pertencentes à ordem global, conforme Trivinho (2007, p. 260).

Essa inextricável integração do global e do local presente no glocal é o grande propulsor das

irradiações simbólicas do global no cotidiano local, resultando no investimento de interesses

empresariais e institucionais, bem como as experiências ciberespaciais vivenciadas pelos

indivíduos com a utilização – obrigatória ou não – dos dispositivos capazes de rede.

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2.2.5 A teoria do glocal como crítica conceitual da civilização mediática

De acordo com Trivinho (2007), o glocal pode ser entendido como a terceira via

semântica capaz de tensionar os contextos mediáticos em tempo real e a lógica da civilização

atual, articulada a partir deles. Para o autor, essa tensão exercida pelo fenômeno de glocalização

do cotidiano impacta diretamente nas teorias da comunicação, ao propor uma releitura radical

das estruturas comunicativas e das experiências humanas instauradas após o advento sui generis

da era mediática. A categoria glocal desconstrói as bases da matéria social-histórica e o

pensamento tecnoburocrático já consolidadas, ao longo do tempo. Essa revisão histórica tornou

possível a renovação da teoria crítica tão necessária para o entendimento da cibercultura, cuja

principais características são a velocidade e a interatividade, bases do próprio fenômeno glocal.

Desse modo, o fenômeno glocal é o principal responsável pela consolidação da

cibercultura, bem como do enraizamento do capitalismo mantido pelo sistema dromocrático. A

comunicação mediada por máquinas é “a epopeia técnica da integralidade mediática do globo

segundo a lógica do glocal” (TRIVINHO, 2007, p. 245). A clareza crítica que o conceito abarca

contrapõe-se ao contexto que ele engendra, demonstrando o quanto está indexado à própria

lógica na qual opera em todos os âmbitos da existência humana.

[...] cada ambiente glocal se equipara, em seu recorte minoritário, a um

“sistema operacional geral”, destinado a efetivar, a partir de cada ponto de

acesso/recepção/retransmissão, as necessidades multilaterais de imortalização

da civilização global e das suas macroestruturas de desenvolvimento da

existência em tempo real. (TRIVINHO, 2007, p. 274).

Considerando o ponto de vista do autor, o glocal, como categoria crítica,

demonstra a vivência em tempo real, sendo analisada a partir de cinco elementos: [1] a

dependência acentuada nos objetos tecnológicos e na internet; [2] o acoplamento compulsório

entre corpo/mente e máquinas/fluxos comunicacionais como modo de auxiliar as atividades do

cotidiano; [3] as relações sintetizadas na socioespacialização das telas compostas por paisagens

mediáticas que emergem como “real prioritário”, em detrimento do real não exposto pela

visibilidade mediática; [4] a abordagem da alteridade como espectro; e [5] a adesão – voluntária

ou não – ao modelo de civilização atual, como estratégia de legitimação dessa sociedade e da

consolidação do sistema capitalista. Os elementos ora citados, em maior ou menor grau,

explicitam o fenômeno da dependência em relação à interatividade em tempo real (glocal) e a

velocidade (dromocracia).

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2.2.6 A vida glocalizada

O processo de glocalização da vida humana é configurado como um conjunto de

experiências potencializadas e multiplicadas pelo enredamento dos contextos glocais – como

articulador sociocultural e transpolítico – que reescreve mediaticamente a atualidade. Essa

reescrita acontece, principalmente, por meio das infotecnologias capazes de rede que vigoram

sob o modelo bunker, “um reduto de livre confinamento interativo do corpo, da subjetividade

e do campo próprio” (TRIVINHO, 2007, p. 299), fazendo o glocal interativo emergir.

Quando o autor usa a expressão “livre confinamento”, é possível perceber o

paradoxo contextual no qual o sujeito da civilização mediática está imerso. Na cibercultura,

vive-se sob a égide do sistema dromocrático, cuja expansão depende – seja por adesão dos

indivíduos, seja para a manutenção do mercado e do capital – dos objetos tecnológicos

promotores de interatividade que, ao estarem presentes como imperativo no cotidiano,

submetem o indivíduo à obrigação desejável, à liberdade no aprisionamento invisível que leva

ao estado de desejo vigilante de estar sempre conectado e não perder o tempo, sobretudo, o

tempo real virtual. O tempo real une o campo material – necessário na formação do contexto

glocal – e o campo do imaginário que alimenta o desejo de conexão permanente. Dessa forma,

o fenômeno glocal inaugura a categorização do tempo real, capaz de redimensionar o tempo e

o espaço. O tempo diuturno transforma-se em tempo real, o tempo da imediatez, presente no

momento informacional que se mantém num espaço fluído, sem limites territoriais, englobando

o “espaço imediato da condição glocal”, correspondente ao tempo, e simultaneamente à

“socioespacialização tecnoimagética do aparelho de base”, analogamente ao lugar, ao espaço

da tela (TRIVINHO, 2007, p. 253), resultando no surgimento do tempo anacrônico, reduzidos

à instantaneidade.

Trivinho (2007) aponta a existência de dois modos de tempo real: o bidirecional,

presente no acesso interativo, e o unidirecional, característico da transmissão televisiva. As

características inerentes ao tempo real bidirecional são fundamentais para a compreensão deste

trabalho, uma vez que a vivência em tempo real reorganiza as relações sociais, a política e até

a cidadania. Para dar suporte ao entendimento da temática, é necessário destacar as dimensões

da prática glocal em sentido lato e stricto sensu. O glocal stricto sensu refere-se ao glocal

tecnológico, remetendo ao espaço concreto imediato no qual o corpo experimenta o tempo real

e a superação do espaço por meio de um suporte tecnológico conectado à internet. Essa estrutura

empírica se configura pela presença da tecnologia comunicacional, do fluxo sígnico circulante

nas redes, do sujeito grupal ou individual, institucional ou não, e da relação de acoplamento

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entre subjetividade/corpo e a rede tecnológica (TRIVINHO, 2008, p. 3-4). Tal estrutura

comparece em todos os tipos de glocais existentes desde o telégrafo até os meios interativos.

O processo de glocalização stricto sensu envolve o contato direto com o meio

comunicacional capaz de acesso em tempo real, especificado por Trivinho (2007), como

experiência glocalizada, pressupondo o contato com a empiria e com os fluxos imagéticos

provenientes desse acesso, possibilitando ao indivíduo o desenvolvimento da própria

experiência vivenciada nesse contexto. A experiência, por sua vez, concretiza-se por meio do

imaginário glocal, no mesmo instante, sem estar atuando somente no âmbito local e tampouco

somente no âmbito global, mas na terceira via proporcionada pela imbricação do local/global,

onde os sujeitos dedicam horas das suas rotinas cotidianas. Na dimensão stricto sensu, o glocal

permite vislumbrar a indexação que ocorre no campo material, tanto através do vínculo

umbilical, formado no ato do acesso em tempo real pelo indivíduo, quanto através do amplo

incentivo e investimento das grandes corporações no sentido de instalar pontos de acesso à rede

nos recintos públicos ou privados, como estratégias de mercado e interesses do capitalismo

enraizado na sociedade.

O glocal lato sensu, por sua vez, relaciona-se ao alcance social, econômico e

financeiro das tecnologias em tempo real. O processo de glocalização em sentido lato acontece

no âmbito da articulação sociocultural e transpolítica da experiência humana. Esse aspecto do

glocal contribui para a apreensão do “poder comunicacional vigente”, devido permitir enxergar

com clareza a abrangência da glocalização humana e, como isso, impactar diretamente na vida

em sociedade.

[...] o glocal é, por assim dizer, a metonímia de toda uma configuração social

histórica de poder tecnológico avançado que, nutrindo-se da eficácia diuturna

dos satélites artificiais, responde pela subordinação de todos os contextos

locais ao processo de glocalização capitalarizada do planeta. (TRIVINHO,

2007, p. 261).

Ainda, o glocal lato sensu se firma no âmbito social- histórico, permitindo

vislumbrar mais claramente a despolitização da política engendrada pelo glocal. A realidade

apresentada por ele é baseada numa realidade mediática que abrange o plano material, o

simbólico e o imaginário. Nesse sentido, segundo Trivinho, o glocal não apenas se transforma

no próprio contexto no qual a civilização está inserida, como também é base de preservação do

status quo. Assim como a despolitização levada às últimas consequências pelo processo de

glocalização que, na sua expansão silenciosa, oblitera e profunda transformação nas relações

sociais, na política, na economia, também impacta nas formas do sujeito ver e agir no mundo.

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A partir dessas considerações, é possível compreender que o fenômeno glocal é

imaginário da época. Por meio do magma de significações, ele favorece o sujeito a experienciar

novas formas de existência, fincadas e remodeladas no/pelo processo de glocalização. Tal

processo nunca finaliza, mas cria novas práticas que realimentam as existentes, o que poderá

ser visto de maneira mais clara a partir da análise da cidadania glocal, objeto desta Tese, o qual

será apresentado e contextualizado nos capítulos a seguir.

2.2.7 As utopias do imaginário tecnológico: o fascínio pelas práticas glocais

interativas

O imaginário tecnológico está ligado diretamente no pensamento instituído pela

lógica identitária, por carregar em si resquícios das metanarrativas da modernidade não

cumpridas e a capacidade de potencialização da afetividade, dentro de um novo magma de

significações: a velocidade e a informatização. Ambos são magmas por serem estimuladores

das atividades concretas do cotidiano tecnológico cibercultutal, produzindo sentindo e

possibilitando a construção a ressignificação deles.

[...] o imaginário era fruto puro das relações interpessoais, sem mediação

maquínica, sem meio, finalidade em si (teatro, poesia oral, “causos”, contos,

fábulas). O pecado original estabeleceu-se com a mediação. A tela entrou na

vida homem como divisor de águas. Passou-se da fluência para à fruição, da

conjunção à intermediação e do troco ao meio. Aos poucos, tudo virou meio.

O meio se tornou fim [...]. (MACHADO, 2003, p. 75).

Durante muito tempo a voz do imaginário foi silenciada. Era a voz que da

margem, relegada a uma posição secundária. Na modernidade, por exemplo, foram cortados os

laços com as fontes vitais da imaginação em detrimento da supremacia da razão. Agora, a

humanidade recupera o tempo perdido. Durand (1970) destaca que a situação contemporânea,

na qual a ciência e a técnica, oriundas do projeto racional, conduziram paradoxalmente ao

ressurgimento do imaginário como força vital. A civilização que ama das imagens produzidas

pelos meios de comunicação reinstala no mundo a ditadura do imaginário. A sociedade passa

de um extremo ao outro: da exclusão absoluta do imaginário ao desejo da substituição do

racional e da imaginação. Felinto (2003), ainda enfatiza: “quando o imaginário está por toda

parte, quando o seu poder é ubíquo, sem centro e inteiramente pervasivo torna-se tão perigoso

quanto à razão totalitária” (Ibid., p. 28).

O termo imaginário tecnológico é utilizado pela primeira vez por Lucien Sfez

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(1996) e de acordo com ele o conceito repousa na percepção de “saúde total”, pois, possui um

caráter circular, como se a tecnologia se imaginasse a si mesma.

A serviço de uma ordem, as técnicas solicitadas não são entretanto somente

meios visando a este fim, elas têm sua vida própria, isto é, um funcionamento

que exige que o universo onde elas “vivem” reflita seus próprios traços [...].

A técnica assim reivindicada instaura, pois, um mundo à sua imagem. (SFEZ,

1996, p. 110).

O imaginário tecnológico pode ser mais bem compreendido se for levado em

consideração sua operalidade. Para tanto, é fundamental recorrer a psicanálise, quando Freud

(1971) – influenciado por Le Bon (1895) – pretende explicar a “alma das massas. Para o autor,

o individuo ao se reunir num grupo rende-se a sensação de poder que mobiliza o grupo. Esse

poder é mobilizado por um líder que possui aceitação imediata e que possui um efeito

hipnotizador. Esse comportamento uníssono da massa reforça o sentido de que o imaginário

social é o modo pelo qual os sujeitos partilham inconscientemente o mesmo modo de agir e de

pensar (CASTORIADIS, 1986). Assim, o imaginário tecnológico é o imaginário social sob

bases técnicas que – na atualidade – atua como um dos maiores articuladores da esfera social,

mudando comportamentos, modificando valores e implantando novas formas de relações

pessoais, pois, por meio da ação dos meios de comunicação interativos, os usuários a voz de

comando de algum líder que surgir de qualquer lugar do contexto descentralizado da rede.

Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a

predominância da personalidade inconsciente, a mobilização por meio da

sugestão e do contágio de sentimentos ideias sugeridas em atos, estas, vemos,

são características principais do individuo que faz parte de um grupo. Ele não

é mais ele mesmo, mas, transformou-se num autômato que deixou de ser

dirigido pela vontade (FREUD, 1971, p. 87)

O “inconsciente tecnológico” dos usuários é alimentado por meio de discursos

devotados que anunciam o surgimento de um novo tipo de consciência coletiva, capaz de

expandir-se sem limites pela rede (TURKLE, 1997, p. 98). Nessa expansão, o corpo torna-se

maleável, podendo, inclusive, romper os limites de espaço e de tempo – numa ação mais

complexa que o estado de bilocação – ou até mesmo, desaparecer, já que o corpo deixa de ser

matéria para converter-se em códigos padrões da informatização. A narrativa organizadora em

torno da qual se desenrolam todas as ações do imaginário tecnológico, implica na ideia de

desaparição de todo o obstáculo ou materialidade envolvendo as noções de imediatez e de

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transparência. Essas narrativas ou utopias sem a qual o imaginário tecnológico não poderia

sobreviver se não fosse pelo fenômeno glocal. O que pertence ao local e ao global efetiva-se

como glocal dentro do imaginário tecnológico. O principal vetor de articulação das ações

imaginárias presente no glocal é a velocidade e a interatividade. Esses dois processos

constituem no processo de “planetarização” do mundo por meio da capacidade de

desterritorialização e imaterialidade eletromagnétoca, possibilitando o condicionamento de

toda vida humana ao estado dromocrático. Ou seja, dominam os discursos institucionais e

corporativos, interferem na cultura e no contexto de trabalho, mediam as relações sociais,

econômicas e politicas.

As significações do imaginário tecnológico proporcionadas pelo fenômeno

glocal se concretizam quando o usuário ao se conectar à rede passa a experimentar o poder

proporcionado pelo bunker que, segundo Trivinho (2007)

[...] nomeia redutos ou, muitas vezes, cinturões fortificados, erigidos ou

sulcados no solo ou construídos em patamar totalmente subterrâneo, ara

cumprir objetivos logísticos de proteção, resistência ou defesa contra

investidas inimigas em contextos de guerra ou guerrilha e, como tal, para

oferecer, simultaneamente, retaguarda e processo progressivo de contra-

ataque. (Ibid., p. 307).

Nesse sentido, o usuário protegido pela parafernália tecnológica expande o corpo

material e passa a interagir no ambiente de rede com o corpo imaterial. Trivinho enfatiza, “o

emissor e, em especial, o receptor, meramente distintos no processo real, obliteram-se para

ressurgir como usuários teleinteragentes” (TRIVINHO, 2001, p. 124). O conceito de usuário

teleinteragente pressupõe o grau de participação e intervenção mais plena do que o receptor

num processo dos meios de comunicação de massa. A comunicação interativa desafia o sujeito

a ser totalmente protagonista do processo de produção e de promoção de conteúdo,

redimensionando tanto os esquemas teóricos dos estudos comunicacionais, quanto causando

ressignificação das próprias relações sociais, uma vez que a máquina tornou-se alteridade no

processo comunicativo. As máquinas interativas acabaram por substituir algumas faculdades

humanas e, em outros casos, acabaram cedendo às suas facilidades. Essas máquinas

“inteligentes”, instrumentos de irradiação do imaginário tecnológico glocal, introduzem o

sistema dromocrático no cotidiano da sociedade por meio da praticidade de seu uso, causando

dependência delas. As máquinas tecem no imaginário social contemporâneo com a ideia de

indispensabilidade para execução das tarefas mais corriqueiras. Por isso, na esteira dessa

afirmativa, vale lembrar Le Breton (2003) que diz: “os computadores transformaram-se em

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parceiros da vida, em companheiros, em abertura para o mundo” (Ibid.,p. 155). Essa “parceria

da vida e abertura para o mundo” é o exercício das práticas glocais interativas que possibilitam

a teleexistência, ou seja, por meio do imaginário, o sujeito passa a existir dentro das redes

telemáticas. O corpo imaterial desloca-se no ciberespaço, surgindo, então, o neonomadismo

(BAITELLO, 2012). O usuário abandona o corpo material e o terreno citadino para tomar posse

do corpo “liquefeito”, fluido, espectral e poder experimentar todas as possibilidades de vida

proporcionadas pelo ambiente glocalizado. “(...)o glocal e a existência em tempo real por ele

permitida significam abandono e esvaziamento do espaço urbano extensivo (...)em proveito da

feudalização e povoamento da vasta socioespacialização eletrônica em que se transformou o

planeta” (TRIVINHO, 2001, p. 87).

A crise da motricidade desencadeada pela “lei da menor ação” chega ao ápice

com as práticas glocais interativas. Ao mesmo tempo em que o usuário compartilha do

imaginário de liberdade no contexto do ciberespaço, está aprisionado na materialidade do corpo

em apenas num local. Logo, como é possível perceber, as significações imaginárias instituídas

no imaginário social por meio do fenômeno glocal não se reduzem a experiência na rede, mas

extrapola para a vida cotidiana, para o real, invadindo o imaginário radical (individual) criando

novos magmas e, assim, mostrando a força criativa das ações imaginais que articulam a

sociedade e reescrevem a história.

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PARTE II

CIDADANIA COMO DISPOSITIVO

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A segunda Parte desta Tese é composta por dois capítulos, sendo um descritivo

e outro descritivo e analítico. O terceiro capítulo, que compõe a sequência do trabalho, dedica-

se em traçar o percurso histórico do conceito de cidadania construído ao longo do tempo.

Destaca-se a evolução da cidadania no Brasil, desde o processo de colonização até os dias

atuais, após o governo Dilma Rousself. Esse retorno à história torna-se fundamental para

compreensão da fragilidade da cidadania brasileira. Fragilidade decorrente de alguns fatores,

tais como: [1] o sistema escravagista que vigorou no país por muito tempo, contribuiu para que

a lógica conjuntista identitária fosse fundamentada na negação do reconhecimento do escravo

como sujeito, fazendo com que no imaginário social se consolidasse a objetificação do negro;

porém, após a abolição, percebe-se que o magma das significações imaginárias está alicerçado

na negação do direito de toda e qualquer minoria; e [2] conquistas e retrocessos, na mesma

medida, constantemente, colaboram para que os direitos políticos e civis não sejam vividos

plenamente pelo cidadão brasileiro, favorecendo com que se satisfaça somente com os direitos

sociais. Vale ressaltar que o tripé de direitos garante a plenitude do exercício da cidadania.

O quarto capítulo faz uma abordagem descritiva e analítica da cidadania como

dispositivo. Para tanto, se faz necessário uma breve abordagem do conceito de dispositivo

presente nas obras de Foucault (2010) e Agamben (2009). O dispositivo entendido como

magma de significações imaginárias que carregam em si à lógica identidária da manutenção do

poder. É importante frisar que a lógica se instrumentaliza de várias maneiras, uma delas é o

tripé de direitos que garantem a cidadania. Na mesma medida em que a cidadania é necessária

para o benefício da vida do cidadão, também é ferramenta de controle do Estado. Os

dispositivos de controle se potencializam no contexto da cibercultura, favorecendo a criação de

novos magmas de significações imaginárias fundamentados nas práticas interativas e, assim,

ressignificando o dispositivo da cidadania.

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CAPÍTULO 3 – CIDADANIA

3.1. A cidadania

Comumente, o termo cidadania está associado às condutas sociais. Sua origem

está intimamente ligada ao desenvolvimento da polis grega, entre dos séculos VIII e VII a.C,

quando passou a vigorar como condição para o exercício da vida em sociedade. Ao longo do

tempo, mudanças estruturais de caráter socioeconômico e político incidiram na evolução

conceitual e na prática da cidadania. Por esse motivo, a definição de cidadania não é estanque.

Ela é construção histórica e, por isso, o seu significado varia de sentido ao longo do tempo.

Remete-se à origem da cidadania o desenvolvimento da polis grega, entre os

séculos VIII e VII a.C, quando passou a ser concebida como condição para o exercício da vida

em sociedade. Mas, a partir do século XVIII – com a expansão das sociedades modernas

industriais –, novas visões de economia, política e sociedade foram alargadas, contribuindo para

a ampliação dos horizontes da esfera pública e, consequentemente, no surgimento de novos

direitos aos cidadãos, modificando as estruturas no âmbito civil, político e social. A

intensificação desses direitos provocou – ao mesmo tempo – a contrapartida de caráter mais

conservador na tentativa de conter que novos direitos fossem legitimados (BARBALET, 1989).

A discussão dialética entre o conceito de cidadania e a organização político-

social colabora para a compreensão da estreita relação entre a cidadania pós-moderna, o

enraizamento do capitalismo e o fenômeno glocal, consolidado na cibercultura. Desde o fim da

segunda guerra, a cidadania passa por consideráveis transformações ao ter íntima ligação com

os direitos humanos. Mas, no contexto cibercultural, é ressignificada. Para abarcar todas as

modificações sofridas com o passar do tempo, é importante vislumbrar o resgate histórico do

termo, que é iniciado com sua origem na antiguidade clássica até o atual contexto pós-moderno,

observando o impacto do imaginário glocal no processo de ressignificação da prática cidadã.

3.1.1. Evolução conceitual da cidadania

Não há como precisar o aparecimento do conceito de cidadania. Historicamente,

ele está ligado a duas outras categorias: civilização e civilidade. Ambos os termos – cidadania,

civilidade e civilização – derivam do latim civis (cidadão) e civitas (cidade) que, na perspectiva

clássica, estavam relacionados aos moldes de vida urbana, onde os sujeitos poderiam gozar da

urbanização e cumprir com as responsabilidades políticas necessárias para a manutenção da

ordem da cidade.

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De acordo com a história ocidental, o termo civis começou a ser utilizado na

Antiguidade Clássica e estava associado à participação política nas polis gregas. O primeiro a

escrever sobre o papel do cidadão e os aspectos que compõem a cidadania foi Aristóteles. Para

o filósofo, todo sujeito estava destinado a viver naturalmente nas cidades-estados. Por isso, a

cidade-estado precisava ser a mais perfeita representação de uma comunidade cívica. A

manutenção da satisfação dos membros da polis dava-se por meio da política, que tinha como

objetivo colaborar para os princípios da ordem, visando o bem comum. Apesar de o homem

possuir instinto para a gregariedade – latente necessidade de estar perto de seu semelhante –,

precisava de leis que assegurassem os direitos e determinassem os deveres para se viver em

harmonia social. Ainda, para Aristóteles, como a cidade-estado era uma comunidade

naturalmente política, deveria ser governada pelo princípio da conformidade com a justiça, ou

seja, a política estava atrelada ao significado de justiça, que era entendida como lei natural,

fruto da razão (logos) reta e sem possibilidades de equívocos ou distorções, garantida por meio

das constituições (politeial) concebidas como espelho do próprio sistema que vincula todos os

cidadãos, garantindo-lhes direitos e determinadas responsabilidades sociais.

Dessa forma, os cidadãos, por constituírem o núcleo da polis, eram elementos

fundamentais para a manutenção da política. Ser cidadão era um encargo ativo no quadro das

atribuições cívico-políticas, podendo exercer as funções de juiz e contribuir na elegibilidade

dos cargos de magistratura. Segundo Aristóteles, é inevitável a dissociação entre cidadão e

virtude cívica. No entanto, ressaltava que a cidadania estava anelada às formas de constituições,

sejam puras ou corruptas. Ser cidadão na democracia difere-se de ser cidadão na oligarquia ou

tirania, tanto por causa da constituição que rege determinada sociedade, quanto pelo

regionalismo das instituições políticas. Por isso, nas primeiras páginas do livro III da Política

[...], o autor afirma que para melhor apreender os termos cidadania e cidadão faz-se necessário

responder a dois questionamentos: [1] quem é o cidadão? e [2] quem e qual pessoa pode ser

chamado de cidadão? Para a primeira pergunta, o filósofo enfatiza que “ser cidadão” significa

ser titular de um poder público não limitado, capaz de possibilitar a participação efetiva na

decisão coletiva, visando o bem comum da sociedade. Para a segunda questão, os critérios

restringem tal participação a um número específico de homens, sendo excluídos aqueles que

vivessem do próprio trabalho, como: camponeses, mulheres, escravos e estrangeiros.

A cidadania entre os gregos não possuía sentido lato, uma vez que a categoria

não abarcava todos os sujeitos moradores da polis. Por isso, para Aristóteles, a escravidão era

justificada. Os escravos eram concebidos como parte integrante do “corpo” do seu senhor e

deveriam estar sempre à sua disposição. A escravidão era prevista na constituição, pois

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possibilitava ao homem cidadão de direito livrar-se das amarras dos afazeres domésticos mais

elementares, para poder exercer com desenvoltura suas atribuições, seja na vita activa ou na

vida contemplativa. No texto aristotélico, a escravidão está ligada à impossibilidade de os

instrumentos técnicos não cumprirem suas funções por si só. “Como as tecedeiras podem tecer

sozinhas?”, pergunta o filósofo. De certo modo, ainda de maneira tímida, residia nesse discurso

o início da crença no desenvolvimento da técnica como possibilidade da libertação do homem

(escravo) das amarras que o prendia aos grilhões da necessidade social (PINSKY, 2015).

A construção jurídica do termo cidadania originou-se no Império Romano,

apesar de na Roma antiga não se falar em nacionalismo ou patriotismo, tal como se fala

hodiernamente. Compreendia-se que o combate pela pátria deveria ser um desejo inerente ao

cidadão romano. Em Roma, o termo latim civis significava a garantia dos indigenatos (nativos)

diante dos estrangeiros. Dos direitos garantidos aos civis estavam a possibilidade de construir

família, ter servos – bem como ter o direito de libertá-los –, direito ao voto para decidir sobre a

paz, sobre a guerra e sobre a criação de cargos de magistrados com a prerrogativa de também

serem eleitos nas magistraturas. Vale ressaltar que, a priori, no Império Romano, os direitos

cabiam ao gentil. Portanto, os termos gentil, gentilis e civis correspondiam a três lados da

mesma figura social que lhe conferiam, igualmente, o direito à cidadania.

A história romana é acompanhada pela evolução dos critérios de cidadania que,

com o passar do tempo, previa ser conferida a todos os habitantes do Império Romano. Aos

poucos, rompia-se com a distinção que ligava a cidadania, em sentido restrito, aos indigenatos.

Assim, quebrava-se, também, a ligação entre cidadania e os elementos de ordem natural como

sangue e solo, para ganhar significados mais amplos ligados à ordem política (BOTELHO;

SCHWARCZ, 2012, p. 9). Na medida em que a cidadania passou a fazer parte do viés político

da sociedade, também tornou-se mais fácil “perder” o título de cidadão. O grau máximo da

redução chegava a transformar o sujeito livre em escravo, submetendo-o à condenação penal

que correspondia à morte da personalidade jurídica do indivíduo.

No período que se sucedeu à queda do Império Romano, século V, houve uma

perda do significado de cidadania, tal como herdado na Antiguidade. Uma nova organização

social, baseada em ideais de fidelidade, tornou a participação política assunto secundário e

cedeu espaço para a preocupação com o plano religioso (ARENDT, 1995, p. 43). A organização

social na Idade Média mantinha-se num cenário de dependência entre nobreza, clero e

camponeses. Os camponeses estavam subordinados à nobreza que, por sua vez, era responsável

pela redenção de todos. “Ninguém pensava que este (o povo) tivesse que ser consultado,

diretamente ou por intermédio dos seus eleitos. Não tinha ele como seus representantes naturais,

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segundo o plano divino, os poderosos e os ricos?” (BLOCH, 1982, p. 450). A esse tipo de poder

aliou-se o regime judiciário que refletia uma distinção de status social diferenciada em

estamentos3. Os estamentos superiores possuíam o direito de serem julgados por alguém

semelhante. Porém, os mais pobres não possuíam esta prerrogativa. Assim, o acesso à justiça,

além de constituir-se de elemento consuetudinário4, impedia o julgamento entre “iguais” nas

camadas menos favorecidas da sociedade. Era, assim, uma sociedade de ordens diferenciadas

tanto na política quanto juridicamente. O clero e a nobreza detinham os direitos de cidadania,

o “saber e o poder”. Os servos permaneciam alheios aos privilégios dos cidadãos, não sendo

possível o acesso ao poder público, sem mediação de outro estamento, detentor de maior poder.

Submissos às ordens da justiça e sem reconhecimento do poder jurídico, não possuíam direitos

reconhecidos legalmente (BLOCH, 1982, p. 411).

O quadro começou a ser revertido no contexto do renascimento urbano e a partir

da formação dos Estados Nacionais. Fase conhecida historicamente como Baixa Idade Média,

responsável pelo ressurgir da ideia de Estado centralizado e, por consequência, da noção

clássica de cidadania ligada à concessão de direitos e deveres políticos. Iniciava-se uma nova

relação entre política, economia e sociedade, dado o dinamismo que o nascente capitalismo

provocava. Claro que houve espaço para o fortalecimento de uma burguesia mercantil que

aspirava aos mesmos direitos destinados aos estamentos privilegiados. Ainda neste período,

foram desenvolvidos tanto os princípios teóricos que instauraram o Absolutismo Monárquico,

quanto a moderna concepção de cidadania. Então, é possível afirmar que, no contexto medieval,

os direitos políticos e a cidadania estavam submetidos às necessidades materiais e espirituais

impostas pela ruralização da economia e pela cristianização da sociedade que foram, pouco a

pouco, suplantadas pela crescente urbanização.

O processo de formação dos Estados Nacionais impulsionou mudanças nos

quadros sociopolíticos, à consolidação da burguesia como classe atuante na política (ainda que

timidamente) e no campo econômico. Mesmo assim, o poder ainda estava centrado no

absolutismo monárquico. Foi somente a partir das revoluções sociais, das transformações

políticas e econômicas, das criações artísticas, do desenvolvimento das ciências, da busca pela

liberdade de pensamento e da igualdade entre os indivíduos impulsionados pelas ideias

Iluministas que se reconstruiu um novo conceito de cidadania. Esse novo conceito vinha

3 Trata-se de uma forma de estratificação social com camadas mais fechadas do que as classes sociais e mais

abertas do que as castas. Nessas sociedades, os indivíduos são obrigados, desde pequenos, a seguir um estilo de

vida predeterminado pelo governo. 4 No direito consuetudinário, as leis não precisam estar no papel para serem sancionadas ou promulgadas, porque

estão atreladas a cultura. São os costumes das sociedades que promovem as leis.

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carregado de novos significados, sofrendo influência do tripé iluminista de igualdade, liberdade

e fraternidade, mas também pelo desenvolvimento do capitalismo e pelas reformas religiosas

do século XV, que traziam uma visão atualizada de espiritualidade, entre as quais o trabalho

passava a ser reconhecido como forma de redenção pessoal. Nessa realidade, a burguesia lutava

para conquistar o poder, apesar de sua proeminência econômica e do apoio recebido do

Mercantilismo, ainda não tinha se firmado politicamente como gostaria. Como forma de tomar

de vez o centro político e econômico, os burgueses passaram a propagar a maior autonomia de

pensamento aos homens comuns, ou seja, o proletariado, surgindo assim, as ideias iluministas

liberais, produto dos avanços científicos tecnológicos que davam suporte para uma concepção

de racionalidade.

Nesse cenário, a concepção de cidadania aproximou-se daquela originalmente

pensada por gregos e romanos, contendo como princípios básicos a igualdade e a liberdade. Foi

com esse espírito renovador que Locke e Rousseau conceberam as ideias de uma democracia

liberal, baseando-se na razão e contrapondo-se ao direito divino (LOCKE, 1973; ROUSSEAU,

1980). Tais ideais serviram de substratos teóricos das Revoluções Burguesas ocorridas nos

séculos XVII e XVIII. Esses pensamentos procuravam regular as relações de poder, garantindo

aos cidadãos livres a atuação civil, econômica e política. Rousseau contestava o uso da força

como reguladora da sociedade que, segundo seu entendimento, devia reger-se pela consciência

múltipla dos direitos e deveres dos cidadãos, os quais atuariam diretamente sobre si mesmo, no

sentido de proporcionar a liberdade plena. O capitalismo, para Locke, continha caráter de

universalidade e fornecia o argumento que a burguesia necessitava para firmar-se politicamente,

ao associar o conceito de liberdade ao de propriedade material (LOCKE, 1973, p. 88). Assim,

introduzem-se inovações de pensamento que remetem à atual concepção de Direito Civil,

levantando a questão dos direitos políticos e de quem os deve possuir e exercer. Essa

problemática dos direitos era um traço que distinguia a burguesia do povo, pois, as lutas por

direitos políticos igualitários distanciavam as duas classes, à medida que a primeira sempre era

beneficiada.

As ideias iluministas eram a base do pensamento político da época e, por isso,

influenciavam tanto os movimentos de independência na América, quanto as Revoluções

Inglesa e Francesa. Se o pensamento iluminista promovia a inclusão de todos, na prática,

traduzia-se em desigualdades no campo social. Tal situação trouxe inúmeros prejuízos à

cidadania, restringindo a sua prática, como afirma Barbalet (1989).

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[...] a concessão de cidadania para além das linhas divisórias das classes

desiguais parece significar que a possibilidade prática de exercer os direitos

ou as capacidades legais que constituem o status do cidadão não está ao

alcance de todos que os possuem. (BARBALET, 1989, p. 13).

Os limites da esfera da cidadania e as diferenças de classes operavam no sentido

de diminuir os atributos políticos dos cidadãos. Esse contexto torna-se profícuo para a evolução

conceitual da cidadania, principalmente após os avanços no campo da técnica e da política.

Esses avanços provocaram impactos tão radicais na sociedade e reverberaram nos direitos e

deveres dos cidadãos, sobretudo nos séculos XIX e XX, pois transferiram para a categoria a

reflexão dos desajustes do sistema de classes provenientes das democracias modernas

consolidadas pelo sistema capitalismo. A independência dos Estados Unidos e o processo

revolucionário francês acabaram por delinear um novo tipo de Estado. O tripé iluminista,

embora tivesse origem no pensamento burguês e não se converter na prática, contribuiu para

repensar a necessidade de incluir um maior número de indivíduos no corpus político das

sociedades, sob o ponto de vista dos direitos. Os indivíduos não nascem com direitos – uma

noção reafirmada pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948 –, pois eles são

fenômenos sociais, retornando, assim, ao pensamento clássico aristotélico. Em vista disso,

segundo Hegel, só há direitos efetivos ou liberdades concretas no quadro da vida social do

Estado. Por isso, os sujeitos passaram a lutar pela inclusão de seus direitos pelo estado,

desencadeando estudos contemporâneos como os de Marshall e Barbalet, cujo enfoque estaria

centrado nas desigualdades de classe (MARSHALL, 1967; BARBALET, 1989).

A luta pela garantia dos direitos passa a ser característica da prática da cidadania.

Assim, pode-se entender que o cidadão deve atuar em benefício da sociedade e cabe ao estado

legitimar os direitos básicos à vida, como moradia, alimentação, educação, saúde, trabalho,

entre outros. E, com isso, a cidadania passa a ter o significado ligado diretamente à política.

Marshall (1967) afirma que durante todo o século XIX, a cidadania estava relacionada às

questões das diferenças de classes. De acordo com o autor, a diferenciação seria inerente à

própria relação entre os direitos e a camada que os teria fomentado. Nesse sentido, a cidadania

apareceria dividida em categorias distintas, com o intuito de demonstrar o desenvolvimento

desigual de cada uma delas e a quais setores pertenceria (MARSHALL, 1967, p. 63-66). Assim

surge a cidadania civil, que marca a superação do problema instaurado no período medieval, ao

garantir direitos à liberdade e à justiça, proporcionando a ampliação da cidadania política.

Esses, segundo Marshall, aparecem com a diferenciação classista, sobretudo, depois da

efervescência dos conflitos sociais ocasionados pela cobrança do poder público em ações

efetivas para diminuir as diferenças. Logo, pretende-se “(...) suavizar o mal que as

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desigualdades econômicas causam aos indivíduos, colocada uma rede de proteção de política

social por baixo dos desfavorecidos” (BARBALET, 1989, p. 76).

A nova consciência sobre as diferenças de classes acentua os debates sobre a

exclusão social, os direitos humanos e a atuação política da sociedade civil. No entanto, no atual

estágio do capitalismo, é imprescindível considerar as transformações causadas pelas duas

grandes guerras mundiais. O clima de tensão vivenciado durante o período de guerra permitiu

práticas institucionalizadas de violência, o que desencadeou reivindicações por parte da

sociedade civil. Mas foi somente após a segunda guerra que se iniciou uma nova relação entre

os diretos sociais e o poder público, favorecendo a atualização do conceito de cidadania. Em

dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos

Direitos do Homem, mesmo com a resistência de alguns países. Pela primeira vez na história,

houve a conscientização mundial em relação aos crimes cometidos contra populações inteiras,

minorias nacionais, étnicas, religiosas. A soberania nacional, desde o século XVIII e até à

última guerra, era considerada privilégio absoluto de cada Estado, autorizando os governos,

dentro de seus territórios, a, não raras vezes, negligenciar a vida de seus cidadãos, sobretudo,

daqueles que faziam parte de minorias.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém a enumeração dos

direitos humanos fundamentais, os quais se tornam regras para os países por meio do “Pacto

sobre os Direitos Civis e Políticos”. Na sequência da Declaração Universal e da ratificação dos

dois Pactos, várias convenções regionais foram subscritas, designadamente a Convenção

Europeia dos Direitos Humanos, assinada, em Roma, no dia 04 de novembro de 1950. Dessa

conscientização mundial foi possível a legitimação e a defesa pela garantia dos direitos do

homem, resultando num enorme progresso do conceito de cidadania ao integrar no conjunto

dos direitos (além dos direitos civis, políticos e sociais) os direitos econômicos e culturais.

No entanto, mesmo com as garantias constitucionais e os acordos firmados entre

as Nações Unidas não foram suficientes para a promoção das condições necessárias ao exercício

de uma cidadania plena, com liberdade e igualdade de direitos humanos. Ainda nos dias de

hoje, no contexto pós-moderno e com o advento da cibercultura, os problemas são recorrentes

tanto nas violações dos direitos humanos, como nas ineficiências no campo social e no processo

de pauperização manifestado na periferia do capitalismo. Isso só reforça o quanto a cidadania

é mais do que o ato de votar ou de pertencer a uma sociedade política. Cabe, portanto, à

sociedade civil, que o caráter representativo substitua as pressões ou mesmo a atuação legítima

dos cidadãos. Nisso consiste a essência do papel do cidadão atual.

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3.1.2. A cidadania no Brasil

O fenômeno da cidadania é complexo e historicamente indefinido. De acordo

com Marshall (1967), o conceito de cidadania se desenvolveu na Inglaterra de maneira lenta.

Primeiro, os direitos civis foram instituídos por volta do século XVII. No século XIX, surgiram

os direitos políticos e, somente, no século XX, os direitos sociais foram conquistados. Segundo

o autor, esse desenvolvimento não é apenas cronológico, mas também lógico. Foi com base no

exercício dos direitos civis que os ingleses reivindicaram o direito de participar da vida política,

por meio do voto. A participação permitiu a criação do Partido Trabalhista, responsável pela

introdução dos direitos sociais no país. No entanto, o autor ressalta que uma das exceções na

sequência da aquisição dos direitos está, também, diretamente ligada à introdução da educação

popular, definida como direito social. Mas tem sido historicamente, um pré-requisito para

expansão dos outros direitos. Em alguns países, como a Inglaterra, um dos principais motivos

que levaram a cidadania se desenvolver com rapidez foi a implementação do ensino voltado

para a população de baixa renda. Por meio da educação, o maior número de pessoas tomou

conhecimento de seus direitos e se organizaram para lutar por eles. Por isso, países que possuem

deficiência no ensino das classes populares têm dificuldades em consolidar a cidadania civil e

política.

O ideal de cidadania pode ser semelhante em toda a cultura ocidental. Porém, o

caminho para se chegar nela é distinto. O percurso inglês foi diferente do Francês, do Alemão

e do norte americano. Nesse processo houve evoluções, retrocessos e singularidades. Cada país

seguiu o seu caminho. O Brasil não é exceção. O que aconteceu em outros países foi uma

evolução totalmente diferente do que ocorreu no Brasil. No Brasil, o direito social sempre teve

maior destaque em relação aos outros direitos. No entanto, Carvalho (2013) ressalta que, na

Inglaterra, havia lógica na cronologia do desenvolvimento da cidadania. A alteração nessa

lógica implica alteração no modo como a cidadania vai ser exercida no país.

No período da colonização, o Brasil já era um país territorialmente grande,

possuía rica variação linguística, cultural e religiosa. No entanto, a maioria da população não

sabia ler, vivia sob o modo econômico de monocultura estimulado pelo trabalho escravo e pela

prática de uma política de absolutista. Nesse cenário, a escravidão, é sem dúvida, o fator mais

negativo para a consolidação da cidadania. A escravidão dos índios foi praticada logo no início

do período colonial, mas foi proibida por lei. Rapidamente, a maioria das tribos indígenas foram

dizimadas. De acordo com Carvalho (2013), na época da descoberta havia cerca de quatro

milhões de índios. Em 1823, restavam apenas um milhão. As tribos que conseguiram escapar

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ou se miscigenaram ou foram afastados para o interior do país.

Sem a mão de obra indígena, os escravos começaram a ser importados. Essa

prática iniciou na segunda metade do século XVI e estendeu-se, initerruptamente, até 1850,

vinte oito anos após a proclamação da independência. Nessa época, após a independência, o

Brasil tinha em média cinco milhões de habitantes, sendo um milhão só de escravos. Embora

estivessem concentrados nas áreas de agricultura exportadora e de mineração, os escravos

também trabalhavam na área urbana. Praticamente, toda pessoa que possuísse recursos

financeiros adquiria escravo. A escravidão era tão forte no Brasil que os próprios escravos

alforriados, quando conseguiam certa estabilidade financeira, adquiriam novos escravos

(CARVALHO, 2013). O fortalecimento da escravidão, bem como, o modelo econômico

vigente não contribuía para construção de um ambiente favorável à formação da cidadania.

Os escravos não eram considerados cidadãos, não tinham nenhum direito. Nem

mesmo direito sobre o seu próprio corpo. Eram vítimas de violência (espancamentos, estupros,

torturas) sob a condição de ser legalmente propriedade dos seus senhores. Entre escravos e

senhores existia uma sociedade legalmente livre, mas que sofria pela falta de condição para o

exercício da cidadania. A população em geral dependia dos grandes proprietários para morar,

trabalhar e defender-se contra arbitrariedades do governo ou de outros proprietários. A

educação era elitizada, as mulheres viviam sob a custódia dos homens da família (pai, irmão ou

marido). Vale ressaltar que até mesmo os proprietários de terras ou comerciantes bem

sucedidos, apesar de livres e terem o direito de votar e de serem votados nas eleições

municipais, não conseguiam gozar plenamente dos seus direitos de cidadão, pois faltava o

exercício da igualdade perante a lei. O poder do governo, as leis de Estado, não conseguia

atender a todos, permitindo que cada sujeito a executasse a sua maneira.

A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais

afastados das cidades, ou porque sofria oposição da justiça privada dos

grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades

executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados.

Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e

recursos fora do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou

recorria à proteção dos grandes proprietários, ou ficava à mercê do arbitro dos

mais fortes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos

senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos escravos só

restava o recurso da fuga e da formação dos quilombos. (CARVALHO, 2013,

p 30.).

Outro aspecto que dificultava a prática da cidadania durante o governo português

era o descaso com a educação. De início estava ligada aos ensinamentos catequéticos dos

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jesuítas. Mas após a expulsão da ordem, por volta de 1759, o governo tomou para a si a

responsabilidade. No entanto, em nada avançou o ensino brasileiro durante esse período. Em

1872, meio século depois da independência, apenas 16% da população era alfabetizada. No que

toca ao ensino superior, o cenário não era diferente. Portugal não possuía tradição em

investimento na criação de universidades nas suas colônias. Então, somente brasileiros com

bons recursos financeiros tinham condições de viajar para estudar nas tradicionais escolas

superiores da Europa, sobretudo, nas escolas portuguesas (CARVALHO, 2013).

Ainda de acordo com Carvalho, mesmo após a proclamação da república, o

Brasil não se transformou em república. Não havia sociedade política, “não havia “repúblicos”,

isto é, não havia cidadãos” (CARVALHO, 2013, p. 35.). Isso porque os direitos civis e políticos

se restringiam a poucos. Assim, sem a experiência do exercício político e civil, a sociedade

também não tinha clareza do que seriam os direitos sociais. Por esse motivo, as manifestações

cívicas eram tão raras. No Brasil colonial, a manifestação mais significativa foi protagonizada

pelos escravos. Porém, sempre abafadas pelo governo e silenciadas com o massacre de muitos

negros. No século XVIII houve quatro revoltas de caráter político. Três delas lideradas por

elementos da elite a favor da independência. Duas aconteceram na região de Minas Gerais,

berço do movimento, inspirado nos ideais iluministas, denominado de Inconfidência Mineira

em 1789. Esse foi, sem dúvida, o movimento mais politizado da época. Outro movimento

bastante significativo, influenciado pela Revolução Francesa, foi a Revolta dos Alfaiates em

1798, que teve adesão da classe popular como militares de baixa patente, artesãos e escravos

com objetivo de lutar pela extinção do sistema escravagista. A luta em nada se parecia com os

antigos movimentos organizados pelos próprios escravos. Principalmente, porque antes os

negros se organizavam em suas senzalas e, quase sempre, articulavam fugas para os quilombos

distantes. A Revolta dos Alfaiates também almejava a extinção da escravidão, mas por meio do

reconhecimento dos negros escravos como cidadãos brasileiros. Esse movimento, bem como,

qualquer outro em prol da cidadania durante esse período no Brasil, foi reprimido.

Vale destacar que a Revolta dos Alfaiates teve muito mais cunho social do que

político, por isso, a sua relevância para a história. Mesmo não alcançando os objetivos de

imediato, deu o primeiro passo no caminho pela luta dos direitos sociais, influenciando o

surgimento de outra revolta, a de Pernambuco5, em 1817. Ao contrário da Revolta dos Alfaiates,

a de Pernambuco era composta por membros da alta patente militar, comerciantes, senhores de

engenho e religiosos com a intenção de proclamar uma república independente do resto do país,

5 A Revolta de Pernambuco originou-se de uma prolongada luta contra os holandeses no século XVII, o que acabou

contribuindo para o fortalecimento dos ideais iluministas no imaginário social.

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formada pelas capitanias de Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Durante dois meses,

os lideres do movimento conseguiram controlar o governo. Mas, não demorou em serem

punidos com fuzilamento. No entanto, a revolta serviu para demonstrar que a população

começava a ter consciência dos direitos sociais e políticos. A república passou a ser entendida

como governo do povo livre, se opondo ao absolutismo monárquico português. A sociedade,

por sua vez, começou acreditar que o significado de liberdade estava ligado ao rompimento

com Portugal, o que acabou gerando um problema: ao invés de disseminar o discurso sobre os

benefícios que a ruptura traria para o fortalecimento da cidadania brasileira, foi disseminado

um discurso patriótico vazio e exagerado que em nada contribuía para a conscientização da

população sobre o sentido de ser cidadão.

Como abordado anteriormente, pode-se perceber que a independência não foi

um fator impulsionador para consolidação da cidadania. Principalmente, porque a herança

colonial deixou marcas na sociedade. Uma dessas marcas pode-se perceber no próprio modo

com que o movimento da independência ocorreu. Ela não foi fruto de movimentos populares e,

nem tão pouco, de guerras civis, como na América espanhola. A revolta que mais se aproximou

de uma luta popular foi a Revolta de Pernambuco, de 1817, e, de certa forma, a Inconfidência

Mineira, em 1789. Porém, ambas lutavam pela libertação de suas regiões em particular, afinal

não havia ainda uma identidade nacional construída. E, por estar restrita a uma pequena parte

do país foi rapidamente derrotada. Diante desse cenário, Carvalho (2013) afirma que a

“característica política da independência brasileira se deu por meio da negociação entre a elite

nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora o príncipe D. Pedro”

(CARVALHO, 2013) e o negociador José Bonifácio que fazia parte da alta burocracia local e

viveu durante algum tempo em Portugal.

Sabe-se que a maioria da população aceitou a independência negociada. A

sociedade carioca e de outras capitais apoiaram com entusiasmo o movimento, inclusive

enfrentaram as tropas portuguesas, fazendo acender um radicalismo popular manifestado no

ódio aos portugueses que ainda ocupavam posições de poder ou controlavam o comércio nas

cidades costeiras. No entanto, quem diretamente se envolveu com a causa foi a elite brasileira,

procurando, até o fim, uma solução que não implicasse a ruptura total com o governo português,

porém, não foi possível. Por intermédio da Inglaterra, Portugal aceitou a independência após o

pagamento de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, além de manter no Brasil

a monarquia e a casa de Bragança. Fato apoiado pela elite, pois existia a convicção de somente

a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união entre as províncias.

Como se pode perceber, o papel do povo na independência do Brasil não foi de

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mero espectador, mas também não foi decisivo, se comparado com a América do Norte. Porém,

mesmo assim, não é possível afirmar que o fato se deu à revelia da população, apesar de não

ocorrer impulsionado pela luta popular em prol da liberdade. Contudo, o movimento pró-

independência acendeu na sociedade o sentimento de pertencimento à pátria. O que reverberou

na decisão de pressionar, em 1831, o imperador renunciar o posto. Nessa época houve grande

agitação nas ruas do Rio de Janeiro exigindo a reposição do ministério deposto. Implantou-se

um governo ao estilo das monarquias constitucionais e representativas europeias. Mas não se

tocou no grande problema que era a escravidão. Vale ressaltar que, após da independência, a

inspiração política brasileira caminhava em duas direções opostas: a primeira na direção norte

americana, com o modelo republicano; a segunda, no modelo europeu, com a monarquia.

Com a presença mediadora da Inglaterra, o modelo de monarquia constitucional

venceu, principalmente, após o discurso dos ideais do liberalismo francês pós-revolucionário

serem disseminados entre a elite brasileira. O constitucionalismo exigia a presença de um

governo representativo, baseado no voto dos cidadãos e na separação dos poderes políticos.

Outorgada em 1824 e influenciada pelo modelo francês e espanhol, a primeira constituição

regeu o Brasil até o fim da monarquia e estabeleceu os três poderes tradicionais: o Executivo,

o Legislativo – dividido em Senado e Câmara – e o Judiciário. Ainda com o resíduo do

absolutismo, tinha o quarto poder denominado de Moderador. Esse era exercido pelo

imperador, cuja principal função limitava-se a livre nomeação dos ministros de Estado,

independente da opinião do Legislativo.

A constituição de 1824 regulou os direitos políticos, definindo quem teria direito

de votar e de ser votado, o que para os padrões da época era bastante liberal. Assim, podiam

votar todos os homens maiores de vinte cinco anos com renda mínima de cem mil réis, o que

não era um problema, pois, a maioria da população ganhava mais de cem mil réis por ano. As

mulheres não votavam e os escravos nem era considerados cidadãos. De acordo com Carvalho

(2013), o limite de idade caia para 21 anos, caso os homens fossem casados, ou oficiais

militares, bacharéis ou ainda servidores públicos. As eleições eram indiretas e divididas em dois

turnos. Houve eleição ininterrupta no Brasil de 1822 até 1830, com algumas exceções, como

por exemplo, durante a Guerra no Paraguai (de 1865 a 1870) quando foram suspensas as

eleições na província do Rio Grande do Sul. Mesmo com o exercício do voto, os brasileiros

tornados cidadãos pela Constituição de 1824 eram analfabetos e, totalmente, desinformados

sobre o que seria o exercício da cidadania. Inclusive, na ação do voto, muitos nem sabiam a

função dos cargos e as pessoas que escolhiam. Muitos dos eleitores votavam por serem

pressionados pelos patrões. Eram poucos que sabiam como se dava o funcionamento das

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instituições. Tanto que o patriotismo não tinha o significado de pertencimento a uma pátria

comum e soberana, restringindo-se apenas ao ódio de Portugal.

Em 1881, a Câmara dos Deputados aprovou lei para introduzir o voto direto que

trouxe mudanças que, para Carvalho (2013), geraram retrocesso, tais como: alteração da

exigência do valor de renda do eleitor para duzentos mil réis, proibição do voto dos analfabetos

e transformação do voto para o caráter facultativo. Essas mudanças tinham como objetivo de

coibir a corrupção durante as eleições. Mas nada adiantou. Apenas limitou votos e o restringiu

aos com poder aquisitivo alto.

As consequências logo se refletiram nas estatísticas eleitorais. Em 1872, havia

mais de 1 milhão de votantes, correspondendo a 13% da população livre. Em

1886, votaram um pouco mais de 100 mil eleitores, 0,8% da população total.

Houve um corte de quase 90% do eleitorado. O dado é alarmante, sobretudo

se lembrarmos que a tendência de todos os países europeus da época era na

direção de ampliar os direitos políticos. A Inglaterra, sempre olhada como

exemplo pelas elites brasileiras, fizera reformas importantes em 1832, em

1867 e em 1884, expandido o eleitorado de 3% para cerca de 15%. Com a lei

de 1881, o Brasil caminhou para trás, perdendo a vantagem que adquira com

a Constituição de 1824 (CARVALHO, 2013, p. 45).

A restrição dos votos durou até depois da República ser proclamada, em 1889.

A constituição republicana de 1891 eliminou apenas a exigência da renda de duzentos mil réis,

porém, manteve a exclusão dos analfabetos. Problema que envolvia a grande maioria da

população. Na primeira eleição para Presidente da Republica, em 1894, votaram apenas 2,2%

da população. Somente em 1830, o voto tornou-se universal, incluindo o feminino, aumentou

para 5,6% o total de eleitores. Por isso, do ponto de vista da representação política, a Primeira

República (1889-1930) não trouxe significativas mudanças. Na verdade, só demonstrou o

quanto as marcas deixadas pelo período colonial não permitiram com que a população se

reconhecesse como cidadãos brasileiros, fazendo vir à tona alguns equívocos: [1] achar que a

sociedade após sair da dominação colonial pudesse aprender a exercer sua cidadania. O Brasil

não passara por nenhuma revolução plenamente popular e, logo, o aprendizado democrático

precisava ser lento e gradual; [2] processo eleitoral excludente e sem organização, o que

favorecia práticas fraudulentas; e [3] desconhecer que a eleição em países modelos, como a

Inglaterra, era corrupta como no Brasil. Mesmo após a reforma inglesa, permaneceu a liderança

dos mesmos políticos e famílias no poder. Porém, a grande diferença, é que a população possuía

um pouco mais de esclarecimento político e começaram a fazer pressão pela democratização

do voto e, por último, [4] imaginar que o aprendizado do exercício dos direitos políticos não

viesse por meio da educação, área que os governantes faziam questão de não investir. A

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ausência de uma educação sistemática, originada nas escolas, era o fator principal para que a

maioria dos sujeitos fossem analfabetos e, assim, sem direito a votar. Além disso, os poucos

que dominavam a leitura e a escrita e, portanto, votavam, também não davam nenhum valor ao

voto e, quase sempre, o usavam como mercadoria e o vendiam cada vez mais caro

(CARVALHO, 2013, p. 78).

Como é possível perceber, os direitos políticos se sobrepuseram aos demais

direitos, como é o caso do direito social e civil. Durante todo o período colonial e,

posteriormente, com a República, a escravidão continuou sendo um problema sem solução até

1888, quando foi assinada a Lei Aurea. O Brasil foi o último país, de tradição cristã ocidental,

a conceder liberdade aos escravos, porque os valores da escravidão eram aceitos por toda a

sociedade a ponto dos escravos livres, apesar de lutarem pela sua própria libertação, quando a

conquistavam, admitiam escravizar seus iguais. Isso demonstra que os valores da liberdade

individual, base dos direitos civis caro à sociedade europeia e pauta de luta na América do

Norte, mostravam-se irrelevantes no Brasil. Tanto que após a Abolição, não havia estrutura para

garantir o bem estar dos libertos. Não havia escola, não havia terra e nem emprego. Passada a

euforia da libertação, muitos regressaram às antigas fazendas para retomar seu trabalho em

troca de algum benefício, moradia ou um pouco de dinheiro que ajudasse a se manter. Outros

migraram para as capitais e ajudaram a engrossar o número de pessoas sem emprego fixo. A

ausência de políticas inclusivas desses sujeitos que viveram privados de sua liberdade e à

margem da sociedade por tanto tempo, reverberam consequências duradouras para a população

negra. Até hoje, essa população ocupa posição inferior em grande parte dos indicadores de

qualidade de vida. (CARVALHO, 2013, p. 79).

A propriedade rural foi outro obstáculo que prejudicou a expansão da cidadania.

Incialmente estava ligada ao sistema escravocrata. Porém, conseguiu sobreviver muitos anos

após a abolição. Tanto que até os anos 20, o Brasil era um país predominantemente agrícola.

Segundo o censo de 1920, 70% da população se ocupava com atividades agrícolas estimuladas

pela ampla exportação de produtos primários. Destaque para economia do ouro dominante até

parte do século XVIII e, depois da Independência, três produtos ocuparam o centro econômico:

açúcar, algodão e café, contribuindo para o fortalecimento do coronelismo. O coronelismo era

um entrave no livre exercício dos direitos políticos, porque nem reconhecia os direitos civis de

seus trabalhadores, privando-os do direito de ir e vir, da inviolabilidade do lar, do direito de

propriedade e do direito de manifestação. Uma vez que nas fazendas, e fora delas, imperava a

lei criada e executada pelos coronéis, cabendo ao trabalhador somente se submeter. O Estado

não podia interferir nessa relação injusta, uma vez que os próprios governantes eram coronéis

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ou se beneficiavam da ajuda dos mesmos. (CARVALHO, 2013, p. 81).

No entanto, como abordado anteriormente, na década de 20, menos da metade

da população moravam nos centros urbanos, pois trabalhavam nas indústrias que estavam em

expansão, sobretudo, nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. As duas cidades eram distintas

na forma como cresciam e na maneira como a cidadania se consolidava. Havia na classe

operária do Rio de Janeiro, um grande número de negros. Além disso, por ser a capital do país,

também concentrava maior diversidade de campos de trabalho. Funcionários e operários

possuíam certa organização e diálogo com os patrões. Em São Paulo, com número significativo

de imigrantes, o peso do anarquismo influenciou na organização do movimento operário, o qual

culminou com a greve geral de 1917 como forma de enfrentar a repressão comandada por

patrões e governistas, estimulando a organização de movimentos parecidos em todo país

realizados ao longo dos anos. Do ponto de vista da cidadania, esses movimentos contribuíram

para avanços inegáveis dos direitos civis. A classe operária lutava pelos direitos básicos de se

manifestar, de fazer greve e ter uma legislação trabalhista que regulasse horário de trabalho, de

férias e, também, os direitos sociais, como direito a aposentadoria.

Em 1930, houve significativo avanço no país com aceleração das mudanças

sociais e políticas. As primeiras medidas do governo foi criar o Ministério do Trabalho,

Indústria e Comércio. Em seguida, foi implementada a legislação trabalhista e previdenciária,

concluída em 1943 com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A partir disso, a legislação

não parou de ser ampliada. Mas mesmo assim, os direitos políticos desenvolveram-se de

maneira mais lenta, uma vez que não demorou muito para o Brasil começar a alternar períodos

de ditadura com regimes democráticos. O período entre 1930 e 1945 foi dedicado aos direitos

sociais, sobretudo, no governo populista de Vargas, no qual foram construídas casas populares

e oferta de alimentação com valores mais acessíveis. Vale ressaltar que os direitos sociais se

sobressaíram aos direitos políticos e civis porque causavam maior impacto na sociedade,

propiciavam a visibilidade dos governantes e construíam relação de dependência entre a

população e o político. O que resultava mais numa cidadania receptora e passiva, do que ativa

e reivindicadora. (CARVALHO, 2013).

Após 1945, o ambiente se tornou favorável à democracia representativa,

refletindo na Constituição de 1946 que expandiu o voto direto, secreto e obrigatório a todos os

cidadãos alfabetizados a partir de 18 anos, incluindo as mulheres. Os analfabetos proibidos de

participar do pleito somavam mais de 50% da população concentrados, majoritariamente, na

zona rural. A constituição também previa ao Tribunal Superior Eleitoral e aos tribunais

regionais a organização de todo processo eleitoral, favorecendo aos cidadãos maior participação

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da vida política, seja afiliando-se aos partidos e sindicatos ou contribuindo diretamente por

meio do voto. Se até esse período, os avanços foram lentos, após 1964, com o Golpe Militar, a

população brasileira amargou retrocessos no campo dos direitos civis e políticos.

(CARVALHO, 2013).

Com os instrumentos legais de repressão, introduzido em 1964, por Castelo

Branco, houve a cassação dos direitos políticos de lideres sindicais, políticos e intelectuais, por

um prazo de dez anos. Além disso, houve a aposentadoria forçada de funcionários públicos

civis e militares que se mostrassem avesso à proposta do governo. Após o Ato Institucional nº2,

em 1966, foram abolidas as eleições diretas para Presidência da República e alguns partidos

políticos dissolvidos. Os poderes do presidente aumentaram, dando-lhe autoridade de intervir

diretamente nos estados, fechar o parlamento e decretar estado de sítio. O direito de

manifestação, de opinião, foi pesadamente restringido e os juízes militares passaram a julgar

causas civis relativas à segurança nacional.

Em 1968, operários e estudantes voltaram a se mobilizar contra o governo que

respondeu com mais rigor, implementando o Ato Institucional nº 5. Conhecido como o mais

radical, o AI-5 atingiu diretamente os direitos políticos, civis e sociais, sobretudo, na gestão de

Garrastazu Médice. Durante esse período, foi promulgada nova Constituição incorporando os

dois atos institucionais e aumentando as medidas repressivas. Houve introdução de nova lei de

segurança nacional incluindo a pena de morte por fuzilamento, sendo que a pena de morte tinha

sido abolida do país ainda durante a época do Império. Em 1970, começou a vigorar a censura

em jornais, livros e outros meios de comunicação. Frequentemente, o governo mandava

instruções sobre os assuntos que não podiam ser comentados e pessoas que não poderiam ser

mencionadas. Sem falta de alternativa para oposição legal, grupos de pessoas começaram a agir

na clandestinidade e adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. O governo respondia

com prisões, tortura sistemática e morte. Não havia respeito pela inviolabilidade do lar, pela

integridade física e, consequentemente, pela vida.

Nessa época, o aumento da desigualdade não era evidente. Uma vez que a

urbanização significava progresso para sociedade. Então, a expansão econômica veio

acompanhada de grandes transformações na demografia e na composição da oferta de emprego.

“A população passou de 22,7 milhões, durante os amos 60, para 42, 3 milhões em 1980”,

segundo Carvalho (2013).

Os efeitos catastróficos desse crescimento para a vida das grandes cidades só

apareceriam mais tarde. Na época, a urbanização significava para muita gente

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o progresso, na medida em que as condições de vida nas cidades permitiam

maior acesso aos confortos da tecnologia, sobretudo a televisão e outros

eletrodomésticos. A mudança na estrutura de emprego acompanhou a

urbalização. Houve enorme crescimento da população empregada, que os

economistas chamam de economicamente ativa [...]. Particularmente

dramático foi o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho.

Enquanto o número de homens aumentou 67%, o número de mulheres cresceu

184%. (CARVALHO, 2013, p. 68).

Diante desse cenário, pequenas significativas mudanças ocorreram no âmbito

dos direitos sociais, tais como: [1] a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)

que garantia o benefício da aposentadoria, da pensão, assistência médica; [2] criação do Fundo

de Assistência Rural (Funrural) responsável em incluir os trabalhadores rurais na previdência;

e [3] criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que garantia ao recém

desempregado apoio financeiro por alguns meses, tendo em vista o retorno do mesmo ao

mercado de trabalho. Então, sob o ponto de vista da cidadania, os governos militares

restringiram os direitos civis e políticos com as ações repressivas e ampliaram os direitos

sociais, como estratégia de se manter no poder, mascarando as dificuldades econômicas e

políticas, além de silenciar o problema da violência consolidada pela máquina opressora de

liberdade de expressão.

No auge da repressão, algumas instituições tiveram papel importante, com

destaque para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que se dedicava a

assuntos relacionados à pesquisa científica da área de ciências humanas e exatas e para a Ordem

dos advogados do Brasil (OAB). A OAB promoveu a V Conferência Anual da Ordem, em 1974,

dedicada, exclusivamente, aos direitos humanos. Isso fez com que a Ordem dos advogados

tornasse-se referência na defesa da legalidade constitucional e civil. Por isso, passou a sofrer

represália frequentemente. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, uma vez ao

ano, promovia reuniões abertas para a população em geral. Por isso, passou a ser vista como

uma organização anarquista, fazendo com que governo cortasse o apoio financeiro dado para o

evento. Mesmo à revelia do Estado, a reunião de 1977 aconteceu na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo (PUC-SP), em clima emocional de confronto político, reunindo mais de

seis mil pessoas. Nesse momento, se percebeu que o grupo acadêmico tinha força ímpar para

fazer resistência. (CARVALHO, 2013, p. 76). As Sementes plantadas naquela reunião foram

fundamentais para a sociedade enxergar o desgaste desse modelo de governo. A partir de então,

outras classes de trabalhadores começaram articular movimentos em defesa da

redemocratização do país.

Em 1978, o Congresso votou a favor da extinção do AI-5, proporcionando

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abertura política, dando fim a censura prévia da imprensa, reestabelecendo o habeas corpus

para crimes políticos e permitindo o regresso de 120 exilados. O que acabou favorecendo, em

1979, a assinatura da controversa Lei da Anistia. Controversa porque a lei beneficiava tanto os

acusados de terem cometido crimes contra a segurança nacional, quanto os agentes de segurança

acusados de prender, torturar e, muitas vezes, matar os acusados. Além disso, a mesma lei

também devolveu direitos políticos aos que tinham perdido e, assim, ajudou a renovar a luta

política em prol da democracia. No mesmo ano, aboliu-se o bipartidarismo, favorecendo a

organização de seis novos partidos, com destaque para os mais conhecidos como: o Partido do

Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). O

Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu em 1980, após reunião aberta em que participaram

centenas de militantes, principalmente, os metalúrgicos paulistas. O partido ascendeu com o

apoio dos trabalhadores, dos sindicatos, da vertente da igreja católica mais progressista, que

mantinha uma luta significativa em prol dos trabalhadores do campo, e de alguns intelectuais e

artistas. (CARVALHO, 2013, p. 76).

Sob o ponto de vista da população, os anos obscuros foram importantes para

compreender o verdadeiro significado de ser cidadão brasileiro. Foi preciso três séculos para

que a cidadania fosse, de fato, um desejo da sociedade. Em 1984, aconteceu o auge da

mobilização popular pedindo as eleições diretas. Essa manifestação foi, sem dúvida, a maior

que houve no país, sobretudo, porque havia um desejo comum. Estavam todos do mesmo lado

da utopia da democracia que garantia, entre outras coisas, o direito da população ser livre.

Inicialmente, as eleições estavam previstas para janeiro de 1985 e ocorreriam no colégio

eleitoral composto por senadores, deputados federais e representantes das assembleias

estaduais. A oposição, além de indicar um candidato que concorresse o pleito, ainda organizou

campanha pela eleição direta à presidência, com objetivo de forçar o Congresso a aprovar

emenda à constituição que permitisse o voto direto. (CARVALHO, 2013, p. 77).

Os comícios se transformaram em shows cívicos e eram amplamente cobertos

pelas emissoras de televisão. Mesmo com a pressão das ruas, e de certo modo da imprensa, o

Congresso não aprovou a emenda constitucional. A eleição ocorreu indiretamente e, como já

se esperava, Tancredo Neves ganhou com 480 votos, dando um ponto final no governo dos

militares. Tancredo morreu em 1985, mas a retomada da supremacia civil continuou de maneira

ordenada e sem retrocessos. Em 1988, a Assembleia Constituinte redigiu e aprovou a

constituição liberal e democrática, denominada de constituição cidadã. No ano de 1989, houve

a primeira eleição para a presidência da República desde 1960, por meio do voto direto,

possibilitando a ampliação dos direitos políticos.

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A constituição também foi liberal no critério de idade. A idade anterior era de

18 anos e foi reduzida para 16 anos que passou a ser compreendida como idade mínima para

aquisição da capacidade civil relativa. Outra mudança significativa aconteceu no Tribunal

Superior Eleitoral que aceitou inscrição de mais partidos políticos, ampliando a possibilidade

de diálogo democrático. Deixando para trás o modelo do regime militar em que só haviam dois

partidos. A eleição direta aconteceu em 1989 e elegeu Fernando Collor de Melo, o representante

da elite tradicional brasileira, que não se sustentou muito tempo no poder. A união de vários

fatores – Partido da Reconstrução Nacional (PRN) foi criado somente para apoiar a candidatura,

não possuindo nenhuma representatividade na Câmara dos Deputados; personalidade arrogante

e narcísica; medidas radicais e irregulares para combater a inflação e os esquemas ambiciosos

de corrupção – levou o Congresso Nacional abrir processo de impedimento que resultou no

afastamento do presidente, apoiada pela forte mobilização popular que tomou conta do país

(CARVALHO, 2013, p. 55).

Na história do Brasil e da América Latina, a regra para afastar presidentes

indesejados tem sido revelações e golpes de Estado. No sistema

presidencialista que nos serviu de modelo, o dos Estados Unidos, o método

foi muitas vezes o assassinato. Com exceção do Panamá, nenhum outro país

presidencialista da América tinha levado antes até o fim um processo de

impedimento. O fato de ele ter sido completado dentro da lei foi um avanço

na prática democrática. Deu aos cidadãos a sensação inédita de que podiam

exercer algum controle sobre os governantes. (CARVALHO, 2013, p. 56).

Além do fortalecimento dos direitos políticos, a constituição de 1988 também

ampliou os direitos sociais, vinculando o aumento do salário mínimo como parâmetro para o

pagamento das aposentadorias, das pensões e dos benefícios a todos os deficientes físicos e

maiores de 65 anos, independente de terem ou não contribuído para previdência. Introduziu a

licença paternidade de cinco dias por ocasião do nascimento do filho, criou indicadores básicos

para mensurar a qualidade de vida da população, tendo em vista controle da mortalidade

infantil. Na área educacional, houve progresso ao firmar compromisso com o aumento das taxas

de escolarização, com o objetivo de diminuir o analfabetismo no país, reconhecido como

principal empecilho para o exercício da cidadania. Tanto que em 1990, no governo Collor, foi

sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê a proteção integral às crianças e

adolescentes brasileiras, além de estabelecer os direitos e deveres do Estado e dos cidadãos

responsáveis pelos mesmos. Já em 1996, houve a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Brasileira (LDB, Lei 9394/96) fundamentada nos princípios do direito universal da

educação para todos.

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No campo dos direitos civis, a Constituição inovou ao criar “o direito de "habeas

data”, em virtude do qual qualquer pessoa pode exigir do governo acesso à informação

existente sobre ela nos registros públicos, mesmo em caráter confidencial.” Definiu o racismo

como crime inafiançável, ordenou ao Estado a proteção do consumidor, por meio do dispositivo

regulamentado em 1990, o Código de Defesa do Consumidor. (CARVALHO, 2013). Outras

inovações legais e institucionais só foram possíveis pós-Constituição, como a criação dos

Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais que possuem o objetivo de tornar a

justiça mais acessível a população, simplificando e agilizando a resolução de problemas de

causas cíveis de menor complexidade e infrações menores.

No entanto, mesmo com os avanços trazidos pela Constituição democrática, o

Brasil ainda amargou muitas dificuldades no campo da cidadania. Sobretudo, com expansão da

urbanização nas capitais, outros problemas surgiram. O maior deles foi a violência, agravada

pela precariedade dos órgãos de segurança pública. De acordo com a Constituição de 88, o

controle da segurança passou a ser responsabilidade dos estados. Isso ocorreu para tirar das

mãos do Exército o poder sobre a polícia militar, porém, se tornou ineficiente na prática. De

qualquer forma, as polícias possuem treinamento seguindo os métodos militares que preparam

para combater e destruir os inimigos e erra na proteção dos cidadãos.

[...] Ele é aquartelado, responde a seus superiores hierárquicos, não convive

com os cidadãos que deve proteger, não os conhece, não se vê como garantidor

de seus direitos. Nem no combate ao crime as polícias militares têm se

revelado eficientes. Pelo contrário, nas grandes cidades e mesmo em certos

estados da federação, policiais militares e civis têm se envolvido com

criminosos potenciais, organizam grupos de extermínio e participam de

quadrilhas. Mesmo a polícia civil, que não tem treinamento militarizado, se

vem mostrando incapaz de agir nas normas de uma sociedade democrática.

(CARVALHO, 2013, 57).

Casos de violência policial marcaram a história do país. Chacina em frente à

Igreja da Candelária e a invasão do Carandiru, no Rio de Janeiro, e o massacre de Eldorado dos

Carajás, no Pará, são alguns dos exemplos que viraram notícia internacional. O judiciário

também é deficiente no cumprimento de seu papel. Além dessas críticas, pesa sob a justiça e a

polícia a parcialidade no controle da segurança. Do ponto de vista das garantias do direito civil,

político e social, os brasileiros estão divididos em classe que demonstram muito bem as

desigualdades existentes no país. Para a elite brasileira, como sempre, há privilégios. Para a

maioria, os mais pobres, não há segurança, saúde e educação de qualidade. Neste cenário repleto

de incertezas, insatisfações e desigualdades que, no ano de 2002, foi eleito Luís Inácio Lula da

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Silva.

A resistência ao candidato nas três eleições anteriores, vinda de setores

conservadores e liberais e do grande negócio nacional e internacional, foi

habilmente neutralizada pela Carta aos Brasileiros, em que o candidato se

comprometeu a respeitar as instituições, os tratados internacionais e a política

vigente. O restante da vitória ficou por conta da difícil situação econômica do

país, responsável pela baixa avaliação do governo, que se refletia em seu

candidato, e do carisma do candidato oposicionista, de sua extraordinária

capacidade de comunicação com as camadas populares. (CARVALHO, 2013,

p. 59).

O governo Lula ficou conhecido por ter uma agenda dedicada aos direitos

sociais. Foram vários programas de inclusão social tendo em vista a melhoria de vida das classes

mais pobres. Iniciou o governo implantando o programa Comunidade Solidária e o Bolsa

Escola, depois expandiu para o Bolsa Família que agregou os programas, Auxílio Gás, Bolsa

Escola e o Cartão Alimentação sob a administração do Ministério do Desenvolvimento Social

e Combate à Fome. Como já abordado anteriormente, os programas atendiam as famílias mais

carente, possuidoras de uma renda per capita entre R$ 70, 00 a R$ 140,00 (CARVALHO,

2013). Para manter-se atendida pelos programas sociais, as famílias precisavam comprovar que

a frequência dos filhos na escola por meio de relatório expedido pelas instituições de ensino

público. Outro modo de comprovação se dava pelo controle pré-natal e da carteira de vacinação

das crianças.

Dois anos após a implantação dos programas sociais, mais de 10 milhões de

famílias eram atendidas. Em 2013, segundo Carvalho (2013), já havia 13, 8 milhões, cerca de

50 milhões de pessoas incluídas no programa Bolsa Família. Óbvio que uma ação política como

essa não ficaria fora do alvo das críticas. Uma delas, vinda da oposição política e de boa parcela

da população, era de que a medida tomada pelo governo possuía caráter paliativo, não

diminuindo, efetivamente, a pobreza. Apenas “causando relação de dependência” dos cofres

públicos. Contudo, é importante reconhecer os benefícios trazidos para milhões de famílias

pobres nunca antes enxergados pela política brasileira. O Bolsa Família se tornou programa de

referência no Brasil e no Mundo, rendendo frutos eleitorais, como a reeleição do Presidente

Lula da Silva. Posteriormente, eleição e reeleição da Presidente Dilma Rouseff.

Outra política social implantada pelos governos petistas foi a expansão do ensino

universitário. Na primeira gestão de Lula eram 2,7 milhões de pessoas matriculadas em cursos

de graduação; em 2011, já eram 6,7 milhões. O aumento se deu por meio do Programa

Universitário (PROUNI), criado pelo ministro Fernando Haddad, o qual garantia bolsas

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integrais e parciais a alunos que possuíssem renda familiar de até três salários mínimos e

estivessem aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em 2005, quando

implantado, o PROUNI teve 422.531 inscritos. Em 2012, já haviam mais de 1.600.000 inscritos.

Assim como o Bolsa Família, o PROUNI também gerou algumas críticas. A primeira delas

estava ligada a introdução do sistema de cotas raciais para alunos oriundos da escola pública.

A segunda vinha das instituições federais que começaram a criticar a ampliação de acesso às

instituições particulares, ao invés de ampliar vagas nas Instituições de Ensino Superior Federais

ou Estaduais. É fato que esse movimento de acesso ao Ensino Superior foi benéfico para o país,

mas longe de resolver os problemas educacionais herdados ao longo da história. De acordo com

o BBC News6, a mais recente avaliação do Programa Internacional de Avaliação dos Alunos

(PISA), mostra que o Brasil ocupa a 69ª posição em leitura e 66ª colocação em Matemática.

No que toca aos direitos civis, houve poucos avanços nos últimos governos de

Lula e Dilma. Um dos destaques nesse âmbito foi o intenso debate em torno da reforma sindical

e trabalhista, promovido ainda no governo do presidente Lula. O controle do Estado sobre os

sindicatos confluiu para uma integração da central sindical à estrutura herdada de Getúlio

Vargas. O governo ainda firmou um “pacto de classes”, ao incorporar a classe dos menos

favorecidos na pirâmide econômica por meio das políticas sociais compensatórias que, também,

possibilitaram a construção de importante base eleitoral do partido (SINGER, 2012;

MARQUES et al., 2009). Segundo Singer (2012), a partir de 2003, os atores internacionais

começaram a intensificar acordos em combate à miséria nos países menos desenvolvidos, mas

sem confronto com a lógica do capital. Isso resultou em políticas de combate à pobreza unido

a ativação do mercado interno, colaborando para o aumento do poder de consumo da esfera

mais pobre da sociedade, sobretudo, dos habitantes do norte e nordeste.

O lulismo, que emerge junto com o realinhamento, é, do meu ponto de vista,

o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe , o

subproletariado, por meio do programa cujos pontos principais foram

delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo, onde ela é

excrucitante tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do

mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade da sociedade,

que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do

capital. (SINGER, 2012, p.12 ).

O apoio por parte desse estrato social foi obtido graças à articulação de um tripé

formado entre Bolsa Família, aumento anual do salário mínimo e expansão de crédito no

6 Pesquisa completa no site <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45761506>.

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mercado, associado a diminuição dos preços da cesta básica. Todos esses fatores foram

fundamentais para diminuição da pobreza a partir de 2004, quando as dívidas externas

começaram a cair e a economia voltou a crescer junto com o crescimento da oferta de emprego.

Ainda de acordo com Singer (2012), houve uma pequena inflexão na política neoliberal –

presente desde o governo Sarney e fortalecida com FHC – com a presença de Guido Mantega

no Ministério da Fazenda que passou a adotar a politica de desenvolvimentismo, favorecendo

a valorização do salário mínimo, a flexibilização dos gastos públicos e a redução dos juros.

Nessa conjuntura houve a geração de 40% de novos postos de trabalho no

mercado formal, aumento do salário mínimo e ampliação do direito ao crédito consignado,

permitindo alteração no combate à pobreza para além da transferência de renda, como foram

no primeiro governo. Isso favoreceu alcançar um novo público, as classes de trabalhadores não

organizadas e duramente precarizadas. Porém não se distanciando dos movimentos sociais que

sempre estiveram na base do partido dos trabalhadores. Fato que colaborou para a eleição de

Dilma Rousseff, em 2010, demonstrando a vigência do realinhamento eleitoral operado pelo

chamado “lulismo” (SINGER, 2012, p. 9). O governo Dilma iniciou com o desafio de recuperar

o país de uma crise financeira global de 2008. Com um plano de governo não muito claro, a

única certeza era de que os programas sociais continuariam. No entanto, a política adotada não

teria somente a dinâmica de continuidade, mas iria adotar mudanças estruturais e arrojadas, tal

como questionar o poder estrutural do capital financeiro na determinação das taxas de juros e

câmbio, rompendo o pacto conservador formado pelo governo Lula em 2003 (BASTOS,

2012b).

A execução do programa foi prejudicada por iniciar a fase de austeridade – que

supostamente prepararia as condições para a queda de juros – estagnando o PIB entre o segundo

semestre de 2011 e o primeiro de 2012. O problema de estratégia continuou até 2013, quando

a redução do custo de capital, deprimiu as expectativas de demanda futura. Algumas ações

foram corrigidas, porém, os erros econômicos causaram fragilidade no governo e fortaleceram

a oposição. Em 2013, o movimento Passe Livre, que teve sua origem apartidária, acabou

servindo de escudo para as forças opositoras de manifestarem contra as políticas adotadas pelo

governo, fazendo emergir a narrativa neoliberal alarmista. Unida a insatisfação com a política

econômica, havia o ressentimento relativo ao status social ocupado pelo pobre durante toda a

gestão do país pelos membros da esquerda.

Como já abordado, a elite brasileira sempre criou modos de manter seus

privilégios. E a questão distributiva tendo o salário mínimo e a educação como elementos

fundamentais compõem, hoje, a relação neoliberal com as suas bases na sociedade. Essas bases

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são compostas pela camada média com alguma qualificação profissional e educacional

especializada e a pequena burguesia que, ao longo do tempo, gozaram de padrão de vida

semelhante a população de classe mediana de países com renda per capita superior, pois

contavam com bens e serviços barateados pelos baixos salários resultado da falta de

qualificação dos trabalhadores.

No governo Dilma, os direitos sociais continuaram sendo ampliados, mesmo

diante da estabilidade econômica. Em 2012, o número de formados em ensino superior já

chegava a mais de 1,05 milhão, ou seja, um aumento de 124%, apoiado por programas de

inclusão social como o PROUNI, o FIES e a política de cotas (INEP, 2010, p. 32; 2015, p. 63).

Assim, a manutenção do status social da classe média tradicional sofria tensão significativa que

veio à tona com o movimento de ofensiva ideológica da direita a partir da segunda fase das

manifestações de junho de 2013, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo. Além da disputa crescente

na esfera educacional, a classe média ainda concorria com as oportunidades de emprego bem

remunerados, uma vez que havia, cada vez mais, pessoas qualificadas no mercado de trabalho,

também experimentavam concorrência nas redes de infraestrutura e serviços (aeroportos, por

exemplo) que consideravam exclusivos, experimentando perda de privilégios e à pretensão de

distinção cultural (SICSÚ, 2014; CAVALCANTE, 2015).

Essa insatisfação ganhou força por meio das narrativas da direita opositora ao

governo que passou a desvalorizar os projetos de inclusão social implementados nos mandatos

de Lula e Dilma. Uma parte da população passou a não concordar que os impostos pagos fossem

convertidos em benefícios sociais para os mais pobres, por acreditar ser assistencialismo com

a finalidade de conversão de voto no período eleitoral. A partir de 2013 houve o retorno ao

pensamento conservador no Brasil, fortalecido pelas mídias tradicionais, fruto do

descontentamento da classe média e do aumento do índice na violência nas grandes capitais.

Problema que nenhum dos governos esquerdistas conseguiu dissipar.

A derrocada do governo Dilma se deu pela soma de todos esses fatores com os

escândalos de corrupção envolvendo os membros do Partido dos Trabalhadores, incluindo o

presidente Lula. Os veículos de comunicação do país deram ampla cobertura ao caso, fazendo

com que a população acompanhasse o desenrolar dos fatos como capítulos de uma dramática

novela. Rapidez das delações e vazamentos de depoimentos que prejudicavam o PT e a

presidente Dilma contrastava com a divulgação tardia da compra de votos de parlamentares que

pudessem votar contra o impeachment da presidente no Congresso Nacional. Por isso, surgem

as hipóteses de que o discurso de combate à corrupção é seletivo, com a finalidade de

enfraquecer a popularidade dos dois presidentes e prejudicar a reputação do partido.

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A espetacularização midiática da corrupção possibilitou que a sociedade

conhecessem os “responsáveis pelo mal feito ao país” e, deliberadamente, não tematizou os

arranjos estruturais do sistema político que contribuem para um esquema de corrupção antigo

no Brasil (CHAUI, 2013). Diante de tudo isso, surge o processo de polarização política, o que

é totalmente danoso para o exercício da cidadania. Tanto que o governo que sucedeu Dilma, de

imediato, tentou aprovar leis que desestabilizam os direitos dos cidadãos. Além de,

fundamentado no discurso anticorrupção, impulsiona a propagação do pensamento de extrema

direita, o qual não apenas desestabiliza, mas anula muitos dos direitos dos cidadãos,

principalmente, das minorias, visando à manutenção do status quo da burguesia brasileira por

meio do discurso da meritocracia. A meritocracia sugerida pela classe elitista é que cada

cidadão ocupe a hierarquia social a partir de seus dons e méritos pessoais. Como um país

historicamente construído sob as bases da colonização, do trabalho escravo e da diferença

secular entre as classes, pode acreditar que todos terão as mesmas oportunidades? O

meritocracismo no Brasil é só mais uma estratégia de negação de que todos os cidadãos

brasileiros são iguais perante a Constituição de 1988, conhecida como Constituição cidadã, na

qual têm os direitos humanos como pilar fundamental.

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CAPÍTULO 4 – CIDADANIA E DISPOSITIVO

4.1. O dispositivo como magma das significações imaginárias

O conceito de dispositivo foi introduzido no campo das ciências humanas e

sociais por Foucault, em meados da década de 70, quando começou a tratar de assuntos ligados

à biopolítica e à governamentalidade. No entanto, foi Agamben, reconhecidamente um leitor

foucaultiano, que ampliou e aprofundou a definição de dispositivo, como revela a citação a

seguir:

Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um

conjunto heterogêneo que implica no discurso, instituições, estruturas

arquitetônicas, enunciados, decisões regulamentares, leis, medidas

administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e

filantrópicas, em resumo: tanto o dito, eis os elementos de dispositivos. O

dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos. (AGAMBEN,

2009, p. 46).

Foucault caracteriza o dispositivo em dois tipos de sociedade: a soberana e a

disciplinar. As sociedades soberanas têm como base as relações de dominação e de apropriação

dos bens, dos produtos, do tempo e da fidelidade dos súditos pelo soberano legitimado por um

poder originado do direito divino dos reis, da hereditariedade ou da conquista de territórios,

concedendo o privilégio de decisão sobre a vida ou a morte de seus subordinados. Por volta do

século XVIII, sobretudo no século XX, a sociedade soberana foi substituída pela sociedade

disciplinar. Na sociedade disciplinar, a finalidade é gerir a vida humana ao invés de ordenar a

morte, pois, os seus dispositivos não visam destruir, mas manter a docilidade dos corpos. As

escolas, as fábricas, as cadeias surgem atendendo diferentes urgências e estabelecendo

estratégias para submeter o sujeito ao julgo do poder relacional indeterminado e não apenas ao

comando de um soberano.

A partir dessa visão de gestão da vida, Deleuze (1990) propõe a ideia de que, na

pós-modernidade, há a constituição de uma nova forma social, porém, sem eliminar os outros

modelos de sociedade, apontados por Foucault. No entanto, a atual configuração histórico-

social está aberta aos limites indefinidos gerados pelo controle total e contínuo, por isso,

Deleuze nomeia isso de sociedade do controle. Na era do controle, ao contrário da sociedade

disciplinar, a independência dos meios de confinamento disciplinares é substituída pela

contiguidade, modulação e o tempo contínuo do controle. Os dispositivos sofrem alterações

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profundas. O dispositivo educacional, por exemplo, vigora por meio da formação permanente,

superando o objetivo terminável da escola para interligá-lo ao dispositivo econômico capitalista

infindável que necessita de sujeitos atualizados frequentemente para ingresso ou permanência

no mercado de trabalho. Essa sociedade incentiva um aprimoramento infinito do profissional,

atrás do qual se esconde um controle perpétuo de seus objetivos e motivações.

Quando Deleuze abordou a temática da sociedade de controle, não havia

experenciado as consequências radicais da revolução tecnológica provocadas pela cibercultura.

Contudo, vale refletir que se o dispositivo é a rede formada pelo entrelaçamento de ditos e não-

ditos, arquiteturas e discursos, leis e equipamentos, a web seria a rede por excelência. A

presença absoluta na internet transformou-se no – que se pode chamar – de mais eficiente

dispositivo da história. A conexão simultânea e descentralizada de todo o planeta, levada ao

extremo na ausência de limites, pressupõe o estabelecimento de controle onipresente e

onisciente. Tal controle vem das câmeras de vigilância, das funções stories das redes sociais,

dos dados disponíveis em plataformas de cadastros virtuais (e-mails, dados bancários)

acessados dos mais variados equipamentos tecnológicos. No entanto, o poder das redes

telemáticas não está subjugado ao Estado, apesar de ele ainda tentar manter o controle por meio

de normatizações de privacidade e de acesso, mas a conexão descentralizada permite que os

fluxos informacionais sejam controlados e manipulados pelos sujeitos em locais diversos, numa

interação glocalizada, além da capacidade de armazenamento de informações privilegiadas e

pessoais em mais de um dos diversos dispositivos contemporâneos, o arquivo.

Segundo Foucault (1997), o arquivo é um conjunto de discursos efetivamente

enunciados e, como processo, são capazes de atualizarem e configurarem os enunciados. Por

isso, não pode ser entendido apenas como o local físico onde se guardam memórias

(documentos e informações). Ele ultrapassa esse sentido ao criar a possibilidade de

transformação dos dados armazenados. Na sociedade soberana, o arquivo estava sempre nas

mãos do rei – ou daquele que tivesse a guarda da soberania do território – e era utilizado como

ferramenta de juízo sobre seus súditos. Na sociedade disciplinar, era concebido como

entrelaçamento entre poder e saber, permanecendo restrito a determinadas instituições e

discursos que os legitimava. Na sociedade do controle, o arquivo estende-se aos sujeitos,

podendo ser utilizado e manipulado por todos. Porém, a facilidade de acesso e uso esconde a

subjugação do sujeito pelo dispositivo.

Com o advento da cibercultura, os limites são anulados e o arquivo pode ser

alcançado com mais facilidade, ao mesmo tempo em que atinge todos os indivíduos com

eficiência. Os bancos de dados e registros são igualmente globais e múltiplos, busca-se

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informações sobre pessoas em plataformas de crédito; tem-se acesso a currículos de candidatos

em ferramentas digitais produzidas para esse fim; as redes sociais transformam-se em dossiês

da vida privada dos indivíduos, favorecendo o controle sutil, porém, não menos opressor. No

arquivo, reside o poder disciplinar foucaultiano, uma vez que nada mais fica no reduto do

privado, tudo pode virar público e visível aos olhares, julgamentos e punições sociais. O

pressuposto de maior valor, imposto pela velocidade característica da época, é a capacidade de

armazenamento infinito, possibilitando apropriação total do passado, daquilo que já foi visto e

vivido. É passível de ser resgatado e atualizado, numa constante fúria colecionista, levando o

sujeito ao arquivamento imediato do presente, para ser desfrutado quando for passado.

Nessa perspectiva crítica, encontra-se o dispositivo pensado por Agamben

(2009). O autor amplia e aprofunda a temática foucautiana, elaborando uma divisão simples da

sociedade: os seres (ou as substâncias) e os dispositivos que os governam e os orientam. A

cidadania, as redes sociais, a linguagem, a dromocracia e o fenômeno glocal são alguns dos

inúmeros exemplos de dispositivos que regulam o ser e o fazer humano na atualidade. Do

embate entre seres e dispositivos, surgem os processos de subjetivação, uma vez que os seres

naturalmente se sobrepõem – em alguns momentos – aos dispositivos. Os sujeitos podem ao

mesmo tempo habitar diversos processos de construção de subjetividade, sendo um internauta,

um cidadão, um motorista, um escritor, ou exercendo qualquer atividade humana. Atualmente,

a proliferação de dispositivos origina a simétrica proliferação de processos de subjetivação,

podendo causar a perda da identidade pessoal.

Vive-se na fase de proliferação dos dispositivos devido a fase extrema do

desenvolvimento capitalista que estamos vivendo. Certamente, desde que

apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas hoje não há um só instante

da vida dos indivíduos que eles não estejam. (AGAMBEN, 2009, p. 47).

Essa proliferação desenfreada dos dispositivos é, para Agamben, o problema

mais grave enfrentado nesta época. Os dispositivos não mais produzem processos de

subjetivação como na sociedade disciplinar de Foucault (1997), em que, apesar da produção de

corpos dóceis, as subjetivações eram livres. Na sociedade cibercultural, dependente

iminentemente dos dispositivos, a produção é inversa, causa dessubjetivação. A tecnologia, o

arquivo, faz com que a subjetividade desapareça atrás da espetacularização do tempo real. A

dessubjetivação leva ao paradoxo: o sujeito comum, que se submete docilmente aos dispositivos

de controle e tem sua vida revelada aos mínimos detalhes, é o mesmo que controla e revela a

vida do outro, dentro de um processo cíclico e permanente. O governo também encontra

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dificuldades, a proliferação dos dispositivos fragiliza e mostra o quanto o Estado é incapaz de

controlá-lo. Para Agamben (2009, p. 145), “(...) as sociedades contemporâneas se apresentam

assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não

correspondem a nenhuma subjetivação real” (AGAMBEN, 2009, p. 145).

Os processos de subjetivação e dessubjetivação são originados no imaginário.

Logo, é possível perceber que o dispositivo pertence à categoria das significações imaginárias

instituídas na sociedade. Ele é invisível aos olhos, mas sentida pela racionalidade humana, por

meio de regras que orientam e organizam o social. A função estratégica dos dispositivos tem

como ferramentas: [1] a manipulação dos elementos sociais – sejam pessoas ou instituições – e

[2] a intervenção racional que ocorre por meio de repressão simbólica ou até mesmo física em

nome da ordem. Como por exemplo, através da linguagem é um dispositivo que consolida no

social-histórico todas as regras, tradições, culturas e modos de vida, além de ser o principal

instrumento de articulação da economia e da política. Por isso, Agamben (2009) ressalta que os

dispositivos se inscrevem numa relação de poder fortalecido pela aceitação dos sujeitos as suas

regras que agem, primeiramente, no imaginário. Desse modo, é possível perceber que os

dispositivos se instituíram no imaginário social e passaram a vigorar como magmas. Uma vez

que se atualizaram e ganharam novos sentidos, sem perder a lógica conjuntista identitária que

o legitima.

Enfatizando, os dispositivos nascem no imaginário, ou seja, são produtos da

criação humana e se legitimam pela crença instituída pelo imaginário. São poderes instituídos

e instituintes, como diria Castoriadis (1986) com o objetivo de ordenar a vida dos sujeitos. Isso

ocorre, segundo Agamben, porque “dentro de todo e qualquer dispositivo reside um desejo

demasiado humano de felicidade, captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada,

constituem a potência especifica do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 47). Essa felicidade,

não está ligada somente à esfera individual, mas, sobretudo, à coletividade. Como as

metanarrativas – significações imaginárias da modernidade – que estavam presentes nos

dispositivos de poder daquela época. Quando ruíram, os magmas instituintes dos dispositivos

se alteraram, bem como as próprias metanarrativas ganharam novas significações no contexto

da pós-modernidade, sem perder o objetivo de controle dos processos de subjetivação.

Pode parecer contraditório, os sujeitos produzirem dispositivos que possuem a

função de controlar a própria sociedade. Contudo, a manutenção do poder e do controle social

faz parte da lógica conjuntista identitária que organiza o social-histórico. O indivíduo sempre

teve seus corpos conformados numa domesticação invisível necessária ao controle do sistema

vigente. No Império Romano, por exemplo, instituiu-se como magma a instrumentalização da

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tortura física com objetivo de punir todos aqueles que desrespeitassem a lei, como foi o caso de

Cristo. Porém, a legitimação dessa prática de violência se dava, primeiramente, no imaginário

social, fazendo com que a população tivesse medo do poder do Imperador. O corpo domesticado

pela força do dispositivo no imaginário fortalecia o controle do estado sobre a população. A

partir do século XVII, um novo magma se institui – mas, mantendo a mesma lógica identitária

– logo após a descoberta da dimensão metafísica do corpo e do conjunto de técnicas e processos

empíricos que controlam suas operações, tornando a dominação do corpo mais sutil. Desse

modo, os dispositivos de poder também vão sendo atualizados acompanhando a evolução da

sociedade.

Nesse sentido, no contexto cibercultural, a sociedade encontra-se domesticada,

como jamais se testemunhou na história da humanidade. O sistema dromocrático, de maneira

sutil, controlou, dominou e fragilizou os corpos. Como reflete Agamben (2009), o cidadão vive

num constante paradoxo na democracia contemporânea. Pois, ele executa tudo o que é

determinado e corresponde às informações com velocidade, ao mesmo tempo em que é

comandado e controlado pelos dispositivos, inclusive, no reduto da vida privada. E, quanto mais

os dispositivos se proliferam ou se fundem, maior o poder deles sobre a vida do sujeito que,

cada vez mais, fica imerso em novos magmas de significações imaginárias.

4.2. Dispositivo, cidadania e a cibercultura

A cidadania vigora como magma de significações imaginárias, por carregar em

si a lógica conjuntista identitária que possibilita os sujeitos criarem laços de pertencimento, seja

com a polis, seja com o Estado. Por meio da lógica conjuntista consolidada no social-histórico,

é possível perceber que a cidadania já foi gerada como dispositivo de controle fundamental para

instituição das sociedades disciplinares. De acordo com Foucault (1997), numa sociedade

disciplinar, os dispositivos visam, por meio de práticas e de discursos, saberes e exercícios, à

criação de corpos dóceis, porém livres. Esses sujeitos de corpos “docilizados” assumem a sua

liberdade dentro do próprio processo de assujeitamento necessário para manutenção das

relações de poder (AGAMBEN, 2009, p. 46).

O poder vindo do dispositivo disciplinar permite encontrar o ponto de

intercessão entre o controle das máquinas de governo e o corpo. Esse exercício de dominação

possui caráter político que favorece o assujeitamento do indivíduo em espaços disciplinares

públicos e privados. Na antiguidade Clássica, se instrumentalizou a tortura física como forma

de objetificação do criminoso – como aconteceu com Cristo – produzindo o efeito duplo de

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inspirar medo e respeito pelo poder do governante. A partir do século XVII, inaugurou-se

controle mais minuncioso e sutil do corpo, por meio de uma coersão initerrupta voltada para os

processos de atividades, possibilitando o esquadrilhamento ao máximo do tempo, do espaço,

dos movimentos e do discurso. Foucault (1997), afirma que o controle sutil permite aumentar

as forças do corpo, provocando aumento da produtividade – em termos econômicos e de

utilidade –, ao mesmo tempo em que o corpo se torna mais passivo e obediente, no âmbito

social e na interação política (FOUCAULT, 1987, p 127).

Nesse sentido, Agamben (2009) reflete que, após a ascensão do capitalismo, os

dispositivos e suas formas de controle são facilmente incorporadas às democracias, fazendo

com que os cidadãos nem sintam que estão, permanentemente, sob as suas regras. O cidadão

“executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa os gestos do cotidiano sejam comandados

e controlados por dispositivos até os mínimos detalhes”. Principalmente, após o surgimento da

tecnologia. Inclusive, Marshall (1967), afirma que, devido o processo de modernização, o modo

de controle da sociedade necessitou se reestruturar, formalizando em torno de três noções de

direitos – onde também estão implicados deveres – do cidadão para o Estado e vice versa.

O elemento civil é composto por direitos necessários à liberdade individual –

liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e fé, o direito de

propriedade e de concluir contratos válidos, e o direito à justiça. [...] as

instituições mais diretamente associadas aos direitos civis são as cortes de

justiça. Por direitos políticos eu entendo o direito de participar no exercício do

poder político, como membro de um corpo investido de autoridade política ou

como eleitor de membros de tal corpo. As instituições correspondentes são o

parlamento e os conselhos locais de governo. Quanto ao elemento social

entendo ser toda uma gama de direitos, desde um modicum de segurança e

bem estar econômico até o direito de compartilhar por completo a herança

social e de viver a vida de um ser civilizado conforme os padrões

prevalecentes na sociedade. As instituições mais conectadas a ele são o

sistema educacional e os serviços sociais (MARSHALL, 1967, p. 67).

Cada um desses conjuntos de normas adquiriu velocidade, lógica e ritmo próprio,

se institucionalizando e passando a vigorar no imaginário social da sociedade. Ficando muito

mais fácil do Estado manter o controle sob os corpos dos sujeitos, uma vez que os próprios

sujeitos vigiam uns aos outros. No entanto, a institucionalização dos três tipos de direitos

ocorreu de maneira lenta dentro da dinâmica social, principalmente, em impulsionadas por

pressões e demandas provenientes de atores sociais e políticos. Vale ressaltar que não coube a

Marshall inaugurar a reflexão sobre cidadania e seus aspectos. Marx, Weber, Durkheim deram

sólidas contribuições sobre o tema no campo sociológico. Contudo, Marshall permitiu que a

discussão ganhasse novamente fôlego no âmbito da sociologia política, por buscar o retorno –

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apesar dos avanços da história – na compreensão da episteme do termo cunhado na era clássica,

percebendo o modo como essa lógica conjuntista identitária – ressignificada ao longo do tempo

– age como dispositivo no imaginário social contemporâneo.

Em caráter de ênfase, o imaginário social da cidadania presente na pós-

modernidade, após todas as transformações ocorridas pelo impacto do sistema capitalista, ainda

carrega em si a necessidade de frequente luta pela sua própria consolidação. Mesmo que para

isso, os sujeitos necessitem de controle frequente dos dispositivos. Isso ocorre porque a lógica

conjuntista permanente é de organização e de crescimento do Estado. Assim como era nas polis.

Claro, guardada as devidas diferenças de tempo e de visão de mundo. Porém, quando o Estado

se organiza e cresce economicamente – aqui, localizando a reflexão no contexto capitalista – os

cidadãos deveriam receber benefícios em troca, uma vez que são os mantenedores desse

crescimento. Tais benefícios poderiam vir por meio da expansão e da consolidação dos seus

direitos.

Então, Marshall (1967) ao propor a segmentação dos direitos, permite mapear a

cidadania observando as suas estruturas sociais respeitando as diferenças a sua dinâmica de

crescimento. Além de favorecer ao cidadão conhecimento mais profundo do seu papel e da

função do Estado. Outros dois aspectos relevantes são: [1] o melhor reconhecimento dos

aspectos que envolvem cada direito, a fim de impulsionar a institucionalização deles na forma

da lei, racionalmente justificadas, amparadas em princípios universais e garantidas em última

instância pelo aparelho político administrativo; e [2] compreender que os dispositivos legais

vão reger a vida de indivíduos dotados de subjetividade que, cada vez mais, necessitarão que

as leis vigentes se adaptem às mudanças sociais, tendo em vista a proteção do cidadão em todas

as esferas públicas.

Compreender a cidadania como elemento chave das organizações políticas, em

se sentido lato, é fundamental para os Estados democráticos e para suas constituições. A

complexidade da cidadania está na corporificação de normas universais através de direitos

subjetivos que devem ser constitucionalmente garantidos e igualitariamente aplicados. De

acordo com Marshall (1967), a cidadania, em última instância, deve implicar em leis que

deixem de ser mero instrumento de uma reduzida política do Estado para se tornar uma

“interface de mediação” entre o aparato estatal e a comunidade. Mediante a esse complexo

normativo, a pluralidade e a diferenciação existente nas classes das sociedades capitalistas, não

apenas ganham garantia legal como também provoca nas massas o reconhecimento da

importância da integração social. Dessa forma, ainda de acordo com o autor, a cidadania

contemporânea passa assumir funções normativas que, dentro da lógica identitária de

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pertencimento, devem ser garantidas de modo a atender a evolução social-histórica: [1] garantir

o acesso igualitário aos direitos subjetivos. Os direitos civis fixam as fronteiras entre a

sociedade e o Estado, de forma a proteger a primeira de possíveis incursões estatais. [2]

proporcionar de maneira direta ou indireta o acesso igualitário à participação nos negócios

públicos. Os direitos políticos são os dispositivos que estabelecem o elo entre os cidadãos e o

Estado sem aniquilar as fronteiras entre um e o outro, por serem necessárias para manter as

relações de poder. [3] proporcionar os recursos para que os sujeitos atuem autonomamente. Os

direitos sociais vigoram como dispositivos que produzem subjetividade, ao garantirem dos

direitos que tornam efetivos os diretos subjetivos.

Com o advento da Cibercultura, surgem novos modos de controle do corpo social

com a utilização dos dispositivos capazes de fazer conexão com a web. O dispositivo cidadania,

fundado no território da polis e, posteriormente, ampliado e aprofundado nos Estados

democráticos – por meio das lutas históricas dos sujeitos pelos seus direitos – se ver imerso e

ressignificado nos ambientes virtuais. As três categorias de direitos apresentado por Marshall

podem ser percebidas claramente nos discursos das redes sociais. O ciberespaço acabou se

transformando em local para a efervescência das discussões políticas devido a sua potência na

emissão, na conexão e reconfiguração, características da própria época cibercultural. Protegido

pelo bunker tecnológico, o sujeito aciona o dispositivo glocal e utiliza-se do neo nomadismo

para se fazer presente em questões que envolve o diretamente o Estado, a política e a sua própria

participação como cidadão no contexto social. Mas como tudo o que ocorre na cibercultura está

implicado no sistema dromocrático, a cidadania sofre impacto ao ter o seu poder potencializado,

ao mesmo tempo em que se fragiliza, passando por um processo de ressignificação como será

apresentado na parte a seguir.

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PARTE III

O FENÔMENO GLOCAL E A CIDADANIA

GLOCALIZADA

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O preâmbulo desta III Parte não será extenso, pois os dois capítulos analíticos

que se seguem dão conta das reflexões que fundamentam a Tese. Como as partes anteriores,

esta também se subdivide-se em dois capítulos. O quinto que trata do fenômeno glocal

ampliando e aprofundando os conceitos à luz da teoria do imaginário de Castoriadis (1986) e

do conceito de dispositivo de Agamben (2005), tendo como objetivo mostrar que a

ressignificação da cidadania ocorre pela interferência do dispositivo glocalizado. Dispositivo,

fenômeno glocal e cidadania são magmas sobre magmas que vão se consolidando no imaginário

social, se instituem e são instituídos na sociedade. O sexto capítulo dedica-se a cidadania

glocalizada, trazendo exemplos de como ela ocorre nos ambientes de rede. A seleção desses

exemplos se deu a partir dos seguintes critérios: extraídos do Twitter e Facebook, no período

de 2016 a 2018, mensurando o número de engajamentos por meio de hashtags que

apresentassem conteúdo referente aos direitos políticos, civis e sociais.

Os dois capítulos foram fundamentados, principalmente, em Trivinho (2007;

2012), Agamben (2005); Foucault (1987), Virilio (2001) e Marshall (1967).

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CAPÍTULO 5 – O GLOCAL

5.1. O dispositivo glocal

Como abordado anteriormente, Agamben (2009, 2011) reflete sobre o

dispositivo levando em consideração a sua abrangência empírica, conjectural e social-histórica,

possibilitando a aproximação com as reflexões de Trivinho (2007) sobre o fenômeno glocal. A

conjunção de conceitos enriquece o pensamento crítico sobre a vinculação do glocal aos

magmas de significações imaginárias da contemporaneidade, potencializada pelas

peculiaridades do conceito de dispositivo como ferramenta capaz de orientar e capturar

comportamentos e discursos dos indivíduos (AGAMBEN, 2009, p. 40). Contudo, mesmo que

as obras de Agamben abranjam, de certo modo, reflexões sobre os dispositivos digitais, ainda

assim é urgente aprofundar a análise da influencia das ferramentas infotecnológicas como

dispositivos fundamentais por garantirem o pertencimento do sujeito a viver na cibercultura.

O glocal é composto por fluxos bidirecionais inerente às tecnologias

informáticas capazes de rede (TRIVINHO, 2007) que permitem a instantaneidade da

comunicação. No fluxo dessa comunicação em tempo real, mediada pelo dispositivo tecno-

informático, potencializam-se as atividades sociais e as atividades de governo, pautadas em

atitudes de caráter interativo às quais os indivíduos passam a vincular todas as tarefas do

cotidiano, inclusive o modo de pensar e agir. O envolvimento que se estabelece por meio da

comunicação como dispositivo se expande para todas as dimensões da vida em sociedade,

legitimando-se como constructo sociotécnico resultado da lógica conjuntista identitária dos

pensamentos mecanicistas e cibernéticos que constituem a gênese do imaginário de

glocalização.

O fenômeno glocal, de Trivinho (2012), é entendido como intervenção

tecnocultural, guarda correlações com o conceito de dispositivo de Agamben (2009), tanto na

condição empírica – uma vez que ambos são produtos do imaginário –, quanto nos aspectos

sígnicos e socioculturais. A natureza do glocal também se forma como magma de significações

imaginárias que resultam em estratégias de mercado, passando pela articulação e circulação de

conteúdos informacionais da sociedade mediática, até chegar aos consumidores ávidos por se

sentirem dentro do processo de glocalização. Esse processo se faz por meio do dispositivo que

disciplina corpos e os mantem sob regras e normas que capturam, interceptam, orientam,

controlam comportamentos, opiniões e discursos. É possível perceber a presença do dispositivo

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glocal7 nas estratégias de marketing, nas produções publicitárias, nos conteúdos televisivos, nos

programas radiofônicos, sobretudo, na navegação no ciberespaço que implica nas adesões às

redes sociais, participação em jogos online e todas as outras formas de interatividade que o

ambiente de rede permite. Além disso, também estão implicadas as agendas mediáticas

vigentes, as intenções de aquisição deste ou daquele acessório multimediático, bem como, o

desejo de atualizações infotecnológicas tanto no que se refere aos aplicativos, quanto aos

equipamentos capazes de conexão com a rede.

Esses exemplos permitem compreender o modo como o glocal, seja em sua

dimensão lato ou stricto sensu8, está presente nas escolhas, nos discursos e nos posicionamentos

carregados de uma emoção característica da interação glocalizada que domina o imaginário do

usuário. E, para viver plenamente essa experiência, é imprescindível a apreensão do uso dos

equipamentos, acessórios e estruturas telecomunicacionais que dá suporte e capacita o

dispositivo na dominação completa da civilização tecnológica. No entanto, vale ressaltar, que

os dispositivos já configuravam – por comporem os magmas das significações sócio-históricas

– como constructo social e de forma rudimentar de ferramenta de governo, controle e

orientação, antes mesmo de se desdobrarem em fenômeno glocal. Vale ressaltar que o glocal,

devido sua natureza descentralizada, permite que os aspectos gerenciais de ordenamento do

dispositivo também passem a vigorar de modo descentralizado, facilitando a inserção de

mecanismos de controle em todas as esferas da vida cotidiana.

Apesar de o dispositivo glocal permanecer exercendo “pura atividade de

governo, que visa à própria reprodução” (AGAMBEN, 2009, p. 49), amplia-se por meio de uma

práxis gerencial ordenada e descentralizada, em que o tempo real passa ocupar o centro da

vivencia humana quase sempre mediada por tecnologias comunicacionais baseadas na

instantaneidade dos ambientes de rede. Então, os dispositivos glocais passam a vigorar como

mecanismos do sistema dromocrático que institui a velocidade como principal vetor de

articulação da sociedade cibercultural. Esse sistema invisível de poder sempre esteve presente

em toda a história da humanidade. Porém, Virilio (1993b, 1996b, 2000) e Trivinho (2001, 2007,

2013), destacam que após a revolução dos transportes, deu-se a revolução da transmissão,

iniciada no fim do século XIX e, rapidamente, desenvolvida no século XX. Com ela surgiu a

7 Recorda-se, neste ponto, que a conceituação referente à apreensão da natureza dispositiva relacionada ao glocal

tem fundamentação na categoria do glocal, de Trivinho (2007), abordado no Capítulo I, desta reflexão. 8 Vale frisar que, ao se tratar de dispositivos de natureza glocal, está-se fazendo referência aos suportes

infotecnológicos que formam os contextos glocais (isto é, na dimensão stricto sensu), enquanto que, ao se referir

à natureza dispositiva do glocal, busca-se dar ênfase também ao que o glocal abrange em sua dimensão lato sensu

(mass media).

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transmissão em tempo real, proporcionando a experiência da “telepresença” e da “telexistencia”

(VIRILIO, 2000, p. 32), a partir da utilização dos media capazes de suprimir o “tempo presente”

em favor de um alhures que não remete à “presença concreta”, mas à “telepresença discreta”

(VIRILIO, 2000, p. 33). No entanto, o sistema dromocrático é levado às últimas consequências

com o advento da cibercultura, potencializado pelo fenômeno glocal interativo.

Vale ressaltar que o aspecto gerencial do dispositivo sofre alteração do processo

de glocalização interativa, pois não apenas se torna mote das práticas cotidianas, como também

passa a gerir uma vida ritmada pelo tempo real e ordenada descentradamente em conformidade

com o glocal dispositivo. Por isso, é importante destacar que, sob a perspectiva de Agamben

(2009, p. 35), o dispositivo remete “a um conjunto de práticas e mecanismos (...) que têm o

objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato”. Esse

feito “imediato” e “urgente” citado pelo autor é ampliado pelo glocal, devido sua natureza ser

constituída pela velocidade, fazendo com que os mecanismos de controle e de dominação do

corpo sejam acelerados, facilitando a sua introdução e expansão em todas as esferas do

cotidiano. Provocando, assim, alteração na forma de viver o tempo real, agilizando processos

socioculturais, tecnológicos e científicos que, ao longo do tempo, foi exigindo maior urgência

na gestão das coisas e imprimindo também maior ingerência sobre o ritmo da vida humana9.

O ritmo da vida humana passa a ser orientada pela união do caráter de urgência

que faz parte da natureza dos dispositivos somada a velocidade existente no fenômeno glocal.

Assim, conduzindo os sujeitos a viver sob a égide das emergências propriamente glocais

presente no âmbito político, econômico, social, bem como, nas relações interpessoais, no

trabalho, no lazer etc. Ou seja, é a própria existência do sujeito que passa a estar imbricada às

experiências proporcionadas pelo dispositivo glocal. Por isso, Virilio (2000, p. 34-35) afirma

que a velocidade não é apenas um fenômeno em si mesmo, mas a união e a relação entre vários

outros fenômenos. Essa capacidade de abrangência característica da velocidade permite que o

sistema dromocrático se consolide e amplie ainda mais os mecanismos de controle do

dispositivo glocal.

No que toca a produção de subjetivações, Agamben (2009) afirma que o

processo decorre da relação que se estabelece “corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos”

(AGAMBEN, 2009, p. 41). Entretanto, na cibercultura, as quantidades de dispositivos

9 Vale ressaltar que a esta aceleração está assentada no mecanicismo desenvolvido ainda na época moderna, cuja

culminância é o pensamento cibernético, surgido em meados do século XX, podendo ser consultados os seguintes

autores acerca do tema: Trivinho (2001, 2007); e, para aprofundamentos sobre a relação entre aceleração e seu

impacto nos processos social-históricos e culturais do humano, veja-se Virilio (1993b, 1996b, 2000).

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aumentam consideravelmente, por causa da tecnologia. Assim, contribuindo para que ocorra,

igualmente, a proliferação de processo de subjetivação e, ao mesmo tempo, de dessubjetivação.

Essa dinâmica, para o autor, acaba não engendrando uma recomposição do sujeito, apenas

favorece a emergência do que ele chama de “caráter espectral” 10. O caráter espectral refere-se

à expansão de subjetivações que só podem emergir do dispositivo glocal, pois, a experiência do

tempo real provoca subjetivações/ dessubjetivação de modo aleatório que se adequam as

necessidades próprias da condição pós-moderna.

Esse processo de subjetivações/dessubjetivações produzidas pelos dispositivos

glocais causa enorme satisfação nos sujeitos. Por isso, Agamben (2009) parte da premissa que

todo dispositivo traz em si o desejo humano de felicidade. O teórico ainda conclui que “a

captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica

do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 44), fazendo com que a felicidade se origine da

capacidade de restituir aquilo que teria sido separado da esfera comum. Exatamente o que o

dispositivo glocal faz, resgatando metanarrativas perdidas, sonhos dos sujeitos e todas as esferas

da vida humana que passam a estar presente em um só tempo: o tempo real. O tempo real, o

corpo dromocrático, do ambiente real ou virtual, compõe o ápice da potencialidade em capturar

os indivíduos pelo desejo de ser feliz por meio da emergência da velocidade. Os indivíduos a

compartilhar do imaginário social do processo de glocalização passam a experimentar o que há

de melhor da vivência cibercultural: a praticidade, a rapidez e a interatividade.

O fenômeno glocal, com seu alcance planetário em rede, possui a capacidade de

“capturar” os sujeitos onde quer que eles se encontrem. Sobretudo, porque o próprio sujeito

mantem relação de dependência com os processos de glocalização, fazendo com que o corpo

físico e a subjetividade estejam sempre conformados ao controle do dispositivo glocal.

Presume-se que o controle tenha a ver com ordenamento centralizado de uma determinada

situação. Porém, como já abordado anteriormente, o dispositivo glocal possui um ordenamento

descentralizado, no qual o controle se dá em níveis variados, desde o conteúdo informacional

presente na rede até as produções de subjetividades. O ordenamento permite que, a partir de

qualquer ponto da rede, os usuários possam acessar mecanismos que favoreçam observar e

serem observados, segmentarem grupos e pessoas, bem como, mapear perfis, levando em

consideração o consumo, os costumes e as preferências. A descentralização, por sua vez, está

presente nos processos de subjetivações/dessubjetivações aleatórias que demonstram a

10 O principal questionamento de Agamben (2009, p. 41-42) a respeito da proliferação dos processos de

subjetivação é a maior intensidade do “mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal”.

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facilidade dos indivíduos de serem capturados pelos dispositivos e de se moldarem ao

ordenamento do glocal. Cabe ainda ressaltar que o ordenamento do dispositivo glocal passa

pela adequação da exigência à articulação do cotidiano, por meio das práticas sociais em tempo

real, na mesma medida em que alimentam dados e informações pessoais e/ou coletivas nos

ambientes virtuais.

Pode-se afirmar, a comunicação é o principal meio de gestão da vida humana.

Principalmente, por agregar em si – após a cibercultura – os dispositivos glocais interativos.

Assim, é possível considerar a existência de um processo social globalizado, conjuntural, que

é gerador de necessidades, desejos, interesses, modos de vida e, também, instiga os sujeitos a

participarem dessa estrutura e colaborar para manutenção dela. Atualizando o pensamento de

Agamben (2009, p. 40) para o âmbito das características intrínsecas presente nos fluxos

comunicacionais, é possível compreender que a comunicação vinculada ao contexto glocal,

como rede de atração humana aos dispositivos glocais, passa impor ritmo das práticas

cotidianas, capturando os sujeitos de modo sutil e sedutor, ressignificando e condicionando os

comportamentos, as opiniões e os discursos dos indivíduos por se consolidar no imaginário

social.

O dispositivo e o glocal são produtos originados, fortalecidos e disseminados por

meio do imaginário social e que precisam da comunicação e de seus instrumentos para

proporcionar a experiência concreta das interações virtuais, cuja aceleração remete ao tempo

real e a instantaneidade que suprime o limite tempo-espaço, apontado por Virilio e Trivinho. O

contexto comunicacional, que se expande com a web, contribui para a proliferação de

dispositivos glocais que ampliam a vivência glocalizada e conjuntizam todas as práticas do dia

a dia, desde a esfera do trabalho ao do lazer. Ampliando os processos comunicativos que

mantem não apenas as relações humanas, mas também todos os elementos presentes no mundo

e fora dele (como os satélites em órbita, os robôs lançados em exploração espacial, as

tecnologias que gerenciam os fenômenos da natureza etc.). Desse modo, constata-se que as

significações imaginárias da cibercultura são compostas por magmas que se consolidam e

articulam a sociedade. Esses magmas são compostos pelo dispositivo e pelo fenômeno glocal

que, por meio da comunicação tecnológica, sofrem imbricação, causando dependência

estrutural (BARBOSA, 2016) na humanidade. A vivência em tempo real e as produções de

subjetivações/ dessubjetivações conduzem os sujeitos para submissão sutil aos dispositivos

glocais que dominam os corpos e o imaginário, introduzem novas formas de pensar, agir e se

relacionar e ressignificam a história.

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5.2. O dispositivo cidadania e o dispositivo glocal

Como já abordado, a cidadania e o fenômeno glocal constituem um dos magmas

das significações imaginárias da sociedade. A cidadania carrega consigo a lógica-identitária da

manutenção da ordem social necessária para a instituição e permanência do Estado (ou da

polis). O fenômeno glocal, por sua vez, possui a sua lógica fincada na velocidade que controla

a civilização cibercultural. Logo, ambos, passam a vigorar – cada um na sua esfera ou magma

– como dispositivos de produção de subjetivações, de dominação de corpos e controle dos

indivíduos.

Historicamente, o dispositivo de cidadania remete-se à noção de civilidade

exercida pelo cidadão. Essa noção é óbvia e faz parte do senso comum ligar o conceito de

cidadania à existência da cidade (espaço territorializado) e ao papel dos cidadãos. Em primeiro

lugar, essa constatação que parece ser simplista carrega a possibilidade de múltiplas

interpretações ao se refletir a relação existente entre o espaço geográfico e seus habitantes. O

convívio social está, quase sempre, ligado ao desejo de satisfação entre todos os participantes

do grupo. Lapierre (2014) destaca, para que os homens permaneçam juntos e viverem de modo

razoável, respeitando os limites uns dos outros, é necessário haver um pacto coercitivo entre

eles. A reflexão de Lapierre se aproxima do pensamento Rousseauniano (2009). De modo

genérico, Rousseau, ao fazer referência à saída do homem do estado primitivo para a fase da

agregação de indivíduos, lembra que os desejos particulares chocam-se com os desejos dos

outros membros grupo, tendo a necessidade de implementar um “contrato social”. A ideia de

convenção social também está presente na obra de Hobbes (1974), como possibilidade de

parametrizar o convívio de pessoas em um mesmo local.

A cidadania – nesta Tese, é entendida como a ação protagonizada pelo indivíduo

dentro das cidades –, carece de normativas para sua existência. Marshall (1967), Carvalho

(2013) e Meksenas (2002) relacionam o dispositivo da cidadania à posse de obrigações que

precisam ser respeitadas e cumpridas por todos os sujeitos, sob pena de sofrer sanções. Carvalho

(2013), afirma que a condição de cidadão está associada à posse de direitos e deveres civis,

políticos e sociais. Marshall (1967, p.76), apreende o conceito de jus soli11 , afirmando que a

11 Termo latino que significa “direito ao solo”, indicando o princípio racional de reconhecimento do indivíduo pelo

local de nascimento. O jus soli se contrapõe ao jus sanguinis que determina o “direito ao sangue”. As duas

expressões correspondem ao modo de reconhecimento da cidadania em países que viveram o processo de

colonização, como é o caso do Brasil.

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cidadania é “um status concedido àqueles que são membros de uma comunidade”. Ressalta-se

que, para o autor, todos devem gozar das mesmas vantagens, dos mesmos direitos, por fazerem

parte da mesma sociedade. Nesse sentido, Rossueau (2009) e Hobbes (1974), refletem que, para

haver harmonia, é necessário o surgimento de alguma instituição que possa exercer de forma

justa o árbitro sobre todo tipo de conflito. O Estado e suas instituições de controle assumem a

responsabilidade de validar ou desqualificar atitudes dos cidadãos, promovendo ou coibindo

ações em prol da ordem da sociedade. Em nome dessa ordem, Weber (2013) afirma que cabe

ao Estado o uso legítimo da violência como forma de punição.

Sabe-se que os Estados nunca conseguiram manter em harmonia a justiça e a

igualdade. Tanto que, ao longo da história, a má condução dos governos contribuiu para tensões

sociais que acabaram desencadeando movimentos – até guerras – com o objetivo de ampliar os

direitos civis, políticos ou sociais. Então, a cidadania foi construída por meio de luta. Mas, essa

“luta” está atrelada a instrumentos de poder institucionalizados no imaginário social e que são

instituídos na sociedade. O cidadão conquista direitos, ao mesmo tempo em que adquire

obrigações, não apenas para manter a vida satisfatória na comunidade, mas por estar “preso” a

determinação normativa e pelo “pacto” forjado entre os indivíduos. Desse modo, cabe ao Estado

manter as estruturas hierárquicas de controle, enquanto na base os sujeitos passam a controlar

uns aos outros numa vigilância panóptica.

Quando evoca-se esse termo, lembra-se do projeto arquitetônico criado por

Jeremy Bentham para controlar doentes insanos, detentos etc, que serviu de base para reflexão

foucaultiana sobre os instrumentos de disciplina em manicômios, hospitais, escolas, indústrias,

presídios ou casas de correção, levando-o a compreender a importância do panóptico como

ferramenta de poder, afirmando: “quanto maior o número de informações em relação aos

indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos”

(FOUCAULT, 2008 ). Assim, Estado e os seus microrganismos fazem a gerencia centralizada

(característica do dispositivo) das estruturas políticas (sentido lato e strictu) responsáveis em

organizar a vida da sociedade, enquanto a sociedade se responsabiliza em garantir a ordem das

micro-estruturas no dia a dia. Desse modo, o cidadão não é somente aquele que faz parte do

Estado que lhe confere status de cidadania e reconhecimento entre seus concidadãos, mas é

aquele que gere as pequenas estruturas do cotidiano de modo vigilante em prol na manutenção

da ordem social. O dispositivo de cidadania controla e regula a vida cidadão, exigindo que não

seja passivo diante de um conjunto de variáveis que lhe ditam como existir, ao mesmo tempo

em que domina o corpo do sujeito sob a penalidade de perder a liberdade e os benefícios de ser

um cidadão.

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No entanto, sob o impacto do fenômeno glocal (TRIVINHO, 2007, 2012),

ampliado sobremaneira com a cibercultura, as ações políticas, civis e sociais expandem-se no

ambiente de rede. A esfera pública digital não é mais recortada por fronteiras geográficas. A

dicotomia público/privado são anulados pelo sistema dromocrático que reduz o Estado

(territorial), ao agregar em si todos os dispositivos de controle, vigilância e punição necessários

para manutenção do poder centralizador das estruturas governantes.

Segundo Manuel Castells (2003), tudo (absolutamente tudo) vigora como se

apenas ou predominantemente global (isto é, sem relação sociotecnológica

estrita com os lugares – sobretudo urbanos, já amplamente desterritorializados

pelo tempo real): a economia, como de resto os mercados (de bem e de

capital); as cidades; a ciência e a tecnologia, e assim por diante (mas não ainda

a mão de obra, segundo dados da última década do século passado).

(TRIVINHO, 2012, p. 62).

Antes, a cidade (polis) ou o Estado era o lugar para o exercício da cidadania e as

ruas os espaços de manifestações dos cidadãos. O debate prosaico entre grupos sociais era uma

das formas de atividade política, da ação interessada do indivíduo sobre assuntos que

impactavam sua vida e a vida da comunidade. Com o advento da civilização tecnológica, todo

o modo de viver sofre alteração. O ambiente do tempo real, promovido pelo dispositivo glocal,

que passa a ser, mais efetivamente, o “local” de encontro dos sujeitos, cidadãos do território

citadino, agora são os cidadãos-usuários de interação glocalizada. O debate, a manifestação, os

movimentos em prol de melhorias, ora restrito ao reduto público da cidade, passa a ser discutido

no “não lugar” (VIRILIO, 2000) da rede. Canclini (2008) reflete que os mecanismos de

informação fazem vir à tona tudo aquilo que acontece no Estado. Os veículos de comunicação,

desde os mass media, reconfiguraram os espaços políticos, os espaços públicos e os próprios

discursos, ao passarem a ocupar o lugar que, anteriormente, eram exclusivos do Estado e de

seus representantes nas relações com os cidadãos.

Não foram tanto as revoluções sociais, nem o estudo das culturas populares,

nem a sensibilidade excepcional de alguns movimentos alternativos na

política e na arte, quanto o crescimento vertiginoso das tecnologias

audiovisuais da comunicação, o que tornou patente como vinha mudando

desde o século passado o desenvolvimento do público e o exercício da

cidadania. Mas estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas

populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em

direção às práticas de consumo. Foram estabelecidas outras maneiras de se

informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e exercer

os direitos. Desiludidos com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, o

público recorre à rádio e à televisão para conseguir o que as instituições

cidadãs não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção.

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(CANCLINI, 2008, p. 38)

Desde a interferência das cadeias de televisão especializadas em informação

contínua que criam uma espécie de câmara eco planetária, permitindo que todos os

acontecimentos sejam filmados, retransmitidos em tempo real para todos os continentes,

comentados em ampla escala por especialistas de todas as nacionalidades, até a potência das

tecnologias móveis conectadas à web que permitem a produção de conteúdo pelo próprio

usuário, contribuíram para que o comportamento dos cidadãos fosse modificado, assim como

modificou o modo de exercício da cidadania. As relações cidadãs passam a ser mediadas por

dispositivos glocais, tanto para o exercício do voto com urnas eletrônicas que processam os

dados e divulgam resultados com menos de 24h do término do pleito eleitoral, quanto para

publicação de vídeos e comentários mostrando situações problemáticas do cotidiano do país,

das cidades ou dos bairros.

À luz da comunicação glocal, a opinião pública torna-se opinião “publicizada”.

Os sensos comuns, os preconceitos, os estereótipos, os “achismos” e as mentiras tomam

dimensão global, transformando-se em pauta de uma grande agenda planetária. O sentido dessas

opiniões públicas que emergem na visibilidade mediática, não é a criação de consenso, muito

pelo contrário. O poder descentrado do dispositivo glocal interfere nos mecanismos de acordo

das ideias, colaborando para que a dinâmica das relações seja conflituosa, com opiniões

fragmentadas, discussões acaloradas que surgem de qualquer ponto do globo, manifestações e

reclamações de direitos feridos que deixam vir à tona sofrimentos do reduto da vida real, mas

que são abafados com comentários reducionistas da dor do outro. Vale ressaltar, os dispositivos

glocais, ao mesmo tempo em que integra, também provoca afastamentos e segmentações de

modos de pensamentos.

Nesse sentido, o panoptismo reaparece sob as bases do dispositivo glocal com

novos sistemas de monitoramento, controle e vigilância dos indivíduos e, consequentemente,

da opinião pública, agora, publicizada. Qualquer movimento de pessoas, coisas ou informações

deixam rastros que podem ser monitorados eletronicamente para fins mercadológicos, políticos

ou policiais. A ameaça difusa e invisível disseminada por câmeras de vigilância ou de celulares,

perfis de usuários, em logs de navegação e em hastags tudo altamente protegido pelo bunker

glocalizado. Trivinho afirma que “O bunker parasitário da rede é a configuração tecnológica,

sociocultural e civil universalizada – espaço ambiental e psíquico corporal – do glocal, no qual

se preserva a militarização velada da existência e da experiência cotidianas” (TRIVINHO,

2012, p. 25). O panoptimo bunkerizado glocal permite não apenas o controle disciplinar e de

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confinamento do panóptico foucaultiano, mas de controles ainda mais sutis dos movimentos de

uma sociedade dromocrática.

Na sociedade dromocrática, o dispositivo da cidadania ressignifca-se ao sofrer

interferência dos dispositivos glocais. A visibilidade mediática e o tempo real agem no

imaginário social dos sujeitos, colaborando para o surgimento de uma nova forma de ação

cidadã em que usuários-cidadãos, de diversos pontos do país e do mundo, criam ou desfazem

comitês de discussões de pauta social relevante, formam eficazes manifestações utilizando

todos os recursos disponíveis na rede, organizam – sem coordenação central – mobilizações no

Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp e YouTube , alcançando números altos de adesão que

acabam repercutindo no ambiente real. Como foi o caso da Primavera Árabe, movimento

iniciado, em 2010, nas redes sociais contra a ditadura nos países árabes, impulsionaram uma

série de manifestações públicas em diversos países e trouxeram significativas implicações

geopolíticas. O resultado foi à derrubada de três chefes de Estado, Zine El Abidine Bem Ali, da

Tunísia; Hosni Mubarak, do Egito; e Muammar al-Gaddafi, da Líbia, torturado e morto

publicamente, após 30 anos de mandato. No Brasil, o movimento Passe Livre, em 2013,

também originado nas redes sociais, levou às ruas milhares de brasileiros pedindo a redução da

tarifa do transporte público, justificando-se apenas como manifestação social sem “apoio

partidário”, mas que acabou gerando consequências ao país, como o impeachment da presidente

Dilma, em seu segundo mandato, no ano de 2016. Nos Estados Unidos, Edward Snowden, ex-

administrador de sistemas da CIA, tornou público nos jornais The Guardian e The Whashington

Post, detalhes de programas norte americanos de vigilância global, ferindo a soberania dos

países vigiados. Esse fato ilustra perfeitamente a dimensão do panoptismo bunkerizado do

dispositivo glocal que atinge todas as esferas – das governamentais até a civil – em escala

planetária, fazendo os cidadãos viverem sob uma vigilância permanente, descentralizada, que,

além de controlar, também parametriza o exercício da cidadania.

A perda da privacidade, concebida como uma tríade de direitos: direito de não

ser monitorado, direito de não ser registrado, direito de não ter dados publicados, são superados

em nome da transparência necessária para garantir a segurança do cidadão. Essa mesma

transparência – característica da vigilância panóptica glocalizada – também favorece que os

sujeitos criem parâmetros de cidadania, comparando as ações desenvolvidas nos mais diversos

Estados, seja por meio de canais oficiais do governo, fontes jornalísticas ou até pelas redes

sociais. Desnudando problemas, de toda ordem, em tempo real. Deixando emergir que os

direitos que garantem a plenitude da cidadania ainda não foram capazes de atender a todos,

principalmente, as minorias. Outra questão importante é a influência do controle

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descentralizador do dispositivo glocal na fragmentação da percepção política da sociedade.

Vive-se uma onda global de polarização da politica, sendo: de um lado os “democratas” com

discurso de inclusão social e respeito às diversidades culturais, sexuais e religiosas, visando a

expansão da cidadania; e do outro lado, os conservadores, opositores à corrente democrática, e

adeptos a uma sociedade mais fechada, resistente ao pluralismo das ideias e dos modos de vida,

tornando a cidadania acessível a poucos e deixando os que vivem à margem na busca constante

por ela.

Então, sob a interferência do dispositivo glocal, a cidadania ressignifica-se,

passando a ser exercida no ambiente de rede e se transformando em cidadania glocal. A

cidadania glocal expande o conceito de cidadania, antes vinculado às atividades públicas da

polis ou do Estado, para ser vivida pelos sujeitos nos espaços virtuais à luz da velocidade

mediática. As pessoas podem reivindicar seus direitos, denunciar seus pares por não

corresponder aos seus deveres, tomar conhecimento das lutas das minorias (podendo aderir ou

não), promover manifestações ou boicotes, tecer críticas ao governo vigente, tudo isso favorece

o aparecimento de uma nova maneira de relacionamento com a política e com o espaço público.

Contudo, a cidadania glocalizada, por ser magma de significações imaginárias, carrega consigo

a lógica identitária mercadológica que mantem a cibercultura. Ao mesmo tempo em que o

cidadão ganha espaço para atuação “democrática” na rede, atrela-se ao cerne do capital e, com

isso, continua alimentando o processo de dominação e de exclusão característico do sistema.

No entanto, vale ressaltar que a cidadania glocalizada pode, em alguma medida, resultar em

benefícios concretos à sociedade, forçando tomada de decisões, sensibilizando os governantes

diante de uma causa relevantes para o benefício da sociedade, como, até mesmo, alterar leis do

país.

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CAPÍTULO 6 – A CIDADANIA GLOCAL

6.1. Cidadania ressignificada

A ressignificação da cidadania pelo fenômeno glocal ocorre tanto no modo como

passa a ser exercida, como no próprio conceito. O conceito e o exercício da cidadania,

anteriormente, limitavam-se à participação efetiva dos cidadãos no território citadino. No

entanto, para que o sujeito pudesse participar, era necessário que fosse reconhecido como

membro da polis ou do Estado. Esse reconhecimento garantia deveres para com a comunidade,

bem como, gozo de direitos que beneficiavam a sua vida (MARSHALL, ...). Após o fenômeno

glocal, potencializado com o advento da cibercultura, a cidadania amplia-se conceitualmente e

modifica a maneira como é exercida. Pois, ao sofrer imbricação com os dispositivos glocais,

supera o limite do território e expande-se no ambiente de rede. E nesse ambiente, os cidadãos-

usuários não necessitam de reconhecimento do Estado para participar dos assuntos relacionados

à comunidade. Assim como, interferem, dando seu parecer, sobre agendas dos Estados dos

quais não seriam reconhecidos como “cidadãos”.

Descentralizadamente, os sujeitos, protegidos por bunkers, montam estratégias,

organizam manifestações, publicizam opiniões que se pulverizam nas redes sociais, mobilizam

discussões sobre os direitos cidadãos, incluindo na pauta a luta das minorias e debatem sobre

as questões políticas, com visões polarizadas alimentadas por notícias fakes, que se transforma

em assunto diário nas plataformas online. Assim, a cidadania glocal pode ser conceituada

como participação imaginária em tempo real, instrumentalizada pelo bunker, que favorece os

cidadãos teleinteragentes a deixarem vir à luz da visibilidade mediática as questões que

envolvem a vida em sociedade atravessada pela condição transpolítica. Sobre a transpolítica,

Trivinho afirma:

A transpolítica não representa, portanto, a substituição da política, mas a

flacidez e comprometimento completos [...] é a corrosão da política sem

permitir que ela desapareça, mas sem estar sujeita diretamente à jurisdição

executiva, legislativa e penal, e, portanto, sem ser por ela integralmente

apanhada, gerenciada e controlada (TRIVINHO, 2012, p. 129)

Devido esse caráter transpolítico, a cidadania glocal se distancia da cidadania

tradicional, porque não está subordinada ao governo vigente nos países. Uma vez que constrói

o seu próprio mecanismo de política, de luta e de percepção de mundo. Não por outro motivo,

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a cidadania glocal pode ser contraditória, ao facilitar que os cidadãos, no ambiente de rede,

manifestem discursos que ferem os princípios dos direitos humanos, em prol do resgate de

valores morais e religiosos consolidados pela lógica conjuntista identitária no imaginário de

algumas classes sociais, na mesma medida que pode impulsionar causas relevantes para o bem

estar social, à luz do próprio direitos humanos.

O mundo vem sofrendo os impactos da cidadania glocal sem estar preparado

para as consequências dela. Esse modo de ação cidadã que ocorre ao largo do Estado, possui

mecanismos de controles descentralizados, ambientados no “não lugar” da rede, vinculado à

condição transpolítica, sendo difícil de ser gerido por mecanismos tradicionais. Uma vez que a

ação acontece por meio do imaginário, consolidando novos magmas de significações

imaginárias que serão instituídos na sociedade. Fake news, pós-verdades e bolhas, termos que

se tornaram comuns, apesar de ainda ser pouco estudado nas academias, são consequências da

cidadania glocalizada.

A cidadania glocalizada se faz pela atuação direta do cidadão nas redes. Não

estando ligada às ações em plataformas oficiais de governo, de comunicação ou ong’s. Ela

acontece durante a rotina, no acesso rápido às redes sociais, na adesão a grupos e comunidades

virtuais, no post que pode ser descomprometido ou responsável, ambos marcados pela hashtag,

ou até mesmo no repost. Por isso, a cidadania glocalizada difere-se do conceito de

ciberdemocracia e cibercidadania. Primeiro, porque ambos remetem a atitudes inclusivas em

rede que beneficiam a sociedade; segundo, estão ligadas à percepção de cidadania e de

democracia já institucionalizadas, como se fosse uma versão delas nos ambientes online.

A cidadania glocalizada é um novo modo de se “fazer” cidadão. Acontece,

potencialmente, via redes sociais, dividindo espaço com assuntos de todas as ordens, imagens

e publicidades. Ela é disseminada de um ponto e ganha adesão do coletivo por contágio, devido

o seu conteúdo estar, quase sempre, associado aos direitos dos cidadãos. Isso ocorre porque os

direitos são significações consolidadas no imaginário social como componentes que definem o

sentido de igualdade (MARSHALL, 2002). O sentido de igualdade é a lógica identitária que

constitui a base da cidadania desde a sua origem, apenas se altera de acordo com o modelo de

sociedade. Uma vez que a igualdade na polis é completamente distinta da noção de igualdade

nos sistemas democratas atuais. Nesse sentido, é válido retornar ao pensamento castoriano

(1986) que ressalta o quanto as significações imaginárias conferem sentido à existência e se

alteram de acordo com a importância que cada época lhes atribui. Essas significações são

responsáveis por definir a forma de vida dos sujeitos na comunidade. O que ocorre, na

civilização mediática, é o alargamento das significações que compõe o escopo dos direitos já

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existentes, numa tentativa de fazer com que todos os grupos possam se fazer presente no debate

glocal. Das feministas até os mais conservadores “lutam” de modo teleinteragente para que seus

direitos sejam garantidos.

Para que o cidadão possa exercer a cidadania glocal é necessário que, segundo

Trivinho (2007; 2012), haja atuação do sujeito em dois espaços, no domus (recinto doméstico

e espaço privado/público da cidade) e no não-lugar da rede, mediado pela velocidade

tecnológica que faz parte da condição glocal. Então, baseado no autor pode-se dizer que a

cidadania glocalizada está condicionada a quatro fatores: [1] Infra-estrutura e equipamentos:

a cidadania glocal faz parte do sistema dromocrático que vigora na cibercultura. Logo, para

acessar as comunidades virtuais, os sujeitos precisam ter capital financeiro e cognitivo para

manter a lógica de reciclagem estrutural12, adquirindo novos aparelhos eletrônicos informáticos

que permitam usar aplicativos atualizados diariamente, com o objetivo de participar ativamente

da recepção como da provisão dos conteúdos que circulam nas redes (TRIVINHO, 2007). [2]

Condição neo nômade: a ação teleinteragente do cidadão glocal está implicada na capacidade

de deslocamento rápido do corpo espectral nos ambientes de virtuais, passando teleexistir em

várias plataformas, engajando-se, simultaneamente, tanto em manifestações da internet, quanto

nas tarefas triviais (BAITELLO, 2012; VIRILIO, 2000). [3] Dromoaptidão: domínio das

senhas infotécnicas de acesso, para compreender os conteúdos e o modo como as manifestações

cidadãs serão promovidas (TRIVINHO, 2007, 2012). [4] Percepção dos direitos civis,

políticos e sociais: os três itens anteriores estão ligados ao uso dos dispositivos glocais, esse

último difere a cidadania de qualquer outra expressão na rede. Uma vez que os direitos sociais,

políticos e civis estão legitimados como base característica da cidadania (MARSALL, 1967).

Para se tornar mais compreensível, a seguir, serão apresentados alguns exemplos

de cidadania glocalizada. Esses exemplos obedeceram aos seguintes critérios: a) As postagens

foram extraídas das redes sociais Facebook e Twitter, no período entre 2016 a 2018. A escolha

pelo Facebook e Twitter deve-se ao maior número de engajamentos com a temática da

cidadania, mensuradas pelo uso de hashtags; b) os posts se referem a assuntos do contexto

brasileiro, separados pela categoria dos direitos políticos, sociais e civis.

12 Segundo Trivinho

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6.2. A tríade dos direitos na cidadania glocal

Como abordado ao longo desta Tese, Marshall (2002) desenvolveu a ideia de

cidadania a partir do conjunto de três elementos de natureza normativa: civil, política e social,

criadas e firmadas em séculos diferentes. Os direitos civis se formaram no século XVIII; os

direitos políticos, no século XIX, e os direitos sociais, no século XX. Por isso, o autor faz essa

separação didática da tríade dos direitos, considerando a construção histórica de cada um deles.

De acordo com o Marshall, foi a partir do século XVIII, na Europa Ocidental,

que surgiram condições favoráveis à conquista dos direitos civis, permitindo ao cidadão – a

todos os membros da sociedade, de modo abstrato; e, mas concretamente, somente à burguesia

– a capacidade jurídica de lutar pelos direitos necessários à liberdade individual. Ainda não se

tratava da posse concreta desses direitos pelas pessoas, apenas a possibilidade de alcançá-los.

Com a consolidação do primeiro grupo de direitos, surgiram, no século XIX, os direitos

políticos. Porém, a participação política se estruturou na Inglaterra após a consolidação dos

direitos civis. Ou seja, a partir dos direitos políticos houve a possibilidade da criação do direito

social, ao mesmo tempo em que permitiu ampliar os direitos civis a um maior número de

pessoas, sobretudo, com a emergência das sociedades democráticas. No século XX,

consolidam-se os direitos sociais, os quais se referem ao direito mínimo de bem-estar social.

Iniciam ainda no século de XIX, com os primeiros movimentos em prol de melhores condições

de trabalho. No entanto, foi, no século XX, que as conquistas foram alcançadas e o tripé dos

direitos passou a coexistir.

Vale ressaltar que o autor não tem a pretensão de “descartar” todo o processo

pelo qual a cidadania passou até chegar ao século XVIII. Essa delimitação temporal baseia-se

na premissa de que, até esse período, não havia como perceber a separação dos direitos, pois as

funções estatais faziam com que os eles fossem entendidos como se estivessem fundidos em

um só (MARSHALL, 2002, p. 10). Logo, os direitos não se distinguiam porque as instituições

também não eram distintas. Assim, a evolução da cidadania “envolveu um processo duplo, de

fusão e de separação. A fusão foi geográfica e a separação, funcional” (MARSHALL, 2002, p.

10). Quando as instituições que abarcavam os três elementos da cidadania se separaram, tornou-

se possível cada um dos direitos “seguir um caminho próprio, viajando numa velocidade própria

sob a direção de seus próprios princípios peculiares” (MARSHALL, 2002, p. 11); e, por

conseguinte, a fusão geográfica, por meio do nacionalismo das instituições não podia mais

pertencer totalmente à vida dos grupos sociais. Com esse sentido duplo que o tripé dos direitos

que compõem a cidadania se confirmou, tornando-se distintos entre si, e permitindo a Marshall,

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então, construir conceito para cada um deles (MARSHALL, 2002, p. 12).

No contexto brasileiro, é a partir da Constituição Federal de 1988, popularmente

conhecida como “constituição cidadã” que o tripé de direitos fica mais evidente, devido a

abrangência de aspectos tanto da ordem capitalista, com ênfase nos direitos civis, quanto na

ordem socialista, com foco nos direitos sociais, ambos implicados com a democracia, garantida

pelos direitos políticos. A Constituição corresponde, em certa medida, a vontade dos cidadãos

verem legitimada a ampliação dos direitos. Depois de 21 anos sob a ditadura militar e do cenário

internacional incerto, imerso na Guerra Fria, com o muro de Berlim ainda símbolo da divisão

geopolítica do mundo e da percepção de que o socialismo precisava ser vencido pelo

capitalismo, impulsionou o surgimento de pautas positivas de caráter social que contribuíram

para organização de grupos políticos, sindicatos e movimentos sociais. Contudo, na prática, a

cidadania brasileira foi sendo conquistada por meio de concessões do Estado à população, numa

sequência de programas assistencialistas que implementaram, pouco a pouco, os direitos e

criaram uma rotina na relação entre Estado-cidadão baseada na troca entre voto e direito social,

desfavorecendo o amadurecimento da cidadania. Uma vez que condiciona a sociedade enxergar

somente no ato de votar o mecanismo de ampliação de seus direitos.

Porém, nos últimos anos, o Brasil e o mundo começaram a experimentar, via

ambientes de rede, uma nova forma de cidadania, denominada de cidadania glocal. Como dito

anteriormente, a cidadania glocal vai para além da “cibercidadania” ou “ciberdemocracia” –

que possuem conotação info-inclusivas de acesso a canais institucionais – porque não necessita

de nenhuma instituição governamental ou não governamental para existir. A cidadania glocal é

o dispositivo de poder, vigilância e controle descentralizado que não está hospedado em

nenhuma plataforma institucional. Muito pelo contrário, o seu caráter transpolítico permite que

as ações cidadãs originem-se de qualquer ponto da rede e sejam mantidas pelo imaginário

bunker entendido, por Trivinho, como “um imaginário de desconfiança e refúgio” (2012, p.

156). Por isso, a cidadania glocal pauta-se nos direitos dos cidadãos. Afinal, o sistema

dromocrático que vigora na cibercultura, emergido da condição pós-moderna, conduz a

sociedade para um futuro repleto de incertezas e de desesperanças. E, garantir os direitos dos

cidadãos, garante a permanência do imaginário social que alimenta o sentimento de

pertencimento e de participação que compõe a lógica conjuntiva identitária da cidadania.

No entanto, essa lógica de participação e de pertença em grupos sociais é levada

às últimas consequências nos ambientes glocais interativos. Milhares de usuários se unem

construindo redes de produção e de compartilhamento de conteúdo de todos os tipos,

procurando dar visibilidade às suas causas, bem como, ser ouvido em suas necessidades. As

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vozes que ecoam nas redes sociais, mesmo muitas vezes confusas, ganham apoio de milhões de

usuários que enxergam nessa adesão a oportunidade de manifestar insatisfações, sugestões e

preocupações reais que partem da experiência real do dia a dia. E, num cenário político repleto

de instabilidade, com sistemas de governo desacreditados, mídia tradicional enfraquecida e

economia instável, as desigualdades e os problemas de todas as ordens da sociedade ficam ainda

mais evidentes, passando a virar motivo de pauta de discussões nas redes sociais. Pode ser que

as discussões impulsionem criação de leis ou mudanças de ideologias, mas a certeza é de que o

imaginário social se transforma e, por consequência, muda o modo de ser e de viver da

sociedade, contribuindo para que o exercício da cidadania se ressignifique.

A cidadania glocal se faz, também, por meio de hashtags: palavras-chaves que

ganham novas funções no ambiente tecnológico interativo. Por isso, tomando como base a

reflexão de Trivinho sobre as linguagens tecnológicas e a sociossemiose plena da interatividade

(2007), é possível afirmar que as hashtags estão incluídas nessas linguagens que abrangem o

arco diversificado de signos de fácil identificação nas redes sociais. Elas possuem referencia

pragmática que não se reduz ao que é exposto na tela, pois

No fundo, lateja, nesses e por esses dados, o conjunto de ingredientes

tecnoestéticos responsáveis pela promoção transpolítica (não discursiva, não

explícita e pouco sistêmica) da cibercultura como configuração material,

simbólica e imaginária de época, e que, por isso, se arranjam, historicamente,

na modalidade (do que se pode chamar) de uma sociossemiose plena da

interatividade, linguagem internacional monopolista, de caráter

intencionalmente facilitador – tomada, assim, de maneira equívoca, como

“popular” –, que, legitimada pelo mercado, acompanha e sustenta a produção

e o consumo da interatividade como forma predominante de relação social,

seja com a alteridade humana (outro virtual) e com a alteridade maquínica

(objeto infotecnológico), seja com a alteridade mundo (a rede como ator

teleinteragente de resposta programada e automática), na esfera do trabalho e

na do tempo livre e de lazer (TRIVINHO, 2007, p. )

As hashtags começaram a ser usadas a partir de 2007, como ferramenta de

indexação no site Twitter. Rapidamente, passaram a ser utilizadas nas outras redes sociais como

mecanismo de agrupamento de postagens, articulando palavras, frases ou expressões precedidas

pelo símbolo sustenido “#”. No exercício da cidadania glocalizada, as hashtags são

imprescindíveis, pois os cidadãos-usuários passam a utiliza-la para dar visibilidade a uma

determinada pauta, causando comoção/indignação e fazendo com que as pessoas se agrupem

em torno do mesmo ideal. Tornando público a maneira como se posicionam, direcionando as

informações contidas na web sob os mais variados temas e, assim, possibilitando maior

participação e cooperação dos sujeitos, sobretudo, em assuntos que versem sobre os direitos do

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cidadão.

Desde o ano de 2016, as pautas feministas e LBTQI se intensificaram e passaram

a repercutir positivamente nas redes sociais, possibilitando a ampliação do debate que transita

entre os direitos civis e sociais. Atos de violência contra a mulher, como assédio em transportes

públicos ou no trabalho, agressões físicas ou temas como aborto e licença maternidade passaram

a ganhar visibilidade por meio da hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas. Essa hashtag

foi criada por Mariana Varella, do blog Chorumelas13, em 2017, e passou a ser utilizada para

engajamento às causas de cunho feminista. A luta feminina pela garantia dos seus direitos civis

e sociais não é recente. Mas, foi por meio da ação glocal que ganhou mais visibilidade, fazendo

vir à tona a lógica conjuntista identitária presente no imaginário social-histórico brasileiro

(CASTORIADIS, 1986), consolidado no período da colonização, que fortalece a naturalização

e a tolerância dos casos de violação contra mulher, mostrando a necessidade urgente de punir o

agressor e de não culpabilizar a vítima. Por isso, a hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas

incentiva as mulheres a não se calarem diante de violências de todas as ordens, permitindo que

outras mulheres se engajem na causa, por meio da sororiedade.

No exercício da função do patriarcal, os homens detêm o poder de determinar

a conduta das categorias sociais nomeadas. Recebendo autorização ou, pelo

menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como

desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas

potenciais, de trilhar caminhos diversos dos prescritos pelas normas sociais, a

execução do projeto dominação exploração da categoria homem exige que sua

capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, ideologia de

gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas aos ditames do

patriarca, tendo este a necessidade de fazer o uso da violência (SAFFIOTI,

2001, p.115).

A hashtag já foi utilizada mais 324.657.876 vezes, desde quando foi criada,

somando as três principais redes sociais: Facebook, Instagram e Twitter. Os posts a seguir, terão

as identidades dos usuários preservadas, pois o foco é ecomo a cidadania glocal emerge

ressignificando o modelo de cidadania já consolidado, permitindo que o maior número de

pessoas se engaje em discussões sobre a garantia dos seus direitos e do papel do Estado na

proteção deles.

13 Blog dedicado a temática de gênero, disponível em: <http://marianavarella.blogspot.com/>.

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Imagem 1: #MexeuComUmaMexeuComTodas

Fonte: Twitter

Os posts podem ser analisados sob a perspectiva dos direitos civis e sociais. A

luta e o engajamento das mulheres nas redes sociais visam o reconhecimento do principio da

igualdade – prevista na constituição de 1988 – dos direitos que possibilitem a liberdade de ir e

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vir com segurança, diminuindo os números de casos de assédios e de estupros, garantindo que

esses crimes sejam punidos de maneira mais efetiva. Caso alguma mulher seja vítima de

violência, cabe ao Estado garantir proteção e auxilio sem expô-la a mais constrangimentos e

sofrimentos. A partir dos anos 2000, houve um significativo avanço no cenário brasileiro com

a conquista de alguns instrumentos legais que reconhecem a necessidade de incentivar o

exercício da cidadania, com o acesso ao direito, à participação política e social da mulher. O

Plano Nacional de Políticas para as mulheres – PNPM/2006, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da

Penha) legitimada, permitiu a implementar políticas de prevenção, de enfrentamento e de

assistência às mulheres em situação de violência. Em 2013, mais uma conquista que veio

através da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Mulher- PNAISM/2013,

propiciando o atendimento, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – por exigência do próprio

Ministério da Saúde (MS) –, e assistência à mulher vítima de violência doméstica, bem como,

diagnóstico e tratamento do câncer do colo do útero, orientação sobre métodos reprodutivos e

contraceptivos, entre outras ações de promoçap que visassem atenção e promoção dos direitos

que nesse seguimento são demandas específicas do público feminino. Diante dessas pequenas

conquistas, em novembro de 2018, foi votada a primeira versão do projeto de lei que interfere

na interpretação de todas as outras leis e portarias que autorizam serviços de aborto legalizado

no Brasil, tais como: em casos de gravidez originada de estupro, anencefalia e risco à vida da

grávida. Além disso, a conhecida PEC 181/15 modifica outros artigos da constituição que

tratam da licença-maternidade. Diante disso, nova manifestação da cidadania glocal emergiu

na rede, tendo a mesma hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas como indicativo de alerta

de que as mulheres estavam, mais uma vez, com seus direitos fragilizados.

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Imagem 2: PEC 1818/15

Fonte: Twitter

Vale ressaltar que o movimento feminista, no período de democratização do

Brasil, contribuiu de maneira significativa para que se fortalecessem as políticas de

enfrentamento à violência que havia sido instituída pelo período ditatorial. Esse imaginário

contra todo o tipo de barbárie e de silenciamento das minorias converteu-se em pauta recente

no período eleitoral de 2018. Por isso, pode-se afirmar que a cidadania glocal foi exercida

amplamente durante este período, protagonizada por mulheres na campanha com a hashtag

#ELENÃO.

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Imagem 3: #ELENÃO

Fonte: Twitter e Facebook

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Conhecido como movimento #ELENÃO, iniciado no Facebook, teve em menos

de 24h adesão de mais de três milhões de mulheres que se organizaram para manifesto contra

o, até então candidato, Jair Bolsonaro, hoje, presidente eleito. Mesmo não conseguindo atingir

o objetivo de conscientizar sobre a agenda conservadora que compunha o plano de governo de

Bolsonaro, a ponto de mudar a intenção de voto da maioria dos brasileiros, a ação foi

considerada um sucesso, tanto nas redes sociais, quanto nas mobilizações coletivas que levaram

às ruas milhares de pessoas em 114 cidades no Brasil e fora do país, com manifestos nas cidades

de Nova York, Lisboa, Paris, Alemanha e Londres. Essa repercussão positiva deve-se a esse

novo modo de exercer a cidadania que independente das instituições do Estado – apenas

protegido pelo bunker tecnológico –, consegue articular de modo descentralizados mecanismos

de resistência ou, até mesmo, de consolidação da lógica conjuntista identitária vigente no social-

histórico da sociedade contemporânea (CASTORIADIS, 1986; TRIVINHO, 2001, 2007,

2012). Devido avaliação positiva do movimento, uma das páginas criadas no Facebook, cujo

nome é MUCB (Mulheres Unidas Contra Bolsonaro), após a eleição de Jair Bolsonaro, não saiu

do ar e passou a incorporar pautas de resistências contra a perda de qualquer direito do cidadão.

Sendo uma página de cunho feminista em que o feminismo não é reduzido às causas

exclusivamente femininas, como o senso comum imagina que seja. Mas sim, como

protagonismo feminino em defesa da democracia e dos direitos dos humanos.

A cidadania glocal também é exercida de modo efetivo pelo grupo LGBTI que

luta contra o preconceito e pelo reconhecimento como cidadão, garantindo direitos que

respeitem suas diferenças. A Constituição Federal prevê a promoção do bem de todos sem

preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou religião. Porém, o Brasil como um país

conservador, a discriminação e o preconceito estão presentes no dia a dia. Muito embora nos

últimos anos alguns avanços foram conquistados no campo civil, com o direito à família

(casamento e adoção de filhos). Mas mesmo assim, no direito social, pouco se avançou. O país

é reconhecido pela violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e

transgêneros. Os episódios quase diários de agressões físicas e homicídios, reportados pela

imprensa de todas as regiões, são apenas a face mais visível da realidade cotidiana de

preconceito e privação de direitos enfrentada pela população LGBTI nos espaços públicos, no

mercado de trabalho, na mídia, nas escolas e, muitas vezes, até mesmo na própria família.

A luta pela superação do preconceito se fortaleceu com o movimento

#ELENÃO, em setembro e outubro de 2018, que incluiu todas as pautas voltadas para garantia

dos direitos humanos. Uma vez que o candidato Bolsonaro, não apenas propunha uma agenda

conservadora, como também passou a ser conhecido, através da mídia, pelo seu discurso

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preconceituoso.

Imagem 4: #ELENÃO e #LOVEWINS

Fonte: Twitter

O movimento LGBTQI teve inicio no Brasil ainda na década de 70, em plena

ditadura militar. Motivados pela perseguição e torturas provocadas pelo regime, um grupo de

homossexuais se organizou e criou o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) para lutar

contra a discriminação e pela garantia do respeito às diferenças de orientação sexual. Somente

nos anos 90, o movimento foi nomeado como LGBT e passou a incluir pautas de identidade de

gênero e sexualidades. A emergência da AIDS impulsionou o poder público a instituir políticas

positivas de combate à doença, bem como, mobilizou campanhas sobre orientação sexual, tendo

em vista a promoção do direito individual à liberdade de sexualidade e a igualdade dos direitos

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civis, como a união estável que garante ao cônjuge da relação homoafetiva, os mesmos direitos

dos casais heterossexuais.

Os direitos civis, políticos e sociais também tomaram o centro das redes sociais

com mais duas manifestações consolidadas pela cidadania glocal: o movimento

#NENHUMDIREITOAMENOS em protesto contra a reforma da previdência, reforma

trabalhista, entre outras demandas promovidas pelo governo de Michel Temer, as quais limitam

ou excluem os direitos conquistados em governos anteriores.

Imagem 5: #NenhumDireitoAMenos

Fonte: Twitter

Os direitos trabalhistas e previdenciários estão entre os direitos sociais, civis e

políticos, conquistados tardiamente pelos brasileiros. Segundo Carvalho (2013), o Ministério

do Trabalho foi criado somente em 1930. Em seguida foi implementada legislação trabalhista

e previdenciária, cuja consolidação ocorreu em 1943, com as Leis do Trabalho (CLT). Depois

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disso, o Brasil viveu processo de estagnação na conquista de direitos. Para em seguida, amargar

retrocessos com o Golpe Militar. Contudo, em 1970, no auge da ditadura, houve a fundação do

Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que passou a garantir benefício da

aposentadoria, da pensão e da assistência médica. Também foi criado o Fundo de Garantia por

Tempo de Serviço (FGTS), possibilitando ao recém-desempregado apoio financeiro por alguns

meses, tendo em vista o seu retorno ao mercado de trabalho. Esses direitos, quando

institucionalizados, foram compreendidos como a verdadeira ruptura com uma história marcada

pelo trabalho escravo. Então, a perda ou a restrição deles, simboliza, no campo do imaginário,

a negação dessa herança brasileira ainda não superada.

Como abordado anteriormente, a condição transpolítica inserida na cidadania

glocal colabora para o distanciamento da percepção de cidadania institucionalizada,

construindo uma nova percepção de mundo. Isso quer dizer que nos ambientes de tempo real,

a agenda cidadã está ligada às significações imaginárias instituídas no imaginário dos grupos

sociais. Por isso, podem ser percebidas de modo diferente pelos grupos que compõem as redes

sociais. Um exemplo disso é a discussão sobre a implantação da Escola Sem Partido. A

liberdade de expressão e de cátedra, direitos previstos pela Constituição Federal passam a ser

relativizados em detrimento da discussão sobre “o ensino de ideologias dentro da escola”. Esse

tipo de discussão é do reduto do imaginário, das significações que constitui a lógica-consjuntista

identitária presente no magma de significações do povo brasileiro. Por isso, a cidadania glocal

não pode ser confundida como “cibercidadania” ou “ciberdemocracia”. Ela não é extensão do

real para o glocal, nem tão pouco está ligada a inclusão, muito pelo contrário, pois permite que

as ideias divergentes caminhem juntas., como é possível perceber no número de

compartilhamento e reações em uma das páginas da Escola sem Partido, no Facebook , na

mesma medida em que há mais de 67.847 engajamentos por meio da hashtag

#ESCOLASEMMORDAÇA.

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Imagens 6: #ESCOLASEMPARTIDO e #ESCOLASEMMORDAÇA

Fonte: Twitter e Facebook

A partir desses exemplos, é possível compreender que a cidadania ressignifica-

se no espaço glocal, porque seu exercício está condicionado à lógica da reciclagem estrutural

provocada pelo sistema dromocrático da cibercultura. A cidadania, por ser dispositivo, altera-

se e passa a vigorar dispositivo de poder descentralizado. Uma vez que, protegidos pelo bunker

tecnológico e imaginário, cidadãos teleinteragindo de qualquer ponto da rede, criam pautas

sobre os direitos, utilizando-se das hashtags para dar visibilidade e adesão por contágio as suas

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ideias e lutas pelos direitos. Contudo, vale ressaltar, que a cidadania glocalizada é apenas mais

um magma de significações imaginárias da cibercultura. Como previsto por Castoriadis, a

sociedade institui e é instituída por magmas. Ou seja, o magma da ressignificação da cidadania

se sobrepõe aos demais magmas presentes na história, fazendo com que sempre venha à tona a

lógica conjuntista identitária do preconceito, da discriminação entre classes do pensamento

herdado pelo processo da colonização brasileira. Por isso, a emergência de pautas sobre os

direitos como mecanismo de reação imaginária as práticas permanentes no dia a dia do país.

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CONCLUSÃO

A relevância desta Tese se dá pela necessidade de perceber como ocorre a

ressignificação da cidadania pelo fenômeno glocal. O processo de virtualização de todas as

coisas faz emergir o desejo eminentemente glocal de se fazer parte do mundo em rede para

sentir-se cidadão cibercultural – incluindo todas as “prerrogativas” de cidadão do mundo

infotecnológico. Por isso, é imprescindível questionar como se configura a nova forma de

exercício da cidadania ao sofrer implicações do paradigma cibernético. Isso recorda,

sobremaneira, o que Agamben (2009, p. 47-49) pondera sobre a subjetivação em relação aos

dispositivos na atualidade, na qual o sujeito resultante desse processo teria uma forma espectral

que sobrevive permanentemente numa utopia teleinteragente. Essa utopia favorece o uso

frequente de dispositivos glocais em todas as dimensões da vida, desde a esfera do trabalho ao

do lazer. É nesse contexto que a cidadania, sempre entendida pela sua função participativa no

território físico do Estado, passa a ser exercida nos ambientes de rede, favorecendo com que os

cidadãos se sintam motivados a se engajar em causas voltadas para os direitos civis, sociais e

políticos. Como se fosse uma tentativa de não permitir que a fluidez e a desesperança

característica do imaginário pós-moderno fosse capaz de ruir, de vez, com o imaginário

iluminista presente na significação dos direitos conquistados pelo povo.

A cidadania ressignificada é a cidadania glocal que vigora como comprovação

de que a dromocracia vigora como sistema invisível de poder, ao se inserir veladamente em

todas as ações do cotidiano, se transformando em mecanismo imprescindível de sobrevivência

na cibercultura, implicando em transformações significativas na forma das pessoas se

relacionarem uma com as outras e com as instituições. Diante disso, não há como negar que a

cidadania – antes vinculada ao território – passe também a vigorar nos ambientes de rede. A

intensa vinculação do humano ao dispositivo glocal colabora para que as práticas cidadãs

deixem se ser exercidas no território da polis (no sentido figurado) e passem a ser exercidas no

“não lugar” das redes sociais. O cidadão neonômade transforma-se em ativista, manifestando-

se, participando, opinando sobre os mais diversos assuntos, sem sequer sair de casa. Ou se sair,

com certeza, foi impulsionado pelas ações estimuladas nas redes sociais.

Sob as bases da civilização mediática, gerida pelo sistema dromocrático, a

cidadania glocal emerge condicionada a lógica da mais potência. Uma vez que, os cidadãos em

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modo descentralizado e protegidos por bunkers, montam estratégias, organizam manifestações

e transformam suas opiniões em publicidade. Todas essas ações se misturam e se pulverizam

entre os demais elementos que compõe as redes. Exatamente por isso, as FakeNews que

marcaram o processo eleitoral no Brasil, no ano de 2018, mas que vem sendo usada como

ferramenta escusa que fragiliza as sociedades democráticas, são facilmente disseminadas e

incorporadas no imaginário social dos cidadãos. Porque, elas são a versão violenta e, porque

não, mortal – para fazer memória à Paul Virilio, da cidadania glocalizada.

A cidadania glocal ocorre pela atuação do cidadão nas redes sociais. Devido não

estar ligada a nenhum canal oficial de governo ou de instituições públicas ou privadas, o cidadão

passa a ter controle da pauta do dia. É ele que produz e interfere nas ações de compartilhamento

e na adesão por contágio por meio das hashtags. Então, a cidadania glocal acontece no dia a

dia, em meio à rotina, no acesso rápido às redes. Por isso, mais uma vez, ressalta-se que em

nada tem a ver com os conceitos de ciberdemocracia ou cibercidadania, já amplamente refletido

nos meios acadêmicos. Porque, o elemento fundamental da cidadania glocal é a condição

transpolítica (TRIVINHO, 2007; 2012), que compõe o seu significado. É a transpolítica que a

ressignifica, pois, esvazia o sentido de política que sempre esteve presente no conceito

tradicional de cidadania.

A presente Tese sustentada neste trabalho é que a cidadania glocal promove,

tanto a ressignificação do conceito como no modo em que é exercida. No aspecto conceitual,

pode-se afirmar que a cidadania glocal trata-se da participação imaginária em tempo real,

instrumentalizada pelo bunker, que favorece os cidadãos teleinteragentes a deixarem vir à luz

da visibilidade mediática as questões que envolvem a vida em sociedade atravessada pela

condição transpolítica. Quanto ao modo de exercício da cidadania glocal, o cidadão precisa de

[1] Infra-estrutura e equipamentos;[2] condição neo nômade;[3] Dromoaptidão e [4]

Percepção dos direitos civis, políticos e sociais. Assim, a cidadania glocalizada, por emergir

de uma sociedade “transnacionalmente imaginada”, supera os vínculos com os Estados

Nacionais para se retroalimentar de acordos realizados no ciberespaço, redimensionando o seu

caráter político e exercendo, a um só tempo: [a] a função de poder individual e descentralizado

protegido por um vigilantismo panóptico (FOUCALT, 1987) rentável para o desenvolvimento

da transnação; [b] a busca continua pela privacidade e pela visibilidade; [c] a liberdade, sem

medida e com face democratizante, do compartilhamento de mensagens e de bens simbólicos

que ampliam e geram debates em torno dos direitos dos cidadãos.

Vale ressaltar que, no atual cenário político brasileiro, em que a democracia está

em risco, bem como, as instituições que compõe a República encontram-se fragilizadas, as redes

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sociais serão ferramentas de articulação da cidadania e de resistência às forças de controle do

poder do Estado, mas do que nunca o Brasil e o mundo passarão a conviver com a cidadania

glocalizada em escala planetária.

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