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©2016 Leandro R. PinheiroDireitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra

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permissão da editora e/ou autor.

P6551 Pinheiro, Leandro R.Identidades em narrativa: práticas e reflexividades na periferia/Leandro R. Pinheiro. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

288 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-462-0124-2

1. Periferia 2. Cultura 3. Juventude 4. Desigualdade social I. Pinheiro, Leandro R.

CDD: 300

IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

Foi Feito Depósito Legal

Índices para catálogo sistemático:Interação social dentro de grupos 302.3

Cultura popular 306

Planejamento e desenvolvimento de comunidades 307.1

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Àqueles com quem aprendi a navegar,aos que caminham comigoe ao sol da primavera.

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Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) por patrocinar a 1ª edição desta obra, então distribuída para instituições e agentes da área de Educação.

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SumárioPrefácio: prácticas, experiencias y vida cotidiana en la periferia – por Mariano Perelman, 7

Apresentação, 13

1. Entre identidades e narrativas: inspirações e potências de noções em contraste, 19

Identidades, descentramentos e diferença, 20 • Identidades e reflexividades, 28 • Entre reflexividades, identidades e narrativas, 37 • Identidades, narrativas e espaço de ação, 44 • E, por fim, um jeito de dialogar, 53

2. Sobre com quem se fala: reflexões para ir às periferias, 59

3. Entre educadoras e educadores sociais, tensionamentosde quem deseja emancipar, 69

Buscando diálogos, 70 • Trajetória de uma prática, história de um campo, 72 • Tensões do cotidiano, vetores de pertencimento e reflexividade, 80 • E, por fim... considerações sobre as condições de poder, 95

4. Catadoras, catadores e suas práticas: para um esboço de táticas e expectativas, 103

Detalhes do percurso, 105 • A desenhar um contexto, 107 • Entre condições e pertenças, a relação com a prática, 116 • Táticas e prioridades, 124

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5. Mulheres, sociabilidades e política no cotidiano: reflexões de um encontro, 131

Para compreender o itinerário, 132 • Sujeitos e propósitosde quem enuncia, 136 • Em campo, condições e pertencimentos de mulheres trabalhadoras, 143 • Economia solidária e trabalhadoras na periferia, 154 • Para seguir em problematizações..., 161

6. Para divergir e enunciar: as identidades no hip hop, 165

Sobre os referentes do percurso, 166 • Reflexões sobre a cena hip hop, 170 • As identidades e as tomadas de posição, 177• Para seguir... potências e limitações a um movimento social, 193

7. Aos passos com bboys: identidades e individuações na prática do break, 197

Para compreender..., 198 • O contexto e a crew: o ponto de encontro, 203 • Individuações em narrativa, 207 • Sobre as dinâmicas reflexivas: o grupo, os ensaios e a singularização, 226• Ainda sobre individuações, o break e a reflexividade, 237

8. Ensaio sobre as dúvidas: reflexividades e narrativas no redesenhar do itinerário, 241

Referências, 269

Apêndice, 285

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PrEFáCioPrácticas, experiencias y vida cotidiana en la periferia

por Mariano Perelman1

Indagar en las periferias es una tarea compleja. No sólo porque eso que llamamos periferia es una construcción an-tes imaginaria que espacial (y no por ello menos real) sino, justamente por esta razón, por la cantidad de diferentes ex-periencias sociales que en ellas encontramos. La experiencia de clase es una experiencia de clase, pero es a la vez una ex-periencia cotidiana que se afirma, transforma, condiciona – bajo ciertos marcos históricos – en las prácticas que constru-yen las identidades territorializadas de los grupos sociales. Las vivencias múltiples que van construyendo la experiencia de vivir en la periferia, entonces, no puede entenderse sin pensar en una idea (imaginada, pero a la vez real) de la “no periferia” y de las múltiples formas de experimentar y vivir en la periferia. Como todo “lugar”, la periferia, se construye – y los investigadores sociales contribuimos fuertemente a ello – práctica e imaginariamente en relación (y oposición) a otro lugar, “el centro”. Lo que no niega el uso de la idea-categoría de periferia, hoy un término de uso común, que como catego-ría analítica o nativa pueden expresar cosas diferentes, al que los diferentes actores hacen alusión.

El proceso de esa desconstrucción entonces es importan-te en varios sentidos. En primer lugar, resulta necesario para

1. Docente del Departamento de Antropología de la Facultad de Filosofía y Letras. Profesor del programa de doctorado en Ciencias Sociales (UBA). Investigador Asis-tente del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Li-cenciado en Antropología Social (Universidad de Buenos Aires); Doctor en Antropo-logía por la Universidad de Buenos Aires.

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subjetivizar a las miles de personas que viven en la periferia, mostrando sus particularidades y sus modos de vida. Dan-do cuenta de su creatividad, de sus sentimientos, de la do-minación y de sus resistencias, de las imposiciones y de las agencias2. Al mismo tiempo esto requiere un fuerte trabajo socio-político en cuanto resulta necesario no reificar la vidas de estas personas y caer en visiones miserabilistas.

Para ello es imprescindible abordar los fenómenos so-ciales tanto en las dimensiones estructurales como en los procesos subjetivos. De alguna manera esta necesidad había sido marcada por Karel Kosic3, quién planteaba que la “exis-tencia real” y las formas fenoménicas de la realidad pueden ser diferentes (y con frecuencia contradictorias) respecto de la ley del fenómeno, de la estructura de la cosa, o del núcleo interno esencial y su concepto correspondiente. Esta misma línea es retomada por los estudios que buscan complejizar las análisis de los procesos económicos dando cuenta de los procesos históricos y de los modos en que las personas en-tienden lo que es una vida que vale la pena vivir, los modos dignos y legítimos de acceder a la reproducción social4. Esta visión implica centrarse en los procesos de reproducción so-cial no sólo como formas de obtención de dinero sino como maneras de integración social y modos socialmente reconoci-dos de vivir. Este nivel de análisis, resulta esencial en la com-prensión y construcción de los procesos sociales: el de las

2. Ver por ejemplo Fonseca, Claudia. La clase social y su recusación etnográfica. Etno-

grafías contemporáneas, n. 1, p. 117-38, 2005; Ortner, Sherry B. Anthropology and social

theory: culture, power, and the acting subject. Durham: Duke University Press, 2006.3. Kosík, Karel. Dialéctica de lo concreto. México: Grijalbo, 1967.4. L’Etoile, Benoît de. Money is good, but a friend is better: uncertainty, orientation to the future, and “the economy”. Current Anthropology, 55, n. S9, p. 62-73, aug. 2014; Narotzky, Susana and Besnier, Niko. Crisis, value, and hope: rethinking the economy. Current Anthropology, 55, n. S9, p. 4-16, aug. 2014; Perelman, Mariano D. La cons-trucción de la idea de trabajo digno en los cirujas de la ciudad de Buenos Aires. In-

tersecciones en antropología, 12, n. 1, p. 69-81, jul. 2011.

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prácticas de las personas ordinarias (por llamarlas de alguna forma)5. Esto es, las experiencias de estas personas, qué es lo que entienden por una vida digna a ser vivida, cómo constru-yen legítimamente a sus prácticas relativas a la reproducción social pero también los gustos cotidianos, los sentimientos, las moralidades, etc.; esto que es la carnadura de las vidas, el “cómo de las acciones” por lo cual definen espacios, modos de acción, sensaciones, ideas sobre el mundo.

Estas experiencias históricas en un espacio-tiempo deter-minado van construyendo procesos de identificación tanto hacía adentro como hacia afuera. Las personas usan y cons-truyen la ciudad de diferentes formas. Las maneras en que el territorio es vivido, limitado, diferenciado, imaginado, sim-bolizado producen modos de identificación que son móviles y contrastativos, que pueden transformarse en fundamentos para la desigualdad social o funcionar como marcas de distin-ción y estatus dentro de los barrios. Ello porque estas formas se producen en el marco de procesos históricos y de relaciones de poder territorializadas. O sea, una misma práctica puede generar status, autoridad en un contexto y en un territorio de-terminado pero en otro configurarse como todo lo contrario.

La vida en los márgenes, en las periferias entonces, no puede entenderse sino a partir de la (re)construcción de fronteras tanto físicas como simbólicas en el marco de un or-den urbano entendido como un conjunto de normas y reglas

5. No estoy del todo de acuerdo con la diferenciación entre saberes eruditos, espe-cializados y los saberes ordinarios. Sin embargo, dado la riqueza de gran parte de la literatura que cuestiona los discursos eruditos y que se refiere de esta forma, he decidido utilizar el término para una mejor lectura de este breve texto. Por ejem-plo Neiburg, Federico. As moedas doentes, os números públicos e a antropologia do dinheiro. Mana, 13, n. 1, p. 119-51, 2007; Weber, Florence. Práticas econômicas e formas ordinárias de cálculo, Mana, 8, n. 2, p. 151-82, 2002; Narotzky, Susana and Besnier, Niko. Crisis, value, and hope: rethinking the economy. Current Anthropology, 55, n. S9, p. 4-16, aug. 2014.

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tanto formales (pertenecientes a alguna jerarquía del orden jurídico) como convencionales a las que recurren los habi-tantes de la ciudad explícita o tácitamente en el desarrollo de las prácticas relacionadas con los usos y las formas de apro-piación de los espacios y bienes públicos o de uso colectivo que, más allá de la vivienda, son los elementos constitutivos de la ciudad6. En este sentido, es posible pensar al orden urbano como un orden moral – o con una moralidad hege-mónica – y con fronteras sociales, simbólicas que delimitan esos espacios. En el espacio urbano es posible reconocer la existencia de fronteras en tanto distinciones y clasificaciones hechas por los propios actores sociales para categorizar ob-jetos, personas, prácticas y espacios7. Esas categorizaciones producen y conllevan, como dije, identificaciones hacia aden-tro y diferenciaciones frente a “otros”8.

Son prácticas cotidianas compartidas de discriminación, explotación, humillación pero también son experiencias y prácticas de diversión, identificación, sensibilización, pro-ducción de discursos sobre sus vidas, los que construyen ese mundo social en las periferias. Las identidades o identifica-ciones pensadas de manera territorial permiten ver toda esta multiplicidad que está entrelazada con procesos que tienen

6. Duhau, Emilio y Giglia, Ángela. Conflictos por el espacio y orden urbano. Estudios

demográficos y urbanos, 56, p. 257-288, 2004.7. Lamont, Michèle and Molnár, Virág. The Study of boundaries in the social sciences. Annual Review of Sociology, 28, n. 1, p. 167-195, 2002.8. Balbi, Fernando. De Leales, desleales y traidores – valor moral y concepción de po-

lítica en el peronismo. Buenos Aires: GIAPER-Antropofagia, 2007 sostiene que refe-rirse a un comportamiento relacionado con valores morales es hablar de acciones que revelan sistemáticamente la preferencia de determinados cursos de acción en función de su deseabilidad y obligatoriedad, siendo que esa preferencia es formula-da conceptualmente y que la opción en su favor es estimulada a través de una carga emotiva adherida a su formulación conceptual.

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otras temporalidades9 y que deben ser tenidos en cuenta al comprender los procesos que van sedimentando las prácti-cas sociales.

Por todo ello, indagar en las periferias es un ejercicio nada sencillo pero a la vez fascinante. Con ello se encontrará el lector de este libro.

9. Santiago Bachiller ha expuesto para el caso de la ciudad de Comodoro Rivadavia lo que una propuesta de análisis centrada en la territorialidad nos permite ver. Ba-chiller, Santiago. Desigualdad y espacio urbano en una ciudad petrolera. X Congreso

Argentino de Antropología, Rosario/Argentina, 2014.

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APrESENTAÇÃoOs temas que compõem minha escrita neste livro me che-

garam em diferentes momentos, e são combinados a partir de minha sintonia às condições e aos modos de viver em lo-calidades de periferia. Escrevo sobre e desde as relações que integrei pesquisando, sendo a maioria dos textos, aqui, resul-tantes de um olhar retroativo, que rearranja experiências em pesquisas realizadas entre 2006 e 2014, em pelo menos cinco dos bairros mais vulnerabilizados da cidade de Porto Alegre.

Poderia defini-las por não mais que incursões de quem gosta de andar e conhecer, que resultaram, cada uma a seu tempo, em narrativas sobre contextos específicos. Contudo, os diferentes espaços em análise trazem também temas que vemos discutidos recorrentemente na atualidade. Além das desigualdades de ordem econômicas e culturais ostensiva-mente presentes, a escrita carrega conexões com pautas am-bientais, questões de gênero, usos de tecnologias informacio-nais, práticas juvenis e processos de individuação, tratados, entretanto, desde produções e apropriações de sujeitos atu-antes nas periferias.

Destarte, as motivações da escrita deste livro conectam--se igualmente ao cenário de incertezas que vivenciamos na atualidade, que podemos encontrar reportadas em abor-dagens teóricas de diferentes matizes. As repercussões do uso intensivo de tecnologias de informação e comunicação, da produção de relações econômicas globalizadas, da inten-sificação de apelos de consumo e de ritmos de trabalho, da crise ambiental e da fragilização dos grandes projetos socie-tais e/ou da diversificação de interpelações identitárias são alguns dos fatores citados como conformadores da ambiên-cia na qual situamos nossas experiências sociais do incerto e do múltiplo, materializadas na ampliação da necessidade de

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escolha e renúncia e no esmaecer do que antes era “regra”; experiências de sujeitos que, ademais, poderíamos conceber “em travessia”, em buscas por inscrever seus passos mesmo quando o terreno se mostra oscilante.

Tratando-se, na maioria das vezes, de abordagens do eclipsar de parâmetros modernos consolidados no pós-guer-ra europeu, cabe questionar, no entanto, como as periferias de nossas cidades viveriam tais dinâmicas, já que configuram contextos nos quais as “certezas modernas” nem sempre são consensualmente instauradas; onde, possivelmente, a con-dição de travessia, sugerida à nossa cultura por Guimarães Rosa e realçada, depois, por José de Souza Martins, estaria já presente, a compor cotidianos e pertenças desde outras nu-ances. Eis aí o desafio de uma análise contextualizada quando pesquiso identidades, práticas e reflexividades.

Nos limites deste livro, procuro dispor esboços da diver-sidade encontrada nas localidades de periferia que conheci, elaborada na forma de espaços de ação e produção identitá-ria, que perpassam diferentes cenários citadinos e distintas ambiências socioeconômicas e culturais. Faço-o, além disso, desde experiências de pesquisa atentas à caracterização de cotidianos e das formas encontradas pelos sujeitos para fazer seus dias entre o que lhes chega e o que logram produzir.

Nesse sentido, devo assinalar que atravessam minhas narrativas as relações centro-periferia que carregam consigo aqueles que, como eu, vão até lá para atuar e intervir; está em minhas escritas uma pequena amostra da pluralidade de apropriações que compõe os contextos que, usualmente, de-finimos pelas precariedades de quem os habita; fazem parte de meus diálogos a tentativa de compreender e o desacomo-dar provocado em campo, procurando, quem sabe, compor reflexivamente os itinerários com meus interlocutores.

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Vejamos, pois, como tomo posição no conjunto de propó-sitos que me animam, mesmo que sejam apenas na forma de provocações de percurso.

Em “Entre identidades e narrativas: inspirações e potên-cias de noções em contraste”, procuro alinhavar minhas ins-pirações teórico-metodológicas, de modo a apresentar a ma-neira como interpreto e problematizo os espaços de ação que narro nos capítulos subsequentes. As noções de identidades, reflexividade, narrativa e campo são centrais neste intento, tratadas desde as relações que concebo entre elas e que me ajudam a pronunciar o que percebia em minhas incursões. O formato do texto é o de uma exposição de concepções as-sociada ao contexto de mudanças sociais que presenciamos especialmente nos últimos três decênios, tendo por base, dentre diferentes autores, as provocações por vezes contras-tantes de Alberto Melucci, Paul Ricoeur e Pierre Bourdieu. Muito antes de pretender uma revisão bibliográfica ou teóri-ca, esse foi o caminho para destacar articulações na constru-ção de uma forma de abordagem e de uma maneira de narrar.

“Sobre com quem se fala: reflexões para ir às periferias” foi elaborado a modo de introdução, com o intuito de anun-ciar a realidade caleidoscópica desde a qual tento trazer a análise de espaços de ação, pertença e reflexividade que for-marão os cinco textos posteriores. Faço um recorrido bas-tante breve de formas de olhar para aqueles que “lá estão”, naqueles lugares que distinguimos física e simbolicamente mas que também nos constituem, para ventilar elementos da diversidade que tenho encontrado.

O capítulo “Entre educadoras e educadores sociais, tensio-namentos de quem deseja emancipar” narra o primeiro dos contextos que abordo, iniciando as narrativas por um espaço educacional. Abre reflexões sobre várias pertenças dessa prá-tica social, destacando vetores prováveis de tensionamento e reflexividade de um cotidiano que integra ação estatal e não

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governamental, e cujos profissionais tomam posição na assis-tência a pessoas socialmente vulnerabilizadas. Sendo o úni-co texto em que as interlocuções são ambientadas em locus explicitamente institucional, lança provocações sobre a re-lação deste conjunto relacional de fronteiras historicamente demarcadas e aqueles que o acessam sob a denominação de usuários ou educandos. Narrativamente, foi concebido, aliás, como o ponto de partida para se seguir aos outros espaços de ação nas periferias, aludindo, aqui, a posição daquele que chega e tenta compreender e participar.

Na sequência, “Catadoras, catadores e suas práticas: para um esboço de táticas e expectativas” aborda um cenário de in-formalidade e precariedade, analisando as inserções de traba-lho e as condições de vida de pessoas em situação de elevada vulnerabilidade social. De outra parte porém, realça suas prio-ridades e algumas de suas táticas na feitura dos dias e na rela-ção com os enunciados do campo ambiental. É um texto que se relaciona com as problemáticas ambientais que nos conster-nam na atualidade, mas se orienta às perplexidades relativas à inquietante articulação da reciclagem e do “ambiental” com dinâmicas de inclusão precarizada no capitalismo, indiciando distintas e contrastantes formas de apropriação.

Em “Mulheres, sociabilidades e política no cotidiano: re-flexões de um encontro”, dou destaque à atuação de mulheres trabalhadoras em cotidianos de periferia. Por intermédio de iniciativas de economia solidária, chego ao cenário das práti-cas de quatro mulheres, abordando a forma como configuram seus afazeres no empreendimento, à medida que se articulam laços de reciprocidade comunitários e condição de gênero. As questões que o cotidiano colocava, neste caso, levaram-me a analisar as peculiaridades das pertenças predominantes en-tre minhas interlocutoras no singularizar de sua ação política. Algo, por certo, com muito a aprofundar ainda, mas que sina-

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liza para a diversidade que compõe o campo da Ecosol e, além disso, destaca a ação feminina em espaços empobrecidos.

Abordo as produções de um movimento social constituí-do por moradores e ativistas de localidades de periferia em “Para divergir e enunciar, as identidades no Hip Hop”. Com o objetivo de conhecer as atividades do Hip Hop em Porto Alegre, dialoguei com jovens moradores de diferentes bairros e atuantes em distintos elementos da “cultura”. Desta forma, esboço as redes sociais que fundamentaram sua apropria-ção e as frentes de ação desenvolvidas na produção artística e na mobilização de participantes. Em congruência, analiso as práticas do movimento desde suas ênfases, ao tomar as identidades como pauta e a fruição como eixo de táticas, em articulação a relações de poder que não se filiam apenas à di-mensão econômica e assumem a informação, os enunciados e o espetáculo como arena de disputa. E, então, elaborações acadêmicas acerca das práticas juvenis contemporâneas fo-ram também discussões concernentes neste sentido.

As dinâmicas abordadas em “Aos passos com bboys: iden-tidades e individuações na prática do break” guarda forte consonância com as análises do capítulo anterior. A pesqui-sa se vincula à cena Hip Hop de Porto Alegre, mas se detém às práticas em um dos elementos por intermédio do diálogo com dançarinos de break. Após uma contextualização da ori-gem do grupo com que interagi, percorro as atividades que produzem em seus treinos, ensaios e apresentações, para dis-cutir as potências para identificação e individuação nas ati-vidades desenvolvidas pela crew, incluindo aí repercussões para outras instâncias das vidas de seus integrantes, quando criam modos de produzir saberes, participam na produção de capital cultural pertinente a sua realidade e conquistam inserções profissionais.

Por fim, em “Ensaio sobre as dúvidas – Reflexividades e narrativas no redesenhar do itinerário”, busco tecer reflexões

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adicionais observando panoramicamente os densos contex-tos que narro a cada capítulo. Trata-se de um esforço de mira-da ulterior, elencando eixos analíticos para o conjunto e, em articulação, pontos para futuras incursões. Desde categorias que me são caras, como reflexividade e narrativa, retomo as identidades narradas para realçar aspectos que via nas entre-linhas e que merecerão mais atenção: expressão de perplexi-dades e dúvidas sobre o que me parece potente para compre-ensão dos encontros nas e com as periferias; e, ademais, o enunciar das expectativas de quem segue caminhando.

No mais, concluindo este que foi o último dos textos, nu-tro a esperança de que as escritas condensadas aqui sejam palco de novos encontros, no conectar de quem comunga curiosidades e indignações, ou no mirar a quem pode estar acolá, mas inquietantemente nos constitui.

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CAPÍTuLo 1Entre identidades e narrativas: inspirações e

potências de noções em contraste

Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreu

A gente estancou de repenteOu foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-vivaE carrega o destino pra lá

Chico Buarque

Enquanto escrevia e reescrevia os textos que, agora, compõem este conjunto, preocupava-me em esclarecer as escolhas do itinerário. Nos entrelaces entre a expectativas supostas aos leitores e minha necessidade de encontrar ar-ticulações (sempre limitadas) nas escritas de diferentes mo-mentos, decidi elaborar algumas tomadas de posição. Este é o teor deste texto: alinhavar um modo de pesquisar e, para isto, comentar como me apropriei de noções e reflexões de autores que influenciaram minhas incursões. Não teria con-dições de fazer uma revisão sobre os usos de conceitos; pre-feri tentar elucidar apropriações desde as potências que os conceitos me representavam.

Minha opção por pesquisas em localidades de periferia ur-bana guarda relação virtual com minhas vivências de infância e juventude, contextualizando e atualizando as perplexidades e curiosidades que me movem. Quando em campo, em meio a conversas com pessoas de diferentes localidades, sentia-me instigado de várias maneiras. Difícil mesmo não me perder na-vegando pelo que sentia e pelo que me chegava em algo que

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observava, em um causo contado ou em uma opinião diferen-te. Era como se aquelas informações, que me provocavam e, muitas vezes, desconsertavam-me, avivassem meu desejo de conhecer mais do jeito de viver, da maneira de crer e compre-ender as vivências que meus interlocutores professavam.

Creio, a partir deste exercício reflexivo ulterior, que as questões que me acompanham se orientam às peculiaridades (socialmente situadas) de meus companheiros de itinerário e ao que dizem à minha curiosidade e à difícil tarefa de andar lado a lado com a alteridade. Eis que no curso dos encontros, a noção de ‘identidades’, dita, assim, no plural, acabou signi-ficando muito de meus sentimentos e buscas. E o que está posto na sequência é, neste sentido, o modo pelo qual venho organizando meu esforço de interpretação dos espaços de ação e construção de sentidos das pessoas com quem dialo-guei, associando noções que comunicam minhas percepções e intuições no itinerário.

Apresento-o de uma forma não tão original quanto neces-sária, como uma análise do método, ou, inspirando-me em Morin (2005), como uma tentativa de explicação de meu sis-tema explicativo. Acredito que a potência do diálogo passa pelo compromisso da compreensão e, para tanto, passo im-portante é pronunciar o jeito de narrar.

1. Identidades, descentramentos e diferença

O tema da identidade se torna manifesto na ocorrência de sua crise. Bauman (2005) conta que, pouco antes da segunda guerra mundial, foi realizado um censo populacional na Polô-nia. Para a surpresa dos funcionários treinados pelo Estado, em muitos dos casos, poloneses não sabiam o que significava “ter uma nacionalidade”, respondendo apenas “somos daqui”. Por este exemplo, caracteriza-nos o arbitrário da produção das identidades nacionais, referindo os esforços do Estado

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moderno em construir vínculos entre indivíduos e nação sob a ficção de uma relação imediata entre esta e o nascimento.

O intento de “recriar a realidade a semelhança da ideia” (p. 26) presente no exemplo histórico, provoca-nos a assumir que o pertencimento, como base referencial para significação e de delimitação do que nos mobiliza, é produção social, e que a questão pela identidade também o é, quando a identifi-cação é colocada como tarefa e/ou como objeto. Nas palavras de Bauman (2005),

perguntar ‘quem você é’ só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo; só se você tem uma escolha [...] só se você tem que fazer alguma coi-sa para que a escolha seja real e se sustente (p. 25).

O que se instaurara como demanda poderia ser viven-ciado, então, como estranhamento. Neste ínterim, vale con-siderar que a produção desta que seria uma das ênfases da modernidade comporia as experiências de indivíduos e co-munidades conforme se estabelecem aparatos e se infiltram as condições de poder estruturantes do enunciar de auto de-finições (individuais e/ou coletivas) como prática. No curso da desincorporação e reincorporação de formas sociais tra-dicionais, conforme nos inspira Beck (2012) em sua análise do que define como “modernidade simples”, o que fora signo de um processo de dissolução convertera-se em prática ins-tituída (ou ao menos pretendente à universalização), corpo-rificada em diferentes afiliações, em geral, concebidas desde certa unidade e estabilidade (raça, posições de gênero, na-ção, família, classe).

Entretanto, a partir de diferentes perspectivas, vários autores parecem confluir na compreensão de que as bases estruturais que sustentavam a unidade e a estabilidade das afiliações identitárias modernas estariam sofrendo mudan-

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ças rupturantes, especialmente nos últimos 40 anos10. Para tanto, não raro recorrem a clássicos da sociologia como re-flexão inicial, lembrando as problematizações de Max Weber sobre o processo de racionalização ou as análises de Marx e Engels sobre as dinâmicas “perturbadoras” das relações so-ciais próprias ao capitalismo.

Então, com o fim específico de ambientar os argumentos que apresento (ainda que sob o risco de recair em reducionis-mo), elencarei algumas esferas de mudança a partir de uma lei-tura transversal de diferentes perspectivas. Meu intuito reside em indicar bases interdependentes de tensionamento e perple-xidade construídos socialmente e que diferentes autores anali-sam. De forma alguma, pretendo resumir as densas contribui-ções destes. Trata-se de esboçar o cenário para que o tema das identidades fosse colocado em pauta de maneira contundente.

A primeira delas concerne às mudanças no mundo do tra-balho, por conta do uso intensivo de tecnologia informática e por medidas de reestruturação produtiva orientadas à flexi-bilização da produção, que se associam também a uma diver-sificação de produtos e apelos de consumo, atentas à amplia-ção e/ou manutenção de margens de acumulação capitalista. No cerne de tais mudanças, que tiveram emergências em diferentes períodos nas regiões do globo, concentrando-se especialmente entre os anos 1970 e 1990, encontram-se a fragilização de pertenças às coletividades de trabalho e a res-ponsabilização individual pelos resultados laborais e pelas planificações relativas a desempenho e êxito11.

10. Refiro-me às contribuições de Bauman (2001; 2005), Giddens, Lash e Beck (2012), Castells (1999), Hall (2001) e Melucci (2004).11. Cabe uma ressalva. No caso do mercado de trabalho brasileiro, estas constata-ções precisariam de ponderação, dada a margem histórica de informalidade de vín-culos laborais e a implementação insuficiente de um Estado de Bem-Estar Social, cuja presença cotidiana, ademais, evidencia desigualdades conforme as regiões do

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Um segundo ponto diz respeito ao papel do Estado em um cenário globalizado, com destaque às relações engendradas pela ampliação de circuitos migratórios (de capitais, traba-lhadores, etc.), pela reorganização geopolítica de diferentes países (em parte, associada à crise das nações do socialismo real) e pela disseminação do uso de tecnologias de informa-ção e comunicação a partir dos anos 1990. Contexto com im-plicações no controle estatal de fluxos interterritoriais, na configuração de forças para decisões nas relações internacio-nais e nas possibilidades de interpelação dos cidadãos pelas narrativas identitárias nacionais, já que estes passam a ter à frente (mesmo que virtualmente) diversas formas da alteri-dade a contrastar com as comunidades nacionais imaginadas.

O terceiro item nos remete às discussões relativas à cri-se ambiental, que, visibilizadas crescentemente a partir dos anos 1970, lançaram-nos a questões sobre os limites de nos-sos modelos de produção e consumo, os usos que fazemos do conhecimento e os danos gerados desde uma noção de “progresso” que dissimula os riscos à sustentabilidade da vida. No que pode ser o indício de uma crise civilizacional, para usar os termos de Leff (2009), estão as perguntas pelo que fazemos com as possibilidades que a ciência e a tecno-logia nos aportam, potencializando a intervenção deliberada sobre aspectos da natureza (“socializando-a”) em diferentes âmbitos (cirurgias plásticas, geração de fetos, manipulações de alimentos, uso de nanotecnologias, energia nuclear, etc.), incluindo aí a possibilidade de extinção de nossa presença sobre a terra. Para além das desiguais condições de participa-ção neste campo de ação, cabe aventar que o infiltrar destas perplexidades no cotidiano podem ter consequências sobre a maneira como somos sensibilizados na fruição do tempo,

país. Aliás, as generalizações contidas nos itens que elenco precisam ser apreciadas conforme os contextos pesquisados. Apresento-as, neste momento, apenas como o cenário teórico desde o qual estabeleço minhas reflexões.

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dedicamo-nos a uma ocupação e/ou nos deixamos interpelar por um futuro imaginado.

O quarto fenômeno que poderia elencar concerne às prá-ticas engendradas na apropriação de tecnologias de infor-mação e comunicação. É comum entre os autores a menção à alteração da noção de “espaço”, em decorrência dos fluxos de interação globais oportunizados. Os versos de Gilberto Gil traduzem bem a sensação: “antes, o mundo era pequeno por-que a terra era grande; hoje o mundo é muito grande porque a terra é pequena”. Conforme nossos “mundos” são invadidos pela diversificação (mesmo que, na maioria das vezes, por uma mediação virtual), está posta a potência para um redi-mensionamento da produção identitária. Podemos falar de processos de identificação que descentram a proximidade física e virtualizam a localização comunitária, recaracteri-zando-a interativamente ao estendê-la a diferentes locus. De outra parte, temos à mão bases informacionais que ampliam as condições de individuação, na navegação hipertextual e na personalização de registros na rede.

Ademais, a compressão do espaço faz com que a tempo-ralidade se redimensione. No correr da liberação (parcial) de nossas atividades em relação aos limites e ciclos naturais, ten-demos a vivenciar o tempo como produção sociocultural de maneira mais cabal (situação em que forma de contagem do tempo por tecnologias digitais é signo, quando interpõe leitu-ra temporal com sinais não analógicos). Neste sentido, o ar-gumento de Bauman (2001) é exemplar, quando afirma que o tempo (“gasto”) tende a deixar de ser a referência do esforço para se superar a distância, crescentemente dominada em ra-zão dos avanços técnicos, incitando-nos à busca pela instanta-neidade, conforme nossa experiência combina multiplicidade de opções/acessos e ausência de apego. De outra parte, porém, Melucci (2004) nos lembra que o tempo puntiforme represen-ta também uma “riqueza”: reativar o horizonte da presença,

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em resistência, por exemplo, à hipertrofia do futuro como co-lonizador do presente. De uma forma ou outra, fica patente a produção de tensionamentos à experiência do tempo.

Por fim, cabe referir as mudanças operadas no campo das discussões de gênero e sexualidade. As instabilidades instau-radas pela inserção da mulher no mercado de trabalho (con-forme demandas do capitalismo) ou, de outra parte, pelas reivindicações de movimentos feministas os quais tiveram influência nas composições familiares e nos papéis sociais atribuídos a homens e mulheres, além de constituir novas arenas de confronto político. O feminismo, além disso, deve ser considerado como uma das expressões do que se conven-cionou chamar “novos movimentos sociais” (reunindo lutas étnicas, pautas antibelicistas, demandas de reconhecimento de gays e lésbicas...), que trouxeram ao debate a ‘identidade social’ e a cotidianidade como temas e campo de ação e dis-puta, questionando a unidade da classe como categoria de mobilização preponderante, as noções de desenvolvimento que nos regem e as posições de gênero que naturalizamos.

O conjunto de fatores resenhados acima serve para con-textualizar a desestabilização de categorias da modernidade, que orientavam os processos de caracterização e significa-ção que o termo “identidade” nomina reflexivamente. Sina-liza para a diversificação de bases mobilizatórias da mesma forma que para a produção de dinâmicas tensionadoras da capacidade de interpelação à pertença. Nos termos de Cas-tells (1999), podemos aventar como resultante, segundo se consolida o arranjo dos fenômenos elencados, certo distan-ciamento entre identidades e papéis, como delimitações es-truturalmente estabelecidas (trabalhador, mãe, sindicalista, etc.), certa autonomização de processos de identificação em relação à ação de instituições consolidadas.

Num cenário de questionamento da pertença e visibiliza-ção do diverso, as identidades são questão patente. As contri-

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buições de Hall (2001; 2012) terão lugar de destaque, então, ao afirmar a condição contingente e conflituosa da identifica-ção tributária de sua relação com a diferença; as narrativas identitárias são denotadas por sua condição histórica e re-lacional, o que significa dizer que leituras essencialistas são criticadas em favor de uma interpretação da identidade como produção cultural circunstanciada12.

Na mesma perspectiva, citando Lacan, Woodward (2012) narra a produção da identidade a partir da “falta” primária vivenciada pelo indivíduo, quando percebe o Outro como ser separado, diferente de si. Então, no momento em que se dá a primeira apreensão subjetiva (para Lacan, na “fase do espe-lho”), inicia-se a busca de unidade, que, por sua vez, necessita de algo “fora de si” para consolidar-se a “diferença”. A partir daí, a identificação configura-se como esforço (infindável) de busca de unidade na relação com o Outro, efetivado desde sistemas culturais e simbólicos que nos constituem. Mais que assumir a totalidade das proposições lacanianas, a autora procura realçar argumentos pelo que entende ser a composi-ção tensa e aberta das identidades.

12. Hall (2001) realiza um recorrido histórico por produções teóricas, gestadas no seio da modernidade, que teriam contribuído ao descentramento da noção de sujeito uno, singular e estável que lhe seria pertinente. Em seus argumentos, têm destaque: as produções teóricas marxianas nos anos 1960, cujas interpretações te-riam realçado que a ação do homem sobre a história se concretizaria conforme as condições sociais que lhe são dadas; as contribuições de Freud e pensadores como Lacan, que afirmaram a fragilidade do sujeito racional, suscetível ao desejo e tribu-tário da relação com o Outro na busca de unidade (que se constitui frágil e precá-ria); o trabalho de Saussure sobre a precedência da língua como estrutura às ações individuais e, depois dele, as contribuições de Derrida, que radicalizarão o efeito da diferença ao assinalar que o falante não conseguiria fixar o significado final, dada a instabilidade provocada pelos “ecos” de significados concorrentes no contexto; a obra de Foucault e sua genealogia do “sujeito moderno”, problematizado não mais em sua autonomia, mas como resultante de práticas discursivas e de um poder que disciplina os corpos individuais; e, por fim, o impacto das obras feministas (como exemplo entre os “novos movimentos sociais”), que problematizavam a concepção de um sujeito generificado.

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Para Hall (2012), as identidades seriam produzidas numa espécie de encontro, na articulação entre práticas discursivas (no sentido foucaultiano) que buscam nos constituir como sujeitos sociais e o processo de elaboração da subjetividade, em atenção à “falta” e ao desejo que a movem, suturando-a ao discurso e, ao mesmo tempo, instigando desencontro e potên-cia de identificação outra13. Tal movimento estaria associado a um esforço narrativo que, apropriado de recursos históricos, culturais e linguísticos, mantém-nos em curso na elaboração significativa de um itinerário e de um conjunto de característi-cas (ainda que estas sejam mutáveis e descontínuas).

Elas [identidades] têm tanto a ver com a invenção da tradição quanto com a própria tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma incessante reiteração, mas como o mesmo que se transforma. Elas surgem da narra-tivização do eu, mas a natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui de forma alguma sua eficácia discursiva, material ou política... (Hall, 2012, p. 109)

Se com os interacionistas simbólicos podíamos conce-ber a identidade como integração entre individualidades e mundo público, como se operasse uma mediação interativa (e relativamente estável) entre o indivíduo e os papéis so-cialmente reconhecidos que este vem a conhecer/adotar, a perspectiva dos Estudos Culturais assinala que as estruturas simbólicas que ancoravam posicionamentos predominantes são deslocadas e atravessadas por pertencimentos outros. Mais além, resquícios de um sujeito centralmente racional, que interpretasse o teatro cotidiano desde uma interioridade

13. Stuart Hall, nesse mesmo texto, problematiza a inconclusa discussão sobre a re-lação entre psíquico e discursivo, representado em seus argumentos pela noção de “identificação”. Em outras palavras, diz ele que segue em aberto uma compreensão mais acurada sobre os mecanismos pelos quais nos sentimos identificados ou não, atendemos, resistimos ou alternamos em relação às convocações que nos chegam.

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essencial, são deixados de lado: o ‘sujeito’ é observado des-de uma composição tensa, aberta e de identidades múltiplas, evocadas conforme diferentes contextos e relações de poder. Não só o campo político é adensado por uma série de vetores de embate (étnicos, de gênero, ambientalistas, etc.), confor-me assinala Hall (2001), mas a própria identificação se cons-titui arena de disputa.

2. Identidades e reflexividades

Do cenário descrito e da perspectiva apresentada por Stuart Hall, gostaria de passar às provocações de Alberto Melucci. Neste caso, se a realidade esboçada antes pode ser assumida, a identificação não é analisada na relação com discursos sociais ou com o “devir-outro” da diferença (Silva, 2002). Pelo menos não como ênfases. Sob a proposição de um “jogo do eu” que construímos na atualidade, este autor muda o foco e se orientará a compreender como, em nossos processos de individuação identitária14, podemos elaborar respostas e conviver com a mudança, a incerteza e o múltiplo. Arriscaria dizer que, sem procurar uma definição metafísica de “sujeito”, ele propõe questões sobre a autonomia (relativa) das pessoas em seus cotidianos de ação e reflexividade.

Para Melucci (2001b; 2004), a identidade individual seria um sistema de relações e representações construído como

14. Para que possamos ter uma referência elucidativa, cito Castells (2013) acerca da noção de “individuação”: “é a tendência cultural que enfatiza os projetos do in-divíduo como supremo princípio orientador de seu comportamento. Individuação não é individualismo, pois o projeto do indivíduo pode ser adaptado à ação coletiva e a ideais comuns, como preservar o meio ambiente ou criar uma comunidade, en-quanto o individualismo faz do bem estar do indivíduo o principal objetivo de seu projeto particular” (p. 168). Para este autor, as potencialidades do uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs) contribuiriam para tal tendência, ao dispor os indivíduos em possibilidades interativas mais diversas e relativamente autônomas em relação às práticas institucionais.

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um campo de vetores, cuja delimitação variaria conforme procuramos equilíbrio entre “a identificação que operamos e aquela realizada pelos outros, e entre a diferença como a afirmamos e como ela é reconhecida pelos outros” (p. 50). Uma construção provisória gestada, assim, entre “como nos reconhecemos” e “como somos reconhecidos” no que nos de-fine, assemelha e distingue15. Acrescenta, ademais, que a va-riabilidade e a densidade de tal composição oscilariam con-forme as condições de diversificação e mudança do conjunto de relações sócio-históricas de que participamos, situando problematizações acerca da estabilidade/instabilidade e/ou da unidade/diferenciação identitárias de maneira relacional.

A cultura e a linguagem são problematizadas como âm-bitos desde os quais nominamos/produzimos necessida-des, escolhas e pertencimentos. Porém, atento ao que define como um contexto social de produção e circulação intensiva de informação, Melucci (2004) realçará o quanto aquilo que necessitamos ganha conotações progressivamente culturali-zadas, em cotidianos crescentemente urbanizados e social-mente codificados. As experiências da “falta” seguem aí (o li-

15. Ao que parece, Melucci (2001) contempla as “identidades coletivas” sob o mes-mo prisma. Quando se dedica à compreensão de movimentos sociais contemporâ-neos, interpreta a unidade identitária construída por eles também como algo pro-cessual e variável. Acrescenta, neste caso, porém, que as mudanças da identidade resultam das tensões e negociações internas ao movimento e a relação deste com o ambiente onde atua. Neste sentido, o autor argumenta que a unidade existe apenas para o observador “estrangeiro”, e se este tomar a ação coletiva pelo enunciado de suas causas somente. As fronteiras do que delimita a identidade coletiva seria resultado de uma rede la-tente de relações entre diferentes sujeitos, que os coloca em condição potencial de partilha de pautas de mobilização. Assim, o que é visibilizado como manifestação se constitui desde um conjunto de práticas, interações e negociações efetivado por uma pluralidade de atores em um campo de ação, que é o espaço de possibilidades e limites onde operam e em relação ao qual postulam causas e demandas comuns (Melucci, 1989).

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mite, a morte e a alteridade), mas constituídas cada vez mais em tessituras fortemente simbolizadas16.

Os sistemas contemporâneos colocam à disposição dos indivíduos recursos simbólicos que estendem o seu po-tencial de individualização, isto é, de autonomia e de au-to-realização: os indivíduos experimentam a capacidade de definir e controlar o que são e o que fazem, por meio da generalização dos processos de instrução, da difusão da participação política e dos direitos de cidadania, da importância atribuída às redes organizativas e comuni-cativas. (Melucci, 2001, p. 72)

Nesse contexto, Melucci (2001b) procura enfatizar que, para além de uma situação supostamente estática de deli-mitação de atribuições, a identidade configura-se como um processo, no qual a reflexividade tende a ser intensificada. Mencionando que talvez fosse mais adequado falarmos de “identização”, esse autor caracteriza a identidade mais como ação do que como uma situação; além de um conjunto de atri-buições socialmente produzidas, uma capacidade reflexiva e de ação construídas a partir destas. Destarte, ao sujeito cons-tituído na tensão do múltiplo e do variável é atribuído poder de participação na definição processual de subjetividades e pertencimentos.

16. Melucci (1996) problematiza os usos possíveis das teorias de Freud na atualida-de. Segundo o autor, a tradição da psicologia ocidental é demasiadamente individu-alista e ignora as mudanças sociais na análise de problemas e demandas pessoais. Afirma, ainda, que, apesar das contribuições da psicanálise freudiana para a associa-ção entre aspectos psicológicos e sociais, estas tendem a focar nas repressões ope-radas pelos laços sociais e culturais e na necessidade dos sujeitos de as romperem. Melucci entende necessário considerarmos que há outros dilemas vivenciados hoje, aqueles da liberação intensiva e do excesso de possibilidades em relação ao que se pode efetivar concretamente.

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Poder-se-ia definir identidade como a capacidade reflexi-va de produzir consciência da ação (isto é, representação simbólica da mesma) além dos seus conteúdos específi-cos. A identidade transforma-se em reflexividade formal, capacidade simbólica, reconhecimento da produção de sentido no agir, no interior dos limites colocados em um dado momento, pelo ambiente e pela estrutura biológi-ca. (Melucci, 2001, p. 89)

Para Melucci (2001; 2004), se, de um lado, as relações so-ciais contemporâneas levam suas dinâmicas de regulação e controle ao cotidiano e à mobilização dos desejos individuais, de outro, os recursos culturais facultados aos sujeitos neste mesmo cenário potencializariam reflexividade sobre práticas e filiações, de forma que estes poderiam operar na elabora-ção de enunciados que disputem a definição de sentidos, rea-lidades de ação, individualidades.

O autor usa a metáfora do “planeta interno” para referir à produção social de um “território” simbólico que habita-mos, em relação ao qual agimos e que, frente a relações de poder infiltradas em processos de subjetivação, precisamos conquistar. Uma produção legada pelo discurso moderno da individualidade, adensada e dimensionada pelos avanços científicos que vêm se instaurando na cotidianidade, interpe-lando-nos sobre como agir e definir-nos, mas também opor-tunizando tomadas de posição nos processos de identização e individuação de sentidos, projetos, sonhos e anseios.

Para efeito da apropriação que faço aqui, trata-se, creio, de considerar que no entrelaçar das enunciações e no eclipsar da captura do desejo, há o autor de ações e estratégias, apoiado em uma reflexividade contingenciada, que navega por apelos de um mar que o constitui, mas que no contraste das práticas discursivas (e/ou não discursivas) concebe escolhas.

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2.1 Reflexividades

Eis que vale, agora, problematizar os argumentos de Me-lucci (1996; 2001; 2001b; 2004) acerca da reflexividade. A “ca-pacidade de produzir representação simbólica da ação” pode ser nuançada em diferentes formas e depende, além disso, de condições sociais e culturais nas quais possa se estruturar.

Remontando aos itens elencados no início deste capítulo, podemos trazer à problematização as contribuições de Beck (2012). Este afirma que as mudanças vivenciadas nas últimas décadas foram gestadas por conta de uma radicalização da modernidade, levando-nos ao que define como uma “socie-dade de risco”. O “risco” se constitui condição estrutural vi-venciada de forma abrangente, mas desigual, caracterizada pela fragilização das instituições no controle e proteção da sociedade industrial, especialmente no que concerne aos pe-rigos que ela mesma gera. Um dos efeitos neste processo seria a intensificação de dinâmicas individualizantes, já operadas sob o Estado de Bem-Estar Social e a consolidação de direitos humanos, mas que ganha novas conotações, experienciadas, por exemplo, em percursos biográficos cuja delimitação, pla-nificação e/ou viabilização é lançada crescentemente à res-ponsabilização individual (ou o “faça você mesmo”).

Congruente, Giddens (2012) afirma que, numa socieda-de “pós-tradicional”, a escolha não só é possível, como pode ser até obrigatória. Neste sentido menciona que, se o projeto moderno desconstruiu a tradição que o antecedia, fê-lo rein-corporando aspectos tradicionais na composição de sua nor-matividade. O que estaríamos a vivenciar na ‘modernidade tardia’ é herança de um ímpeto estrutural dissolvente, que, ao mesmo tempo, configura mudanças significativas. A for-ma como nos relacionamos com a tradição muda: a repetição do passado que ela representa perde lugar como justificação

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inerente da prática; nas palavras de Giddens, temos uma “tra-dição sem tradicionalismos” (p. 111).

Pode-se especular, a medida que a tradição se desvanece, a “memória dos vestígios” fica mais cruamente exposta, assim como fica mais problemática no que se refere à construção da identidade e ao significado das normas sociais. Daí em diante, a reconstrução do passado com os recursos da tradição torna-se uma responsabilidade – e até uma exigência – mais claramente individual. (Gi-ddens, 2012, p. 106)

A tradição, articulada aos vestígios da memória coletiva, pode ser observada como reconstrução regular. Para Giddens (2012), porém, ela é reconstruída na modernidade tardia no curso de uma reflexividade disseminada, com base em justifi-cações discursivas relativamente frequentes, levadas à parti-cipação da maioria dos indivíduos. Ele se aterá sobremaneira nos efeitos da infiltração e popularização de saberes de espe-cialistas (ou peritos) em práticas cotidianas, como instigado-res da capacidade reflexiva. O conhecimento especializado se pretende universal e tal característica intrínseca o permite arrogar-se o trânsito por diferentes locus, de tal forma que, imbuídos desta lógica, poderíamos apropriá-lo para nossos usos localizados (desde que com tempo e recursos para fazê--lo). Algo que seria impensável no caso de saberes da tradi-ção pré-moderna (comunitária e localmente simbolizados).

Em contexto de diversificação de possíveis, ambientada na relativização das bases de organização social modernas, os indivíduos seriam convocados a escolhas sobre suas car-reiras, opções sexuais, composições familiares, etc. As pes-soas seriam impelidas a terem posicionamentos. Com estes autores, temos certo redimensionar da ação política, poten-cializado tomadas de posição em temas diversos. Contudo, eles afirmam também os limites disso. Giddens (2012) refere

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distinção entre as “escolhas”, operadas por todos crescen-temente, e as “decisões”, geridas por grupos determinados, conforme as condições de poder.

De outra parte, a fragilização das bases de uma tradição tem efeitos sobre a formação de pertença. Neste sentido, es-boçando o que parece ser um cenário de reflexão intensiva, esse autor assinala que a potência da liberação também pode se configurar como compulsão (ou vício). A repetição, como ancoragem do fluxo da vida (antes exercido pela tradição), assume a forma de um recorrer ao passado sem a justificação de uma verdade normativa, como poderia ser exemplo o con-sumismo ou a recorrência em dilemas afetivos em diferentes relacionamentos.

E podemos voltar a Beck (2012) para uma outra forma de delimitar limites à capacidade reflexiva que estamos a tra-tar. Em uma distinção conceitual para a qual ele não precisa claramente as fronteiras, o autor diferenciará “reflexividade” e “reflexão”, ressalvando o risco de tomarmos reflexividade por racionalização ou conscientização. A primeira seria um “autoconfronto” (na forma de um reflexo) com os efeitos co-laterais das mudanças estruturais da modernidade, vividos como “sociedade de risco”. A segunda, o conhecimento, ou ao menos a discussão, sobre as questões postas pelos limites da sociedade industrial, quando a prática dos indivíduos é atra-vessada por dilemas que o “consenso do progresso” ocultava.

Assim, podemos considerar que os indivíduos operam entre a reflexividade e a reflexão, conforme o contexto e po-sição social. No cotidiano, podemos aventar que se engendra autorreflexividade ou autorreflexão frente à necessidade de escolhas em contexto de ambivalência (isto é, em que a de-cisão não necessariamente encerra conquista de certeza, es-tabilidade, segurança): reflexividade como ação concretizada no sentir do esmaecer do instituído, frente ao desacreditar

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na tradição17; reflexão como a elaboração de conhecimento sobre o contexto ambivalente de nossas decisões.

Lash (2012) nos lembra, nesse sentido, que precisamos contextualizar as condições sociais de produção de elabora-ções reflexivas. Afirma que é necessário reconhecermos as formas pelas quais aparatos e recursos culturais modernos chegam até o cotidiano dos indivíduos, para então observar-mos as possibilidades e formas da reflexividade.

Ele acrescenta que o conhecimento se dissemina não so-mente por elaborações conceituais, mas também por dinâ-micas miméticas, “iconicamente por meio da semelhança” (Lash, 2012, p. 212). Dessa maneira, ressalta que a reflexi-vidade aconteceria também no acesso a artefatos culturais (artísticos, imagéticos: filmes, programas de TV, etc.), com os quais podemos refletir-nos e/ou dos quais podemos nos apropriar, na forma de uma “reflexividade estética”. Quando chegamos à “apropriação”, contudo, referimos também, com Lash, uma “reflexividade hermenêutica”, que significa partici-pação em uma comunidade reflexiva.

Essa hermenêutica da reapropriação, diferentemente dos mestres (e dos artífices contemporâneos) da dúvi-da, não vai destruir continuamente as fundações, mas vai tentar manter abertas as bases ontológicas do estar--no-mundo comunal [...] não vai duvidosamente colocar sob suspeita primeiro os bens substantivos e depois os de procedimento, mas buscará designar um conjunto es-tabelecido de bens substantivos como base de qualquer tipo de ética comunal [...] não estará cronicamente em dúvida faustiana, em busca de “significados transcen-

17. Vale considerar que, ao contrário, podemos observar pessoas que se aferrem a determinadas tradições. Beck e Giddens (2012) situam o fenômeno como parte dos processos instaurados na “modernidade reflexiva”. Estar vinculado a um grupo identitário que se define e enuncia de maneira incisiva (e até agressiva) também pode ser apreciado como a necessidade de fazer frente à incerteza e à instabilidade.

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dentais”, não irá cronicamente adiar e negar a significa-ção. (Lash, 2012, p. 224)

Lash (2012) tece críticas ao que considera excessivamen-te racionalizante na reflexividade, tal como abordada por seus colegas, Beck e Giddens. Em recorrente referência às elabora-ções de Pierre Bourdieu, destacando as noções de “esquemas classificatórios” e habitus e, também, sua “teoria da prática”, faz pensar que as reflexividades estética e hermenêutica se articulam: esta seria tributária da vinculação a uma “comu-nidade” desde a qual a produção de artefatos e a significação são situadas no que ele chama de uma “hermenêutica de re-apropriação”. Não está, com isso, retomando algum tipo de comunitarismo. Procura assinalar que a comunidade na mo-dernidade reflexiva tende a um coletivo que partilha práticas e hábitos e se ocupa de compartilhar a produção e a (re)inter-pretação de significações (numa afirmação de comunidades como objetos de escolha).

De forma geral, as contribuições desses autores situam a reflexividade como elemento recursivo de um processo es-trutural, como também o faz Melucci (1996; 2001; 2011b; 2004). Entretanto, embora possamos aventar potencialida-des políticas autonomizantes neste âmbito para ambos, os argumentos Beck, Giddens e Lash (2012) me parecem mais explícitos em relação aos limites de se lançar mão de apre-ciações positivadas da capacidade reflexiva. As diversas per-guntas que assolam ou são elaboradas pelos indivíduos cons-tituem-se desde o arbitrário das relações de poder, o que faz surdir as opacidades do identitário, indiciado nas perguntas que nem sempre nos ocupamos em fazer.

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3. Entre reflexividades, identidades e narrativas

Junto do cogitar de formas e intensidades diversas (e, quem sabe, divergentes) para as capacidades reflexivas ope-radas pelos indivíduos, no aventar de arranjos contextuais variados, estão problematizações sobre o configurar das identidades nas buscas por unidade e singularização frente às descontinuidades do real. As práticas de narrativização merecem lugar neste sentido, e as elaborações de Paul Ri-coeur sobre a noção de “identidade narrativa” (na obra Tem-po e Narrativa, especificamente) vem sendo uma inspiração importante e, ademais, têm apoiado a apropriação metodoló-gica da produção de narrativas nas incursões em campo.

As perguntas de intenção (auto) delimitadora que possa-mos carregar conosco encerram a compreensão de um ser da experiência, que procura organizar significando uma existên-cia que sente o movimento, a passagem, o descontinuo, e ten-ta atribuir sentido. Ricoeur (2010) recorrerá às “aporias da experiência do tempo”, de Agostinho, e, depois, à Poética, de Aristóteles, para postular o papel da narrativa como prática constitutiva de uma conexão entre a vivência íntima do tem-po e os artefatos da cultura que ambientam o estar no mun-do. Com o primeiro, discutirá as vicissitudes da mensuração do tempo subjetivamente experenciado, cuja duração precisa ser compreendida não com base em um suposto ponto fixo (a exemplo do tempo cósmico), mas pelo efeito da intenção e da afecção, quando o espírito age e faz perdurar a atenção (como lembrança, passado, ou como expectativa, futuro). Nesta perspectiva, a distentio animi dispõe o presente como duração (e não apenas como ponto de passagem), com relati-va independência do tempo objetivo.

A relação entre tempo íntimo e tempo cósmico, e a so-lução para a aporética que se instaura aí, é buscada por Ri-coeur (2010) na problematização da poética, como arte de

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compor intrigas, e no agenciamento de fatos que ela encerra. Discutindo as elaborações de Aristóteles, apropria a noção de “mímesis”, mas a define como imitação criadora ou como uma representação que não é mera duplicação do real, e que se faz ficção produtora. Então, a prática narrativa é concebida como criação contextualizada, cujos elementos guardam margem de reconhecimento pelo outro e, neste ínterim, dispõem um ar-ranjo temporal e uma base para construção da historicidade.

[...] nossa hipótese básica, qual seja, a de que existe entre a atividade de narrar uma história e o caráter temporal da experiência humana uma correlação que não é pura-mente acidental, mas apresenta uma forma de necessi-dade transcultural. Ou, para dizê-lo de outra maneira, o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plena quando se torna uma condição da existência temporal. (Ricouer, 2010, p. 93)

Em Ricoeur (2010), a intriga é compreendida desde uma tripla mimese, contendo prefiguração, configuração e figu-ração. Certa interpretação dos signos da realidade experen-ciada define a mimese I, como o momento pré-figurado da prática; a mimese II se concretiza na experiência do tempo simbolicamente configurado na composição narrativa; e, na comunicação a outrem, advém a mimese III, operada pelo in-terlocutor (ouvinte/leitor...) na apropriação do narrado para figuração de sua experiência. Narrar exige e expressa, então, competências complementares: a possibilidade de realizar uma “semântica da ação” e a capacidade de identificar as “mediações simbólicas” da mesma. Elaborar e/ou entender a intriga nos remete, dessa forma, à compreensão dos códigos e das estruturas nos quais ela se erige e constitui, condição que se efetivaria por intermédio da pertença sociocultural.

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Pode-se resumir do seguinte modo a dupla relação entre inteligência narrativa e inteligência prática: passando da ordem paradigmática da ação à ordem sintagmática da narrativa, os termos da semântica da ação adquirem integração e atualidade. Atualidade: termos que só ti-nham uma significação virtual na ordem paradigmática, isto é, uma pura capacidade de emprego, recebem uma significação efetiva graças ao encadeamento sequencial que a intriga confere aos agentes, ao seu fazer e ao seu sofrer. Integração: termos tão heterogêneos como agen-tes, motivos e circunstâncias são tornados compatíveis e operam conjuntamente em totalidades temporais efeti-vas. É nesse sentido que a relação dupla entre regras de tessitura da intriga e termos da ação constitui, ao mesmo tempo, uma relação de pressuposição e uma relação de transformação. (Ricouer, 2010, p. 100)

O autor avança em sua análise trazendo à discussão o contraste entre um tempo histórico e o tempo entregue às variações imaginativas da ficção. Afirma a participação da historiografia no círculo mimético, mas a singulariza em sua intencionalidade, atenta ao problema da objetividade, aos fundamentos do próprio argumento explicativo e às probabi-lidades causais; compromissos que a narrativa ficcional não tem a priori. Nas palavras de Ricoeur: “uma coisa é explicar narrando. Outra é problematizar a própria explicação para submetê-la à discussão e ao juízo de um público” (2010, p. 291). Apesar da diferenciação entre história e ficção, o au-tor advoga que os usos que ambas fazem da imaginação na construção de seus agenciamentos causais e de suas “perso-nagens” contém aproximações.

O autor sugere que, na fratura entre a história inscrita so-bre o tempo cósmico e as variações da narrativa ficcional e entre mundo do texto e a experiência do “leitor” e, de outro lado, na interpenetração entre história e ficção, trabalhemos

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com um terceiro tempo e com o rebento gestado entre os polos das antinomias que aborda. Propõe a noção de “iden-tidade narrativa” como resposta às perguntas pelos sujeitos (individuais ou coletivos) da ação; a alternativa por uma ca-tegoria da prática que, numa síntese aberta, procura articular as mudanças frente às descontinuidades do real, o aportar de referências histórico culturais e um esforço hermenêuti-co de distinção, evitando uma delimitação identitária restrita à mesmidade, ou, de outra parte, uma definição pautada em demasia na volição.

Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comuni-dade é responder a tal questão: quem fez tal ação? Quem é o seu agente, o seu ator? Essa questão é primeiramente respondida nomeando-se alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Que justificativa que se considere o sujeito da ação, assim designado por seu nome, como o mesmo ao longo de toda uma vida que se estende do nascimento à morte? A resposta só pode ser narrativa. Responder a questão ‘quem?’ como considera ener-gicamente Hannah Arendt, é contar a história de uma vida. Sem o auxílio da narração, o problema da identi-dade pessoal está, com efeito, fadado a uma antinomia sem solução [...] Desaparece o dilema se substituirmos a identidade compreendida no sentido de um mesmo (idem) pela identidade compreendida no sentido de um si mesmo (ipse); a diferença entre idem e ipse não é senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa. A ipseidade pode escapar ao dilema do Mesmo e do Outro, na medida em que sua identidade se baseia numa estrutura temporal conforme ao modelo de identidade dinâmica oriunda da composição poética de um texto narrativo. O si mesmo pode, assim, ser dito refigurado pela aplicação reflexiva das configurações narrativas. Ao contrário da identidade abstrata do Mesmo, a identidade narrativa, constitutiva

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da ipseidade, pode incluir a mudança, a mutabilidade na coesão de uma vida. (Ricouer, 2010, p. 424)

Com isso, entendo que o autor situa a prática narrativa como produção cultural que se faz desde e para uma organi-zação necessária do experenciar, do existir no transcurso e nos acontecimentos a tocar nossas sensibilidades. Ela inte-graria produção identitária ao configurar uma forma de in-teligibilidade da realidade social e do experenciado, reorga-nizando-os de alguma maneira. A narrativa expressa, então, uma espécie de significação de segunda ordem, ao incorpo-rar signos cujos sentidos são previamente compreendidos e compartilhados nas relações, dispondo-os em novo arranjo compreensivo, em que se visibilizam sujeitos, ações, lugares e relações articulados em um enredo imaginado constitutivo da “ipseidade”.

Creio que, com relativa facilidade, podemos observar a existência de narrativas em nosso “quefazer” diário. Ali es-tão elas quando assistimos TV, acessamos perfis em redes so-ciais, partilhamos conversas sobre os dilemas de algum ami-go ou de uma personagem de novela, contamos anedotas, etc. Com as narrativas, significamos e nos identificamos, temos nossos desejos simbolizados, na ocupação de nosso tempo com perguntas, a uma só vez, nossas e nem tão nossas assim. De maneira geral, concebemo-nos pessoas e/ou grupos com itinerários biográficos e, se interpelados, fazemos da narrati-vização (em sentido amplo) um dos artifícios de configuração e apresentação de si.

Eis que, assumindo por premissa as proposições de Ri-coeur (2010), volto a Melucci (2001b; 2004), pensando possível conceber certa complementaridade tensa entre “identidade narrativa” e a metáfora do “planeta interno”. Tal articulação conceitual me parece válida, situando a ideia de um planeta interno no curso de um processo individualizante

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que legamos da modernidade, cuja produção sócio-histórica nos habilita e instiga a pensarmo-nos como individualidades responsabilizadas, que colocam a identidade como tarefa, e para as quais, então, a narrativização pode ter lugar especial no agenciamento dos fatos e na concepção do experenciado. Entendo que o “narrar” elabora o fluxo reflexivo trançado às questões existenciais que povoam nossos “planetas”, repre-sentando um esforço (em geral, parcial e provisório) de figu-rar articulações frente ao múltiplo e ao variável no campo de vetores da identificação.

De outra parte, lembrando argumentos de Martuccelli (2007), se a individuação se consolida na possibilidade social-mente produzida de se ter experiências diversas, potenciali-zando singularização, poderíamos nos perguntar como seria vivenciada a narrativização no contraste frequente com o di-verso. Se podemos sugerir que a diversidade das experiências nos lança a sentir diferenciação entre tempos sociais (Melucci, 2004), como o “narrar” se situa na tensão entre estes e o tem-po interno (dos afetos, das emoções, dos sonhos)? Ou ainda, que efeitos poderíamos supor a partir da intensificação dos apelos à experenciação, em geral, quantitativamente superio-res às reais possibilidades de efetivação? (Melucci, 2001b).

No rastro da caracterização atribuída, aqui, à contempo-raneidade, podemos admitir, com Melucci (2001b; 2004), a experiência paradoxal de, simultaneamente, viver-se o estí-mulo a práticas autonomizantes e a ampliação dos artifícios de controle e regulação social. Destarte, na disputa pela pro-dução de sentidos para as práticas, Melucci (2001b) comen-ta que o ato de narrar ganha mais fôlego, já que os sujeitos precisam configurar mais veementemente suas identidades frente às provocações e alteridades que se lhes apresentam. E podemos supor não só a intensificação de tal prática, mas também acalentar a hipótese de fraturas na forma: a probabi-lidade de tensões rumo ao recrudescer das contradições nas

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identidades narrativas, no reescrever-se sucessivo, recons-truindo o passado desde a necessidade da escolha, e ao ob-jetivar-se progressivo, que postula a prática em relativização ou arroga justificação argumentativa para se impor.

A figura do narrador tradicional, imbuído da representa-ção da sabedoria pelo contar da experiência ou do atualizar da memória coletiva, e cujo ocaso foi enunciado por Benja-min (1985), estaria ainda mais distante. De outra parte, o ato narrativo se recoloca no tecer das identidades. Narrativa como um expediente para “ancorar a pulsação do tempo” e se relacionar com o múltiplo e o incerto: mais que dar con-selhos, marcar posição; algumas vezes, antes da expressão de uma sabedoria legitimada da tradição, o comunicar de uma de uma identidade que advoga justificar-se; noutras, menos o contar como foi, visando ao “como deve ser”, e mais o explicitar como está sendo, com a expectativa recôndita de distinção, reconhecimento e referencialidade. Formas da narrativização que indiciam jeitos singulares de experenciar e identificar-se.

Quando se produz socialmente a escassez do tempo, as-sociada aos apelos à escolha e à necessidade de renúncia, a narrativização pode ser a clausura de uma prática ansiosa, refém das interpelações, arremessada à dominação por ins-crição subjetiva da responsabilização individual18 (Martuc-celli, 2007). Mas guarda também a potência de uma elabora-ção que teça a trama da continuidade e as redes da pertença (Melucci, 2004). De todo modo, as tensões elencadas desde as contribuições desses autores precisam de análises contex-

18. Acerca das modalidades de dominação, Martuccelli (2007) traz provocações inte-ressantes. Argumenta que viveríamos a individuação também na responsabilização individual pelas práticas e suas consequências. Ao lado (e na fronteira) do assujei-tamento, disciplinando formas de se portar e comportar, o conclamar das habilida-des peculiares do indivíduo na realização de um projeto para si, ao qual se associa a prescrição da necessidade de participação, autonomia, independência, autenticidade.

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tualizadas. Se, com Ricoeur (2010), a narrativa representa a organização do tempo humano e sintoniza as experiências existenciais aos tempos sociais, há que se ponderar suas arti-culações com as condições de sua apropriação pelos sujeitos, e a maneira como constituem as disposições hermenêuticas que a “identidade narrativa” sugere.

Sigo com tal noção para compreender os diálogos e mi-nhas incursões de pesquisa. Quando com as pessoas, com seus dizeres, no partilhar de jeitos e trejeitos, lembranças, planos e anseios, no observar das práticas, dedico-me a con-ceber narrativamente suas existências, porque, se percebo a inconstância de suas pertenças ou a descontinuidade em seus cotidianos, não posso ignorar seu esforço em afirmar uma identidade, imaginando itinerários ou, pelo menos, agencian-do suas experiências e relações em um enredo plausível. Algo de que podemos participar com as perguntas que carrega-mos conosco e que, não raro, deixamos por onde passamos.

É preciso lembrar, nesse sentido, que a prática narrativa (como configuração pontual) não resume a identidade narrati-va. As várias formas da reflexividade indiciam isso. As identifi-cações não cabem no verbalizado: as narrativas podem assumir formas outras e, ainda assim, nem tudo é racionalizado e comu-nicado; nossos silêncios comportam significados e o Outro tem o que expressar a nosso respeito. Com isso, quero afirmar que, se a concepção de uma identidade narrativa é o vetor, a narra-ção de identidades que queremos conhecer só é possível como trabalho inacabado e feito no encontro e no diálogo.

4. Identidades, narrativas e espaço de ação

As identidades (individuais e/ou coletivas) e sua relação com a diferença denotam, na assunção de um status contin-gente e histórico, a necessidade de considerarmos as condi-ções relacionais de produção da identificação, da reflexivi-

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dade e da narrativização, tomando aí práticas, interações e reciprocidades, conflitos e relações de poder que as ambien-tam e constituem19.

Nesse sentido, à medida que transcorriam meus diálogos de pesquisa, em meio a conversas com pessoas de diferen-tes bairros da cidade, caminhando e contemplando os luga-res onde viviam e/ou faziam seus dias, a noção de “campo de ação” passou a ocupar importante papel na compreensão das identidades que procurava narrar. Em geral, chegava até as pessoas por suas práticas cotidianas. Ativistas do Hip Hop, trabalhadoras vinculadas à economia solidária, catadoras, entre outros, falavam de atividades que ocupavam muito de seu tempo, delimitavam certo locus de circulação e a rede de relações que partilhavam, e pelas quais, ademais, se definiam (ou eram definidos).

Encontrar os sujeitos a partir de práticas que lhes são significativas e/ou lhes tomam os dias comporta a compre-ensão dos pertencimentos e reconhecimentos construídos aí. Uma vez imersos em algum sistema de produção social, par-tilhamos a construção de sentidos e relações, que delimitam lugares para produtores e produtos, que reconhecem certa relação entre resultados da produção e ação dos produtores e, dada a condição de interdependência, configuram tal per-tença na reciprocidade de reconhecimento. Analisar vincula-

19. Bauman (2005) nos lembra: “a identificação é também um fator poderoso de estratificação, uma de suas dimensões mais divisivas e fortemente diferenciadoras. Num dos polos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desar-ticulam suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro polo, se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e no final se veem oprimidos por identida-des aplicadas ou impostas por outros – identidades de que eles próprios se ressen-tem, mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar [...] A maioria de nós paira desconfortavelmente entre esses dois polos...” (p. 44).

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ções a diferentes formas de prática social se interpenetra à teorização das identificações (Melucci, 2001).

Eis que então, apesar das diferenças de abordagem, certa aproximação à teoria dos campos de Bourdieu (1996; 2000; 2007) tem sido bastante instigante. Muitas vezes criticado pela ênfase que teria dado às formas de inculcação das condi-ções objetivas pelos agentes, isto é, aos efeitos reprodutores da integração a um espaço social de ação (que suas primei-ras pesquisas na França parecem mesmo privilegiar), a obra deste autor pode ser considerada também pelo esforço de articular ações subjetivas e o contexto que a potencializa e limita. Eis que a noção de “campo” traz consigo tal exercício e procuro apropriá-la como matriz de interpretação.

No apêndice “A ilusão biográfica”, Bourdieu (1996) esta-belece uma série de críticas às pesquisas sobre “identidade” quando estas assumem tacitamente a possibilidade de efeti-vação real de itinerários pessoais tomados na forma linear como são contados pelos autores das narrativas. No final do referido texto, porém, argumenta sobre a possibilidade da pesquisa sobre identidade em relação com o campo, isto é, com o conjunto de estruturas que ambientam a narrativa do supostamente biográfico e linear.

Para Bourdieu (1996), dizer “quem” ou “como sou/so-mos” seria uma tentativa imaginativa de propor unidade e fi-nalidade, conectando os deslocamentos que o sujeito efetiva no espaço social. Para ele, a narrativa de uma trajetória se configura como sucessão de posições e deslocamentos, inte-ligíveis ao pesquisador mediante construção do

conjunto de relações objetivas que vincularam o agente considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e que se defrontaram no mesmo espa-ço de possíveis (p. 82).

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O campo, em Bourdieu (1996; 2000), é espaço de intera-ções e disputas sociais instauradas por agentes sociais que partilham a produção e reprodução de um conjunto de prá-ticas sociais. Resulta disto a configuração de recursos sociais concernentes a tal espaço, que, de um lado, constituem-se como elementos mobilizadores da ação e, de outro, são as referências na definição de posições em um quadro relacio-nal de poder. O quantum de poder, nominado numa alusão à economia política, como “capital”, dependerá do montante historicamente acumulado por cada agente.

Pode-se descrever o campo social como um espaço mul-tidimensional de posições tal que qualquer posição atual pode ser definida em função de um sistema multidimen-sional de coordenadas cujos valores correspondem aos valores das diferentes variáveis pertinentes: os agentes distribuem-se assim nele, na primeira dimensão, segun-do o volume global do capital que possuem e, na segunda dimensão, segundo a composição do seu capital – quer dizer, segundo o peso relativo das diferentes espécies no conjunto das suas posses. (Bordieu, 2000, p. 135)

A integração a um campo social determinado configura-se, ademais, desde o que Bourdieu (1996), define como certa “re-lação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social” (p. 139-140). A illusio representaria a integração (nem sempre consciente) aos sen-tidos compartilhados no campo e a mobilização do interesse em participar da disputa; certa concordância com as regras e o ativar-se para a prática vinculada a determinado capital.

Estou trabalhando com a premissa, então, de que para compreender processos de identificação, preciso conhecer o campo de ação dos sujeitos com quem dialogo. Preciso con-textualizar o que narram, os esquemas interpretativos assumi-

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dos, as prioridades enunciadas, os sentidos atribuídos a partir do espaço relacional em que se posicionam diacrônica e sin-cronicamente. Isto significa chegar a outros agentes que com-partilham a prática e o pertencimento que lhe é concernente, observando as posições ocupadas e as condições de poder na produção e reprodução do que delimita o campo de ação.

Sobretudo, gostaria de reter, aqui, a noção de “campo” como signo de um “espaço de possíveis”, antes de vislumbrar a concepção de âmbitos de prática fortemente circunscritos. Entendo que isto oscila conforme o nível de instituciona-lização presente entre as atividades e, ainda assim, merece questionamento sobre a efetividade na delimitação das iden-tidades. Trata-se mais da necessidade de situar as bases de pertença e as disposições dos sujeitos, reconhecendo as “re-gras do jogo” a que se articulam, e, para tanto, apoiar-me em uma categoria metodológica que proporcione a narrativa de uma totalidade heurística.

Em articulação às referências que apresentei anterior-mente, concernentes à relação constitutiva entre identidades e diferença e, depois, à capacidade reflexiva e à narrativiza-ção, tenho procurado conceber os campos de ação como com-posições mais ou menos permeáveis. Quero dizer com isso que, embora possa assumir o processo de identificação com determinada prática social como preponderante e/ou prefe-rencial no cotidiano dos sujeitos, entendo necessário tomá-lo como ponto de chegada, para, então, ponderá-lo junto a ou-tros pertencimentos. Assim, desloco as identidades no campo (esmaeço a efetividade da illusio, nos termos de Bourdieu) conforme se expressam condições objetivas e filiações que as atravessam ou competem com ela na mobilização dos tem-pos, atividades e narrativas dos sujeitos.

Se com Martins (2011) podemos afirmar nossa experi-ência das “hesitações do moderno”, na forma da construção de uma cultura híbrida que apropria signos da modernidade

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na articulação com o tradicional, que vive a “travessia” como constituinte em uma modernidade inconclusa e/ou epidérmi-ca, vale colocar em suspenso suposições sobre a efetividade dos discursos na interpelação das pessoas ou sobre a abran-gência das dinâmicas reflexivas quando as instituições moder-nas chegam às lufadas; vale conhecer os espaços de ação e as apropriações produzidas pelos sujeitos com quem se dialoga.

Estar em práticas associadas à economia solidária, à reci-clagem, ao Hip Hop, à educação social, ou outra, são possibi-lidades de pertença que, segundo venho observando em mi-nhas interlocuções, precisam ser situadas em relação (tensa) com outras identificações. De tal maneira que um campo de ação pode assumir configurações bastante distintas daquelas afirmadas pelos que dominam as condições de enunciá-lo; ou, mais além, podemos aventar que os sujeitos criam espa-ços de ação peculiares, na relação com outros campos (que possamos considerar socialmente legitimados) ou mais dire-tamente com discursos que os interpelam.

Por conseguinte, tenho problematizado as identidades a partir de vetores de tensionamento, procurando realçar ele-mentos desde os quais percebo meus interlocutores se situ-arem, em uma constituição que, em geral, parece-me tensa e relativamente aberta. Diferentes níveis de acesso a recur-sos materiais e culturais, filiações étnicas e/ou de gênero, vinculações partidárias, pertencimentos comunitários, etc., compõem um panorama de narrativização identitária e, em articulação, de mobilização e trânsito, que é difícil delimitar.

Contudo, a medida que delimito um campo de ação (mais ou menos institucionalizado), tenho procurado realçar as relações de poder presentes quando me foram dadas opor-tunidades de conhecer os cotidianos de meus interlocutores, orientando o olhar, sobretudo, para os posicionamentos dos sujeitos frente às condições e interpelações que se lhes apre-sentam. As noções de “tomada de posição” e de “estratégia”, a

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partir das contribuições de Pierre Bourdieu, e de “táticas”, de Certeau (2011) podem nos ajudar nestas reflexões.

Em Razões práticas, Bourdieu (1996) define tomadas de posição como as “escolhas” que os agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática (p. 18). Neste sentido, compreendê-las supõe conceber um campo de ação no qual se inscrevem20. Trata-se de problematizar a dimensão política das ações, dos gostos, das interpretações, das escolhas cotidianas enfim, observando-as em articulação com produções culturais e históricas que integram, assinalando que, situados em espa-ços de ação coletiva e socialmente produzidos, agir é assumir posicionamento nas relações ou, de forma mais direta, no locus em que se partilha (e disputa) recursos, sentidos e projetos.

As estratégias são concebidas em congruência. Para Bour-dieu (2009), elas são produto de um senso prático associa-do às “regras do jogo”; movimentos operados pelos agentes quando circunstâncias usuais sofrem modificações. O autor considera que operamos acionando disposições socialmente estruturadas, sem necessária reflexão a respeito dos esque-mas interpretativos e classificatórios que nos orientam. De um lado, está a criticar o entendimento de que agimos estri-tamente conforme “cálculos racionais”. De outro, postula que as “regras do jogo” não são necessariamente o prescrito e o institucionalizado, mas sim o resultado das relações histori-camente produzidas pelos agentes (Trigo, 1998).

Porém, a maneira como Bourdieu (2009) utiliza essa noção me gera certo desconforto: esses produtos do senso prático tendem à conservação das “regras”21. Assumindo a

20. Neste ponto, devo fazer uma ressalva. Ao aludir a noção de “campo” como ins-piração, não estou afirmando que faço nos capítulos que compõem o livro um uso exaustivo da noção de Bourdieu. Minhas intenções são muito mais modestas e, é preciso admitir, não dão conta de um uso metodológico suficientemente rigoroso do conceito, na forma como utilizada pelo autor.21. Bourdieu (2009) aborda, por exemplo, as estratégias para manutenção de um “bom casamento” na comunidade bearnesa, na França, aquele que garante a linhagem e o pa-trimônio, ainda que isto signifique modos de operar distintos do previsto juridicamente.

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crítica de Certeau (2011), a estratégia entendida assim ten-de à “repetição do passado” e as possibilidades de ação do sujeito quase desaparecem. Tenho relativizado o uso desta categoria, reconhecendo-a em determinadas situações, mas observando também as alternativas práticas construídas pe-los sujeitos a partir do que se lhes oferece.

Chamo de “estratégia” o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.Denomino, ao contrário, “tática” um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. A tática só tem por lugar o do outro. Ela aí se insinua, fragmentariamente, sem apreendê-lo por inteiro, sem poder retê-lo à distância. (Certeau, 2011, p. 45)

A noção de “tática”, por sua vez, afirma mais sensivelmen-te os movimentos daqueles que, em várias dimensões, expe-renciam relações fortemente assimétricas e que precisam se posicionar na “captura em voo”, quando as condições de vida não possibilitam pouso e a segurança de um “mirante”. O cál-culo existe, mas está restringido pela necessidade de tomar o produto do outro como matéria de consumo, sendo que “o fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas” (Cer-teau, 2011, p. 46) e, no microcosmos do cotidiano, estabele-cer maneiras astuciosas de empregar e de fazer.

Nesse caso, não faço opção por uma categoria ou outra. Penso possível observar formas de operar que mobilizam disposições e esquemas de compreensão que, por fim, aca-bam por reproduzir modos de relacionar. De outra parte, as astúcias do “fraco” se fazem presentes na periferia e podem

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nos apoiar na interpretação de certa reflexividade da práti-ca no cotidiano, desde os consumos próprios das produções culturalmente dominantes. Vale perguntarmo-nos, ademais, se não deveríamos trabalhar no contraste das “estratégias” e das “táticas” (como categorias de interpretação que são), quando nos debruçamos a compreender as práticas e as in-terações que as pessoas constroem, pensando criatividades e reproduções cotidianas de sujeitos que se movem no entrela-çar com seus espaços de possíveis.

Tenho procurado trabalhar com a relação entre, de um lado, campo e tomadas de posição e, de outro, estratégias e/ou táticas, por considerar mais viável e rigorosa a intepre-tação das posições e ações ocupadas pelos sujeitos quando delimito a que contexto me dirijo na análise. Parto da neces-sidade de esboçar o espaço de ação, para, reconhecendo as “regras do jogo”, situar o que assenta posições e, então, aquilo que as transgride. Desta forma, vislumbrar estratégias e táti-cas apoia a delimitação de tomadas de posição e vice-versa.

Além disso, tais noções me ajudam a situar as práticas produzidas pelos sujeitos a partir de suas condições de vida em bairros socialmente vulnerabilizados, mas também em articulação com redes relacionais que transcendem a perife-ria e conectam-na com sujeitos de outros circuitos na cida-de. Com isso, embora meus diálogos partam de localidades topograficamente periféricas, as análises procuram sinalizar atravessamentos e interdependências destas com outros am-bientes citadinos.

Procuro demarcar posicionamentos políticos, situando as tomadas de posição em uma espécie de gradiente con-correncial peculiar ao locus com que se relacionam. Mas, por outro lado, se pensados junto à produção de identidades, os posicionamentos precisam ser observados como composição entrelaçada por pertencimentos diversos (no duplo sentido de diferente e divergente): os detalhes que o cotidiano apre-

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senta provocam a considerar nas tomadas de posição e nas táticas as cores infiltradas pelos tensionamentos identitários.

A relação entre “identidades” e “espaço de ação” tem sido provocativa. Convida a problematizar a produção identitária desde uma compreensão contextualizada da narrativização envolvida aí, incluindo as condições de reflexividade desde as quais meus interlocutores atuam; invita, em consonância, a tomar em questão as possibilidades de individuação das pertenças e complexificação do campo. Para tanto, o acesso a práticas cotidianas dos sujeitos vem sendo a ambiência privi-legiada de minhas perplexidades e reflexões.

5. E, por fim, um jeito de dialogar

Quando reflito sobre minha presença entre as atividades de meus companheiros de percurso, lembro que, em geral, chegava às suas localidades com um conjunto de ideias a me orientar e uma série de coisas que ansiava saber, como é cos-tumeiro em atividades de pesquisa. Contudo, o desafio posto era (e segue sendo) como deixar que as perguntas de meus interlocutores, que de lá também me observavam, se infiltras-sem e me levassem a novas possibilidades argumentativas.

É sempre bom lembrar, com Bourdieu (2007), que parti-mos de objetos de pesquisa construídos, coerentes com as di-nâmicas cognoscentes da vida acadêmica. Objetos pelos quais estabelecemos limites de abrangência investigativa, mas, tam-bém, fronteiras de compreensão que precisamos admitir e co-nhecer para seguirmos explorando. Logicamente, não estou afirmando que faço tal exercício de maneira cabal; no melhor dos casos, tenho o levado comigo como questionamento epis-temológico sobre os modos pelos quais estabeleço diálogos.

No que diz respeito diretamente às interações em campo, às vezes, partia de contatos localizados e procurava esboçar um espaço de ação a partir de um ponto inicial. Outras vezes,

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começava por um levantamento de dados gerais ou de leitu-ras sobre determinada coletividade e, em seguida, lança-me ao cotidiano de um grupo relacionado. A premissa que per-corria as diferentes formas de compor o itinerário, no entan-to, era a busca por associar o conhecimento de uma realidade propositadamente circunscrita a condições e relações estru-turais. Nas palavras de Fonseca (1999), almejava operar sob o pressuposto de que “cada caso não é um caso”.

Orientava meus diálogos e minhas análises à composição de um “caso particular do possível”, conforme inspira Bour-dieu (1996), o que pressupõe a compreensão de elementos estruturais. Mas, aqui, cabe fazer uma ressalva em relação ao que tenho produzido. O “caso” está situado em relação a um conjunto estrutural entendido como um “todo explicati-vo” construído, concebido até o momento em que o elaboro. Não uma produção ficcional, mas também não a resultante de um conhecimento absoluto, que espelha estruturas sociais de uma realidade. Uma interpretação plausível, que crie uma nar-rativa passível de diálogo problematizador (Melucci, 2005).

Tal condição indicia uma orientação epistemológica. A relação identidades-campo precisa ser pensada como um esforço de articulação entre parte e todo, ou melhor, entre as práticas e afeições que conhecemos no diálogo, cotidiana-mente, e as relações históricas e estruturais que consigamos analisar. Mas, se delimitar um espaço de ação é significativo para não se cair em uma espécie de afirmação genérica (e es-tritamente teorética), para se conhecer as bases de produção de pertencimentos, este desígnio parece-me ter sentido ape-nas se observado como um todo analítico, narrativo e aberto. Uma vez mais, antes de uma definição do real, um exercício de delimitações provisórias e em diálogo.

Nesse sentido, sou sensível aos argumentos de Meluc-ci (2001; 2005). O autor me faz considerar que, se estamos cientes de que ocupamos uma posição como observadores de

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dada realidade, nossa ação como pesquisadores precisa ser ponderada em relação a pelo menos dois vetores. Primeira-mente, aquele já bastante discutido relativo à não isenção das escolhas e das análises do investigador, que podem nos levar a problematizações sobre as contingencialidades da linguagem e, também, da trajetória e posição social de quem observa.

O segundo vetor de análise me leva a ponderar as conse-quências da presença em campo. Uma vez inserido no coti-diano de meus interlocutores, estando ali como pessoa “es-trangeira”, cujo objetivo é justamente conhecer e perguntar sobre, opero alterações na rotina, instigo posicionamentos que contemplam também minha inserção. O que acabo por conhecer, neste sentido, não seria sobretudo o observável a partir da relação que construo com os sujeitos? Com Melucci (2005), tendo a crer que, se estamos a dialogar com sujeitos que produzem sentidos para suas ações, estamos a singulari-zar o contexto com nossa presença e, mais além, não deixa-mos de intervir quando lançamos perguntas.

Daí a importância de pensarmos a escrita resultante da pesquisa na forma de uma “narrativa reflexiva”, como inspi-ra Colombo (2005). Um texto que incorpore o relato proble-matizador dos meios e condições sob os quais de construiu as informações e as inferências apresentadas. Uma forma de apresentação que explicite as bases de sua formulação e de sua estratégia retórica.

Melucci (2001; 2005) assinala, justamente, que um dos elementos que distingue a elaboração científica é justamente a possibilidade de conhecer reflexivamente os meios de sua produção. Para além da importância desta capacidade na in-teração com os pares, ela potencializa que a pesquisa qualita-tiva participe da vida dos sujeitos como “possibilidade dialó-gica e reflexiva”, a oferecer novos questionamentos sobre os significados das ações e suas opacidades ou, de outra forma, propor novas formas de narrar cotidianos e identidades.

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Voltando ao questionamento colocado de início, abrir minha interpretação às perguntas de meus interlocutores é uma tentativa de construir análises que reconheçam o quan-to minha compreensão é interdependente das circunstâncias relacionais em que se dá minha interação em campo. É, tam-bém, uma busca por uma compreensão crescentemente plau-sível, ao escutar o que dizem e ao levar aos sujeitos diferen-tes formas de perguntar e refletir sobre as ações, e fazer isso conforme o percurso e as conversações instigam22.

A produção de narrativas tem sido a tônica de minhas incursões. É lembrar, com Ricoeur (2010), que narrar não é somente tecer um depoimento, e sim um agenciar das experi-ências e, neste sentido, configura-se como exercício interpre-tativo-identitário, que comporta a apropriação de elementos de contexto (fatos e artefatos) para compor um enredo. Pro-vocar tal elaboração é se achegar a uma configuração tributá-ria da realidade do sujeito no conteúdo e na forma (incluindo domínio de códigos, experiências relativas ao tema em ques-tão, grupo usual de interlocução, tipos de narrativas de aces-so corrente, sistemas simbólicos de que o sujeito comunga)23.

22. Aqui, vale mencionar um artifício metodológico concernente. Procuro fazer uso de entrevistas ou outras técnicas dirigidas somente após longo período de imersão juntos aos interlocutores da pesquisa. Trata-se de um cuidado orientado ao conheci-mento prévio das realidades em estudo, à construção de laços de confiança e à am-bientação de interações mais dialógicas, de modo a diminuir os efeitos da violência simbólica operada quando nos colocamos na condição do pesquisador, representan-te de um campo de saberes.23. Embora possamos aventar a hipótese de uma relação de contiguidade e comple-mentaridade entre as narrativas ficcionais e/ou míticas e os enredos elaborados pe-los sujeitos no organizar de suas vivências, entendo necessário assinalar que estes se singularizam de maneira bastante explícita. Partindo das contribuições de Barthes (2011), entendo que, contendo conotação e denotação, a proporção destas nos enre-dos elaborados em diálogos de pesquisa se distinguem, tensionadas à segunda. Da mesma maneira, não se trata necessariamente de um narrar que postula uma mensa-gem. A intencionalidade tende a se apresentar de maneira implícita e sociorrelacional, conforme o instante de interação, a intermitência e a intenção das perguntas. Por fim,

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O interpretar e o problematizar de tal conjunto parece--me possível quando diversificamos as formas de narrativa, contrastamos depoimentos de diferentes sujeitos no campo e, além disso, diversificamos as técnicas, oscilando entre pro-cedimentos abertos e fechados em relação às formas de ma-nifestação de nossos interlocutores. O que foi dito pode ser contemplado desde as contradições que diferentes posições comportam; aquilo que é narrado pode ser contrastado com as práticas e táticas que se observa. E, neste ínterim, dar-se uma dupla acepção às técnicas: meios para consolidar infor-mações e, simultaneamente, bases para visibilizar tomadas de posição24.

tal enredo pode ter uma circularidade limitada e seus elementos uma funcionalidade frágil. Ainda que não haja espaço para tratar deste aspecto neste ensaio, penso que aqui reside um permanente desafio ao pesquisador/leitor: ler a narrativa reconhecen-do suas lacunas, ou melhor, compreender o enredo desde a constituição que lhe é mais própria, evitando a tentação de preencher os espaços supostamente vazios.24. Para os diferentes contextos pesquisados, há um conjunto de informações que procurei contemplar, e que estão relacionadas às noções que abordei neste capí-tulo: itinerários narrados individualmente e em contraste, destacando-se aconteci-mentos, temas e personagens que privilegiava cada interlocutor; rotinas cotidianas (tempo ocupado e prioridades); temas recorrentes nos diálogos que estabelecemos; redes de circulação e sociabilidade; práticas de filiação regular; parcerias estabe-lecidas (individual e coletivamente) na consecução das práticas; gestos, trejeitos e peculiaridades de vocabulário; acessos culturais (escolarização, lazer, etc.); e recur-sos econômicos (renda, moradia, entre outros). De forma geral, minhas pesquisas têm uma inspiração etnográfica. As técnicas incluíam observação in loco, entrevistas, elaboração de diagramas (sociogramas, por exemplo), realização de ensaios e expo-sições fotográficos, confecção de álbuns, dentre outras possibilidades. Como afirmei acima, procurava reunir informações e, ao mesmo tempo, criar formas para que os sujeitos assumissem posição reflexivamente. Em alguns casos, isso incluiu a orga-nização de eventos em que pudessem visibilizar suas produções fotográficas. Aqui, vale frisar que, a cada técnica, precisamos ponderar as significações que carregam socialmente. Por exemplo, as entrevistas podem evocar o gosto por falar a alguém supostamente distinto (por conta de seu poder simbólico); as fotografias, geral-mente, são orientadas à visibilização do extraordinário e/ou importante (Martins, 2009); aos álbuns caberia condensar uma “herança” simbólica (Delory-Momberger,

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De um lado, sistematizar campos de tensionamentos iden-titários (na forma de pertenças e bases reflexivas) desde as quais se posicionam os sujeitos; de outro, estimular que eles reflitam sobre as contingências de seus itinerários. No cor-rer de tal busca, assenta-se o compromisso ético de buscar mediações efetivamente dialógicas no processo de pesquisa. Uma tarefa difícil, mas que entendo relevante se considerar-mos que a pesquisa e o debate sobre as identidades não se re-sumem a uma contemplação da diversidade de composições estilísticas que presenciamos. Identificar-se/diferir-se é um modo de crer e compreender, logo de operar no mundo, de delimitar o que nos mobiliza e com quem estamos dispostos a participar. Como nos lembra Silva (2012), a representação significante das identidades remete à definição de certas fron-teiras (quem está dentro e quem está fora, quem pertence ou não) e a possibilidade de enunciá-las está associada às condi-ções de poder das quais participamos. Dizer algo sobre identi-dades contribui para defini-las e parece-me oportuno refletir sobre o que nos dispomos a enunciar e mobilizar no encontro.

Ao final de um percurso, situado neste lugar onde se as-sentam algumas proposições e outras me invadem e me pro-vocam a seguir, olho para a pesquisa e vejo encontros. Vejo momentos para estar e para perguntar juntos, lançados ao desafio de compreender o que nos admira e inquieta; frente às potencialidades da participação em narrativas sobre o que temos cultivado na roda, ou melhor, na espiral do tempo.

2010). É necessário reconhecer as repercussões e as potências para a pesquisa das expectativas simbólicas associadas às técnicas que adotamos, problematizando os conteúdos e reflexões que oportunizam.

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CAPÍTuLo 2Sobre com quem se fala: reflexões para ir às periferias

Os espaços de minhas incursões vêm sendo diferentes lo-calidades de periferia urbana de Porto Alegre. E “periferia” é um termo de uso comum; quando se fala nela, em geral comunga-se certo entendimento, e poderíamos evocar, aqui, imagens de contextos com moradias semiacabadas, em con-dição precarizada pela existência insuficiente de equipamen-tos e serviços públicos; casas pequenas situadas junto a ruas estreitas, sem prévia planificação, algumas vezes em regiões fisicamente distantes dos centros urbanos. Aqueles lugares onde nem sempre estivemos, mas que tentamos nominar e distinguir no horizonte da urbe.

A formação dessas localidades que avistamos, gestadas entre as ações do capital imobiliário, do poder público e das populações empobrecidas que as habitam, guarda relação com a lógica de apropriação do espaço e distribuição de ri-queza na sociedade (Moura, 1996). Constituíram-se ao longo do século XX (especialmente, entre os anos 1940 e 1970), em articulação aos fluxos migratórios produzidos no processo de industrialização da economia brasileira, compondo a urbani-zação das metrópoles. Este cenário foi, aliás, disparador de pesquisas e análises que, a partir dos anos 1960 sobretudo, problematizavam as condições de marginalização populacio-nal associado ao crescimento das cidades no Brasil e na Amé-rica Latina.

A noção de “marginalidade” se referia a populações que passavam a residir em localidades constituídas à margem do corpo urbano tradicional, na maioria dos casos, em condições infraestruturais inferiores aos padrões estabelecidos para a região urbana central. Maolino (2005) comenta, neste sen-

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tido, que se opunham duas grandes vertentes teóricas: uma visão dualista, que concebia o segmento marginal como parte passível de integração aos setores desenvolvidos, mediante adoções de políticas públicas; e outra que se erigia na análi-se das condições de integração periférica de trabalhadores à produção capitalista, compreendendo-a como parte da confi-guração do modo de produção. Embora esta classificação não resuma as nuances das análises referidas à marginalização, cuja caracterização não caberia nesta sucinta introdução, ela nos sinaliza para as preocupações que circundavam os con-textos de periferia.

Tais estudos sofreram inflexões e acréscimos e, ao longo dos anos 1980, no contexto da democratização, o tema da ci-dadania e das formas de organização comunitária e política de grupos populares ganhou terreno. Dentre as produções da época estavam as pesquisas antropológicas, que se singula-rizavam ao buscar compreender os cotidianos, os modos de vida e as identidades dos moradores de bairros de periferia (Nascimento, 2010).

A periferia costuma ser também um dos lugares onde si-tuamos a “exclusão social” e aqueles que a vivenciam. Noção que ganha fôlego nos anos 1990, ela pode ser associada às circunstâncias geradas pela reestruturação produtiva, pela fragilização de políticas sociais e pelo desmonte do Estado de Bem-Estar Social, cuja configuração no Brasil era já his-toricamente deficitária, sendo que a elevação de níveis de desemprego estrutural figurava como principal evidência de restrições à mobilidade social e, em consonância, de riscos de segregação (Maiolino, 2005).

A noção de “marginalidade” teve seu uso secundarizado nesse cenário. Especialmente na vertente estruturalista his-tórica, ela tendia a aludir situações de desigualdade (e não de exclusão) entre populações inseridas em um sistema produti-vo e social. Ademais, a polarização de que ela era tributária, a

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relação “centro-periferia”, corporificada fisicamente em áre-as urbanas diferenciadas e distantes, fora reconfigurada na medida em que as cidades passaram a comportar múltiplas centralidades, por conta da criação de núcleos habitacionais diversos25, sendo que as formas de segregação socioespaciais se dispersavam em diferentes territórios (Santos, 2009).

Além disso, a noção de “exclusão social” passava a referen-ciar aspectos múltiplos do cotidiano (e transversais às con-dições econômicas), conforme se diversificam grupos e rei-vindicações sociais. Presta-se tanto a reclames de categorias desempregadas, sem teto, moradores de rua, como daquelas denominadas como “minorias” (grupos étnicos, homosse-xuais, etc.). Desta forma, parece corresponder a demandas diversas, agregadas por uma condição comum e genérica de apartação em relação ao que a sociedade dispõe, em que pese aí as diferentes caracterizações dos demandantes.

Apesar de sua potência agregadora no embate político por melhores condições de vida para diversos segmentos po-pulacionais, ao menos no que tange aos residentes das perife-rias ela merece problematização. Martins (2002) afirma que “exclusão é muito mais um desafio à compreensão do que um

25. Núcleos esses formados no curso de crescimento e alastramento da urbe ou, por exemplo, desde a implantação de condomínios de classe média em bairros afastados das áreas centrais antigas (e pelos equipamentos públicos e serviços comerciais que os acompanham), e onde dividem espaço com segmentos populacionais vulnerabi-lizados. Ou, noutras situações, constituídos por centralidades gestadas na diversi-ficação das comunidades nominadas como periféricas, por conta da conquista de recursos públicos (saneamento, energia elétrica, transporte coletivo, etc.) de manei-ra desigual e fragmentária. O trânsito por Porto Alegre é ilustrativo, neste sentido, a nos mostrar cenários cuja conformação e cujo crescimento dispõem lado a lado localidades bastante desiguais em quase todas as regiões. Se observarmos o mapa da cidade, podemos verificar que os bairros mais empobrecidos estão em diferentes partes, em convívio com populações mais abastadas. Em alguns casos, é possível visualizar que tais localidades são contíguas, estendendo-se de áreas de divisa a de morros, atravessando o município.

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diagnóstico sólido” (p. 23), lembrando-nos que, embora seu uso seja sintoma de transformações sociais que interpõem o risco da descartabilidade e a vivência da incerteza para di-versas populações, a categoria tende a representar deman-das não radicais quando traz em si a necessidade da inclusão, orientando o “não incluído” a um sistema organizado desde relações exploratórias. A “exclusão” não poderia ser pensa-da como denominação de um fenômeno totalizante, mas sim como expressão de uma condição específica e relativa, sob pena de ignorarmos as diversas formas de integração preca-rizantes pertinentes às relações sociais que produzimos no capitalismo; e, de outro lado, ignorarmos também os modos de organização (mais ou menos criativos) daqueles que no-minamos “excluídos” na feitura de seus dias.

Outra forma de olhar para as populações em comuni-dades de periferia se dá pela noção de “cultura popular” e muitos de seus correlatos. Esta, como no caso das categorias anteriores, tem o mérito de sinalizar para as assimetrias que construímos em nossas relações, com destaque para as rela-ções de poder na produção de nossos artefatos e de nossas formas de crer e compreender. De outra parte, também pode se mostrar frágil pela sua condição genérica e fortemente polissêmica. As problematizações sobre o “popular” já foram terreno de polarizações quanto ao teor de sua autenticidade e, conforme o propósito político que as animava, ora sinali-zavam para seus sinais de privação e de dominação frente à cultura erudita, ora destacavam sua criatividade e indepen-dência (Domingues, 2011).

Autores como Hall (2003) e Chartier (1995), desde di-ferentes perspectivas, criticam tal polarização, ao proble-matizarem a relação criação-consumo e considerarem as dinâmicas de interpretação operadas pelos sujeitos. Assim, caminham no sentido de reconhecer que os elementos da cul-tura não se configuram como entidades com existência está-

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vel e fixa, criticando delimitações essencialistas. Hall (2003) afirma que “o campo da cultura é uma espécie de campo de batalha, onde não se obtém vitórias permanentes, mas onde sempre há posições estratégicas a serem conquistadas ou perdidas” (p. 255). Já Chartier (1995) nos lembrará que a própria noção de “cultura popular” é uma produção histó-rica de grupos eruditos, ou daqueles em condição de enun-ciar, quando sentiram a necessidade de explicar e organizar aquilo que se distinguia nos aglomerados urbanos do século XIX. Neste sentido, faz crítica bastante radical em relação aos usos dessa categoria, enfatizando a necessidade de nos de-bruçarmos ao estudo das diferentes formas de ‘apropriação’ operadas pelos sujeitos, que podem explicitar a diversidade de configurações possíveis no interior (e para além) da dico-tomia popular-erudito, dominante-dominado.

Toda análise cultural deve levar em conta esta irreduti-bilidade da experiência ao discurso, resguardando-se de um uso incontrolado da categoria de texto, indevidamen-te aplicada a práticas (ordinárias ou rituais), cujas táticas e procedi mentos não são, em nada, semelhantes às estra-tégias produtoras dos discursos. (Chartier, 1995, p. 189)

A opção de José de Souza Martins pode ser inspiradora neste sentido. Referenciada pela obra de Henri Lefebvre, suas pesquisas sobre o cotidiano de pessoas de contextos rurais e/ou suburbanos trazem-nos a figura do “homem simples”, que pode ser o ícone das vicissitudes experienciadas por cada um e todos nós, entre dominações e alienações, resistências e disputas. Nas palavras do próprio Martins (2011),

a questão é saber como a história irrompe na vida de todo dia. Como, no tempo miúdo da vida cotidiana, trava-mos o embate, sem certeza nem clareza, pelas conquis-tas fundamentais do gênero humano (p. 10).

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As análises do autor nos falam das hibridações entre o tradicional e o moderno na sociedade brasileira, que, no curso de uma modernidade inconclusa, faz usos e consumos diversos dos signos da modernização. Assim, nossa “crítica” seria geralmente a resistência passiva e dissimulada ao novo, sem a repercussão em doutrinas e partidos; preferiríamos o riso e o deboche à reivindicação; a tradição se associaria mais ao mundo da fé e da festa do que ao do trabalho; o cotidiano seria fragmentado pela continuidade indiscernível entre rea-lidade e fantasia.

Muito antes de assumirmos as caracterizações propostas por Martins (2011), vale assinalar a potência de suas provo-cações, que, como em Chartier (1995) e Hall (2003), sinalizam a necessidade de elaborações não essencialistas, sensíveis às construções dos sujeitos com quem se dialoga, em sua histori-cidade. Uma procura por elaborações plausíveis sobre as pes-soas e os contextos que se vem a conhecer, em que pese e em tensão aos limites da palavra e dos conceitos que adotamos26.

Ir à periferia ambienta-se no reconhecimento de que, ao adentrarmos comunidades empobrecidas, que não raro es-tigmatizamos como localidades homogêneas, encontraremos condições de vida distintas e modos diversos de concretiza-

26. Exemplo do que afirmo, aqui, podemos encontrar nas provocações de Merklen (1997), quando indica a necessidade de se reconhecer as formas de atuação políti-ca produzidas pelos moradores de assentamentos, em Buenos Aires/Argentina. Ao considerar as alianças construídas pelos habitantes de tais localidades empobreci-das, assinala que as categorias “movimentos sociais” e “clientelismo”, costumeira-mente usadas em estudos concernentes, não dariam conta de explicar aquela reali-dade ao polarizarem entre posições de emancipação e de dominação. Em exemplo diverso, poderia citar também as produções de Fonseca (2004) sobre as dinâmicas familiares na periferia de Porto Alegre, cujos argumentos indicam que, em meio ao contexto de precariedade e frágil presença de instituições da modernidade, a ação de seus interlocutores ancorava-se mais em estratégias, no sentido de Bourdieu (2009), ou em táticas, na forma preconizada por Certeau (2011), que em um segui-mento estrito de regras morais.

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ção do cotidiano. Desta forma, os parâmetros que possamos adotar na comparação do acesso histórico a recursos que pro-duzimos socialmente são apenas o ponto de partida de uma contextualização relacional, para, então, refletirmos sobre as táticas e reflexividades que são construídas naqueles cenários.

As comunidades periféricas são várias na cidade de Porto Alegre e em seu interior as desigualdades diferem-se na in-tensidade e na natureza. As expressões “favela”27 ou “vila” são signos de tais desigualdades e diferenciações, de modo que entre os moradores de localidades de periferia é possível per-ceber hierarquizações articuladas aos laços de solidariedade que por vezes praticam. E essas distinções não são recentes. Leitão (2009) adverte que é possível perceber diferenciações socioespaciais nas favelas de maior porte do Rio de Janeiro desde os anos 1970.

Seria mais oportuno falarmos de “periferias”. Se é possível perceber marcas comuns de uma história de inclusões preca-

27. As palavras “vila” e “quebrada” seriam de uso mais comum em bairros vulnerabi-lizados de Porto Alegre. Embora “favela” não seja uma expressão usual, Silva (2009) apresenta uma caracterização para esta (normalmente, os locais mais precarizados entre aqueles de periferia) que pode ser ilustrativo para visualização dos contextos onde estabeleci meus diálogos de pesquisa. Seriam regiões com: “insuficiência histó-rica de investimentos do Estado e do mercado formal, principalmente o imobiliário, financeiro e de serviços; forte estigmatização sócio espacial, especialmente inferida por moradores de outras áreas da cidade; edificações predominantemente caracte-rizadas pela auto-construção, que não se orientam pelos parâmetros definidos pelo Estado; apropriação social do território com uso predominante para fins de moradia; indicadores educacionais, econômicos e ambientais abaixo da média do conjunto da cidade; níveis elevados de subemprego e informalidade nas relações de trabalho; ocupação marcada pela alta densidade de habitações; taxa de densidade demográfica acima da média do conjunto da cidade; ocupação de sítios urbanos marcados por um alto grau de vulnerabilidade ambiental; alta concentração de negros (pardos e pretos) e descendentes de indígenas, de acordo com a região brasileira; grau de sobe-rania por parte do Estado inferior à média da cidade; alta incidência de situações de violência, sobretudo a letal; relações de vizinhança marcadas por intensa sociabilida-de, com forte valorização dos espaços comuns como lugar de convivência” (p. 22-23).

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rizadas (fruto especialmente de fluxos migratórios, inserções laborais informais e de segregações étnicas e de gênero)28, a disposição geográfica de cada comunidade apresenta rela-ções diferentes com o “centro” e com outros bairros, confor-me a proximidade e as circunstâncias de conurbação; indica diferenciações socioespaciais internas distintas; demonstra organização política e cultural diferenciada.

E, em congruência, a diversidade também se expressa nas formas de experenciar a identificação com aqueles lugares. Há aqueles que transitam entre o bairro e o centro, enquanto outros pouco saem de suas comunidades; alguns criaram re-des de circulação e sociabilidade entre diferentes territórios (na cidade, na região metropolitana, no país) e fazem da con-dição periférica uma pertença comum e mote de seus enun-ciados; e há quem perceba desigualdades, mas não interprete seu lugar e seu cotidiano desde a noção de “periferia”, lem-

28. As incursões narradas nos capítulos subsequentes se deram, sobretudo, nos bairros Bom Jesus, Lomba do Pinheiro, Mario Quintana e Restinga. Todos têm histó-rico de crescimento populacional nos anos 1960-70 por conta de fluxos migratórios resultantes de êxodo rural ou de deslocamentos de moradores entre bairros. To-mando séries estatísticas publicadas pelo Observatório da Cidade de Porto Alegre (OBSERVAPOA, 2014), com base nos censos populacionais, mesmo considerando avanços gerais relativos à permanência na escola e no número de contratos formais (IBGE, 2013), uma análise comparativa evidencia que estas localidades estão en-tre as mais vulnerabilizadas do município (sem ponderar, aqui, as diferenciações internas aos bairros). Os índices educacionais (analfabetismo, anos de estudo dos responsáveis por domicílio, abandono escolar, IDEB) demonstram acessos fragiliza-dos à instituição escolar, com destaque ao abandono do ensino médio, que chega a ser o dobro ou quase o triplo do índice municipal (10,5% para Porto Alegre e 29,6% no bairro Lomba do Pinheiro). Os dados para número de “domicílios pobres” são os indicadores que sinalizam de maneira mais aguda as desigualdades nesses bairros (9,8% para a cidade e 31,1 para o bairro Mario Quintana, por exemplo). Os índices de violência também realçam precarizações históricas. Nos bairros mais empobre-cidos, a população negra é expressivamente maior e é onde se vê mais homicídios (o indicador de ‘homicídio juvenil negro’ é de 58% em Porto Alegre, enquanto chega a 72,7% na Restinga, por exemplo).

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brando-nos de que esta é também um constructo relacional-mente produzido.

O cotidiano por lá desenha, além disso, um quadro de práticas distintas a constituir as experiências dos sujeitos. Conforme ocupam os dias entre suas atividades e suas socia-bilidades configuram espaços de relação preferenciais que fazem de sua localidade um lugar singularizado para vivên-cias e pertenças variadas; espaços de ação que atravessam contextos, articulam periferias ao “não periférico” e, embo-ra se realizem no mesmo território, nem sempre proporcio-nam encontros entre os moradores do que nós, observado-res, denominamos uma mesma comunidade. Tais realidades demandam-nos o reconhecimento de sua condição diversa e caleidoscópica e uma abordagem topológica das relações que as constituem.

As narrativas que apresentarei adiante apresentam tal ambiência. Os capítulos subsequentes trazem diálogos com pessoas de diferentes localidades vulnerabilizadas29 de Porto Alegre e, desde o específico de cada interlocução, procuram dispor ao debate vetores de análise que adotei na tentativa de compreender as identificações produzidas por estes sujeitos, na imersão de suas práticas e redes de pertença.

29. A expressão “vulnerabilidade social” será utilizada ao logo dos capítulos que seguem. Uso-a para demarcar situações de acesso precário ou desigual a recursos legitimados socialmente como direitos (educação, saúde, saneamento, etc.), que são modulados a cada caso, dentro de localidades de periferia. Recursos esses que são alvo de atenção, interesse e disputa pelos moradores destes lugares, e cuja caracte-rização não se esgota no acesso a serviços e equipamentos oferecidos pelo Estado. Embora índices relativos à escolarização, renda, violência, infraestrutura sejam re-ferentes pertinentes para uma análise comparativa, fica o desafio de se visibilizar as criatividades que operam na produção de artefatos culturais e na socialização em contextos de informalidade.

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CAPÍTuLo 3Entre educadoras e educadores sociais, tensionamentos

de quem deseja emancipar

Começo a narrativa de meus itinerários por aquela que foi a primeira experiência de imersão na periferia. Trago aná-lises sobre o espaço de educação social, no qual efetivei pes-quisa entre 2006 e 2009 e que me parece o contexto mais indicado para iniciar as reflexões que proponho, dada a inser-ção destas no campo educacional.

À época, acompanhava os trabalhos de uma organização não governamental situada no bairro Lomba do Pinheiro. No período em que realizei a pesquisa, havia vinte e cinco educa-dores atuantes na sede da organização e, dentre eles, quatro gestores com os quais mantive diálogo mais regularmente. Pude acompanhar suas rotinas de trabalho e conhecer a traje-tória da prática de educação social da entidade, a entrelaçar-se com a história de seu campo de ação. E, após minha imersão entre as atividades de educadoras e educadores, ousei esbo-çar alguns dos tensionamentos que constituem tal prática.

A narrativa que apresento aqui remonta a atividades de assistência a crianças e jovens adolescentes e, mais especi-ficamente, à condução do Serviço de Apóio Sócio Educativo (SASE) e do programa Trabalho Educativo30. Este será o palco das problematizações e dos questionamentos que proponho, considerando, ainda, as assimetrias e relações de poder cons-truídas e atualizadas entre corpo de especialistas e a popula-ção do que se configura como entorno organizacional.

30. O SASE atende crianças e adolescentes de 6 a 14 anos com oficinas culturais, es-portivas e atividades lúdicas. O Programa Trabalho Educativo oferece a adolescentes entre 14 e 18 anos oficinas de preparação para o mercado de trabalho. Ambos são desenvolvidos no turno inverso ao da escola, oferecendo alimentação, apoio peda-gógico e psicossocial e, quando necessário, encaminhamento aos serviços de saúde.

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1. Buscando diálogos

Quando iniciei a pesquisa, acumulava já alguma experiên-cia de trabalho com organizações não governamentais voltadas à assistência social e havia optado pelo âmbito da assistência a crianças e adolescentes na busca de um caso a estudar. Então, procurei por uma organização reconhecida na área e cuja atu-ação estivesse historicamente associada a uma localidade com populações em elevada vulnerabilidade social31.

Lembro de ter ligado para a organização certa feita, depois de alguns contatos e explicações, para saber se aceitariam mi-nha presença entre as atividades que desenvolviam. À época, Clara32, a coordenadora pedagógica que me atendeu, disse-me em tom receptivo e peculiar: “sim, nós vamos te acolher aqui”.

Então, a pesquisa teve início mediante a imersão entre as atividades da organização. Passava turnos ou dias entre edu-cadoras e educadores, observando as atividades e conversan-do. Desde o princípio, interpuseram-se dois aspectos às inte-

31. A seleção da organização onde estabeleceria meus diálogos se deu pela defi-nição de alguns critérios. Busquei uma listagem de entidades junto à Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) e acessei o banco de dados de organização não governamental que agenciava voluntários em Porto Alegre. Estas eram as bases de dados mais extensas de que tinha conhecimento. Analisando as características mais recorrentes em ambos os bancos sobre histórico e serviços prestados e, além disso, considerando minha trajetória de pesquisa na área, defini como característi-cas a ponderar para a escolha: a. existência de vínculos com iniciativas assistenciais religiosas; b. vinculação a programas governamentais; c. inserção comunitária em localidades socialmente vulnerabilizadas; e d. parcerias (mesmo que eventuais) com projetos da iniciativa privada. Depois, selecionei cinco organizações para visita em diferentes bairros da cidade, quando pude detalhar informações sobre a diversidade de parcerias e a integração com a localidade onde atuavam. Dentre as três entidades que teriam manifestado aceitação à pesquisa, selecionei aquela cujo contexto de atu-ação era o mais vulnerabilizado e cujo depoimento me parecia mais atento e sensível às demandas deste.32. Todos os nomes utilizados neste livro são fictícios, com o objetivo de preservar os participantes das pesquisas.

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rações. Primeiramente, percebia que aqueles trabalhadores, e, em especial, os que ocupavam a gestão, estavam submetidos a inúmeras tarefas administrativas e diversas demandas comu-nitárias, as quais tentavam atender da maneira mais completa possível; e, além disso, pareciam fazê-lo na busca por compre-ender o cenário que se apresentava na comunidade.

Em consonância, em meio a atribuições e apelos inúme-ros, práticas de narração surgiam como estratégia frequente no cotidiano. Individual e/ou coletivamente, os educadores contavam “casos”, como que explicando posicionamentos, elaborando e reelaborando suas atividades e suas opiniões nas conversas de intervalo, nas reuniões ou mesmo nas en-trevistas que viemos a fazer mais tarde.

Então, partindo desses aspectos, passei a fazer minhas escolhas metodológicas procurando singularizar aquela ex-periência de pesquisa conforme as condições que se apresen-tavam. Desejava conhecer pertenças e tomadas de posição de meus colegas de itinerário e, ademais, pretendia oportunizar contribuições reflexivas para suas narrativas.

Em geral, procurava combinar técnicas abertas a outras mais estruturadas. Realizei entrevistas em que meus inter-locutores fossem instigados a falar sobre categorias que utilizavam regularmente em seus cotidianos (que chamei “palavras-chave”, como “acolhida”, “comunidade”, “Lomba do Pinheiro”, etc.) e articulei a elas a elaboração de diversos dia-gramas, incluindo sociogramas, fluxogramas e a representa-ção de organogramas institucionais33.

33. Para a elaboração de sociogramas e fluxogramas, as referências centrais foram Villasante (2002) e Socas (2005). Cabe aqui, ainda, uma ressalva metodológica im-portante. As pesquisas conduzidas por Tomás Villasante, filiadas à investigação--ação, têm como intuito mobilizar os sujeitos de diálogo a participarem na condução política de suas comunidades. No diálogo com educadores sociais, os diagramas se prestaram ao reconhecimento da interpretação de contexto (sujeitos e pautas) de cada interlocutor.

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Em relação aos diagramas, trabalhei especialmente com os gestores da entidade, efetivando versões individuais se-guidas de produções coletivas. Elaboramos registros de como explicavam seu trabalho e contexto de ação, visando criar certa ambiência narrativo-reflexiva relacionada às práticas educativas que presenciava.

Com isso, logramos um mapeamento de sujeitos atuantes na assistência a crianças e adolescentes no bairro e na cidade e construímos ponderações sobre as problemáticas existentes na área e os níveis de autonomia e poder reconhecidos para intervenção. Estes foram, além disso, pontos de partida para buscar outros sujeitos para entrevistas: mais educadoras so-ciais, técnicos de assistência, lideranças comunitárias, etc.

Do contraste entre diferentes depoimentos e, também, entres estes e minhas observações e leituras, passei a siste-matizar uma interpretação sobre espaço de ação, identida-des e tomadas de posição; da imersão naquele locus, procurei caminhar para uma narrativa sobre um “caso particular do possível”. Passemos a ela.

2. Trajetória de uma prática, história de um campo

Nos anos 1970, a Lomba do Pinheiro passou a receber migrantes de municípios do interior, um fenômeno que se estendia a outras partes da cidade. Dada as medidas de auto-mação das atividades no campo para atendimento a deman-das produtivas capitalistas regionais, a cidade de Porto Ale-gre presenciou, neste período, um processo de “urbanização por expansão de periferias” (Carneiro, 1992).

A Ordem dos Frades Menores objetivava, então, acolher migrantes do êxodo rural, oferecendo-lhes assistência reli-giosa, e a atuação na Lomba do Pinheiro era iniciativa asso-ciada a tal propósito. Quando de sua chegada ao bairro, os franciscanos passaram a implementar práticas que lhes eram

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comuns, visitando famílias, realizando missas e catequizan-do. Esse processo se deu por alianças com as lideranças já constituídas, de forma que, na confluência de propósitos, apoiavam-se nos saberes dos sujeitos da comunidade para conhecer os moradores, conquistar adesões, atualizar con-cordâncias simbólicas.

De outro lado, os franciscanos trouxeram certa sistemá-tica de atuação, dispondo novos saberes. Em atas de reunião de freis e de lideranças leigas, encontrei ocorrências da deno-minação “Comunidade Católica das Paradas 9, 10 e 11” a par-tir de 1977. Nestas reuniões era incentivada a mobilização lo-cal e a análise dos documentos indica que houve um gradual redimensionando no que tange à composição das lideranças e à sistemática de organização territorial, associando ação sociopolítica e pertencimento religioso.

Aliás, ponto controverso nos depoimentos era a partici-pação dos freis vinculados à entidade nas manifestações lo-cais por melhoria das infraestruturas de transporte público, fornecimento de água e de energia elétrica. Estes afirmavam serem protagonistas, ao passo que as lideranças comunitá-rias os situavam apenas como apoiadores34. Para além da controvérsia, porém, pode-se considerar a presença que se instaurava com representantes da Igreja tomando posição na construção de demandas atreladas ao cotidiano dos morado-res do bairro.

Em meados dos anos 1970, os franciscanos decidiram criar uma creche para acolher os filhos de trabalhadores que resi-diam no bairro. Em geral, as crianças não tinham com quem permanecer durante o dia. Os recursos para a construção dos prédios vieram de ONGs franciscanas alemãs e também da co-

34. Embora tenhamos nesse período, e especificamente na Lomba do Pinheiro, a atuação de Comunidades Eclesiais de Base e de iniciativas educativas inspiradas na obra de Paulo Freire, não encontrei registros ou depoimentos que as articulassem claramente à organização em estudo e/ou aos religiosos que a fundaram.

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munidade, na cedência de água e materiais. E, mais tarde, líde-res comunitários teriam participado na seleção dos primeiros beneficiários, de forma que a concepção desta obra assisten-cial parece ter se dado na articulação de forças institucionais religiosas e na mobilização de representações comunitárias.

A ONG, configurada como obra comunitária associada à oferta de “benefícios aos que precisavam”, consolidava uma conquista e, em consonância, constituía um conjunto de alianças. Integrava-se a tal empreendimento a atualização de sistema simbólico estruturante no campo religioso, a delimi-tar posições e práticas, se não em relação com a transcendên-cia, pelo menos associadas à normatividade moral historica-mente produzida na consecução de iniciativas assistenciais e benfeitoras no âmbito do catolicismo.

Tomando, aqui, o processo de racionalização das práticas religiosas sinalizado por Weber (1982) e, depois, retomado por Bourdieu (1999), vale lembrar que a manutenção do po-der de agentes do campo religioso não se ancorava somente na relação com o parcialmente desconhecido da transcen-dência, logo sempre passível de reconfiguração por parte de quem professa fé e, especialmente, por quem exerce a reli-giosidade profissionalmente. A capacidade de mobilização se erigia também na elaboração de um quadro normativo correspondente, a estimular determinadas práticas morais, concernentes a um sistema simbólico que supõe posições e ligações entre ações, intenções e resultados, cuja filiação po-dia garantir a segurança tácita do pertencimento a uma co-munidade que o reforça coletivamente.

Posicionando-se “ao lado” no cotidiano, os ativistas do campo religioso reforçavam sua posição entre os que com-partilhavam a discursividade que os distinguia: a suposta anulação da diferença pela opção “mendicante”, que aproxi-mava fisicamente freis e moradores, ratificava a “distância” simbólica. A distinção social atribuída à prática assistencial

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e despojada, destinada à ação daquele que faz supostamen-te sem almejar recompensa terrena e imediata, atualizava a assimetria legitimada entre as posições ocupadas pelos su-jeitos, creditando poder simbólico, então poder de mobiliza-ção, àqueles que, por nomenclatura, tinham a necessidade do outro como imperativo.

2.1 A reorganização da prática assistencial e educativa...

Inicialmente, a entidade se constituiu de maneira bas-tante informal e porosa à participação de leigos da comuni-dade, que atuavam em atividades assistenciais e educativas ou mesmo assessorando administrativamente. Ao longo da década de 1980, a ONG logrou um conjunto de parcerias in-ternacionais e também locais, formalizando administrativa-mente a posição já ocupada socialmente pelos freis na im-plementação do projeto. Até o final dessa década, a creche manteve o atendimento a filhos de trabalhadores, agregando a realização de cursos profissionalizantes.

Porém, nos anos 1990, a ONG passou por mudanças signi-ficativas, concernentes a um processo extensivo à cidade e ao país, sendo que a alteração da forma de atuação se deu entrela-çada a novos laços de cooperação, novas alianças, novos saberes.

Sancionada a constituição de 1988 e promulgado o Esta-tuto da Criança e do Adolescente (ECA), profissionais da área de educação e de assistência social de Porto Alegre passaram a atuar pela publicação da lei 6787/91, que legitimaria em nível municipal os direitos e o aparato de atendimento pre-vistos pelo ECA, ele próprio resultado de lutas sociais intensi-ficadas nos anos 1980. Com a municipalização da assistência na década de 1990, endossada pela Legislação Orgânica de Assistência Social (LOAS), a gestão local passa a assumir pro-gramas da extinta Legião Brasileira de Assistência (LBA).

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As entidades que vinham compondo o que seria delimi-tado, então, como “assistência à criança e ao adolescente” em Porto Alegre participaram ativamente na configuração do Fó-rum e do Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Ado-lescente (FMDCA e CMDCA). A partir dos saberes acumulados, os sujeitos atuantes constituíram, gradativamente, a rede de assistência, dispondo no jogo sua forma de organização.

[...] quando chegaram ao Conselho, as entidades não se co-nheciam, não sabiam da necessidade de articulação, e pre-cisavam estudar o ECA. A gestão pública, na época, tinha proposta e tentava “patrolar” as entidades. Via-se, então, a necessidade de conhecer as leis e sua interpretação [...]. (Presidente do CMDCA na época – Jan. 2007)

O CMDCA, eleito pela assembleia do FMDCA para fisca-lizar os serviços prestados no município, não é paritário em Porto Alegre, tendo dois terços de representantes da socieda-de civil (seria o único no país com esta conformação). Além disso, os primeiros convênios com entidades assistenciais, em 1993, foram promovidos pelo FMDCA, com escassa parti-cipação administrativa do governo municipal. Os programas Serviço de Apoio Sócio Educativo (SASE) e Trabalho Educati-vo (TE) foram implementados a partir de saberes de antigas iniciativas das entidades.

A organização da máquina estatal nesta área não parecia, ainda, protagonizar as atividades. A Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) será criada em 1999, numa adapta-ção da Fundação de Educação Sócio Comunitária (FESC), na época voltada a atividades esportivas e de lazer.

A entidade em estudo aqui se integrou ativamente na ela-boração de programas sociais e fóruns de deliberação muni-cipais, na mesma medida em que era também permeada por discursos em ascensão no campo. Se, por um lado, esta ONG

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(e os ativistas que representava) não se vinculara à luta por direitos nos anos 1980, expressos depois no ECA e na LOAS, por outro, integrou-se estrategicamente na disputa pela con-formação das práticas em seu âmbito de ação e, então, na con-figuração cotidiana da assistência a crianças e adolescentes.

2.2 ...e o esboço de um espaço de ação

Será esse o contexto, pois, em que a “educação social” ganha-rá destaque ou, pelo menos, passará a ser visibilizada de manei-ra mais contundente. Refiro-me à conformação de um espaço de trabalho crescentemente regulado e, neste ínterim, gradativa-mente reconhecido. Conformação esta que seria resultante, em parte, do processo de construção de direitos e de formalização de aparatos estatais e não governamentais na assistência a di-versas populações vulnerabilizadas, dentre as quais o atendi-mento a crianças e adolescentes seria um exemplo.

De outra parte, podemos associar a crescente formaliza-ção de tais espaços de trabalho às medidas de valorização do terceiro setor correntes especialmente nos anos 1990, que procuraram destinar a realização de serviços públicos para organizações sem fins lucrativos, em articulação com a má-quina estatal (Carvalho, 2006; Ribeiro, 2006). Processo esse de base política distinta do anterior, muitas vezes associado a propósitos neoliberais de redução do aparato estatal, que integrava a ampliação e regulamentação de parcerias públi-co-privadas e, em outro âmbito, o aumento de iniciativas em-presariais na promoção de projetos sociais (Pinheiro, 2007). A uma só vez, a ampliação de oportunidades laborais e a im-plementação de uma forma de atuar, em um modelo adminis-trativamente organizado na mensuração de resultados.

A partir desse cenário de ação e de disputas, e mais espe-cialmente a partir dos anos 2000, representantes de educa-doras e educadores sociais passam a propugnar a atuação em

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um amplo leque de atividades35. O que parece singularizar sua prática, e indiciar a delimitação de um campo de ação é a atuação em atividades de educação não formal (conforme de-fine Gohn, 2010), muitas vezes em contextos de vulnerabili-dade social, às quais são enunciadas em afirmação de direitos sociais para as populações que atendem e para construção de processos educativos que contemplem a participação e o protagonismo destas.

Nesse sentido, os discursos evocam contribuições de Frei-re e as experiências de educação popular, tomando os anos 1970 como período de gênese da prática (Carvalho, 2006). Noutros casos, buscam precedentes nas experiências de pe-dagogia social e educação social europeias do pós-guerra (es-pecialmente, Alemanha e Espanha), as quais, muitas vezes, oferecem referências para elaborações acadêmicas sobre a profissão36 (Diaz, 2006).

No que tange à atuação na assistência a crianças e ado-lescentes, educadoras e educadores sociais efetivariam suas práticas em lugar bastante delimitado, junto a uma rede edu-cativa-assistencial institucionalizada. Esta integra a partici-pação de técnicos (psicólogos, assistentes sociais), gestores públicos de diferentes instâncias, conselheiros de diversos fóruns, agentes de instituições religiosas, representantes em-

35. Em 2009, educadoras e educadores sociais conquistaram o registro da profissão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 5346/2009, que dispõe sobre a criação da profissão, indica a formulação de planos de carreira e elenca várias atividades possíveis nesta área. O ensino médio é estabelecido como escolaridade mínima no PL. Não encontrei dados consolidados sobre as condições de renda e escolaridade de educadores sociais em Porto Alegre. Contudo, a imersão em campo indiciava que a escolarização preponde-rante seria o ensino médio (incompleto ou completo) e que, além disso, existiriam situações de remuneração bastante variadas. Quando de meus diálogos em campo, os educadores com ensino superior reclamavam pagamentos diferenciados inclusive.36. Tenha-se como exemplo de referências: Caride (2005); Petrus, (1998); Cabello (2002).

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presariais, etc., cujo poder de influência decorre da posição ocupada na estrutura administrativo-deliberativa e educa-tivo-assistencial. Posições que são configuradas, ademais, conforme a adesão ao postulado pelos que usufruem do pre-domínio na enunciação da prática e, consoante, segundo os capitais econômicos e culturais que acumulam37.

É possível assinalar que o contexto para as atividades se articula com o campo da assistência social, de forma que os locais e mesmo a rede de relações em jogo são assemelhadas, ainda que os propósitos de trabalho não sejam estritamente idênticos. E, como o próprio caso em análise aqui indicia, tal correspondência não se restringe à atualidade e pode nos levar a períodos precedentes, de menos formalização das práticas.

37. Com base nas diferentes técnicas utilizadas, poderia elencar como sujeitos que constituíam o espaço de ação dos educadores com quem dialoguei: o aparato de gestão pública municipal, representado especialmente pela Fundação de Assistência Social (FASC); os conselhos municipais intervenientes nas atividades das ONGs (Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e dos Adolescentes; Conselho Municipal de Assistência Social; Conselhos Tutelares); as organizações assistenciais (com diversas filiações – público-estatais, empresariais, religiosas, etc.), como é exemplo a entidade em estudo; educadoras e educadores sociais; lideranças e moradores da comunida-de próxima; políticos com vinculação partidária; pais e responsáveis pelos assistidos (usuários); educandos (usuários); e as escolas públicas municipais frequentadas pelos educandos. Foram citados de maneira recorrente também traficantes e outros alicia-dores para atividades consideradas ilícitas (prostituição, trabalho infantil, etc.), situ-ados em rede social distinta, que disputaria o interesse de crianças e adolescentes.Historicamente, iniciativas religiosas e/ou empresariais e políticas estatais ou go-vernamentais e a ação de universidades têm participado na disposição de recursos e configuração dos locais onde atuam educadoras e educadores sociais em Porto Alegre. Neste contexto, saberes da psicologia, do serviço social, da pedagogia e de agentes do campo religioso (que acabam por se articular aos anteriores) parecem ter mais poder na disputa pela enunciação da prática assistencial e educativa no cotidiano. Na última década, percebe-se mais explicitamente a organização política de representações da educação social, na composição de associações e consolidação de discussões acadêmicas sobre a profissão. É exemplo a Associação Brasileira de Pedagogia Social.

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A história do Serviço Social remonta a períodos anterio-res aos anos 1970, desde diversas iniciativas assistenciais de fulcro religioso e/ou filantrópico empresarial, associadas a iniciativas governamentais especialmente a partir dos anos 1930 (Bulla, 2003). Dessa forma, cabe aventar a hipótese de que, embora haja uma orientação à consolidação de direitos e emancipação dos educandos hoje, a educação social se com-põe na tensão com condições e discursos diversos, que histo-ricamente constituem o espaço de ação e disputam a enun-ciação da prática no cotidiano.

Penso, então, que precisaríamos problematizar as identi-dades com a prática desde a diversidade de tensionamentos a que estas estão sujeitas. Diferente de uma delimitação nor-mativa da atividade, uma mirada compreensiva aos pertenci-mentos e escolhas em jogo.

3. Tensões do cotidiano, vetores de pertencimento e reflexividade

As educadoras e os educadores que ocupavam a gestão da ONG na época da pesquisa, a exceção de frei Pedro, que ocu-pava a posição de diretor geral, ingressaram na instituição nos anos 2000. Estes gestores chegam ao final de um proces-so de instauração de novas práticas assistenciais.

[...] era bem diferente a estrutura na época em que eu che-guei, assim [...] A gente não trabalhava com SASE. Era di-ferente. Era apoio educativo, era outro esquema, né [...] Eu trabalhei na parada 15 até me oferecerem a coordenação do SASE. Daí eu vim pra cá e isso faz três anos [...]. (Joana – Nov. 2008)

A assistência a crianças e adolescentes no bairro Lom-ba do Pinheiro, como no restante da cidade de Porto Alegre,

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passava a ser conduzida predominantemente por parcerias institucionais entre ONGs e Estado, materializados em me-tas de atendimento distribuídas em convênios e fiscalizados pelo CMDCA e pelos Conselhos Tutelares. Os educadores so-ciais atuantes, pautados por saberes acadêmicos ingressantes (Serviço Social, Psicologia, Pedagogia e Educação Física na maioria dos casos) ou pela experiência de trabalho, tendiam a serem alocados junto a estruturas de programas planificados.

Da forte inter-relação com lideranças comunitárias, pas-samos à institucionalização numa rede estatal e não gover-namental, exigindo, inclusive, características diferenciadas aos educadores, rumo a saberes profissionalizados38. Sabe-res do campo religioso continuavam presentes, mas passa-ram a conviver mais intensamente com conhecimentos de pedagogia e serviço social principalmente, materializados na atuação profissional dos integrantes da equipe e também no campo de deliberação constituído em torno dos direitos da criança e do adolescente

Nesse contexto, quero dar destaque à análise das tensões percebidas durante a imersão no cotidiano de educadoras e educadores sociais e, especialmente, àquelas registradas nas narrativas que construímos nos momentos de entrevista. Essas indiciavam condições e discursos e práticas historica-mente constituintes em seu espaço de ação, atualizados em pertenças e resistências demonstradas pelos sujeitos.

38. Quando afirmo a institucionalização da prática, não estou afirmando a inexis-tência de saberes advindos das atividades produzidas no entorno da ONG. Muitos educadores sociais, e, especialmente, aqueles com maior tempo de atuação, aportam saberes da experiência (como artesanato, costura, capoeira, etc.). De toda forma, percebo que mesmo estes sofriam influência da profissionalização dos serviços. As principais mudanças estariam no afastamento de lideranças comunitárias da enti-dade e na posição de poder ocupada pelos educadores constituídos desde saberes não profissionalizados, já que os cargos de gestão passaram gradativamente a ser ocupados por especialistas. Os próprios franciscanos fazem incursões por saberes da pedagogia, psicologia e/ou serviço social, assinalando para uma reconfiguração dos capitais culturais em campo.

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Apresento esforços de categorização nesse sentido, na expectativa de sinalizar para elementos que compunham a relação de meus interlocutores com sua prática e que, neste sentido, podem ser concebidos como eixos de identificação e/ou reflexividade possíveis na delimitação de formas de compreender e agir no cotidiano na educação social junto a crianças e adolescentes.

3.1 Relações de gênero e educação

Na sede da entidade, onde realizei a investigação, eram aproximadamente vinte e cinco trabalhadores, incluindo ges-tores, técnicos, auxiliares de cozinha e os facilitadores das ofi-cinas, sendo todos nominados como educadores sociais. Na maioria dos casos, eram mulheres educadoras e, na gestão organizacional, as atividades indicavam uma divisão de atri-buições associadas a condições de gênero. Na administração política e estratégica da organização estavam o diretor geral, frei Pedro, formado em teologia, filosofia e psico-pedagogia, e Saulo, o administrador financeiro, também frei, com forma-ção em filosofia. Gerindo as práticas educativas estavam Joana, coordenadora do Serviço de Apoio Sócio Educativo (SASE), e Clara, coordenadora do Trabalho Educativo, ambas pedagogas.

[...] nós temos mais mulheres do que homens trabalhando aqui, mas isso é uma característica do tipo de trabalho. É social. Quando abrimos um processo seletivo, tentamos equilibrar a contratação, mas vêm muito mais mulheres do que homens pra vaga [...]. (Saulo – Out. 2008)

A coordenação do atendimento estava dedicada às mu-lheres, as quais construíam suas jornadas no atendimento a educadores, em interações com educandos e no enfrenta-mento desgastante das adversidades oriundas da comunida-

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de atendida. Do outro lado, o lugar de decisões político-insti-tucionais, que, embora contasse com a colaboração feminina, era organizado e conduzido por freis.

Essa distribuição de atribuições e poderes não parece uma condição exclusiva da ONG em análise. Historicamente, atividades assistenciais e educativas vêm sendo atribuídas às mulheres. Neste sentido, Louro (1997) destaca que o proces-so social de “feminização” do magistério no Brasil, uma ati-vidade até então exercida por homens, remonta ao início do século XX, “fato provavelmente vinculado ao processo de ur-banização e industrialização que ampliava as oportunidades de trabalho para os homens” (p. 449).

[...] para a instância da sociedade em geral, é negado que as mulheres foram feitas mulheres, não porque nasce-ram fêmeas, mas devido ao fato de que foram educadas para isso; isto é, os corpos, tomados desde suas diferen-ças biológicas, constituem-se, eles próprios, como a base material na qual se assentam os processos sociais de di-ferenciação entre homens e mulheres e se justificam as desigualdades entre os gêneros (biologização do social). (Fonseca, 2000, p. 49)

Não tanto como identidade deliberadamente assumida e defendida, e mais um pertencimento construído historica-mente na imputação de tarefas mediante a naturalização de características e funções. Uma condição que organiza a edu-cação social, como a outros guetos de atuação profissional fe-minina, desde situações de desigualdade (Holzmann, 2000) e, acrescentaria, desde a pressuposição de modos de trabalhar.

A condição de improviso, o desempenho simultâneo de ta-refas e troca eventual de funções constituíam as atividades das coordenadoras pedagógicas, por exemplo, configurando uma maneira de trabalhar que decorre da frequente falta de recur-sos, mas que se organiza também a partir de habilidades e sa-

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beres aprendidos pelas mulheres responsáveis pela educação social na entidade, numa sistemática onerante de atividades diversas no ofício de “cuidar”, cujo exercício feminino ainda é socialmente naturalizado por nós (Ieso, 2010; Sorj, 2013).

Mas, em complementaridade e contraponto a esta leitura, também uma condição que se torna o palco de fruição afe-tiva entre educadoras e educandos, na construção de uma ambiência de proteção significativa para ambos e que, para aqueles que não gozam desta disposição, talvez possa pare-cer demasiado onerante e facilmente refutável. Trata-se, en-tretanto, de um modo de agir que guarda uma complexidade a ser (re)conhecida nas formas de sua atualização cotidiana.

3.2 Religiosidade, assistência e educação social

O campo da assistência social é historicamente perpassa-do por discursos religiosos. Landim (2003) chega a afirmar que “até os finais do século XIX, praticamente o que se havia consolidado no Brasil em termos de assistência social, saúde e educação, constituía-se de organizações criadas pela Igreja Católica.” (p. 57). Se partirmos da história do Serviço Social, também encontramos presença marcante de iniciativas ma-terializadas na associação histórica entre igrejas e prática assistencial nos séculos XIX e XX, na Europa e no Brasil (Mar-tinelli, 1993; Bulla, 2003). E, ainda hoje, podemos perceber que parte considerável da rede de organizações que prestam serviços na assistência a crianças e adolescentes em Porto Alegre, e se articulam ao poder público mediante convênios, são oriundas de iniciativas religiosas39.

39. Não há como problematizar tal condição nos limites deste texto, mas o cotidiano da prática educativa e assistencial em foco aqui coloca de maneira manifesta dis-cussões sobre a real efetividade de um Estado laico, quando os serviços prestados dispõem a máquina estatal como arena de disputas, indiciando a manutenção de forças históricas na configuração do poder público.

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[...] A necessidade do outro é um imperativo pra gente. Isso é um princípio, é de um pensador alemão, mas ele é um princípio franciscano também né? São Francisco de Assis, na época dele, quando viveu, ele foi atender exatamente aqueles que não podiam nem entrar na cidade [...]. (Admi-nistrador financeiro – Dez. 2009)

Nesse sentido, os posicionamentos de meus interlocu-tores não deixavam de visibilizar pertenças concernentes. Embora não encontrasse entre os leigos adesões explícitas a cultos religiosos formais, percebia congruência entre ideais religiosos franciscanos e a prática assistencial e educativa, de forma que preceitos religiosos permaneciam presentes, dis-putando lugar de forma sutil, discreta.

Não se trata, nesse caso, de indicar ideias que orientem estritamente a ação, mas sim observar que os postulados franciscanos encontravam expressão no que era praticado cotidianamente e, assim, podiam se dispor à disputa por enunciação de motivos, razões, atividades, atualizando uma posição histórica. Nas palavras de Bourdieu (2000), um exer-cício “de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão de mundo” (p. 14).

Em um exemplo, lembro-me da celebração de cultos em momentos de elevado desgaste da equipe de educadoras e educadores frente às vulnerabilidades do contexto. Indicia-va-se a existência de diferentes tomadas de posição na rela-ção com o sagrado e aí, então, propunham uma alternativa conciliadora na forma de momentos ecumênicos. Algo que, conforme entendo, configurava-se como estratégia, interpon-do um modo de lidar com o cotidiano: sugerindo a forma de fazer, fazia permanecer uma maneira de cultuar; insistindo na demonstração de fé numa divindade, interpunha e enun-ciava jeitos de se solidarizar aos colegas e ao trabalho.

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Contudo, a presença histórica e estrutural da religiosida-de no campo e, também, na organização do cotidiano da en-tidade não se constituía de maneira isenta de conflitos e pre-cisa ser situada na disputa. A relação com o sagrado variava conforme as trajetórias construídas pelos sujeitos, de forma que a concordância entre práticas subjetivas e ideário religio-so podia encontrar diferentes mediações, constituir distintas bricolagens, conforme nos inspira Melucci (2001b).

[...] eu achava bonito pessoas estarem ajudando outras pessoas. E eu achava que na congregação isso era muito pouquinho ainda; tem horários pra ajudar as pessoas, sabe, tu tem mais horários pra congregação em si de que pra outras pessoas [...] Eu gosto da proposta dele não como santo [São Francisco], como pessoa [...] porque na verdade ele foi uma pessoa que, assim como tiveram outras figuras aí no mundo, tipo Che Guevara, ou outras pessoas assim influentes [...] E eu vejo ele muito mais do que um santo as-sim, eu vejo ele como uma pessoa que optou pelos pobres e pela causa [...]. (Joana – Nov. 2009)

No caso em análise, se e quando a prática de educação social se organizava vinculada à sagração de seus propósi-tos, a relação com o sagrado se apresentava diversificada, articulando novas crenças, sofrendo novas interpretações (conforme sugerem alguns autores acerca das expressões de religiosidade contemporâneas - Torre, 2012; Sanchis, 2008). Ademais, a religiosidade institucional disputava a produção e o controle de poder simbólico com outros discursos da área de assistência, trazidos pelos sujeitos que passam a compor o espaço de trabalho, conforme as mudanças históricas já refe-ridas à defesa de direitos da criança e do adolescente.

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3.3 Relação com o entorno: institucionalização, violência e pobreza

A Lomba do Pinheiro abriga cerca de 50 mil habitantes (ObservaPOA, 2014), sendo muitos destes migrantes do in-terior do Estado ou de outras localidades empobrecidas da cidade, que chegou ao bairro porque procurava trabalho em Porto Alegre. A demanda habitacional, associada ao custo re-duzido da implantação clandestina dos assentamentos habi-tacionais, teria resultado em grande concentração de lotea-mentos e núcleos habitacionais irregulares.

Conforme nossos diálogos, o tráfico de drogas teria se es-tabelecido como espaço de inserção e reconhecimento, com-petindo com a prática de educação social. Tal rede, além de se apoiar no artifício da imposição do medo, profissionalizara-se, estabelecendo uma estrutura hierárquica de fornecimento e um mercado de trabalho e consumo. E o envolvimento com a rede de tráfico extrapolava o trabalho, podendo interferir, por exemplo, na composição de relacionamentos afetivos, articu-lando nuances de situação de poder e contradições resultan-tes da desigualdade social vivida pelos moradores das vilas.

[...] as meninas querem ficar com o traficante, que tem uma arma [...] aí, ela é mulher de quem tem poder, mas que, por outro lado, é diferente do “playboy”, porque o tra-ficante faz seu dinheiro [...]. (Assistente social atuante na Lomba do Pinheiro – Jan. 2009)

O ambiente descrito pelos educadores era intensamente relacionado a condições de precariedade e violência. A po-breza, ao mesmo tempo em que se apresentava de forma constante, constituindo o cotidiano40, instaurava certa im-

40. A maioria dos educandos era oriunda das vilas mais pobres da Lomba do Pi-nheiro e não possuíam dinheiro para comida ou transporte público, situação que

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previsibilidade, exemplificada na ausência do educando ou na visita inesperada da família. A violência estabelecida nes-sa localidade, seja por causa da rede de tráfico e prostituição, seja pelos casos de morte de educandos por uso de armas de fogo se constituía em fator conturbador da rotina pretendida para a relação com crianças e adolescentes.

Certa feita, quando presenciei dias de trabalho após o falecimento de um dos educandos, podia perceber tristeza e consternação generalizadas. Estavam todos a fazer seu traba-lho, mas a recepção e o abraço ou as conversas ao longo do dia eram diferentes, transparecendo uma situação coletiva de desânimo. Noutras ocasiões, como nos horários de descanso pós-almoço, o tema da violência e da precariedade era abor-dado pelos trabalhadores na forma de conversas jocosas, que ironizavam as condições de vida particulares ou de morado-res da proximidade. Especulações sobre situações de traição e homicídio, de demonstração de racismo ou de assimetria de poder eram tratadas frequentemente com humor e deboche, utilizando-se da vida cotidiana na forma de paródias, colo-cando “entre parênteses” experiências individuais e coletivas e as desigualdades que encerravam.

[...] E nesses dias, a gente tava conversando. O dia em que a gente parar de se assustar com as histórias, é porque a gen-te já não tem mais coração, e se não tem coração não tem que tar trabalhando na área social, né. [...] O grau de violên-cia que algumas histórias chegam pra ti, o grau de fragili-dade que as pessoas chegam [...] É tudo, assim, falta, sabe? E não é... não é um ser humano, parece, sabe? Tanto tiraram dessa pessoa e tanto ele não tem mais nada, que parece que nem mais é humano, sabe [...]. (Clara – Nov. 2009)

posicionava tais recursos como elementos significativos da relação com as ativida-des da ONG.

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Não há como ignorar o quanto precarização e violência constituíam a prática de educação social nesse caso, inter-pondo frustração e sofrimento; não há como não assinalar a fragilização como condição vivida por profissionais que re-presentam aparatos estatais e não governamentais em comu-nidades empobrecidas, o que, muitas vezes, leva-os a evadi-rem deste trabalho em busca de outros espaços de ação.

Mas, de outro lado, é importante reconhecermos que tal condição pode se converter também em componente identi-tário. Seja na opção e na manutenção da escolha por atuar em contextos socialmente vulnerabilizados, seja na afirmação que procura constituir distinção aos que se lançam ao desa-fio: falavam de uma prática em comunidades empobrecidas, com aqueles que precisam de apoio para lograr inclusão so-cial ou conquistar sua emancipação; atividades professadas como aquelas que precisam de pessoas sensíveis e determi-nadas (quando não “predestinadas”).

3.4 O “caso” na educação social

Geralmente, a singularidade dos educandos era citada por meio dos “casos” de atendimento. Nos diálogos com as educadoras, seguidamente as respostas às minhas perguntas vinham na forma (ou acompanhadas) de exemplos de situa-ções vividas junto aos educandos, como que materializando e expressando as ideias em questão.

Lembro-me de ter participado de uma reunião de educa-doras do SASE cuja dinâmica me pareceu representativa do que quero trazer aqui. A não ser por minha presença, tratava--se de um encontro rotineiro da equipe, e o assunto principal era a “violência sexual”. A proposta era debatermos textos sobre o tema e, assim, após uma leitura em pequenos gru-pos, passarmos ao debate. À exceção das assistentes sociais,

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as falas foram bastante tímidas, acanhadas, de forma que os conteúdos não estavam sendo discutidos de forma incisiva.

A discussão deslanchou apenas quando foi narrada a vivên-cia familiar de uma educanda. Então, uma sequência de casos veio à tona, não só em plenária, mas em conversas cruzadas. Transitando da catarse coletiva à busca de encaminhamentos práticos, o encontro transformou-se em um grande debate sobre experiências específicas que, embora tivessem relação com o conteúdo dos textos, não estabeleceu nenhuma articula-ção explícita com a primeira parte da dinâmica do grupo.

[...] se tu fosse um educando nosso, seria o caso do Leandro, é a história do Leandro, a vida do Leandro que a gente vai falar nesse momento, é a atenção voltada [...] São todos casos. Há alguns casos que a gente discute com mais inten-sidade devido à demanda, devido à necessidade, e outros casos tu vai acompanhando mas eles não vêm tão à tona.Vir à tona é acontecer alguma coisa que tu tenha que fa-zer uma interferência, que tu tenha que fazer um encami-nhamento, que tu tenha que tá acompanhando, via visita, reunião, conselho tutelar [...] E o caso que não apresenta problema? Não é pra tá aqui [...]. (Clara – Set. 2007)

O “caso” pode ser tomado como expressão da “individuali-dade problemática”. Essa conotação enuncia o posicionamen-to de alguém que diagnostica, avalia a partir de parâmetros. Pelo observado, os critérios de tal conduta, e das discussões em torno dos casos, residem na busca de relações não agres-sivas entre os educandos e entre estes e os educadores, vi-sando, neste contexto, uma ambiência de acolhida para que novos hábitos e habilidades possam ser desenvolvidos.

De outra parte, podemos contemplar também a dinâmica de reflexividade coletiva que se operava aí. Os “casos”, como referentes de interpretação da realidade, vinham ao diálogo carregados de sentidos e afetos, expressando categorizações

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tácitas, sendo exemplo e base de entendimento e diálogo. Por intermédio de tal dinâmica, as educadoras informavam sobre realidades de atendimento, divergiam e estabeleciam compreensões comuns sobre como lidar com problemas es-pecíficos, compartilhavam desejos educativos e estimulavam novos procedimentos e encaminhamentos. Uma maneira, en-fim, de reorganizarem-se desde a temporalidade consubstan-ciada em sua prática, fazendo da narrativização uma forma de restabelecer seus ânimos frente às adversidades e elabo-rar uma vez mais suas expectativas e projeções sobre o futu-ro dos educandos.

Diria ainda que o “caso” representava o esforço de visi-bilizar a singularidade, numa busca por reconhecer cada educando em meio ao processo homogeneizador das metas de atendimento nos programas assistenciais. Prática esta que lembra referentes pedagógicos (como Paulo Freire, por exemplo) e, além disso, indicia um modo preferencial de agir e estar na relação.

[…] a gente está num trabalho assim de vincular algumas crianças com as educadoras. Nós temos um caso, que ele vai uma hora por semana (não obrigatória) à cozinha com as gurias [cozinheiras-educadoras sociais], para aju-dar a secar a louça, cortar temperos. E não pelo fato das gurias precisarem dessa ajuda, mas pelo fato de ele se sen-tir importante, que ele não consegue no grupo […]. (Joana – Out. 2007)

3.5 Acolhida e promoção

Na organização em estudo aqui, a educação social se constituía desde a participação de profissionais formados em licenciaturas (Pedagogia, Educação Física, principalmente) e, também, de educadores reconhecidos pelos saberes acumu-

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lados em experiências de trabalho pregressas (artesanato, capoeira, costura, etc.). Tinham em comum, porém, a necessi-dade de atuar em diversas práticas socializadoras (no auxílio para servir refeições, no apoio aos educandos com hábitos de higiene, no ensino de regras à mesa, etc.) e sob a premissa de constituição de vínculos41.

[…] embora muitas pessoas aqui não gostem dessa pala-vra “cuidar”, que a gente está aqui para educar e não para cuidar. Para mim, cuidar tem uma amplitude assim que inclui o educar também: cuidar as crianças que mais têm necessidade assim de um cuidado, que mais são negligen-ciadas assim […]. (Joana – Nov. 2009)

Ao final de minha permanência na entidade, e depois de diálogos com agentes em outras instâncias do campo de ação, passei a observar que os frequentes gestos de “acolhida” aos colegas e aos educandos (em abraços, conversas, etc.) com-punham uma dinâmica extensivamente presente, organi-zadora da prática42. Creio que ela apoiava a necessidade de

41. Geralmente, os educandos passavam por uma sequência de atividades em turno inverso ao que frequentavam a escola, que incluía uma refeição na chegada à ONG, participação em oficinas nos programas SASE ou TE e nova refeição antes de par-tirem, sendo estes momentos intercalados por práticas de higiene sob orientação dos educadores. Ademais, havia uma escala de limpeza das mesas do refeitório para realização pelos assistidos. Embora os programas assistenciais não possuíssem uma grade curricular relativamente fixa, a exemplo da prática escolar, tais programas possuíam um conjunto de conteúdos e propósitos educativos, organizado em torno das habilidades estimuladas nas oficinas (artesanato, culinária, informática, música, etc.) e da construção de hábitos nas relações educando-educador.42. A noção de “acolhida” foi assumida no texto por representar uma construção de educadoras e educadores no espaço de atuação que vim a conhecer. Diferentemen-te da expressão “proteção”, citada no ECA por exemplo, ela se mostra carregada de sentidos partilhados no cotidiano, integrando relações não só com educandos, mas também com colegas e, além disso, deixando infiltrar-se por outros pertencimentos do campo, como a religiosidade e a condição de gênero.

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compreender a situação do educando, como tática pedagógi-ca, e, neste sentido, representaria a busca de educadoras por resguardar a criança e o adolescente do que entendiam ser as interações agressivas que estabeleciam fora da entidade, com os familiares, com a rua, com a criminalidade próxima. “Aco-lher” responderia, enfim, pelo intento de compor uma rede de proteção do educando em seu dia a dia.

Dessa forma, falo de uma ambiência de vinculação dos educandos e de constituição de novas vivências de relacio-namentos, menos agressivas e violentas, mais afetuosas e respeitosas. Sem a constituição de vínculos não haveria con-dições de prosseguir no trabalho; sem a vivência de nova am-biência relacional, seria difícil instigar novas práticas junto a crianças e adolescentes.

Contudo, há que se observar a “acolhida” também nos seus limites práticos e cognoscitivos, problematizando riscos de atividades estritamente socializantes e compensatórias, que não questionem efetivamente relações de poder instituí-das em espaços de visível desigualdade social.

As palavras “emancipação” e “promoção” também com-punham o cotidiano de meus interlocutores e, eventualmen-te, eram mencionadas como objetivo final dos serviços or-ganizacionais. Expressões de maior trânsito entre gestores da entidade do que entre educadores, elas representariam a necessidade dos educandos superarem a agressividade com que se posicionavam no cotidiano, construindo relações dife-renciadas, e, também, a formação da capacidade de se auto-determinarem, elaborando projetos próprios de vida43.

43. Para uma definição acadêmica para o termo, Ciavatta (2007) o define da seguinte forma: “emancipar é tornar livre, libertar ou libertar-se, tornar ou tornar-se inde-pendente, dar liberdade ou libertar-se do jugo, da escravidão, da tutela de outro ou do pátrio poder. A emancipação, portanto, supõe que o ser humano seja sujeito artí-fice de seu próprio agir e que ele se liberte em todos os aspectos de sua vida” (p. 27). Embora, a partir dos referenciais que venho adotando, considere necessário pro-

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Todavia, a equipe da entidade não acompanhava de ma-neira sistemática os resultados educativos com os jovens. Quando questionados, tomavam por referência os poucos casos conhecidos de inserção de egressos em relações de em-prego, em que pese aí a precarização e subordinação engen-drada nos exemplos citados.

[...] se a gente pensar na realidade da criança que chega aqui. É uma realidade muito dura... envolvimento com trá-fico... toda essa pobreza. A gente precisa trabalhar muito pra ela superar a exclusão, né. Aí, conseguir uma ativida-de, assim, de empacotador num supermercado não é tão pouco [...]. (Saulo – Out. 2010)

A “acolhida”, por mais importante que seja na configura-ção de novos vínculos e no reconhecimento do lugar do ou-tro, dava conta apenas parcialmente das relações sociais que organizavam a condição de desigualdade vivida pela popu-lação assistida, assim como desprivilegiava disputas sociais sentidas pelos sujeitos a partir daí.

As condições de vida dos educandos eram reconhecidas, mas não debatidas, simbolizadas ou resignificadas; não eram questionadas dialogicamente quanto às relações de poder que as sustentavam. Desta forma, as alternativas de socia-lização, de criação de vínculos, tendiam a uma perspectiva funcional de inserção social nem sempre efetiva e, para usar expressão daquele cotidiano, pouco emancipatória. Além dis-so, a presença crônica de situações como as descritas acima criava uma ambiência propícia para que a prática de educar, por mais que se fizesse, fosse vivida como insuficiente, po-dendo desestimular educandos e educadoras.

blematizar as efetivas possibilidades de ‘emancipação’ como descrita pela autora, penso que é valido mantermos um exercício reflexivo sobre os limites da prática e, conforme tento argumentar na sequência, trazer tensionamentos e conflitos sociais vivenciados à organização da ação educativa.

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Durante atividades que realizei com os educandos pude perceber o quão difícil é trabalhar num espaço de precarie-dade, permeado por violências de diferentes ordens, onde projeções de vida são desestabilizadas seguidamente. Mui-tas vezes, era difícil até mesmo conquistar a atenção. Con-tudo, se afirmavam divergências com as determinações de familiares, professores e educadores sociais, explicitavam si-multaneamente o desejo da presença dos adultos dos quais gostavam em suas práticas. E, de maneira instigante, os jo-vens verbalizavam seu gosto por atividades em que pudes-sem participar da construção, elaborando seus dilemas na expressão de suas preferências.

4. E, por fim... considerações sobre as condições de poder

As caracterizações resumidas acima, compreendidas como vetores de pertença e reflexividade, procuram trazer uma forma de interpretação da diversidade que compõe o cotidiano, indiciando uma composição socialmente tensa das identidades na educação social. No confrontar-se com con-dições de gênero, práticas religiosas e situações de precarie-dade, ou no refletir de casos e possibilidades de acolhida e emancipação, meus interlocutores faziam seus dias frente à necessidade de assumir posição e reafirmar o que os movia.

Tais tensionamentos podem ser pensados em articulação com as condições de poder de educadoras e educadores so-ciais, como seara de tomadas de posição, trazendo nuances a atividades já bastante institucionalizadas. Parto da posição ocupada no sistema assistencial para, depois, agregar as ten-sões analisadas. Ao final, ensaio questionamentos sobre a re-lação construída junto àqueles nominados como “assistidos”, “usuários” ou “educandos”.

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4.1 Sobre a posição institucionalizada...

Conforme já mencionei, os educadores sociais da ONG analisada aqui, entre outros sujeitos a compor o campo, ocu-pavam lugar em uma rede educativa-assistencial institucio-nalizada, a qual, segundo narrado, disputava o interesse e o tempo de crianças e adolescentes com outros agentes, in-cluindo aí produtores de atividades tidas como ilícitas (tráfi-co de drogas, prostituição, etc.).

[...] A gente quer que eles fiquem nas entidades e partici-pem nos bairros. Mas, hoje, a rua é muita atrativa. Eles conseguem bastante dinheiro pedindo ali no centro e, aí, fica mais difícil [...]. (Técnico FASC – Jan. 2007)

E se falamos de uma organização e de um campo para uma prática educativa, com características peculiares e com limites socialmente estabelecidos na relação com a comu-nidade próxima; se podemos situar determinados sujeitos como educandos, assistidos ou usuários de um aparato or-ganizacional, é porque esse se constituiu historicamente na produção de tais posições e fronteiras.

As modificações conduzidas pelos freis desde os anos 1990 levaram à institucionalização de uma série de proce-dimentos e vincularam a gestão da entidade ao controle de um aparato estatal e não governamental44. Em consonância, ativistas comunitários perceberam seu poder de influência relativizado, sendo gradativamente afastados das tomadas de decisão sobre os formatos possíveis para a assistência. Hoje, lideranças locais e usuários usufruem de reduzida mar-

44. Os programas sociais conduzidos pela Fundação de Assistência Social e Cidada-nia (FASC) articulam unidades de atendimento estatais e organizações não governa-mentais conveniadas, sendo que estas representam cerca de 75% da capacidade da rede de assistência a crianças e adolescentes.

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gem de participação nas lidas diárias, embora mantenham a vinculação com as atividades da ONG por necessidade e/ou crença religiosa.

Quando acompanhava visitas de orientação a casas de educandos, acabei observando que a retórica de educadores e educadoras se impunha no diálogo com os responsáveis, que escutavam atentos, quietos e concordantes. Naquelas conversas, em meio a apelos por cuidado, o educando era citado mais como objeto da atenção dos adultos do que su-jeito das ações, imerso em medidas de controle do tempo de permanência em determinados espaços sociais, como a rua, a escola, a rede de educação-assistência.

Participei também de algumas reuniões da rede de as-sistência, nas quais pude visualizar tomadas de posições congruentes ao argumento proposto aqui. Em geral, partici-pavam servidores da área de saúde, conselheiros tutelares, educadores e assistentes sociais, todos vinculados a ativida-des públicas estatais e não governamentais. As discussões versavam sobre a ausência de recursos, modalidades de ser-viços e formas de encaminhamento de um serviço a outro no interior do aparato, falando de sistemas especializados de atendimento, que não pareciam conquistar mais que a ocu-pação do tempo do assistido, tratando-lhe nos “sintomas” de sua precariedade: oferta de vale-transporte, aumento do nú-mero de atendimentos em postos de saúde, etc.

Se nos voltamos à prática educativa rotineira, depoimen-tos e atividades posicionavam “educando” e “educador” como representantes indissociáveis de um círculo fechado de inte-ração, no qual o primeiro é situado como aprendiz, sujeito em transformação, que está aberto a ser ajudado. O segundo assume a condição daquele que dá carinho, limites, testemu-nho de valores, que está disposto a ajudar.

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[...] Ah, eu trato eles [educandos] como se fossem filhos, que precisam de carinho, mas também de limites. Não são coitadinhos; precisam de limites e aprender a respeitar os outros [...]. (Maria, educadora social mais antiga na enti-dade/25 anos de atuação – Dez. 2008)

Diria que a relação construída entre os educadores e as crianças e os adolescentes configuravam traços do que Dayrel (2007) assinala como “um modo escolar de socialização que veio se tornando hegemônico ao longo da modernidade” (p. 08). A característica a destacar aqui seria a construção de um período específico para a vivência social da infância e da ju-ventude, que, segundo entendo, procura garantir-lhes a es-pecificidade no usufruto de direitos, mas que, de outra parte, ainda tem os despotencializado como sujeitos no presente.

Ademais, mesmo reconhecendo a necessidade e o mérito de uma rede de proteção frente às experiências de vulnerabi-lização social; ainda que considere as buscas da ONG no aten-dimento às demandas de usuários para além do que prevê as metas do sistema municipal de assistência, creio que há um limite a ser assinalado quando observamos a atual condição de institucionalização das práticas: as pessoas que habitam o entorno da entidade acabam deslegitimados em seus saberes, táticas e pertencimentos culturais quando em interação com o aparato organizacional. E, aqui, poderíamos situar a atuali-zação do poder simbólico dos educadores sociais, como espe-cialistas a enunciar formas de ser e de fazer (Bourdieu, 2000).

Nesse cenário, se considerarmos a vulnerabilidade das condições de vida dos educandos, assim como a interferência da violência e da pobreza na rotina de trabalho dos educadores sociais, podemos aventar a hipótese de que a fragilidade das condições (econômicas e culturais) de subsistência da popu-lação atendida, além de mote para existência do aparato, atua como um dos organizadores das relações de poder em jogo.

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[...] acho que a exclusão vem de uma realidade de dificul-dades na vida da comunidade. As pessoas que nos procu-ram... falta muita coisa, vivem uma pobreza muito gran-de, né. Mas elas também vão incorporando isso, assim, e passam a se auto-excluir. Não acreditam mais [...]. (Frei Pedro – Set. 2008)

Em que pese a contundência das precariedades vividas em localidades de periferia, as tomadas de posição indicavam que a relação de poder era atualizada na interação entre os padrões classificatórios de educadores e a situação de pre-cariedade do assistido, de maneira que aqueles que condu-ziam a educação social acabavam por enunciar a assimetria relacional desde suas narrativas, muitas vezes, perpassadas por perspectivas de integração social (que referenciavam estudos-escolarização e trabalho-emprego como práticas e horizontes ideais, por exemplo), contribuindo para a natura-lização do que estas condensam como operadores de seleção e hierarquização social.

4.2 ...e, então, sobre as tensões do poder

Contudo, tal condição de poder merece ponderações se ob-servarmos o sujeito e sua prática tensionados por diferentes condições e vetores de pertencimento. Neste sentido, antes de terminar, há alguns questionamentos que podem pelo menos situar perplexidades indiciadas nos encontros do cotidiano.

O educador social vive a intensificação de integrar uma rede institucionalizada que pauta suas práticas. Em um cam-po cujos saberes preponderantes são de áreas já consolida-das academicamente, o reconhecimento da profissão ainda é uma conquista a ser consolidada. Neste ínterim, sua posição de poder é mais expressiva no cotidiano de interações com os usuários do aparato assistencial e educativo.

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Nesse âmbito, porém, educadoras e educadores convivem com a precariedade das localidades onde atuam. A mesma vul-nerabilidade que potencializa assimetria de poder entre edu-cadores e usuários do aparato, engendra incerteza e sofrimen-to ao trabalho, fragiliza os resultados deste e, por conseguinte, pode tensionar a legitimidade do especialista que educa.

No caso das mulheres educadoras (maioria no campo), precisamos agregar ainda as sujeições de gênero a compor um quadro em que buscas educativas respeitosas das sin-gularidades, mesmo quando orientadas à emancipação, não deixam de estar atravessadas por desigualdade. Cotidiana-mente, atuar como “educadora” configura diferenças, que po-dem intensificar para a mulher um exercício mais atribulado e instável da autoridade socialmente conferida, apesar da sa-tisfação advinda da sociabilidade e da afetividade construída junto aos educandos.

E deveríamos nos perguntar, ainda sobre as maneiras pe-las quais os educandos e seus familiares vivenciam a assime-tria nas relações com educadores sociais, mirando as tensões e pertencimentos que constituem os cotidianos daqueles, ob-servando as táticas que constroem na relação com o aparato.

Tomemos o exemplo da produção de poder simbólico por ativistas da institucionalidade religiosa. Que dizer de um po-der que tenta se instaurar em contexto social onde certa dose de sincretismo se faz presente e onde, ademais, pluralizam-se as bases de vivência do sagrado, sendo este palco de reflexi-vidade (Melucci, 2001b; Sanchis, 2008)? Como caracterizá-lo quando inclusive no interior da ONG os educadores elaboram bricolagens diversas na produção da religiosidade e na con-cepção do lugar das figuras sacras?

E se observarmos a produção do saber do especialista, esta não me parecia imune a relativizações no campo. Dife-rentemente da normatividade em relação com uma transcen-dência, a interação com o saber do especialista é tributária de

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maneira mais cabal da consecução de supostas evidências de veracidade e de factualidade. Por mais que sua discursivida-de opere no ocultamento das incoerências e arbitrariedades, privilegiando seu sistema simbólico como sistema de com-preensão da realidade, tal saber não seria passível de ques-tionamento, se não pelo infiltrar de uma lógica proposicional, pela ação de um senso prático que opere contrastando sabe-res de diferentes filiações cotidianas?

Minhas interlocuções com os educandos e seus familiares explicitavam a necessidade de compreendermos as escolhas de usuários como táticas. Diante da precariedade e da neces-sidade de resolução de problemas urgentes (que o aparato público não dá conta), ou na possibilidade de construírem relações culturalmente distintas com a educação, as pessoas assistidas podem produzir questionamentos no cotidiano. E isso significa aventar que desenvolvem divergências no trato das orientações recebidas no sistema assistencial e lembrar que é necessário compreender como elaboram e situam os encontros com educadores no conjunto de interações, recur-sos e pertenças construídas em seus espaços de ação.

Já em 1994, no artigo “Preparando-se para a vida: re-flexões sobre escola e adolescência em grupos populações”, Cláudia Fonseca trazia provocações pertinentes ao argumen-to que proponho aqui. Mencionava ela que, embora fossem valorizados os estudos, a educação ocupava lugar diferencia-do entre grupos populares em Porto Alegre, nem sempre sen-do prioridade nas rotinas cotidianas. As práticas nestes gru-pos operavam em favor de outras formas de socialização (no trabalho, cuidando de irmãos menores) que pudessem dotar conhecimentos úteis e oportunizar redes de integração social antes do que poderíamos definir por vida adulta. Podemos aventar que houve mudanças neste cenário, mas entendo ne-cessário seguirmos no propósito de compreender as redes de

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sentido e pertença desde as quais usuários organizam sua re-lação com a prática de educadoras e educadores sociais.

Indo um pouco mais além, parece-me necessário conhe-cer e problematizar as iniciativas políticas e culturais que os usuários produzem fora do âmbito de ação do aparato a que se atrelam os educadores sociais, procurando compreender seus pertencimentos e os sentidos produzidos. Falo de um diálogo efetivo com suas produções culturais, cujas propo-sições reconhecem as opressões cotidianas e (re)elaboram relações de poder vividas pelos educandos (Nunes, 2005). Assim, antes de instrumentalizar aulas sobre práticas cultu-rais do entorno organizacional (como se pode ter exemplo na apropriação da capoeira ou do break), considerar que ali há capacidades reflexivas, na forma de narrativas identitárias e compreensões de contexto, postulando sentidos e alternati-vas à vida.

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CAPÍTuLo 4Catadoras, catadores e suas práticas: para um esboço

de táticas e expectativas

Ao longo do percurso, a interlocução com catadoras e ca-tadores foi uma das oportunidades de deixar ambiências ins-titucionalizadas, para estar com quem e o que se constitui ao lado, em interação escassa ou na tensão com espaços formais. Foi o ensejo para conviver com as experiências e as identida-des de quem habita espaços de elevada precariedade, saber de suas estratégias e de suas expectativas, e ser invadido, na mesma medida, por questionamentos e perplexidades sobre o que estamos a produzir coletiva e socialmente.

Tal possibilidade me chegou por intermédio de pesquisas realizadas entre os anos de 2008 a 2010. A primeira iniciativa almejava caracterizar o perfil socioeducacional de catadores alocados em associações, cooperativas e grupos informais, atendendo a uma demanda do Movimento Nacional de Ca-tadores de Materiais Recicláveis (MNRC). Depois, ocupamo--nos de conhecer as práticas cotidianas de quem trabalhava na triagem de resíduos sólidos, fomentando a produção de imagens fotográficas e rodas de conversa em projeto condu-zido junto a catadoras de unidade de triagem localizada no bairro Mário Quintana, em Porto Alegre45.

45. Assim, as análises apresentadas, aqui, partem de resultados do “Estudo do perfil sócio educacional da população de catadores de materiais recicláveis organizados em cooperativas, associações e grupos de trabalho”, realizado sob fomento da Secre-taria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação (SECAD/MEC), e coordenado pelo prof. Nilton Bueno Fischer. Também balizam as problematizações narrativas elaboradas por ocasião do projeto “Imagens do cotidiano: itinerários e diálogos para uma narrativa reflexiva”, realizado na Asso-ciação Ecológica Rubem Berta. Além de mim, participaram na realização de ambas

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Neste capítulo, orientarei minhas problematizações para as tomadas de posição e táticas construídas por catadoras46 e catadores na realização de suas atividades juntos aos aparatos de gestão de resíduos sólidos, considerando, ainda, a articula-ção destas com a produção simbólica do campo ambiental47. Espaço social este que, conforme tenho observado, é perpassa-do por discursos supostamente positivos – como é exemplo o apelo à reciclagem –, mas que se constitui também em relações de poder e práticas de exploração pouco visibilizadas.

Dessa forma, espero trazer inferências que construímos à época das pesquisas, e que possam ambientar problema-tizações sobre as práticas e as táticas engendradas por su-jeitos atuantes em/desde condições de elevada vulnerabili-dade, situados geralmente em bairros de periferia da cidade de Porto Alegre. Como farei em outros capítulos, meus argu-mentos serão construídos na interface de diferentes contex-tos socioeconômicos e culturais, que constituem o campo de ação desde onde procuro destacar as tomadas de posição de meus interlocutores.

Apresentarei, então, uma breve narrativa histórica do campo ambiental articulado à apropriação do termo “reci-

as pesquisas e na elaboração dos relatórios os pesquisadores Cassiano Pamplona Lisboa, Márcio de Freitas do Amaral e Tiago Cargnin.46. Tal denominação corresponde à opção política do Movimento Nacional de Cata-dores de Materiais Recicláveis (MNRC) e parece-me aquela cuja discursividade mais se aproxima às condições de vida e trabalho das pessoas com que interagi. Decidi adotá-la aqui, mesmo observando que não é de uso unânime no campo. Muitas das trabalhadoras em unidades de triagem não utilizam esta denominação. Outra ob-servação a ser feita diz respeito à condição de gênero. A maioria das pessoas atu-antes nas unidades de triagem são mulheres (80%, quando considerados os dados para a Região Sul; 68% para Porto Alegre). Por este motivo, quando não mencionar “catadora(s) e catador(es)”, optarei por usar o termo “catadora(s)”.47. A noção de “campo ambiental” utilizada aqui foi desenvolvida por Carvalho (2002) a partir da apropriação e aplicação da categoria “campo social”, de Pierre Bourdieu.

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clagem” e, após, exponho atividades desenvolvidas por sujei-tos integrantes dos aparatos de gestão de resíduos sólidos, salientando as atribuições típicas de catadoras e catadores. Depois disso, o foco do capítulo é direcionado para a apre-sentação das pessoas que trabalham em unidades de tria-gem, abordando a relação que estabelecem com os discursos e pertenças do espaço de ação e as relações de poder engen-dradas aí. Porém, antes de iniciar as análises mencionadas, relatarei o percurso metodológico e apresentarei o corpus empírico que sustenta meus argumentos.

1. Detalhes do percurso

A primeira iniciativa de pesquisa, em atendimento à de-manda da SECAD/MEC, foi conduzida com a população de catadoras e catadores organizados em associações ou grupos informais de trabalho. As trabalhadoras consultadas atua-vam em unidades de triagem alocadas em onze cidades do sul do Brasil, distribuídas em diferentes sub-regiões estadu-ais, garantindo levantamentos em contextos distintos quanto às atividades produtivas predominantes e aos níveis de cres-cimento econômico. Além disso, os grupos foram seleciona-dos de acordo com critérios relativos à infraestrutura física e operacional, afiliação política e distribuição geográfica em cada cidade.

Essa pesquisa incluiu um levantamento de informações sociodemográficas por questionário, além de entrevistas so-bre as trajetórias de vida e trabalho das catadoras e sobre a gestão e as condições laborais dos coletivos consultados48. As-

48. As cidades visitadas foram: Cachoeirinha, Canoas, Caxias do Sul, Dois Irmãos, Porto Alegre, São Sepé e Rio Grande, no Rio Grande do Sul; Florianópolis e Blume-nau, em Santa Catarina; e Curitiba e Londrina, no Paraná. Cabe citar, além disso, que a seleção das catadoras para consultas considerou: faixa etária; tempo de trabalho na unidade e na catação; e condição de gênero.

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sim, obtivemos depoimentos de aproximadamente 200 cata-doras e dados sobre as condições de trabalho de 30 unidades de triagem. Ademais, foram consultados representantes da administração pública de cada município e de organizações não governamentais que apoiavam as práticas de triagem.

O diálogo com as catadoras teve continuidade em outro projeto de pesquisa, em 2010, quando fomentamos narra-tivas reflexivas (individuais e coletivas) a partir de fotos do cotidiano produzidas pelas próprias trabalhadoras. Foram cinco participantes, com três ensaios fotográficos cada, to-talizando mais de 400 imagens. Dessa forma, construímos narrações diversas daquelas geradas nas entrevistas. Estas ressaltaram mais as precariedades do trabalho, ao passo que as fotos visibilizavam também as sociabilidades, os pertenci-mentos e as alegrias no dia a dia49.

Nesse sentido, posso afirmar que, ao ampliarmos as ba-ses de diálogo, a realidade narrada se alterou significativa-mente. Da textura gris caracterizada nas entrevistas dadas a pesquisadores que pouco conheciam, passamos às cores de histórias construídas em longas conversas, pautadas pelas evocações das imagens fotográficas do que desejavam visi-bilizar nossos companheiros de jornada. Do contraste dos diferentes depoimentos, construí o que apresento aqui, ten-tando trazer as contingências de uma situação notoriamente precarizada, mas também as prioridades e expectativas dos sujeitos na produção de seus dias.

Para as análises que apresento neste capítulo, considero os itinerários evidenciados nas entrevistas e as preferências apresentadas desde os ensaios fotográficos – migrações, ati-

49. As fotos produzidas pelas catadoras compuseram exposição realizada nas Fa-culdades Porto Alegres (FAPA), em 2010. A iniciativa integrava o propósito de visi-bilizar as realidades e as práticas construídas em bairros de periferia, fomentando o protagonismo de meus interlocutores na produção de narrativas que enunciassem seus cotidianos.

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vidades de trabalho, filiações culturais, redes de sociabilida-de e lazer, etc. –, procurando visualizar quais eram as práti-cas e os interesses construídos nas trajetórias de catadoras. Em articulação, abordo dados sociodemográficos informados por aquelas trabalhadoras, em contraste com as afirmadas por gestores públicos e representantes de ONGs, buscando desenhar condições objetivas e um conjunto de disputas con-cernentes, para caracterizar, enfim, o locus de ação desde o qual minhas interlocutoras se posicionavam.

Esse foi caminho trilhado para compreender pertenci-mentos narrados por catadores e catadoras e, em articula-ção, contextualizar as tomadas de posição destes em relação à produção simbólica do campo ambiental, espaço social no qual vem consolidando uma posição e em cuja produção to-mam parte.

2. A desenhar um contexto

Antes de nos atermos ao espaço de ação das catadoras, farei uma breve narrativa sobre a formação de aparatos de reciclagem de resíduos urbanos, em associação à formação do campo ambiental.

Os anos 1970 foram o período de criação das primeiras agências de regulação nacionais voltadas aos temas ecológi-cos, assim como foi a década de construção de movimentos ecologistas no Brasil, que, de acordo com Carvalho (2002), desenvolveram-se em diálogo com propósitos emancipado-res de propostas de contracultura iniciadas já no final dos anos 1960. Em função da emergência e consolidação do ati-vismo ecológico e a consequente extensão de debates sobre os limites do modelo de desenvolvimento capitalista, pode-mos pensar a constituição de um campo ambiental e, neste ínterim, a instauração de reformulações para a gestão de re-síduos em cidades brasileiras.

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O ecologismo e as perspectivas contraculturais trouxe-ram ao debate nos anos 1970 perspectivas fortemente críti-cas dos modelos de desenvolvimento social e econômico ca-pitalistas, sensíveis e articuladas às lutas contra opressões de diferentes ordens (étnicas, de gênero, classistas, etc.). Em que pese as tensões internas ao ativismo, entre as tradições ilu-minista e romântica50, aqueles pertencimentos teriam aden-sado o leque de pautas e intensificado a presença de temas ambientais em arenas de disputa política.

Naquele período no Brasil, as práticas de movimentos ambientalistas eram ainda pontuais e localizadas, e a incor-poração do tema entre as atividades governamentais se deu mediante a pressão de organizações internacionais. No en-tanto, tal contexto promoveu a entrada de agentes ambienta-listas no aparelho de Estado, que se tornou uma das estrutu-ras de poder passíveis de efetuar a disseminação do conjunto de temas e interesses relativos ao “meio ambiente”. Esse processo dura pelo menos até meados da década de 1990, quando se alcança uma constituição mais efetiva para orga-nizações estatais concernentes aos temas de preservação e um reconhecimento mais explícito do “meio ambiente” como temática para discussão pela população em geral.

Então, poderemos afirmar de maneira mais contundente a constituição de um “campo ambiental”, na forma como o de-limita Carvalho (2002), amparado na existência de um corpo institucionalizado de agentes e práticas, além dos militantes propugnadores e instituintes de temas concernentes51. Com

50. Segundo Carvalho (2002), a produção do campo ambiental vem sendo modulada na tensão (e reformulação) entre, de um lado, uma tradição iluminista, a valorizar os recursos naturais, endossando-lhes os benefícios que oportunizam à vida humana, e, de outro, um ethos romântico-ecológico, que argumenta contra o que é compreen-dido como “utilitarismo”, “consumismo” e “progresso predatório”.51. Aqui, cabe uma ressalva. A instauração de aparatos organizacionais seguia em disputa e em difícultosa implantação. Não raro, quando entrevistava gestores pú-blicos, encontrava a gestão ambiental alocada como apêndice de outras secretarias,

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isso, esta autora refere-se a um espaço de práticas e disputas que objetiva a produção e reprodução da “natureza” como um bem a ser preservado ou, mais além, uma entidade investida do direito de existência e de usufruir de uma interação dia-lógica com a sobrevivência humana. Os agentes que o cons-tituem propõem norteadores gnosiológicos – de intenções universalizantes — relativos às relações “sociedade-meio ambiente”, que integram as disputas por capitais culturais e simbólicos na organização e regulação de nossos padrões de produção e consumo, quando estabelecem a “natureza” como um objeto de valoração social.

Assim, a conformação de um capital ambiental se dá, pri-meiramente, mediante práticas de ecologistas organizados movimentos, associações e ONGs e, posteriormente, pela participação de organizações supranacionais e de órgãos estatais. Também acadêmicos – de início, pesquisadores oriundos da área de ciências biológicas e ecologia sensíveis à illusio ambiental – tomavam parte nas disputas, articulan-do o capital cultural a seu dispor para elaborar temas e nor-matividades ambientais. Se, ao princípio, saberes científicos ancoraram o ativismo ecologista, fazem-se representar, hoje, também em iniciativas institucionalizadas de pesquisa e de educação ambiental em universidades e escolas52.

Doravante, iniciativas empresariais que objetivavam se aproximar do capital simbólico produzido no campo ambien-tal passaram a associar também suas práticas com ativida-des ecologicamente responsáveis, geralmente sob o rótulo de “responsabilidade social corporativa”. Assim, tentam ampli-

sendo as temáticas que lhe eram concernentes tratadas de maneira residual, subme-tidas às demandas políticas e econômicas de outros setores.52. Vale frisar que tanto os argumentos de Carvalho (2002) quanto as entrevistas com gestores públicos e representantes de organizações não governamentais su-gerem que as causas ambientalistas se originam e se atualizam junto a agentes com elevada escolaridade, geralmente ensino superior, e acesso a amplo capital cultural.

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ficar as bases de reconhecimento social, buscando convertê--las em capital econômico. Aqui, porém, se estabelece uma contradição patente. O campo econômico no capitalismo ins-taura práticas que ratificam os padrões de produção e con-sumo criticados por aqueles comprometidos com a illusio ambiental. Assim, ao tentarem partilhar saberes e estratégias de mobilização, representantes do empresariado contribuem à disseminação das pautas, mas vêm interpondo, entretanto, sua discursividade na luta pelos modos de compreender e agir em relação ao “meio ambiente”.

Destarte, o campo ambiental tem se constituído desde as ações engendradas por diversos agentes e no tensionamen-to com outros campos. Aí, disputa-se a produção de capital cultural e simbólico orientado à valorização/preservação da “natureza”; neste espaço, organiza-se a mobilização de con-dutas atenta à formação de identidades inspiradas na cons-trução de certa relação sistêmica entre esta e a sociedade.

2.1 Desde o campo, a reciclagem e a gestão de resíduos

Podemos, agora, situar em relação a este espaço de ação as práticas sociais relativas à reciclagem e os aparatos públi-cos de gestão de resíduos urbanos, para, então, trazermos à análise as atividades desempenhadas por catadoras e catado-res com quem dialoguei.

Em consonância ao processo resumido acima, observou--se a extensão – e, em alguns casos, mesmo a alteração – de foco das políticas de limpeza urbana, passando a se dirigir não só à promoção e manutenção da saúde pública, mas, tam-bém, à proteção da natureza. Conformando-se, aí, um proces-so de “ecologização”, conforme nomeia Oliveira (1995), “o resíduo passou a ser visto como causa de poluição ambiental, demandando, assim, o controle dos efeitos causados sobre o meio ambiente” (p. 56).

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No entanto, a reciclagem de resíduos urbanos, apesar de ser um objetivo pelo menos desde a década de 1970, tornou--se uma proposta pública para a solução de problemas am-bientais e sociais apenas no início da década de 1990, sendo a cidade de Porto Alegre referência neste sentido. Apresentada até então como uma técnica pouco produtiva e, por isso, in-viável em ampla escala, a reciclagem era restrita a algumas experiências-piloto (Oliveira, 1995).

Em Porto Alegre, os primeiros agrupamentos de catado-ras e catadores foram iniciados antes das iniciativas da admi-nistração pública para a implantação da coleta seletiva de re-síduos. A implementação municipal começou oficialmente na década de 1990, envolvendo o que, no início, fora conhecido como “a radicalização da opção pelos pobres”, ligada a inicia-tivas do campo religioso (Martins, 2003). Então, tais práticas são convertidas em políticas públicas, adquirindo visibilida-de desde a vinculação ao capital simbólico do campo ambien-tal, que acabou tensionando a relação entre a sociedade e os resíduos que produz.

As informações obtidas a partir das entrevistas sinali-zam que as associações foram formadas a partir da condição comum de pobreza extrema e do acesso aos resíduos como meio de vida. Diante de tal situação, movimentos sociais pas-saram a apoiar a organização coletiva e as demandas por me-lhores condições de trabalho53, e o Estado fora pressionado a assistir os grupos. Neste contexto, o poder público começa a articular o trabalho de catação e triagem – nomeadas como “iniciativas de geração de renda” – e a necessidade de gerir os montantes de resíduos produzidos principalmente nos cen-tros urbanos.

53. Como exemplos, temos as associações filiadas a grupos religiosos ou, ainda, o supracitado Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNRC), cujas práticas incluem a assistência e a organização política.

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[...] Nós começamos aqui em 1994 [...] No começo foi di-fícil aqui, não havia energia, nem água,... sem nada. Não havia elevador para carregar os fardos, tivemos que car-regar tudo com nossos próprios braços, levava um mês para fazer uma carga de papelão [...] No passado, o lixo era queimado [...] queimado noite e dia [...] e a fumaça ia pro centro [...]. (Francisco, catador em Dois Irmãos/RS – Maio 2009)

Ligada aos debates sobre a produção e destino do lixo, te-mos, então, o surgimento e a consolidação tardia de uma ca-deia produtiva organizada para a reciclagem de materiais54. Com isso, enfatizo a existência de um conjunto de organiza-ções (formalizadas ou não) dispostas em funções comple-mentares e inter-relacionadas, e dedicadas à produção e/ou à comercialização de resíduos urbanos. Assinalo também a conversão de materiais recicláveis à condição de mercadoria, voltada ao atendimento de necessidades socialmente cons-truídas e disposta numa rede de atribuição de valor e disputa.

Se, inicialmente, a coleta e seleção de resíduos nos reme-tiam às condições de subsistência de catadoras e catadores, sinalizando para a existência de um círculo de produção so-cial restrito e incipiente, o poder simbólico construído por agentes do campo ambiental e a conversão destes em polí-ticas públicas de geração de renda contribuíram à formação de um espaço relativamente regulado de ação, com papéis e posições delimitados.

54. Na maioria dos casos consultados na pesquisa, o estabelecimento de associações e a formalização jurídica dos grupos não aconteceram até o final da década de 1990 ou ao longo da década de 2000.

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2.2 Catadoras e catadores em uma cadeia produtiva

Visitar associações e grupos de catadores e catadoras le-vava-me quase sempre a bairros de periferia. À medida que adentrava as ruas daquelas comunidades, podia perceber as pequenas moradias, muitas com aparência de algo por con-cluir e, em vários casos, resultantes de ocupações irregula-res; via as pessoas caminhando pela rua, ao lado de calçadas estreitas e mal acabadas, em lugares que, conforme verifica-ria nos depoimentos, o acesso a serviços de saneamento, for-necimento de energia elétrica ou mesmo coleta de resíduos nem sempre era extensivo a todos.

Ali estavam as unidades de triagem55. Dentro das insta-lações, geralmente encontrava mulheres realizando a sele-ção dos resíduos que encontravam nos sacos e nas sacolas deixados pelo caminhão da coleta seletiva. Os homens, em minoria, trabalhavam nas atividades de carga ou em equi-pamentos que exigissem mais força física, como as prensas. Aqueles espaços apresentavam substanciais diferenciações no que tange aos equipamentos e às instalações de que dis-punham. Na maioria das vezes, a infraestrutura era bastante precária, com maquinário antigo e deficiente. A despeito das condições insalubres percebidas, praticamente todas tinham em comum a vinculação ao sistema de coleta seletiva de resí-duos organizado pelo poder público local.

De maneira geral, tal sistema iniciava pela coleta domici-liar e/ou comercial, feita pela intervenção do aparato público, de empresas privadas ou mistas, ou pelos próprios catadores (em acordo com a administração da cidade). Em seguida, o material coletado era entregue a unidades de triagem – nas quais, geralmente, as catadoras estão localizadas –, que cum-priam as primeiras etapas no tratamento de resíduos sólidos

55. Na cidade de Porto Alegre eram 16 unidades de triagem, em diferentes bairros de periferia da cidade.

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urbanos – seleção, prensagem e embalagem, de acordo com os equipamentos disponíveis. Depois, as associações ven-diam os produtos resultantes a intermediários (chamados de “atravessadores”), que, por seu turno, acumulavam quantida-des suficientes para comercialização com a indústria de be-neficiamento. As sobras do processo de triagem eram envia-das paras aterros sanitários ou para lixões, juntamente com o resíduo orgânico.

As alianças que os catadores construíam a partir de sua prática nessa cadeia influenciavam a qualidade do seu traba-lho e a renda gerada pelas associações. Não obstante a impor-tância atribuída à presença de empresas, movimentos sociais e ONGs, a participação da administração pública se destacava nesse processo. Esta última geralmente proporcionava o lo-cal, os equipamentos e os materiais para triagem, enquanto os demais oportunizavam equipamentos e melhoria nas ins-talações, além de assistência técnica e de gestão.

Entre os vínculos estabelecidos no início das atividades, o mais citado era a participação do poder público local, um dado que é coerente com as suas atribuições históricas a res-peito da destinação de resíduos. A importância da municipa-lidade na organização da cadeia produtiva da reciclagem, na contratação de catadores e na institucionalização do espaço de ação desses trabalhadores deve ser realçada.

Neste ínterim, observava que a gestão pública de resíduos, embora tensionada por discursos ambientais, tomados como recomendações e exigências previstas em legislação, pautava--se, sobretudo, por prioridades de crescimento econômico--produtivo locais e preocupações financeiras e fiscais das ad-ministrações municipais. Não raro, identificava depoimentos de gestores imersos, ou mesmo imbuídos, em considerável pragmatismo e produtivismo, quando a relação com associa-ções de triagem passava fundamentalmente pela pressão para incremento dos montantes reciclados, aumento do número de

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associados (supostamente inseridos em iniciativas de inclu-são social) ou ampliação das atribuições dos catadores56.

Outro elo importante na manutenção da cadeia produtiva era a comercialização dos materiais. Como regra geral, as as-sociações não tinham uma produção necessária mensal para uma venda direta para a indústria57, de modo que as asso-ciações estabeleciam acordos relativamente duradouros com intermediários, que compravam e acumulavam material sufi-ciente para tal negociação.

Essa condição aumentava a exploração do trabalho das catadoras, reduzindo os preços dos materiais que comerciali-zam. Elas pareciam não considerar que a falta de articulação entre as unidades era um problema significativo, porém in-terferia nas possibilidades de comercialização e negociação. Por outro lado, as práticas comerciais geralmente não eram objeto de preocupação e/ou intervenção do governo, partin-do de uma suposta “não obrigação” em relação ao tema, de maneira que não só conhecia, como, em alguns casos, admitia e atuava desde a interferência dos intermediários.

56. Interessa observar, neste sentido, que as atividades de educação ambiental elen-cadas pelos gestores públicos apresentavam, de maneira geral, um caráter norma-tivo, focado na prescrição de comportamentos e ações dirigidos à reciclagem e/ou preservação da natureza. Não obstante, reconhecendo a importância dessas medi-das, vale aventar a ampliação do entendimento sobre as práticas educacionais, refle-tindo sobre a dimensão e as repercussões educativas das ações estruturadas junto a catadoras, atravessadores, cidadãos, observando de maneira relacional a forma como nos educamos em nossa interação e pertencimento ao ambiente. Mais elemen-tos sobre essa discussão em Pinheiro, Leandro R.; et al. (2014).57. Cerca de 79% dos grupos era composto por menos de 30 associados, dado que, contemplado em relação às condições relacionais de coleta e comercialização men-cionadas, sugerem a existência de limitações físicas, financeiras e organizacionais para o funcionamento de coletivos maiores. Vale frisar que a ampliação do número de catadoras em cada unidade, mantidas as condições de exploração em que traba-lhavam, significava a redução dos ganhos mensais.

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A realidade observada durante a pesquisa sinalizava, en-tão, que as relações e práticas consolidadas, da contratação das unidades de triagem à comercialização do que estas pro-duziam, estabeleciam condições de trabalho e níveis de ren-da que eram insatisfatórios e insuficientes, o que, na maioria dos casos, contribuíam para a manutenção da vulnerabilida-de social deste segmento58.

Tendo caracterizado o espaço de ação onde se situavam meus interlocutores, apresentarei as condições e itinerários construídos por catadoras e catadores até a chegada à sua ocupação de então.

3. Entre condições e pertenças, a relação com a prática

Ao longo do século XX, a formação socioeconômica da re-gião sul do Brasil mudou sua ênfase da produção pecuária para a agricultura, e, em algumas sub-regiões, para a pro-dução industrial. Além disso, as áreas de colonização tardia (especialmente aquelas que aconteceram durante o século XIX) apresentaram diversificação considerável em relação à produção industrial. Durante este tempo, os processos da mecanização atingiram a agricultura – especialmente desde os anos 1960 e 1970 –, com a ascensão da produção de soja especialmente (Lagemann, 1998).

A mecanização das plantações reduziu consideravelmen-te o número de postos de trabalho disponíveis e as pessoas começaram a buscar alternativas nos centros urbanos. As-socia-se a esse processo de êxodo rural, ocorrido de forma

58. A população entrevistada era formada em sua maioria por mulheres, cerca de 80%, responsáveis por 52% da renda familiar através do trabalho na catação/triagem. O valor médio recebido no trabalho oscilava conforme a região e o estado. Em Porto Alegre, onde os valores eram os mais elevados, equivalia a 50% de um salário mínimo. As famílias eram constituídas, em geral, por 4 pessoas, apresentavam uma média de 2 filhos por família e somente 52% das catadoras declararam ter companheiros.

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diferente em cada sub-região, os processos de automação e reestruturação da produção industrial, intensificada na déca-da de 1990, o que aumentou a taxa de desemprego estrutural e, ao que parece, reforçou a informalidade dos laços de tra-balho (Montali, 2000). Mesmo que as taxas de ocupação te-nham melhorado no Brasil nos últimos anos (IBGE, 2013), no que tange à vida dos sujeitos que entrevistei, suas condições informais de trabalho não foram alteradas de maneira signi-ficativa, revelando que a sua participação vem sendo constru-ída na manutenção de atividades precarizadas que integram e apoiam as relações do campo econômico da região, que têm como exemplos o subemprego em alvenaria, em plantações de café e na catação de resíduos em espaços urbanos.

É que as vendas de serragem começaram a cair e nós vie-mos morar aqui. Então começamos a trabalhar com alve-naria. Sempre lutando! Depois disso, foi o porco, sim. Nós criamos porcos, então já passamos pra papel, latas, come-çamos assim. Depois disso, eles proibiram os suínos; fica-mos só com o papel então [...]. (Carlos, catador em Porto Alegre/RS – Nov. 2009)

[...] Eu já tenho um monte de currículos por todos os lados, mas tem pessoas que têm muito preconceito. Então, eles prestam muita atenção à aparência da pessoa; se o lugar em que vive aparece no noticiário e eles não gostam de nós. Então, assim que tudo isso conta. E é difícil, muito di-fícil pra nós encontrar um emprego. (Joana, catadora em Londrina/PR – Ago. 2009)

Consequentemente, considero a hipótese de que a cons-tituição da cadeia produtiva da reciclagem se beneficiou de relações históricas de inclusão precarizada, conforme define Martins (2002). De acordo com as peculiaridades econômi-co-produtivas de cada sub-região, gerou-se um contingente

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de trabalhadores migrantes, cujos capitais econômicos e cul-turais eram insuficientes ou não correspondiam ao exigido para subsistência nos espaços em que circulavam, de forma que procuravam diferentes meios de ganhar a vida quando percebiam reduzidas as alternativas nos lugares onde viviam e trabalhavam.

3.1 Itinerários e tensionamentos

As entrevistas com catadoras e catadores sinalizavam que o envolvimento com o ofício seria a culminância de ex-periências em empregos informais. Predominantemente, as trajetórias narradas incluem relações e condições precárias no trabalho e a migração frequente em busca de melhores condições de vida. Na maioria dos casos, há relatos de inser-ção em atividades e espaços cujos requisitos educacionais e/ou de qualificação não eram um parâmetro para seleção ao trabalho, de tal forma que, muitas vezes, meus interlocutores seguiam os mesmos caminhos historicamente tomados por suas famílias.

[...] Eu comecei a trabalhar na lavoura de uma fazenda com o meu tio. Eu tinha dez anos e já trabalhava. Foi assim que eu aprendi sobre a vida [...] Eu tinha 19 anos quando eu vim pra Porto Alegre, em 1970. Então eu comecei como pedreiro, em trabalhos com meu cunhado. Aí, eu comecei como assistente, porque eu não sabia o trabalho [...]. (Pe-dro, catador em Porto Alegre/RS – Dez. 2008)

De acordo com os depoimentos de catadoras e catadores, os fatores que mais contribuíram à opção pelo ofício foram: a relativa proximidade entre suas casas e as instalações das unidades de triagem, que resulta em diminuição de gastos di-ários; a flexibilidade dos horários de trabalho, que lhes per-

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mite cuidar de seus filhos e demais familiares; e a presença de amigos e/ou parentes nesta atividade, o que facilitava sua inserção no quadro das associações. Além disso, a não exi-gência de pré-requisitos estritos para acesso à prática, como é usual no mercado de trabalho formal59, também teria in-fluenciado na integração a tais coletivos.

A opção pelo trabalho como catadora não resultaria, por-tanto, da vinculação às características intrínsecas desta práti-ca. A partir dos limites interpostos por uma condição socioe-conômica e cultural consideravelmente precarizada, escolhem a atividade viabilizada por suas redes de reciprocidade e que lhes oportuniza subsistência em associação ao cuidado de entes próximos. E, neste aspecto, a condição de gênero tem papel importante. Muitas das catadoras eram chefes-de-famí-lia e respondiam pelo sustento dos filhos, sem contar com a colaboração dos pais, que já haviam se ausentado do núcleo familiar. Situação essa que podemos articular à reprodução de uma condição culturalmente naturalizada, que ainda delega à mulher as tarefas do cuidado aos familiares (Ieso, 2010).

No que tange à permanência nesse trabalho, os depoi-mentos apresentavam certa inflexão conforme a situação etária. À época da pesquisa, aproximadamente 47% das tra-balhadoras consultadas tinham menos de 2 anos de trabalho, indiciando alta rotatividade. O desejo de deixar aquele ofício era maior entre aquelas com idade inferior a 30 anos (que perfaziam aproximadamente 40% da população entrevista-da), o que sugere que as pessoas mais jovens tinham maior expectativa de acesso a melhores oportunidades de trabalho, sendo que sua inserção nos grupos de catadoras tendia a ser vista como provisória.

59. Aqui, refiro-me a condições de saúde, idade específica, endereço fixo, escolari-zação, conformidade com a aparência física exigida pelos contratantes, entre outros. Em relação à escolaridade, por exemplo, 85% dos entrevistados não havia concluído o ensino fundamental e, dentre estes, 43% não chegaram a 4 anos de estudo.

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De outro lado, desde a posição daqueles com mais tempo de trabalho e também mais idade (e em alguns casos, fundadores de associações), percebia a elaboração de narrativas pela valo-rização de sua atividade, ora em função da suposta importância social de sua prática, ora por conta da suposta dignidade atri-buída à opção pelo trabalho, conforme assinala Lisboa (2013)60.

No interior desse cenário, Fischer (2006) traz comentários concernentes, aludindo a realidade da associação que acom-panhava em pesquisa, no bairro Mário Quintana, em Porto Alegre. Segundo ele, a associação foi criada nos anos 1990 por pessoas que trabalhavam na rua (carrinheiros e papeleiros), mas, depois de 10 anos de existência, constituía-se sobretudo da participação de migrantes, desempregados, donas de casas e ex-empregadas domésticas, na maioria dos casos, residentes no entorno na unidade de triagem. Se, inicialmente, havia a composição de um coletivo com trajetória na catação, e para o qual a constituição de uma unidade de triagem pode ter re-presentado uma conquista ou pelos menos mote de disputas, mais recentemente, a vinculação com esta prática parece se ambientar já em locus relativamente institucionalizado, onde os ingressantes assumem ocupações delimitadas.

Ainda que ambos os grupos etários cheguem à catação por intermédio de um itinerário de inclusão precarizada, o tempo de dedicação com a prática parece influenciar na in-tenção de permanência, na medida em que constituem vín-culos com colegas e sentidos à prática a partir das conquistas e adversidades vivenciadas. Então, estariam mais afeitos aos discursos que enaltecem suas atividades.

Contudo, a totalidade das narrativas e das observações indica que a permanência na atividade estava condicionada a um conjunto de fatores concebidos em interdependência.

60. Instigante produção acadêmica sobre os itinerários de catadoras e catadores é a tese de Cassiano P. Lisboa, citada nas referências.

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Consideravam: a) a “renda auferida”, que, na maioria dos ca-sos, resulta dos preços dos materiais no mercado, suscetíveis às oscilações econômicas globais e locais61; b) as perspecti-vas associadas ao mercado da região onde atuam, que pode oferecer alternativas de trabalho complementares sazonais (como é o caso da agricultura no norte do Paraná), ou mesmo outras ocupações (auxiliar de serviços gerais, serviço domés-tico, etc.); c) as expectativas e projeções individuais de vida e trabalho, que, conforme sinalizei acima, variam segundo a situação etária; d) as vinculações relativas ao tempo de en-volvimento com este trabalho – dentre as quais a identifica-ção com a prática e com os colegas estaria situada –; e e) o reconhecimento simbólico da catação, que, embora positiva-mente associado à reciclagem, tem como contraponto discur-sivo a condição pejorativa do lidar com o resíduo social, com o “lixo”, o sobreviver do que é rejeitado pelos outros em uma sociedade que prima por consumo e descarte.

Não estou afirmando que catadoras e catadores passavam a fazer estimativas racionalizadas para tomar de decisões. O que as nossas interlocuções levam a crer é que, frente às va-riações das possibilidades sentidas no contexto, compunham uma ponderação intuitiva sobre as probabilidades de êxito no locus de ação, a indiciar certa reflexividade na definição de movimentos em um espaço de possíveis marcado sobre-

61. Segundo MNCR (2009), a crise global iniciada em 2008-2009 reduziu os valores pagos pelos recicláveis comprados em circuito internacional. Ademais, em nível lo-cal, a coleta seletiva está sujeita à ação da iniciativa privada, o que vem ampliando a concorrência pelos materiais. No caso de Porto Alegre, por exemplo, os artifícios dessas empresas incluíam, muitas vezes, a coleta ilegal de resíduos em antecipação ao serviço oferecido pelo aparato público, o que acabava por prejudicar as unidades de triagem conveniadas (Fischer, 2006). Hoje, a coleta seletiva da cidade é terceiri-zada para uma empresa privada. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei Federal 12305), publicada em 2010, incentiva que a coleta seletiva tenha a participação de associações e cooperativas de catadores e catadoras.

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maneira pela necessidade de garantir subsistência (das cata-doras e de suas famílias).

Na maior parte do tempo, nossas interlocuções enuncia-vam que a integração à cadeia produtiva da reciclagem e, por conseguinte, ao campo ambiental tendia a uma questão de sobrevivência. As disposições que os moviam pareciam con-centrar-se, de um lado, em práticas orientadas à manutenção financeira, nas quais demonstravam, muitas vezes, habilida-des para a administração e otimização de recursos mínimos. De outro, orientavam-se à valorização dos núcleos familiares, com destaque para os recorrentes depoimentos sobre as pes-soas em quem encontrariam apoio estável e com quem con-centrariam sua sociabilidade, junto às alternativas de lazer que acessavam em suas localidades62.

Os diálogos transcorridos no bairro Mário Quintana63, por ocasião da realização dos ensaios fotográficos, foram bastante ilustrativos nesse sentido. Na maioria dos casos, as narrativas realçavam pessoas e relações, afirmando, de um lado, os laços de sociabilidade, incluindo familiares e ami-gos, e, de outro, as vivências críticas, cuja superação mere-cia destaque não só como passagens da trajetória, mas como demonstração de capacidade e êxito frente às adversidades.

62. Os catadores mencionavam que os bens culturais mais acessados eram aqueles que encontravam em suas próprias casas ou aqueles restritos a seus bairros, nas periféricas das cidades. Os mais comuns eram: assistir TV; idas a bares; jogos de bola ou grupos de bate-papo nas ruas de suas localidades.63. A unidade estava localizada em área próxima à divisa com o bairro vizinho, o Ru-bem Berta, na zona norte de Porto Alegre, localidade que dava nome à associação de catadoras inclusive. Este bairro contava com aproximadamente 74 mil habitantes, sendo o rendimento médio dos responsáveis por domicílio de 2,78 salários mínimos em 2010, pouco mais da metade da média do conjunto da população de Porto Alegre (5,4 SM). Porém, sua composição é diversa e desigual, especialmente, quando nos aproximamos do bairro Mário Quintana. Neste, a população é de pouco mais de 37 mil habitantes e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 1,7 SM (OBSERVAPOA, 2014).

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Neste, entretanto, era em articulação a tais elementos que a visibilização de lugares do bairro e de detalhes de suas resi-dências ganhava sentido.

Especialmente para os mais idosos, a produção de ima-gens fotográficas parece ter sido apropriada como a opor-tunidade de geração de artefatos mnemônicos, trazendo às nossas discussões registros de sua historicidade, organizada no concreto dos lugares que habitavam e produziam, mas também nos laços de solidariedade e reciprocidade com as pessoas que conviviam.

A produção de imagens fotográficas tem sido cultural-mente orientada ao registro do que socialmente elaboramos como importante, belo ou destacável, o que significa assina-lar a propensão a “fixar” o supostamente digno de ser visi-bilizado e/ou apropriado como memória (Martins, 2009). E, congruente, observava que as catadoras buscavam represen-tar o que entendiam ser especial no cotidiano e nas trajetó-rias e aquilo que preferiram visibilizar.

Entendo que assumiram um compromisso de realçar a “beleza” que visualizavam nas realidades representadas. Com isso, surpreenderam-me com sua sensibilidade para o deta-lhe na cotidianidade; com a expressão de afetividades por quem está ao lado, partilhando vivências na periferia. Assim, sinalizaram, a partir de suas opções estéticas, para elemen-tos que compunham suas vivências e que as palavras sobre o trabalho não enunciavam. Assim, se havia lá precariedade e anseios de melhor condição econômica, existia também o de-sejo e a efetivação de algo mais que trabalho e sobrevivência a ocupar o tempo e as prioridades.

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4. Táticas e prioridades

Uma vez que as condições de participação e pertenci-mento de catadoras e catadores na cadeia produtiva da reci-clagem foram abordadas, informações relativas às tomadas de posição podem ser analisadas, especialmente no que diz respeito às táticas e laços de reciprocidade estabelecidos no espaço social. Produções essas que, mesmo associadas à sub-sistência em situações de precariedade material, erigem-se para além das relações econômicas em jogo.

Tomo como exemplo os elos de solidariedade estabeleci-da entre as associações e os atravessadores. Articulados aos papéis assumidos na cadeia produtiva, havia laços de ajuda mútua e de certa cumplicidade, que podia visualizar na ex-clusividade de fornecimento e na compensação de um paga-mento garantido, ou, ainda, em empréstimos e adiantamen-tos que os intermediários concediam a catadoras e catadores, que, agindo sob condições adversas e instáveis , encontravam apoio imediato em quem os explorava.

[...] Ele [o marido] foi um catador antes, e ele conseguiu melhorar de vida. Ele estava comprando de cerca de dez, quinze grupos. Agora, ele tem a documentação. Por isso, sugeri que a gente podia vender o nosso papelão para ele [...]. (Daniela, catadora em Londrina/PR – Dez. 2009)

[...] Nós vendemos para Porto Seguro [atravessador], para ASCALIXO [associação]... A ASCALIXO paga um pouco mais, mas eles tinham falido, e eles estão voltando agora [...]. (Antonio, gestor de unidade de triagem em Rio Gran-de/RS – Mar. 2009)

Observava, ademais, que os lugares ocupados por tais su-jeitos tinham delimitações flexíveis, o que, muitas vezes, fazia com que os “limites” que poderíamos imaginar em relação

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aos papéis definidos no jogo fossem difusos. Havia casos em que as associações de catadoras atuavam como comercian-tes intermediários; havia trabalhadores que, deixando de ser catadores, tornaram-se atravessadores para associações em que seus parentes trabalhavam – mais além, eles apoiavam eventualmente tais unidades oferecendo favores, como o translado entre as residências e as unidades de triagem.

Dessa forma, as práticas sociais que configuravam essa cadeia produtiva extrapolavam a delimitação rígida de papéis e posições econômicas e se erigiram conforme as “artes de fa-zer” de catadoras e catadores. Nisso contudo, não alteravam as assimetrias constituídas; adensavam-nas. Entendo que, ao naturalizar e legitimar tais atividades entre suas práticas di-árias, as catadoras interpunham apropriações à configuração da cadeia produtiva e de parte do campo ambiental: ao que parece, não se tratava apenas de uma questão de sustento econômico e material, mas de um conjunto de táticas que, atentas às condições de subsistência, organizava-se desde e para laços de reciprocidade e solidariedade.

Se as catadoras mantinham acordos tácitos de apoio mú-tuo mesmo com aqueles que mais as exploravam economi-camente; se, ademais, elaboravam diversos artifícios para garantirem sua manutenção financeira64, estas táticas não visavam estritamente o complemento e/ou a ampliação de renda. Diante de um cenário de ganhos pouco promissores, e cuja alteração era percebida como difícil, creio que estas trabalhadoras tratavam de constituir uma rede de vínculos potenciais que, para além de equilibrar as chances de sub-sistência cotidiana, propiciava-lhes fazer frente às adversida-

64. Lembro, por exemplo, de catadora que me contara que costumava juntar car-tões telefônicos para vender, porque conhecia um local no centro da cidade de Porto Alegre onde os compravam. Passava meses reunindo exemplares até que, quando passasse por lá, pudesse trocar por um pequeno valor em dinheiro.

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des para poder se dedicar a outras prioridades (como eram exemplos o cuidado de familiares e as atividades de lazer).

E é a partir deste espaço de possíveis que compreendo a relação estabelecida com o campo ambiental. Catadores e ca-tadoras ingressam na cadeia produtiva da reciclagem desde uma trajetória de migrações e de itinerários laborais marca-dos pelo trânsito, em geral, entre diferentes ocupações preca-rizadas. Então, certa disposição à transitoriedade, vivenciada antes como necessidade, é apropriada pelos sujeitos como estratégia e constitui suas tomadas de posição em relação à catação como uma atividade remunerada.

Portanto, ao conceber suas ocupações como provisórias e circunstanciais, esses sujeitos estabelecem tomadas de posi-ção baseadas na interação (e em desacordo) com a precarie-dade. Assim, o trabalho como catadora e catador é concebido como uma prática desassociada do discurso habitual que pro-move a reciclagem. Eventualmente, as catadoras expressavam o suposto valor social de sua atividade como um serviço feito para o “meio ambiente”, mas, na maioria das vezes, desprivile-giavam seu trabalho ao ansiar uma atividade diferente.

A prática de catadoras e catadores é reconhecida no cam-po ambiental. Os discursos que a enunciam tendem, por um lado, a vitimizá-los por conta de suas condições de pobreza; por outro, acabam por enaltecê-los como protagonistas da preservação ambiental (Lisboa, 2013). Mas, em ambos os ca-sos, não são suficientemente discutidas as contradições coti-dianas da produção de uma atividade supostamente benéfica à sociedade, mas que se estrutura desde relações explorató-rias e pertinentes ao modelo de desenvolvimento capitalista.

Apesar dos enunciados do MNCR se aproximarem mais das demandas das catadoras, assinalando a dimensão do “trabalho” em suas reivindicações, não percebia alterações significativas na apropriação dos discursos pela maioria des-tas trabalhadoras. Em geral, percebia que os discursos pro-

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duzidos por outros agentes do campo ambiental integravam eventualmente as narrativas e as práticas, como se os instru-mentalizassem no enfrentamento de seus desafios cotidianos e na articulação das parcerias.

Além disso, essas trabalhadoras raramente associavam a produção de capital ambiental – no qual se insere a recicla-gem – à rede de exploração em que suas próprias atividades de trabalho tomavam parte e a partir das quais poderíamos questionar as contradições da produção e do consumo nas relações capitalistas.

4.1 E as relações de poder: inquietações sobre o lugar de catadoras e catadores

O modelo de produção e consumo que geramos e os si-nais de esgotamento que este tem apresentado nas últimas décadas, têm promovido reflexões sobre as condições de sustentabilidade do nosso sistema socioeconômico. Este é o contexto em que as práticas e disputas a respeito da preser-vação do meio ambiente vem sendo estabelecidas, em ações realizadas por um grande número de agentes, incluindo mo-vimentos sociais, empresas e gestores públicos, entre outros, o que caracteriza o que Lopes (2006) denomina a “ambienta-lização” dos conflitos sociais.

Neste ínterim, a quantidade de resíduos eliminados pe-riodicamente tornou-se objeto de trabalho de um grupo cada vez maior de pessoas. Catadoras e catadores ganham a vida pela coleta, triagem e comercialização de materiais reciclá-veis e, de acordo com as observações apresentadas aqui, participam da administração pública de resíduos, integran-do uma espécie de inclusão precarizada que, em geral, não é propagada nos discursos de valorização das estruturas so-ciais de reciclagem.

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O trabalho, na maioria dos casos, era citado como uma opção para a subsistência65. A necessidade de sobrevivência e de melhoria na qualidade de vida e o desejo de ser inseri-do no mercado de consumo constituíam também os interes-ses desses sujeitos, estabelecendo tomadas de posição con-gruentes e que, ademais, estruturavam as forças em jogo na manutenção da cadeia produtiva da reciclagem.

A dificuldade para a formação de lideranças, congruen-te com a rotatividade observada nas associações, limitava as possibilidades de aprofundar os debates e, também, de construção de embates para uma reformulação significativa da dinâmica de trabalho e exploração associada à reciclagem. Assim também se configuravam limites à qualificação da prá-tica no cotidiano, dada a falta de conhecimento acumulado: a transitoriedade constante dos sujeitos e a evasão de saberes levavam as associações a um recorrente recomeçar.

Tal posicionamento, associado ao débil acesso a capitais econômicos e culturais valorizados no campo, pode explicar a prevalência da participação fragilizada de catadoras nos espaços de poder do mesmo, em que os administradores pú-blicos, empresários, instituições de ensino e pesquisa e or-ganizações ambientalistas prevalecem na orientação de po-líticas e práticas e, em articulação, na enunciação do capital ambiental e da reciclagem.

65. Importante assinalar que isso não os impedia de elaborarem enunciados acerca da dignidade do trabalho, realçado pelo esforço e a superação que a narrativa de seus itinerários frisava. Certa moral que posicionava o labor no contraste com o ilí-cito e a não ocupação, e realçava disposições construídas na trajetória a delimitar o que era ou não permitido, em que pese suas condições precárias e adversas. Lisboa (2013) e Perelman (2011) trazem problematizações mais acuradas sobre o tema. Reitero que, nas pesquisas que relato aqui, os depoimentos que valoravam desta forma as atividades na cadeia da reciclagem eram encontrados de maneira mais re-corrente entre catadoras e catadores com mais idade e tempo de atuação no campo.

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Nesse cenário, o pertencimento de catadoras e catadores ao campo ambiental tende a ser difuso e a apropriação de seu capital configura-se mais como uma tática eventual em situa-ções de relação assimétrica do que a evidência de uma opção espontânea pela causa66. Desta forma tomam parte na con-formação do espaço de ação e, apesar dos artifícios que de-senvolvem cotidianamente ou das reivindicações do MNRC, suas ações ainda não têm gerado alterações significativas nas condições de poder de que usufruem.

Os catadores enfrentam, ademais, a paradoxal necessida-de de aumento na quantidade de resíduos para ampliar sua renda. O incremento dos ganhos pecuniários de uma popu-lação historicamente habituada a acessar residualmente os recursos materiais e simbólicos gerados pelo sistema está condicionado à produção, consumo e geração de resíduos nas cidades. Diante de tais condições, a relação propalada entre reciclagem e sustentabilidade negligencia e oculta as condi-ções socioculturais de sua realização e, em meio a isso, o es-paço relacional em que a cadeia produtiva e, principalmente, a prática das catadoras acontece dia a dia.

Alterar este quadro nos remete à ruptura de um ciclo histórico de inclusão precarizada e, mais além, ao questiona-mento dos padrões de produção e consumo desde os quais operamos cotidianamente. Visibilizar as condições de vida e de trabalho de catadoras e catadores, assim como as táticas

66. Exemplo de diferenciações na apropriação de discursos pode ser observado em hábitos relacionados à reciclagem no ambiente doméstico. Não raro, percebia que meus interlocutores tinham o hábito de reutilizar recipientes cujos conteúdos já haviam sido consumidos ou objetos descartados por outrem. Neste caso, porém, é preciso considerar, a despeito de enunciados que associem à primeira vista tal rotina e discursos pró-reciclagem, que o costume de reaproveitamento antecede a aproximação a discursos ambientalistas, estando presente entre grupos populares em decorrência de necessidades econômicas, mas não só, como disposição social estruturada que recrimina o desperdício.

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que são capazes produzir é apenas um pequeno passo a fim de reconhecer limites e potências de sua capacidade reflexiva e de sua ação. Há muito a compreender nestes jeitos de viver; haveria que se seguir numa “escuta sensível”, como enuncia-va o professor Nilton Bueno Fischer.

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CAPÍTuLo 5Mulheres, sociabilidades e política no cotidiano:

reflexões de um encontro

De início, quando cheguei ao bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, procurava por iniciativas de geração de renda e traba-lho vinculadas à Economia Solidária (Ecosol). Desejava man-ter contato com as práticas deste movimento social, que eu já conhecia de inserções pregressas em iniciativas de fomento. De maneira mais específica, interessava-me conhecer a pro-dução de ações coletivas em contextos socialmente vulnera-bilizados, de modo a problematizar as nuances construídas aí.

As informações que apresentarei na sequência resultam de pesquisa realizada entre maio de 2011 e dezembro de 2013, período em que dialoguei com diferentes sujeitos no campo e, em imersão etnográfica, acompanhei as práticas de um empreendimento formado por costureiras do bairro Bom Jesus. No fluir de nossos diálogos e observando a maneira como atuavam estas mulheres, sentia-me inclinado a desta-car seu modo de atuar cotidianamente, realçando os perten-cimentos que se indiciavam e as peculiaridades engendradas em sua prática a partir daí.

De tal forma, a pesquisa sofreu uma inflexão. A relação que estabeleciam com as proposições da Ecosol se tornou a arena para contraste de tomadas de posição, o espaço de ação desde onde esboço caracterizações para narrar especialmen-te o que percebia próprio na maneira como construíam seus laços de reciprocidade e os eixos de sua reflexividade. Um contexto que trago para problematização por conta das se-melhanças partilhadas por aquele coletivo com muitos dos pequenos empreendimentos econômicos solidários, igual-

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mente situados em localidades socialmente vulnerabilizadas e constituído majoritariamente por mulheres.

Assim, ao trazer elementos sobre um movimento social cuja mobilização propõe unidade na intencionalidade con-tra-hegemônica de suas práticas, tendo a dimensão do “tra-balho” como principal matriz de organização relacional e política, acabo por realçar a diversidade de pertencimentos identitários em jogo. Neste sentido, por conta da configura-ção do campo de ação que procurarei esboçar aqui, uma vez mais, trarei a análise de relações e tensões entre sujeitos atu-antes em contextos socioeconômicos e culturais distintos.

1. Para compreender o itinerário

Como nos capítulos precedentes, oriento-me à relação dos sujeitos com uma prática, neste caso a produção da Ecosol, caracterizando-a (e, de certa forma, reconstruindo-a) desde os tensionamentos que a compunham no contexto específi-co que vim a conhecer. Neste sentido, talvez as contribuições de Bourdieu (2009) sobre o “senso prático” e as estratégias produzidas em campo, ou as elaborações de Certeau (2011) sobre as “artes de fazer” fossem já inspirações pertinentes.

Contudo, a análises de Melucci (2001) sobre os movimen-tos sociais inspiram uma abordagem que não é usual nas lei-turas que fiz acerca da economia solidária, e que me parece necessária aqui, articulando o tema das identidades. Gostaria de associá-la à análise das feituras da prática no cotidiano, vi-sando questionamentos sobre a produção social do movimen-to na forma como é enunciado pelos agentes que o fomentam. Com isso, é minha intenção contribuir às suas frentes de ação, colocando em pauta a diversidade que, na maioria das vezes, é conhecida no campo, mas segue merecendo análises mais detidas no que tange à interpenetração entre as pertenças e a configuração das atividades de trabalhadoras.

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Esse autor destaca que, embora observemos os movimen-tos sociais como estruturas com unidade e homogeneidade externa, o interior deste contém disputas, heterogeneidade e um considerável esforço para atualizar a integração entre os sujeitos que os constituem. Refere, então, a necessidade de considerar também os sentidos e motivações a constituir as ações coletivas, e não somente as condições sociais que as ambientam:

somente sob a condição de distinguir planos e significa-dos diversos da ação coletiva, será possível compreen-der os conteúdos de um movimento concreto, portador de instâncias múltiplas e frequentemente contraditórias (Melucci, 2001, p. 33).

Tomando essa premissa, minhas buscas acabam por dis-cutir as condições de construção de um “nós” associado à produção de pautas de ação. De um lado, procuro observar as proposições gerais do movimento social, a enunciar sua unidade para o ambiente. Significa dizer que, nos termos de Melucci (2001), destaco os conflitos instaurados pela Eco-sol no sistema de produção social a que se dirige (predomi-nantemente, o campo econômico e as relações de trabalho). De outro lado, busco considerar a pluralidade de sujeitos e orientações que a caracteriza como espaço de ação e de identificação. E, dessa forma, chego à ênfase deste texto, a atuação de mulheres de um pequeno empreendimento, como exemplo a ser compreendido não só na singularidade de sua relação com a economia solidária, mas na especifici-dade de suas práticas.

A pesquisa comportou, inicialmente, um mapeamento de agentes de fomento à economia solidária em Porto Alegre. A partir de entrevistas exploratórias com representantes de organizações não governamentais vinculadas ao movimento,

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que conhecia por conta de minha inserção pregressa, elen-quei um conjunto de quinze agentes principais67. A estes fo-ram enviados questionários sobre a história do movimento na cidade, a forma e a abrangência de atuação de suas inicia-tivas e, por fim, sobre características sociodemográficas dos gestores respondentes. Obtive respostas em dez casos.

As informações sobre histórico e forma de ação e tam-bém, sobre as parcerias estabelecidas em cada caso sinaliza-vam para alianças sociopolíticas e institucionais e para ativi-dades em comum, que delimitavam, então, uma prática e um campo de ação prováveis.

As questões sobre condições sociodemográficas estavam orientadas à busca dos acessos econômicos e culturais, para possibilitar que os sujeitos de diálogo fossem situados em re-lação a recursos socialmente produzidos. Estas informações foram importantes para contraste com aquelas advindas do contexto de periferia e, neste sentido, para caracterização de assimetrias e diferenciações no campo.

Formulado um esboço do campo de ação e pertencimen-to em estudo, considerando sujeitos atuantes e as relações entre estes, passei, então, a um período de imersão etnográ-fica entre abril de 2012 e dezembro de 2013, acompanhando assembleias do Fórum Municipal de Economia Solidária e as atividades do empreendimento mencionado antes. Este era formado por quatro costureiras, cujo perfil sociodemográfico se aproximava àquele recorrente nas reuniões do Fórum de Ecosol: mulheres com idade acima dos 40 anos, reduzida ren-da familiar, escolarização fragmentada e moradia em regiões reconhecidas como de periferia.

A imersão se destinava a conhecer as atividades diárias das trabalhadoras e, em meio a conversas e causos, conhe-cer a maneira como conduziam suas atividades no cotidia-

67. A amostragem, aqui, foi definida por conveniência, procurando sujeitos bastante reconhecidos entre as iniciativas de economia solidária, na promoção de fomentos e na enunciação das relações almejadas.

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no e o que tinham a dizer sobre elas. Isso incluía as tarefas produtivas vinculadas ao empreendimento, mas também ou-tras práticas que ocupassem seus tempos e suas prioridades. Esta dinâmica, associada à realização de entrevistas sobre a trajetória e as rotinas diárias, oportunizou a primeira aproxi-mação aos pertencimentos e prioridades daquelas mulheres, que já podia contrastar aos depoimentos dos agentes de fo-mento com quem dialoguei na primeira etapa da pesquisa.

Então, de forma complementar, propus uma nova etapa de elaboração de narrativas. Por intermédio da produção de fotografias e intervenções criativas sobre fotos, solicitei que as trabalhadoras se expressassem sobre o que desejavam. Assim, visibilizaram experiências, contaram mais sobre suas atividades no bairro, narraram, enfim, suas redes de sociabi-lidade no cotidiano. Interessava-me acompanhar o processo mediante o qual minhas interlocutoras (re)elaboravam suas próprias pertenças. Processo que passou pela escolha dos cenários e personagens que figuraram em suas fotografias e intervenções, pela seleção (e censura) daquelas que viriam a público, e pela construção de narrativas articulando suas falas às imagens elaboradas.

Ao final de nosso itinerário, agregamos à pesquisa a pro-dução de um histórico da associação de costureiras, con-feccionado na forma de um banner com imagens e citações que expressavam a trajetória daquele coletivo. Esta foi uma demanda de minhas interlocutoras, que reclamavam a exis-tência de um artefato que registrasse o percurso do grupo e, além disso, servisse à comunicação deste aos que chegassem até elas. O processo de construção serviu à pesquisa eviden-temente, e atendeu ao desejo daquelas trabalhadoras de pro-duzirem narrativa sobre sua trajetória.

Passemos, então, à apresentação das informações siste-matizadas, iniciando pela caracterização do espaço de ação.

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2. Sujeitos e propósitos de quem enuncia

O movimento de economia solidária conquistou maior expressão no Brasil na sequência do processo de reestrutu-ração produtiva e redução do número de postos de trabalho formal (anos 1990), quando trabalhadores assumiram mas-sas falidas, procurando modificar as relações de trabalho a partir de uma prática coletiva, autogestionária e solidária (Santos, 2005). Na maioria dos casos, os empreendimentos surgiriam por intermédio da iniciativa de seus membros e de algum agente externo (igreja, associação de moradores, ONGs), sendo este já vinculado a um ideário político, cuja ma-triz mais recorrente é a dimensão do “trabalho”.

As iniciativas de economia solidária tendem a uma proposi-ção contra-hegemônica na assunção de seus projetos políticos. Ao propor uma organização na qual os sujeitos se incumbem em criar sua própria fonte de trabalho, visando o acesso a bens e serviços numa dinâmica de reciprocidade que articula de-liberadamente os interesses individuais aos coletivos, os em-preendimentos de geração de renda apresentar-se-iam como alternativas ao sistema produtivo capitalista (Gaiger, 2006).

Assim, a economia solidária é narrada por sujeitos que a promovem como depositária de contribuições de alguns pensadores socialistas utópicos, entre eles Owen, Proudhon e Fourier. Para Paul Singer (2000), liderança reconhecida no campo, o movimento apresentar-se-ia como uma espécie de reinvenção, inspirada nos primeiros movimentos da Escola Associativista do século XIX.

2.1 Redes e sujeitos no movimento em Porto Alegre

Então, se tu pegares, assim, na década de 60, 70, aqui em Porto Alegre, ou em qualquer outro lugar, não se ouvia falar em economia solidária, não existia economia solidá-

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ria, né. Era um conceito inexistente, né, tu vai procurar na universidade, não tinha nenhum trabalho sobre economia solidária. E ela carrega consigo um componente contra--hegemônico. (Agente de fomento – Ago. 2011)

Os diálogos com gestores de iniciativas de fomento à eco-nomia solidária de Porto Alegre associavam o surgimento deste movimento à crise do emprego dos anos 1990, confor-me já mencionado acima, mas também às alterações engen-dradas na organização da máquina estatal, em detrimento do ainda inconcluso projeto de bem-estar social brasileiro. Neste ínterim, as interlocuções situavam a emergência de um conjunto de mobilizações de trabalhadores, que buscavam al-ternativas de geração de renda, assumindo, em muitos casos, a gestão das empresas deficitárias em que trabalhavam68.

No entanto, em que pesem as condições sociais para sua emergência, a conformação do movimento parece-me tributá-ria também das características e motivações dos sujeitos que se associam no fomento aos empreendimentos e na reificação da dimensão do “trabalho” como matriz de organização rela-cional. Neste sentido, Oliveira (2011) indica a ação da gestão municipal da Frente Popular em Porto Alegre nos anos 1990 (liderada pelo Partido dos Trabalhadores – PT), ou mesmo antes, algumas experiências da Cáritas brasileira na promo-ção de Projetos Alternativos Comunitários na década de 1980, como iniciativas fundantes na constituição da Ecosol.

A grande marca, quando começou a caracterizar como economia solidária foi a partir das políticas públicas de Porto Alegre: a primeira incubadora foi aqui, o primeiro plano de economia solidária foi aqui, as primeiras com-pras coletivas foi aqui, o primeiro banco de economia soli-dária – o primeiro banco comunitário, que é o Pôr do Sol –

68. Posso mencionar, nesse contexto, a criação da Associação Nacional de Trabalha-dores e Empresas de Autogestão (ANTEAG).

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foi aqui. Toda a matriz de política pública foi aqui. A SMIC. (Agente de fomento – Jul. 2011)

Em relação à formalização das iniciativas de fomento à Ecosol em Porto Alegre, a exceção de um caso, iniciado nos anos 1980, os trabalhos teriam começado depois de 2000. Assim, a ação destes teria se organizado após o incremento de demanda por empreendimentos, visualizado em meio à elevação de desemprego estrutural nos anos 1990. Impor-tante destacar que, se observarmos o período indicado para início das atividades dos agentes (de forma geral, não só em Ecosol), temos uma ampliação de citações para os anos 1980 ou antes. Indício da existência de entidades de atuação polí-tico-social (em condição formalizada) cuja gênese não se dá necessariamente associada ao fomento à economia solidária, mas que, a partir da conjuntura histórica recente, passaram a promover e/ou construir a Ecosol, trazendo às práticas ideá-rios políticos de diferentes origens/vertentes.

[...] Mas nesse cenário, tá, tu tens assim: três forças reais. Duas, tu pode dizer que são oriundas da sociedade civil e uma do Estado, da sociedade política. Da sociedade civil, tu tens um conjunto de organizações sociais – ONGs, funda-ções... – que têm como matriz política e ideológica as igre-jas [...] Tu tem outra matriz que ela é sindical-partidária... nas correntes da CUT, do PT. Essas são as duas matrizes da sociedade civil. E a outra são as ações e as políticas públi-cas, ações dos gestores públicos dos governos populares. Aí tu tem a política que começou com o governo Olívio Dutra, aqui [...]. (Agente de fomento à Ecosol – Ago. 2011)

Poderíamos agregar às vertentes de ação político-mo-bilizatórias (igrejas de base, iniciativa sindical trabalhista e política partidária de esquerda), a ação extensionista de aca-dêmicos universitários, cuja trajetória também se associa à

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mobilização popular. Segundo entendo, este quadro de ar-ticulações contribui para a delimitação dos enunciados que pretendem a unidade do movimento, associando experiên-cias de educação e organização popular, pautas reivindicató-rias trabalhistas e práticas de intervenção junto ao aparato estatal. Neste sentido, afirmaria que as trajetórias dos sujei-tos que protagonizaram inicialmente o fomento à economia solidária são tributárias à tradição política da modernidade, propugnando mudanças econômicas estruturais e dispondo o acesso ao Estado como conquista estratégica.

Desde 2003, o movimento conta com uma Secretaria Na-cional de Economia Solidária e a destinação de recursos fe-derais às iniciativas de fomento. E o que cabe ressaltar neste cenário de articulação entre institucionalidade estatal e mo-vimento social é a forma como a mesma se configurava. Não poderia afirmar categoricamente que a economia solidária adentrou a arena estatal; parece mais que ela se constituiu historicamente na intersecção deste com as reivindicações político-sociais, dado que os muitos sujeitos que a promo-viam/promovem já estariam situados em espaços políticos partidários e com redes relacionais que lhes potencializavam acesso ao aparato estatal.

Ademais, a Ecosol não se configurava como um campo ho-mogêneo e, além da tensão entre maneiras/motivações para militância, faziam-se presentes também as disputas entre as diferentes parcerias constituintes do locus, ora tendendo a recursos públicos, ora usufruindo de apoios de grandes em-presas. De outra parte, os conflitos entre agentes de fomento e grupos/empreendimentos apoiados ocupavam lugar im-portante na configuração cotidiana da economia solidária.

Parece uma conversa de surdos e mudos, e eu não tô a fim de escutar o outro, de ser criticado, de ser interpela-do. Eu tô ali pra ver com quem eu posso me aliar ou não

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me aliar em função da minha estratégia, e a minha es-tratégia é a sobrevivência da minha entidade, da minha articulação do meu grupo.As pessoas lá, o grupo tá lá há um tempo e só vem pra feira porque só se interessa pela possibilidade de comer-cialização, para outras coisas não vem. Eu acho que isso não é ECOSOL, eu posso até fazer isso, mas isso não pode ser uma estratégia de trabalho. Qual o desafio de não ex-cluí-los, mas de fazê-los perceber toda a dimensão, toda a proposta da ECOSOL. (Agente de fomento – Jan. 2012)

Nesse cenário, os agentes de fomento constituíam-se como os sujeitos com mais poder na enunciação das carac-terísticas do movimento de economia solidária69. Apesar das dinâmicas participativas que procuram instaurar, as diferen-ciadas condições sociais e culturais de origem destes (com elevada escolarização e qualificada rede de relações, se com-paradas com as de integrantes dos empreendimentos assis-tidos) oportunizava-lhes acesso mais facilitado aos espaços institucionalizados de disputa e lugar privilegiado na defini-ção da Ecosol.

69. As frentes de ação mais citadas pelos agentes de fomento incluem uma diversi-dade considerável de iniciativas, com ênfase na organização política-econômica de grupos e ou comunidades em situação de pobreza. Seriam elas: 1. fomento/acompa-nhamento a grupos de geração de trabalho e renda (espaços urbano e rural), algu-mas vezes segmentados por condição institucional, geracional, étnico e/ou de gêne-ro (egressos de sistema prisional, jovens, mulheres...); 2. atividades de orientação/formação em gestão organizacional; 3. assessoria em projetos de comercialização coletiva (feiras, lojas, coletivos de compra...); 4. apoio na formação de cadeias pro-dutivas e parcerias para sustentabilidade de grupos; 5. assessoria e/ou coordenação em projetos de formação de redes sociopolíticas (fóruns e entidades representati-vas); 6. participação em eventos e manifestações sociopolíticas; e 7. estímulo a ativi-dades de pesquisa e extensão universitária.

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2.2 No cotidiano: locais, pessoas e pertenças

Quando de minhas interlocuções com agentes de fomento à economia solidária, encontrávamo-nos em seus escritórios--sede, em bairros centrais. De maneira geral, eram espaços ornamentados com cartazes e banners, eventualmente com prateleiras com folders das iniciativas em curso e murais or-ganizados entre projetos, planificações e instrumentos de co-municação interna.

Os escritórios se dividiam em salas, geralmente, distribu-ídas entre as diversas frentes de ação – questões ambientais, vinculações feministas, ações pastorais, direitos humanos. Esses diminutos espaços tinham muitos papéis e pastas acu-muladas em prateleiras e/ou sobre as mesas. Lá, trabalhavam equipes contratadas formalmente, ainda que fossem peque-nas, que procuravam atuar e articular redes de ação planeja-das e deliberadas.

De alguma maneira, os diálogos que estabelecemos eram ambientados pela explicitação de um engajamento político e da evidência de uma rotina executiva assoberbada. Em uma de nossas entrevistas, meu interlocutor fez questão, inclusive, de um preâmbulo às nossas perguntas, contextualizando as condi-ções históricas e sociais de surgimento da economia solidária.

Meus interlocutores narravam suas trajetórias a partir de um forte envolvimento político-social e de percursos concre-tizados em aparatos organizacionais. As falas acentuavam a necessidade e projeção de transformação ampla (ou mesmo, totalizante) das relações de produção e sociabilidade e o foco estaria na dimensão econômica e laboral (com apelo implíci-to a um futuro de superação). A maioria possuía ensino su-perior ou mestrado, com tendência para a formação na área de humanas, embora o cotidiano de trabalho tenha muito de conhecimentos administrativos. Parece que a adesão política associar-se-ia a uma orientação acadêmica para problemáti-

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cas humanas e sociais (ciências sociais, filosofia, serviço so-cial, entre outros).

Quando indagados sobre as circunstâncias que os teriam levado à atuação em Ecosol, a principal ênfase das respos-tas reendossava uma afirmação político-ideológica. Neste contexto, citavam principalmente: sua identificação política oriunda de experiências pregressas no sindicalismo, em pro-jetos sociais ou na educação popular; interesse e crença em práticas econômicas e políticas alternativas ao sistema capi-talista (solidariedade, cooperação, autogestão); e a influên-cia de graduação realizada em área afim (ciências sociais por exemplo). Neste sentido, as conquistas relativas à escolariza-ção, especialmente no acesso ao ensino superior, parecem ter potencializado recursivamente o acesso à militância intelec-tualizada, como arena de lutas do final dos anos 1970 e nos anos 1980 para a maioria meus interlocutores70.

Observando os itinerários daqueles que protagonizaram a organização inicial do movimento, percebo a construção de espaços para uma prática social que atualiza escolhas de suas trajetórias. Partindo da instauração de um conflito rela-cionado à produção social econômica, criaram também um locus de sociabilidade e identificação específicos, formado na composição de aparatos organizacionais de fomento e no trânsito político institucional. Minhas próprias experiências no campo podem ilustrar o que quero dizer. Lembro-me das feiras de economia solidária que, além da comercialização de produtos e interação entre integrantes de empreendimentos, ambientava o encontro e a partilha entre técnicos que re-presentavam agentes de fomento. Aqueles momentos com-portavam o reforço simbólico de pautas e de pertencimen-tos, motivando a continuidade da prática; sinalizavam para

70. Os entrevistados, neste caso, são oriundos de famílias cujos responsáveis eram trabalhadores que teriam escolarização polarizada entre o ensino fundamental in-completo e ensino superior, sendo que a chegada dos filhos destes ao ensino supe-rior foi realização bastante extensiva.

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a importância de pertencer àquela coletividade, expressa na sociabilidade de encontros, abraços e conversas.

Além disso, é possível considerar também que, especial-mente entre os ativistas mais jovens, a própria afirmação da identidade ocupava lugar importante entre as atividades e interações das pessoas com quem dialogara. Isso podia ser observado em detalhes das vestimentas, nas afirmativas em conversações e na interação virtual. Então, independente das condições objetivas de realização total da causa e das dispu-tas internas no campo, constituía-se também uma rede de re-lações concernentes a certos jeitos de crer e agir, um espaço de partilha e reflexividade identitária.

3. Em campo, condições e pertencimentos de mulheres trabalhadoras

Até o momento, narrei a composição de um campo de ação e identificação formado por organizações bastante for-malizadas, de diferentes origens (religiosas, sindicais, parti-dárias, acadêmicas, etc.) com níveis variáveis de associação com o aparato estatal (ou com a iniciativa privada) no fo-mento a empreendimentos econômicos solidários. Porém, se observamos mais especificamente as relações das quais par-ticipam estes últimos, o espaço de ação ganha configuração significativamente distinta.

Segundo o Mapeamento da Economia Solidária (SENAES, 2007), a maioria dos empreendimentos econômicos solidá-rios no Brasil possuía aproximadamente 10 integrantes, sen-do o campo composto, então, majoritariamente de pequenos grupos, cuja principal motivação para criação e manutenção foi a geração de renda, com escassa alusão ao ideário da Eco-sol. Em tais iniciativas se concentram as trabalhadoras na eco-nomia solidária (76% dos integrantes), dado congruente com os levantamentos sobre a presença de mulheres no mercado

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de trabalho brasileiro e porto alegrense, com registros recor-rentes de atividades informais e/ou precárias em maior pro-porção que para os homens (Bruschini, 2007; Bagolin, 2012).

Minhas visitas às assembleias do Fórum Municipal de Economia Solidária de Porto Alegre (FMESPA) eram acom-panhadas da constatação de uma maioria de mulheres tra-balhadoras, atendendo ao perfil de moradoras de bairros de periferia, com idade superior aos 40 anos, reduzida escola-ridade e integrantes de pequenos empreendimentos. Con-siderando que a presença nas assembleias é condição para acesso às feiras de comercialização, os pequenos grupos (e as mulheres trabalhadoras, por consequência) são aqueles que se fazem mais presentes. De outra parte, a especificidade de gênero representada aqui tem consequências na composição da grade de produtos comercializados nas feiras (e, então, dispostos aos consumidores externos), cujos itens repetem artesanatos manuais tradicionalmente vinculados ao fazer feminino (crochê, tricô, panos de prato, etc.).

Se passamos à sede do empreendimento com o qual in-teragi mais detidamente, chegamos a um pequeno prédio construído com ajuda de parentes e vizinhos e com apoio financeiro de um dos agentes de fomento do campo. Lá trabalhavam quatro costureiras cujo perfil sociodemográ-fico pouco se diferenciava do encontrado no FMESPA. No espaço físico, algumas máquinas de costura e, em uma das paredes, folhas de papel pardo com uma espécie de levan-tamento administrativo, fruto das assessorias prestadas pelas agências de fomento.

A história do grupo, iniciada em 2004, apresenta um con-junto de alianças bastante diverso, incluindo, de um lado, agentes de fomento e institutos empresariais e, de outro, lide-ranças comunitárias de bairro, entidades assistenciais, outros empreendimentos e familiares. Com os primeiros acessavam financiamentos, equipamentos e capacitação (técnica e geren-

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cial); com os demais dividiam a produção de artigos, logravam indicações para participação em projetos/editais e recebiam auxílios eventuais (como cedência de espaço, doação de ali-mentos, etc.). Certa feita, inclusive, tomei conhecimento de que, em meio às parcerias, o grupo vinha colaborando com outros empreendimentos informais, ao comprar equipamen-tos usando seu registro legal e/ou oportunizar a realização de cursos de costura para outras mulheres da comunidade.

A localidade onde a associação estava sediada, o bairro Bom Jesus, foi constituída a partir de ocupações e loteamen-tos irregulares desencadeados a partir dos anos 1960, me-diante a chegada de populações de cidades do interior do estado. Em outros momentos, houve também a chegada de habitantes de outras comunidades periféricas do município, desfeitas no processo de crescimento urbano e por políticas de afastamento de contingentes empobrecidos impetradas pela própria ação governamental (Nunes, 1998)71.

Tratamos, enfim, de um campo de ação que atravessa di-ferentes contextos sociais, cujas condições materiais e cul-turais podem interferir na maneira como os sujeitos se re-lacionam com o movimento social e consolidam tomadas de posição nas disputas.

71. Há registros da existência de moradores em loteamentos populares no bairro Bom Jesus no final dos anos 1920. Porém, nos anos 1960, há um crescimento da ocupação daquele território, quando se amplia o contingente populacional, especial-mente na parte sul da região. É também neste período que aumentam o número de ocupações irregulares. Hoje, o bairro localizado na zona leste da cidade possui apro-ximadamente 30 mil habitantes e é predominantemente residencial. Adentrando--se a comunidade, pode-se perceber condições de moradia bastante distintas entre residentes. Neste sentido, a Vila Pinto e o Mato Sampaio seriam aquelas localidades cuja população vive em situação mais precarizada. Para que se tenha um parâmetro de comparação, sem levar em conta a desigualdade observada no interior do bairro, o rendimento médio dos responsáveis por domicílio era de 2,38 salários mínimos em 2010, menos da metade da média do conjunto da população de Porto Alegre (5,4 SM) (ObservaPoa, 2014).

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3.1 Identidades na periferia urbana: no cotidiano da associação

Trata-se de uma estrutura “submersa”, ou melhor, de la-tência; cada célula vive uma vida própria, completamen-te autônoma do resto do movimento, mesmo mantendo uma série de relações através da circulação de informa-ções e de pessoas; estas relações se tornam explícitas so-mente em ocasião de mobilizações coletivas e de saídas em torno das quais a rede latente ascende à superfície, para então mergulhar-se novamente no tecido quotidia-no. (Melucci, 2001, p. 97)

Não conhecia a sede da associação e cheguei pela primei-ra vez até lá com a ajuda de companheiros vinculados ao Hip Hop que, numa tarde bastante quente, aceitaram tomar um ônibus e cruzar o bairro para me mostrar onde as costureiras se encontravam. A partir de então, passei a conhecer e dialo-gar com quatro trabalhadoras.

À época, Lélia estava iniciando sua integração ao grupo e já teria assumido a função de coordenadora; era a única das mulheres com curso superior e que não possuía filhos e, além disso, residia em bairro mais abastado, distante da comuni-dade da Bom Jesus. A chegada desta trabalhadora ao grupo, segundo ela própria contava, deu-se em razão de encontros com as outras integrantes em feiras de economia solidária e, além disso, por laços comuns com iniciativas vinculadas à ex-pressão da etnia negra. Dadas tais afinidades, ter-se-ia criado condição para o convite e, então, ela passara a integrar a as-sociação no intuito de contribuir na organização administra-tiva e em processo formais do empreendimento.

Foi em uma feira que eu conheci Amina [...] Aonde tinha negro fazendo alguma coisa eu ia lá conversar, ver o que estava fazendo, o que fazia. Nessas histórias eu conheci Amina; em várias feiras encontrei com ela e, aí, como ela

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necessitava de alguém aqui, ela me conversou, como eu digo, né?! [...] Antes disso assim, eu já tinha pensado em al-guma cooperativa mais pra aprender. (Lélia – Dez. 2012)

Alzira, 72 anos, a mais idosa e uma das fundadoras daque-le coletivo, possuía 10 filhos, todos já adultos e casados, e de-monstrava forte vinculação com a igreja evangélica. Quando nos narrou sua trajetória, procurou destacar as adversidades superadas, entre as quais situava o trabalho escravo na infân-cia, na região de Alegrete, o período de poucos recursos em que precisou trabalhar como catadora na unidade de triagem do bairro e, por fim, a iniciativa de criar a associação, para apoio às pessoas da comunidade e geração de renda complementar.

Amina era a tesoureira da associação e aquela responsá-vel pela organização de documentos do empreendimento; ademais, também percebíamos sua liderança informal e sua vinculação ao movimento negro. Teria chegado ao grupo por indicação de sua amiga, Nani. Dentre as colegas que residiam na Bom Jesus, era a que mais havia experenciado alternativas laborais formais e a que mais dominava códigos de escrita e de gestão do trabalho.

Nani era a secretária e, além dos encargos no grupo, tra-balhava à noite, cuidando de idosos, o que lhe garantia o sus-tento da família, incluindo-se aí seus dois filhos. Chegara à as-sociação por indicação de assistente social atuante no bairro, dada sua necessidade de ocupação e renda complementar72.

Quando de minhas primeiras visitas, comentaram os pro-blemas com a rotatividade das associadas (as pessoas ten-deriam a procurar por capacitação e remuneração) e a difi-

72. Para trazer mais referências, posso salientar que, à exceção de Alzira, nossas interlocutoras tinham aproximadamente 50 anos de idade. A escolaridade era vari-ável, sendo que Alzira era analfabeta, Amina e Nani tinham ensino médio concluído depois de adultas e Lélia concluíra ensino superior. Somente Lélia, aposentada como servidora pública, não teve experiências laborais fragmentadas.

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culdade em auferir ganhos significativos. Mencionaram que costumavam participar de muitas reuniões (em função das parcerias em Ecosol), o que lhes oportunizava conhecer ou-tros grupos e participar das feiras, mas lhes tomava muito tempo. Assim, tinham resolvido se ausentar de tais encontros momentaneamente.

Nossas conversas iniciais ganharam o aspecto de reuni-ões, quando as trabalhadoras prontamente improvisaram a bancada de corte como mesa e sentavam-se à volta para ter comigo. De início, sentia-me incomodado com a formalida-de da situação, como se as atividades que estava querendo conhecer quando as visitava se resumissem justamente à minha presença. Por outro lado, entendia tal dinâmica como parte da forma delas estarem com quem chega “de fora”, como parte, assim, da maneira como vêm construindo aque-le espaço de redes e parcerias. Ademais, contavam-me sobre outras reuniões ao longo da semana, de forma que as perce-bia ocupadas com a gestão de projeto patrocinado por um instituto empresarial, como mobilizadoras de educandas na comunidade, agenciadoras das educadoras e cedentes do es-paço físico para curso de costura.

Inicialmente então, tive contatos que mostravam a pre-ocupação em valorizar parcerias e vínculos institucionais e certa preocupação também em cumprir orientações de fo-mentadores. Além disso, tomei conhecimento da existência de usuais problemas de empreendimentos: elevada rota-tividade de integrantes; instabilidade na produção; e uma agenda sobrecarregada de reuniões com parcerias. Mas, gra-dativamente, surgiram outros elementos no curso de nossas interlocuções: os laços informais com os vizinhos que che-gavam; a sociabilidade que se construía e as gargalhadas de quem está à vontade; o desejo incontido de falarem de si e narrarem suas vivências recentes; a tendência mais articula-dora e gestora do que propriamente produtiva que o grupo

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apresentava; as motivações não econômicas para permane-cerem ali.

Porque isso aqui, isso aqui é minha vida, sabe? É a minha vida aqui. O dia em que eu tô em casa, assim, eu já acho falta, de tá aqui na associação. Em casa a gente, em casa dentro, não tem o que, passar um pano na casa, eu pas-so de manhã, faço tudo de manhã, de tarde não tem nada pra fazer, vou tá fazendo o quê? É por isso que eu venho pra cá, tô aqui com as gurias, às vezes tô até só aqui mas tô costurando. É uma coisa que eu gosto, é uma coisa que nasceu em mim, de vontade de fazer as coisas. (Alzira – Dez. 2012)

Quando passamos a conversar sobre os ensaios fotográfi-cos, percebia que a narrativização emergia de forma contun-dente. Frente à possibilidade de falarem de suas preferências ao fotografar, ensejava-se a partilha e afirmação de lembran-ças e posicionamentos, de forma que muito de seus vínculos se visibilizavam. Poderia destacar, neste sentido, uma relação intensa com a comunidade do bairro, que procuraram visibi-lizar em diferentes conversas. Percebia o desconforto e a in-dignação com a miséria vivida por moradores, especialmente, os catadores residentes no bairro; noutro extremo valorati-vo, visualizava os lugares significativos em suas trajetórias, citando as brincadeiras de infância e as festas da juventude.

Poderia destacar algumas das lembranças de Amina, que me falara da prima griot, que teria herdado a prática de pa-rentes73. Disse-me que, antes mesmo de morar no bairro Bom

73. Os griots eram caracterizados por minhas interlocutoras como contadores de histórias relativas à memória étnica negra. Amina integra uma organização não go-vernamental que atua na contação de histórias para crianças. Para tanto usam pe-quenas bonecas artesanais feitas, muitas vezes, nas dependências da associação. Em que pese a indefinição relativa à origem do nome e a diversidade de papéis e condi-ções de reconhecimento social possíveis para o griots na África Ocidental (cantores,

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Jesus, ela e a prima costumavam visitar sua avó, quando esta lhes contava histórias. Falou-me, também, sobre a chácara onde brincavam quando crianças (já na Bom Jesus). Os mais idosos mencionavam a existência de escravos enterrados lá e contavam, ademais, que poderiam um dia avistar um “ne-grinho” com uma corrente e deveriam dar-lhe comida, se pe-disse. Assim, a cultura oral negra se fazia presente e parecia pedir espaço na elaboração de memórias, o que é destacável em comunidades de periferia, onde os registros formais (es-critos ou em imagens) são ainda diminutos.

Aliás, todas as integrantes do coletivo se declaravam mu-lheres negras, cuja vinculação se fazia ver também em condi-ções e preferências. As memórias como escrava de Zelância, os vínculos que teriam trazido Lélia para a associação, os gos-tos enunciados por Nani no uso do cabelo e das vestimentas, no desejo explícito de Amina de valorizar as memórias do grupo, da família, da etnia que professava.

Aí, aqui na associação eu cheguei através da Nani. É que eu já fazia parte do Haja Luz, e a gente começou a fazer a contação de história, né, e com personagens negros né. Então, eu pensei assim: “bom, tem que ter alguém que faça bonecas negras para gente levar pras crianças interagi-rem”. Eu disse: “Bah Nani, eu precisava aprender a pelo menos dar uns primeiros recortes de costura”. Aí, que ela falou daqui [...] E como eu tinha assim, conhecimento de administração, essas coisas para mim era mais fácil. Daí a melhor forma de eu ajudar, de tanta coisa que eu aprendi e recebi aqui né [...]. (Amina – Nov. 2012)

conselheiros políticos, artesãos, etc.), conforme assinala Hale (1997), creio que a relação com esta prática pode ser considerada como expressão de pertencimento que perpassa o cotidiano de minhas interlocutoras (e, especialmente, de Amina), indicando, além disso, a apropriação e ressignificação contextual de uma tradição.

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Outro elemento a considerar, e que se colocava de ma-neira ainda mais patente, concerne à condição de gênero das trabalhadoras. Com isso, refiro-me ao trabalho informal circunscrito ao território do bairro, que acabava por aten-der à necessidade de darem conta dos afazeres domésticos e de cuidado de filhos e familiares. Mas assinalo também um modo de ingressar e atuar no espaço público.

Souza (2005), em pesquisa sobre meados no século XX, menciona que “as mulheres do meio popular não viviam no restrito mundo do lar; faziam incursões diversas pelas ruas [...] eram encontradas nas portas das casas vizinhas a obser-var a vida...” (p. 171). Fonseca (2004) traz elaborações con-gruentes em relação às comunidades pesquisadas por ela des-de os anos 1980. Assinala que as iniciativas de mulheres fora do âmbito doméstico não são de todo novas e têm contado com apoio tácito e suporte masculino74, quando estas transi-tam e comentam a vida em comunidade ou buscam trabalho nas imediações de sua vizinhança. A autora sinaliza, contudo, que as mulheres tenderiam a circunscrever sua atuação ao espaço público do bairro, evitando serem nominadas como “rueiras” em suas localidades, estigma a que estariam sujeitas caso se aventurassem a incursões em lugares mais distantes.

No que tange às minhas interlocutoras, sua atuação na associação parece ter se configurado historicamente dentro deste panorama. Porém, dadas suas inserções profissionais, creio que precisaria explicitar certa variação conforme a con-dição etária. Alzira, mais idosa, seria aquela cuja trajetória mais restringira a circulação e a atuação ao bairro, ao passo que as demais narraram experiências de trabalho em outros espaços da cidade. Além disso, quando estas falavam de suas

74. A construção sede da associação exemplifica tais relações. Além de ter contado com participação de vários familiares das fundadoras quando da construção, o es-poso de Amina, filho de Alzira, é ainda hoje chamado quando são necessários novas modificações ou consertos nas instalações.

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atividades ou das atividades de outras mulheres no bairro, traziam discursos sobre a capacidade empreendedora femi-nina, de forma que pleitos de valorização da ação de mulhe-res pareciam povoar também aquele locus.

Isso não parece prejudicar, no entanto, a integração com sua localidade na delimitação de boa parte suas ações atu-ais. Suas atividades laborais, neste contexto, remetem-nos a espaços onde tradicionalmente está alocada a ação femi-nina, como são exemplos a prática da costura, a triagem de resíduos, o atendimento a idosos e as iniciativas assistenciais que perfazem a história desse coletivo75. Estas, associadas à incumbência de cuidado de filhos e familiares, lembram, uma vez mais, características culturalmente naturalizadas, que imputam atribuições sociais e estrutura disposições para servir e assistir (Fonseca, 2000; Ieso, 2010).

Assim, cabe assinalar que, em meio às condições socio-culturais e aos aspectos identitários comentados até aqui, observava que as trabalhadoras partiam de suas redes no bairro, incluindo igreja, movimentos, centros culturais locais, entidades assistenciais (públicas e/ou privadas) e grupos fa-miliares, para mobilizarem participantes e, assim, pareciam balizar-se e intensificar redes de reciprocidade. Neste cená-rio, os entendimentos acerca do trabalho da associação eram perpassados pelo pertencimento comunitário, por vínculos familiares e de amizade ou mesmo por uma disposição à as-

75. Neste último caso, poderia citar dois exemplos ilustrativos. Primeiramente, a ar-recadação e doação de alimentos às famílias mais empobrecidas da comunidade, uma prática assistencial bastante tradicional, que fez parte da história desta associação, sobretudo em seu início. Também era costume realizar festividades para crianças do entorno nos finais de anos ou acolher vizinhos e conhecidos quando precisavam re-alizar pequenos trabalhos de costura na sede da associação. Em outra situação, mais recente, uma das trabalhadoras convidou uma jovem candidata à vereadora para ir à sede do empreendimento e apresentar seu programa eleitoral. Na ocasião, foi me dito: “ela não tinha chance, eu sabia, mas ela me pediu e eu achei que não custava nada ajudar”. De fato, a candidata fez votação muito pouca expressiva e não foi eleita.

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sistência e acolhida circunstancial. Diria que o contexto de vida que ambientava a prática daquelas mulheres indiciava o espaço de possíveis desde o qual podiam operar, na mesma medida em que se este apresentava como potência, como pal-co de produção de suas táticas.

Então, a relação com os enunciados da Ecosol (nas ver-sões produzidas pelos agentes de fomento) não só me parecia fragmentada, como se configurava desde outras motivações, complexificando o campo de ação. A busca de autogestão não estava necessariamente posta. Mesmo o grupo tendo poucas integrantes, a liderança informal de Amina se fazia bastante presente e nem sempre as decisões eram partilhadas, e isso tampouco parecia fragilizar o vínculo das demais trabalhado-ras ao empreendimento. Se podíamos observar solidariedade e cooperação, as formas como se concretizavam sinalizavam para variações nas bases de sentido da prática.

Considerando condicionantes materiais e culturais (no que tange ao acesso a conhecimentos formais), de gênero, étnicos e de sociabilidade comunitária como constituintes na configuração da prática, a reflexividade identitária destas trabalhadoras precisa ser compreendida desde as idiossincra-sias que instaurava no espaço de disputa. Minha presença en-tre as atividades daquelas mulheres sinalizava que seus per-tencimentos e as narrações que faziam sobre o que as movia estavam mais ligados à condição de mulher e de pessoa negra e ao reconhecimento de seus laços comunitários e familiares.

Conforme afirmou Nani certa vez, “minha família também é minha economia solidária!”.

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4. Economia solidária e trabalhadoras na periferia

Partirei, agora, dos pertencimentos narrados acima para problematizar tomadas de posição das trabalhadoras com que dialoguei na produção da economia solidária, desenhando es-pecificidades de sua prática. Neste intento, procurarei comen-tar resumidamente táticas e estratégias que sinalizem para con-trastes em relação à atuação de agentes de fomento no campo.

4.1 Condições culturais e capacidade de enunciar

O primeiro ponto que gostaria de frisar diz respeito ao uso que as trabalhadoras fazem de códigos e saberes formais em sua prática. Considero, aqui, o acesso fragmentado à es-colarização e profissionalização na constituição das tomadas de posição no campo, quando estes interpõem limites para acesso ao mercado formal (Bruschini, 2007) e, consoante, a espaços institucionalizados de trabalho e ação política.

Apesar do trabalho realizado por minhas interlocutoras na mobilização comunitária, o domínio de códigos formais parece jogar papel importante na configuração das posições de disputa no campo, com repercussões na formação de po-der simbólico inclusive. Para citar um exemplo, podemos ex-por a relação da associação com o instituto empresarial que patrocinava um projeto de capacitação em costura na Bom Jesus. A iniciativa empresarial condicionava a destinação do recurso à realização de trabalho administrativo e de articu-lação comunitária das costureiras, sem, contudo, receberem pelo serviço prestado (quando um profissional formado, em posição distinta no campo, poderia cobrar para fazê-lo).

No entanto, as trabalhadoras se esforçam para cumprir o acordo previsto para recebimento da suposta “benesse”, que, talvez, poderia qualificar seu trabalho e melhorar suas con-dições de vida e, então, “compensar” o que não têm recebido

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mesmo sendo seu direito. No final das contas, aqueles com mais poder numa relação já bastante assimétrica podiam am-pliar seu poder simbólico sem investimento vultoso de capi-tal econômico.

Condição assemelhada podemos visualizar nos espaços organizacionais do movimento. A distinção das trajetórias dos gestores de agências de fomento, as trabalhadoras de pequenos empreendimentos dificilmente logram trânsito em arenas formais, onde teriam acesso não só a mais recursos fi-nanceiros, mas possibilidades de participação na enunciação das características do movimento social.

Não estou me referindo à obstacularização a tais acessos pelos agentes de fomento. Penso que as dinâmicas participa-tivas implementadas, para além de indiciar opções políticas e culturais destes, criam momentos de deliberação coletiva e para tomada de posição por trabalhadoras e trabalhadores. Mas, ainda assim, creio necessário considerar que a ação está organizada desde os capitais culturais de que dispõem os su-jeitos e, desta maneira, instaura relações de poder e assime-trias no cerne da participação.

Falo, em suma, do domínio de códigos e saberes para am-pliar formulações próprias sobre as realidades construídas no movimento. Após minhas incursões entre as atividades da associação e em outros espaços da Ecosol, fica ainda a per-gunta pelas articulações necessárias ao diálogo com as traba-lhadoras de pequenos empreendimentos, para que possam enunciar cotidianos visibilizando suas narrativas sobre as relações que desejam viver.

4.2 Propósitos e resistências

Outra característica a mencionar concerne às motivações normalmente expressas para criação e manutenção de gru-pos de geração de renda, que, geralmente, são relacionadas

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à necessidade e/ou ao desejo de ganhos pecuniários, muitas vezes em detrimento de posicionamentos ideológicos mais alinhados ao proferido por agentes de fomento.

Nesse contexto, observamos as diversas parcerias imple-mentadas pela associação, por exemplo, configuradas como se aquelas trabalhadoras procurassem estrategicamente oti-mizar recursos para sua iniciativa, fazendo-o, porém, sem to-mar necessariamente as diferenças políticas gestadas no es-petro da militância intelectualizada que enuncia a economia solidária. Assim, embora não houvesse recursos financeiros à disposição em volume considerável, ou habilidade no trato de códigos formais para se concorrer a recursos por edital, havia uma unidade de propósito entre as mulheres na sus-tentabilidade de seu grupo e do que ele pode proporcionar a elas e à comunidade próxima.

Se nos voltamos às assembleias do FMESPA, temos outra circunstância a ponderar. O Fórum constitui-se como lugar de participação, mas dá margem também à leitura das dinâmi-cas coletivas de controle e resistência. De um lado, vincula-se presença em assembleia e participação em feiras; de outro, as trabalhadoras criam táticas para ampliar as chances de comercialização mediante transgressão das regras e divisão dos gastos desde suas redes de solidariedade. Certa feita, Lé-lia me contou que costumava, já há algum tempo, vender os produtos artesanais que produz individualmente nas feiras de economia popular solidária. Faria acordo com colegas que teriam estande no evento e, então, dividiriam o espaço e os custos do aluguel do mesmo. O exemplo citado indicia uma tática eventual: os grupos têm criado formas de dividir custos e ampliar possibilidades, mas ao fazê-lo não deixam de burlar as regras e o controle do Fórum, nem sempre participando das assembleias e dispondo trabalhos individuais ou de gru-pos que não possuem presença regular em tais reuniões.

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Contudo, nem sempre a transgressão se deve ao imperati-vo da necessidade financeira. As integrantes da associação em análise não creditavam sua permanência aos ganhos financei-ros. Aliás, dados os resultados recorrentemente insuficientes na comercialização, já teriam evadido da iniciativa. Suas per-tenças são diversas e as motivações extrapolam a dimensão econômica. Tampouco Lélia necessitava do recurso da venda de seus produtos; sua participação ganhava lugar pela inte-gração e sociabilidade. Eis que, se há rompimento do acordo com as lideranças, há também demonstração de resistência à racionalidade que predomina nos espaços deliberativos do movimento e tensão por outras formas de organização e pre-sença76. Eis que a “solidariedade” é tensionada e se diversifica.

4.3 Gênero, sociabilidade e política

Voltando à associação e sua relação com o entorno, no bairro Bom Jesus, as bases de reciprocidade e solidariedade comunitárias podem ser evocadas aqui, de modo a situarmos as condições materiais e culturais e a valorização de ganhos pecuniários junto a outros aspectos identitários.

Para o cenário que venho abordando, parto da hipótese de que o fazer dessas mulheres sinaliza para estratégias ali-cerçadas na cotidianidade, trazendo ao espaço público (espe-cialmente nas ruas da periferia) certa dimensão de “cuidado” socialmente legitimada, estabelecendo lugares políticos e trânsitos possíveis (que nem sempre os homens conquistam).

A afirmativa concernente ao “cuidado” remete, pois, à prática de “interessar-se por”, “trabalhar para”, “assistir”, a

76. Não se trata aqui de afirmar concordância em relação às tomadas de posição de trabalhadoras de pequenos empreendimentos. Procuro apenas argumentar pelas disputas e divergências internas ao movimento, como constituintes e tensionadores deste. Penso que a visibilização e problematização da diversidade em campo é con-dição para uma democratização em diálogo

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indiciar uma disposição culturalmente constituída para o fe-minino, exercida em determinados ramos profissionais e que, aqui, percebo materializada na atuação das trabalhadoras com quem dialoguei, na interface entre espaços privados e públicos da comunidade onde residem. Algo cuja capilaridade e exten-são é difícil delimitar, dada a sutileza de suas formas muitas vezes, expressas no olhar, na atenção pontual e sensível, e que se fazia explícita no caso em análise, em função da forma de atuação política de minhas companheiras de diálogo77.

As práticas relativas ao cuidado que engendram no co-tidiano de sua localidade articulam, ademais, laços de reci-procidade que poderíamos relacionar à “teoria do dom”, na forma como a propõe Mauss (2003) e a analisa Bourdieu (1996). Creio, pois, que poderíamos apreciar as atividades desenvolvidas ao longo da trajetória da associação como ações articuladas a uma rede de acordos e expectativas mú-tuas, tacitamente organizadas para o exercício do dom e do contradom. Uma rede para qual nem todos estão socialmente aptos ou inscritos a participar, de maneira que o fato de inte-grar a comunidade relacional parece ser uma das condições de viabilização, por criar condições materiais e culturais his-tóricas que a potencializem.

Não significa, pois, acolhida incondicional de sujeitos e parcerias. Trata-se mais de uma disposição identitária e de

77. A hipótese que avento aqui merecerá aprofundamento nas futuras incursões em campo, mas devo ressaltar que percebia a disposição ao “cuidado” quando, em seu histórico, aquele coletivo conformava sua atuação comunitária rumo a iniciativas as-sistenciais, educativas e/ou para acolhida de demandas eventuais de vizinhos, mes-mo depois de passar à geração de renda de maneira mais incisiva, sob orientação de agentes de fomento. E, no tecer desta inferência, poderia referir também exemplos outros, não vinculados ao empreendimento em análise, percebidos no bairro Bom Jesus ou fora dele: redes de reciprocidade entre mulheres no cuidado dos filhos para que algumas pudessem trabalhar fora; lideranças femininas notabilizadas, entre outras coisas, por realizarem partos na comunidade; eventuais gestos de apoio a vizinhas em adoecimento.

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uma tomada de posição produzida no campo, configuradas em um espaço de possíveis vinculado às condições materiais e culturais de mulheres trabalhadoras em bairros de peri-feria. A saída de Lélia do grupo depois de passado um ano de minha presença junto a suas atividades exemplifica o que tento explicar. Esta integrante diferia das demais no que tan-ge aos acessos culturais e ao pertencimento ao bairro, de for-ma que sua participação nas iniciativas do grupo fragilizou-se gradativamente, seja porque as diferenças socioculturais fo-ram incisivas no distanciamento, seja porque ela não exercia na mesma medida aquele modus operandi, tendo verbalizado várias vezes seu descontentamento.

Nesse sentido ainda, poderia lembrar o que afirma Fon-seca (2005) a respeito dos laços de reciprocidade na com-posição das dinâmicas familiares em bairros de periferia, também tributários da prática do dom. Neste sentido, lembro do compromisso de Nani na assistência a parentes idosos em sua casa, lugar onde vive com a mãe, o tio e os filhos. Recordo a participação de familiares (filhos e esposos) das trabalha-doras ao longo da história da associação. Elementos que nos indicam laços que constituem o cotidiano e ambientam a pro-dução de sentidos para a prática na associação.

Todavia, tratando-se de uma prática de trabalho, cons-truída, portanto, na interlocução com atividades do campo econômico, creio necessário considerarmos tais disposições à reciprocidade como peculiaridades sujeitas às tensões tra-zidas pela vinculação do empreendimento a atividades eco-nômicas comuns ao mercado e à racionalidade e às formas contratuais que este engendra.

Com isso, quero dizer que iniciativas de economia soli-dária, como a associação em tela aqui, podem ambientar, de um lado, ações cuja contraparte não está explicitamente de-finida e temporalmente delimitada e, de outro, disputando predominância, acordos planificados de produção e coope-

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ração cujos papéis e contribuições são deliberadamente vi-sibilizados. Historicamente, as atividades da associação vêm se organizando na direção da formalização de parcerias e de medidas de profissionalização da gestão, de forma que inicia-tivas vinculadas à doação e assistência circunstancial ou fes-tividades comunitárias tornam-se gradativamente mais ra-ras. Em algumas ocasiões, porém, irrompem a rotina apoios informais a outros grupos de geração de renda ou a ajuda a vizinhos e familiares com recursos daquele coletivo78.

Dessa forma, a composição das atividades de trabalho e a vinculação à Ecosol em comunidades de periferia configu-ram-se desde uma rede complexa. A prática das trabalhado-ras com quem dialoguei indiciam que suas tomadas de posi-ção no campo carregam uma dimensão de gênero fortemente estruturante79, articulado, ainda, às redes de reciprocidade da comunidade onde residem já há anos. Agrega-se, ademais, a vinculação, mais ou menos tensionante, às atividades promo-vidas pelos agentes de fomento à Ecosol e a interação com as práticas produtivas e comerciais do mercado convencional80.

78. Observava as tensões que procuro apresentar nos posicionamentos das traba-lhadoras do grupo. Na presença temporária de Lélia e, principalmente, na liderança de Amina, em sua busca por capacitação e por parcerias formais e a tentativa de garantir visibilidade aos produtos da associação era expressiva. Antes de sua che-gada, Alzira e sua filha conduziam as ações, diversificando-as em iniciativas de arre-cadação e doação de alimentos, festividades para crianças da comunidade e cursos para mulheres da vizinhança. Geração de renda e assistência permanecem, mas o equilíbrio entre elas vem mudando.79. Devo fazer uma ressalva importante. O modus operandi relacionado à condição de gênero analisado aqui precisa ser ponderado em associação ao fator etário. As traba-lhadoras de empreendimentos econômicos solidários de pequeno porte, na maioria dos casos, possuem mais de 40 anos. Dessa maneira, não poderíamos afirmar a sub-jetivação para o “cuidado” ou a adesão a laços de reciprocidade para mulheres jovens residentes em bairros de periferia. Isto demandaria estudo específico e, quem sabe, denotasse tomadas de posição diferenciadas, a indiciar mudanças nas práticas.80. Aqui, devo fazer um adendo. Embora perceba explícitas contraposições entre as iniciativas de economia solidária e as práticas produtivas capitalistas no plano

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A permanência desses elementos e o arranjo entre eles na composição das tomadas de posição das trabalhadoras de-penderão, contudo, do lugar ocupado por cada um no “espaço dos possíveis” concretizado no cotidiano dessas mulheres. Os resultados na geração de renda e os efeitos sobre a subsis-tência jogam papel importante, mas a articulação a redes de sociabilidade, incluindo, neste caso, os laços de solidariedade e reciprocidade e a condição de gênero, não podem ser des-considerados81. Os pertencimentos disputam sentidos e con-figuram jeitos de fazer.

5. Para seguir em problematizações...

Observo que o movimento social em análise é enunciado desde a atuação de militantes de diferentes matrizes políticas (sindicalistas, representantes da igreja de base, acadêmicos, políticos de carreira, etc.) na definição de uma proposta con-tra-hegemônica ao sistema capitalista. No entanto, o campo de ação possui composição bastante diversa no que tange aos pertencimentos possíveis, especialmente se adentramos o con-texto de ação das mulheres trabalhadoras, onde predominam redes de solidariedade comunitárias e familiares construídas em bairros de periferia; e cujas tomadas de posição na Ecosol

ético-político, considero que há certa congruência entre estas no plano cultural, e especificamente na composição de alguns axiomas pelos agentes de fomento, quan-do definem interações e contratos tomando o ‘trabalho’ como matriz de organização social e assumem premissas de planificação para ações, papéis e parcerias. Mesmo que postulem ideários distintos, Ecosol e mercado capitalista parecem promover tensões assemelhadas sobre redes e acordos de reciprocidade ainda existentes em comunidades de periferia.81. É importante considerar que as redes de sociabilidade constituem espaços de pertencimento e de autoafirmação, engendrando a segurança de estar entre pares, colegas, parceiros de trajetória. Em contexto onde o acesso a recursos sociais, e em especial aos serviços oferecidos por aparatos públicos, é precarizado, tais redes in-terferem também nas condições materiais de subsistência.

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ora apresentam ênfase na busca de ganhos financeiros, ora se alicerçam em laços de sociabilidade e disposições de gênero, conformando uma prática política distinta no cotidiano.

É perceptível o configurar de antagonismo na forma-ção desse movimento social, na forma indicada por Melucci (2001), quando participantes da economia solidária trazem à esfera do conflito as incompatibilidades e contradições en-tre sujeitos e sistema na produção e apropriação de recursos sociais, interpondo objetivos “não negociáveis”. Contudo, tal condição se faz mais visível quando tomamos a discursivida-de de agentes de fomento à Ecosol, que, embora não compo-nham um quadro político homogêneo, são explícitos em seus propósitos de mudanças estruturais.

Observando as práticas das trabalhadoras, o antagonismo parece não se estabelecer de maneira clara. Se assumimos como posição a perspectiva de militantes intelectualizados, poderíamos aventar a hipótese de as integrantes de empreen-dimentos estariam nas “franjas” do movimento social, como assistidas de mais uma das frentes de ação de organizações não governamentais e órgãos estatais, que, por seu turno, são os que mais detém poder de enunciação das características da Ecosol. Porém, se miramos desde a ação das trabalhadoras, talvez possamos contemplar antagonismos diferentes e difu-sos, implicados em pertencimentos e interesses diversos/di-vergentes, a dizer-nos que o “nós” não é assim tão coeso e que outras tomadas de posição disputam espaço82, valorizando a cotidianidade e o “cuidado” no espaço público.

82. Exemplo das diferenciações na forma de articulação política, a sinalizar para as táticas em campo, foi-me dado em conversa com Amina e Nani, quando me contavam sobre candidato a vereador que as procurava em período eleitoral. Por convite dele, foram ao comitê eleitoral e lá acordaram apoio. Não afirmavam identificação com o programa partidário e tampouco alimentavam expectativas elevadas sobre as reper-cussões do apoio. Preferiam articular as possibilidades que se lhe apresentavam, ten-

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Uma condição que se estrutura como corpo subjetivado para práticas de trabalho menos valorizadas e precarizadas e, ademais, para a disponibilidade à assistência ao Outro, pode ser observada também como ambiência de estratégias protagonizadas por mulheres. Integrando as situações de trabalhadoras, chefes de família e articuladoras de projetos e parcerias nas localidades onde residem, elas instauram um jeito peculiar na condução de atividades sociais e políticas. Assim, associam espaços domésticos e espaços públicos (da vizinhança principalmente) na efetivação de projetos coleti-vos. Dessa forma, criam um espaço de atuação e reconheci-mento comunitário, no qual homens tendem a participar de maneira eventual e delimitada.

Creio que há muito a visibilizar a respeito das táticas e estratégias destas mulheres, que, podemos afirmar, têm con-tribuído à manutenção cotidiana da vida em comunidades empobrecidas. Há muito, pois, que se fazer conhecer sobre as potencialidades e limites da política que elas produzem em seus dias. Numa apropriação bastante livre das palavras de Saramago, penso que vale a pena nos lançarmos a uma escuta sensível e seguirmos nos questionando...

...muito falavam aquelas mulheres. Que tinham elas a di-zer todo o santo dia, que não estivesse já dito mil vezes?José Saramago (Claraboia, 2011)

tando garantir o que precisavam. Amina resumiu a disposição com versos de música: “nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar”.

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CAPÍTuLo 6Para divergir e enunciar, as identidades no hip hop

As problematizações que trago neste capítulo também nos remetem aos diálogos construídos no bairro Bom Jesus. No período em que pesquisava sobre as atividades de econo-mia solidária, também acompanhava iniciativas de jovens no Hip Hop, de forma a conhecer diferentes pertencimentos e, no caso em tela, elaborar análises sobre um movimento so-cial com gênese em situações de periferia.

Nesse caso, as interlocuções que estabelecemos conduzi-ram-me a dinâmicas com forte componente narrativo e re-flexivo. O ambiente de periferia que conhecia se ampliou no encontro com as singularidades do movimento Hip Hop e, para além do que é popularizado pelo mercado musical, fui instigado a compreender as diferentes frentes de ação que procuravam consolidar, como espaço de militância, produção de sentidos e, também, como ambiência que potencializava a feitura dos dias, mas conforme seus desejos.

Frentes essas que me levaram, ademais, a leituras mais detidas sobre as práticas juvenis contemporâneas e as ruptu-ras a elas associadas, quando pensamos nas formas de fazer política que constroem e na maneira como se apropriam do espaço urbano. Os ativistas com quem dialoguei ocupavam--se de criar possibilidades de fruição artística e faziam destas sua arena de disputa.

Faço minha narrativa das identidades desses ativistas, destacando algumas de suas iniciativas na manutenção de suas práticas e na mobilização de novos integrantes. Estas são consideradas discutindo a configuração de um movimen-to social contemporâneo, que reúne traços de sua construção em espaços socialmente vulnerabilizados e, também, pecu-

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liaridades de iniciativas constituídas em uma sociedade orga-nizada desde intensa circulação de informações.

A análise que apresentarei na sequência resulta, então, de pesquisa realizada entre maio de 2011 e dezembro de 2013, quando dialoguei com diferentes sujeitos, incluindo três gru-pos etários da cena Hip Hop de Porto Alegre. Assim, mesmo tendo a imersão etnográfica no bairro Bom Jesus como base de informações, as inferências deste texto são resultado de interlocuções com ativistas de diferentes partes da cidade e com distintas posições no campo.

1. Sobre os referentes do percurso

Melucci (2001; 2004) será a inspiração mais uma vez, de forma que procurarei retomar argumentos já abordados no capítulo anterior. Neste caso, porém, posso afirmar que as contribuições do autor encontram lugar ainda mais efetivo no apoio à compreensão de minhas interlocuções. Com isso, que-ro dizer que a produção de “identidade como a capacidade re-flexiva de produzir consciência da ação (isto é, representação simbólica da mesma) além dos seus conteúdos específicos” (Melucci, 2001, p. 89), na forma de identização, é bastante manifesta na organização nas práticas no Hip Hop. Conforme procurarei apresentar ao longo do capítulo, as táticas produ-zidas no âmbito do movimento são perpassadas por reflexivi-dade e tomam a identidade como pauta de mobilização.

Mantém-se, ademais, o intento de analisar o movimento social desde os tensionamentos de sua unidade. Vale lembrar que as análises de Melucci (2001) procuram associar a orga-nização teleológica que um movimento social pode comportar com a produção de suas relações cotidianas, de modo a orien-tar nossa compreensão à diversidade e às divergências que tensionam a ação coletiva, constituindo-a ao mesmo tempo.

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Esse autor, quando se dedica à compreensão de movimen-tos sociais contemporâneos, interpreta a unidade identitária construída por eles também como algo processual e variável. As mudanças nas identidades resultam das tensões e negocia-ções internas ao movimento e a relação deste com o ambiente onde atua. Neste sentido, o autor argumenta que a unidade existe apenas para o observador “estrangeiro”, e se este tomar a ação coletiva pelo enunciado de suas causas somente.

As fronteiras do que delimita a identidade coletiva seria resultado de uma rede latente de relações entre diferentes sujeitos, que os coloca em condição potencial de partilha de pautas de mobilização. Assim, o que é visibilizado como ma-nifestação se constitui desde um conjunto de práticas, intera-ções e negociações efetivado por uma pluralidade de atores em um campo de ação, que é o espaço de possibilidades e limites onde operam e em relação ao qual postulam causas e demandas comuns (Melucci, 1989).

Como no capítulo precedente, procuro identificar as pro-posições gerais do movimento social, conforme me foram apresentadas por meus interlocutores. A partir daí, observo suas relações no movimento, na pluralidade de vinculações que caracteriza a formação dos integrantes. A noção de espa-ço de ação foi útil mais uma vez para esboçar uma arena de práticas e disputas, desde a qual, além disso, os ativistas se posicionavam na luta por recursos do sistema de produção social a que se dirigiam, instaurando conflitos na busca de le-gitimidade para suas produções artísticas e seus enunciados.

Iniciei a pesquisa em maio de 2011, realizando entrevis-tas exploratórias com MCs e grafiteiros com o objetivo de conhecer frentes de ação, parcerias e trajetórias de atuação no movimento, além de prospectar outros agentes mobiliza-dores de expressão na cidade de Porto Alegre. Os primeiros contatos com ativistas do Hip Hop me foram oportunizados

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em escolas públicas, que contatara por saber que acolhiam educadores sociais da “cultura”83 em seus quadros.

Na sequência, foram enviados questionários ao conjunto de sujeitos mapeados. Foram remetidas consultas por email e, também, aplicadas in loco, quando da impossibilidade de resposta pela internet84. Totalizei respostas de 10 organiza-ções e/ou lideranças individuais em Hip Hop, em diferen-tes regiões de Porto Alegre. As questões visavam registrar elementos da história do movimento na cidade, a forma e a abrangência das frentes de ação e, por fim, indagavam carac-terísticas sociodemográficas dos respondentes.

As informações sobre histórico e forma de ação e, tam-bém, sobre as parcerias estabelecidas em cada caso sinaliza-vam para alianças sociopolíticas e institucionais e para ati-vidades em comum, que delimitavam, então, uma prática e um campo de ação prováveis. As questões sobre condições sociodemográficas estavam orientadas à busca dos acessos econômicos e culturais, para possibilitar que os sujeitos de diálogo fossem situados em relação a recursos socialmente produzidos.

O mapeamento permitiu que identificasse os bairros de atuação mais efetiva do Hip Hop e, então, a seleção de uma localidade para imersão etnográfica. De abril a dezembro de 2012, realizei incursões quinzenais ao bairro Bom Jesus, para acompanhar as atividades de jovens vinculados ao movimen-to no bairro Bom Jesus. Interagia mais diretamente com seis moradores daquela localidade, conhecida pelos elevados ín-

83. Utilizarei a palavra cultura entre aspas quando me referir ao Hip Hop. Com isso quero sinalizar para a apropriação no texto de uma expressão dos sujeitos com quem dialoguei. Tendo consciência da polissemia do termo, e do quanto este é caro às discussões acadêmicas das ciências humanas, prefiro usá-lo com este cuidado.84. A amostragem, aqui, foi definida por conveniência, procurando sujeitos bastante reconhecidos entre as iniciativas de Hip Hop em Porto Alegre, na disputa por políti-cas públicas e na enunciação das relações almejadas.

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dices de vulnerabilidade social e, também, pela destacada expressão da “cultura” Hip Hop na cena porto-alegrense. A partir de extensa permanência junto às atividades de meus interlocutores (ensaios, apresentações, rotinas nas ruas do bairro) e da realização de entrevistas sobre suas trajetórias, construímos momentos para partilharem experiências e re-des de sociabilidade e para narrarem iniciativas, propostas e indignações. No mesmo período, frequentava também as as-sembleias do Fórum Municipal de Hip Hop e eventos promo-vidos por este na cidade, o que me possibilitava reconhecer os sujeitos envolvidos mais diretamente nos agenciamentos políticos no município.

Articulando registros de meu diário de campo e as narra-tivas de meus interlocutores no bairro Bom Jesus, procurei sistematizar características identitárias para os ativistas do Hip Hop, com destaque a elementos como gestualidades, fi-liações, práticas e redes de solidariedade de suas trajetórias. Ponderei, em articulação, a maneira como protagonizavam enunciados sobre suas próprias realidades e afirmavam sua ação sobre ela.

Assim, tomando o conjunto das atividades de pesquisa, dialoguei com três grupos etários da cena Hip Hop de Porto Alegre. O primeiro, atuante desde os anos 1980, foi consulta-da por entrevistas e questionários. O segundo grupo, com in-gresso no movimento nos anos 1990, era maioria entre nossos interlocutores e também aquele com maior número de lide-ranças políticas visibilizadas na cidade. Este foi acessado por intermédio de entrevistas e também durante as observações in loco, nos Fóruns Municipais de Hip Hop e no bairro Bom Jesus. O terceiro segmento (com idades entre 15 e 20 anos) encontramos principalmente em nossas visitas ao bairro.

Da compreensão de um espaço de ação e das dinâmicas de identização operadas a partir daí, procurei realçar a di-mensão política da ação de meus interlocutores, ora elencan-

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do frentes de disputa e tensionamento do Hip Hop como mo-vimento social, ora problematizando tomadas de posição dos ativistas na apropriação de recursos e espaços que a cidade parcamente lhes oportunizava.

2. Reflexões sobre a cena hip hop

Os elementos da “cultura” Hip Hop teriam se formado no contexto dos guetos de maioria populacional negra e caribe-nha em grandes cidades dos Estados Unidos, a partir da segun-da metade dos anos 1960 (Lodi, 2005). Embaladas pela músi-ca negra, especialmente o soul e o funk, as festas de rua teriam ambientado as experimentações de DJs (disc jockeys), a cria-ção do rap (rhythm and poetry) e a atuação dos MCs (master of ceromonies), numa prática que lembra os griots e a tradição negra dos cantos falados, mas integra também tecnologias de reprodução e mixagem musical (Araújo, 2008; Postali, 2010).

No mesmo período, jovens dançavam os primeiros passos de break. Ambientados pelo som disposto pelos DJs, compu-nham gestualidades que reportavam a circunstâncias de ba-talha, numa alusão à Guerra do Vietnã, destino de muitos jo-vens afrodescendentes e latinos do período (Oliveira, 2004). E, de forma coetânea, a pichação viria a compor, numa deriva-ção e ampliação da grafia de códigos de gangues, a produção de painéis com narrativas da realidade dos guetos, iniciando o que é conhecido hoje como grafite (Postali, 2010).

Então, a expressão Hip Hop (“movimentar os quadris e saltar”, conforme teria denominado Afrika Bambaataa), viria a ser usada para designar os eventos que congregavam MCs, bboys, DJs e grafiteiros, tendo como agregador a “cultura de rua”, a contestação às adversidades vivenciadas nos guetos e o tema da não violência (Araújo, 2008; Oliveira, 2004). A esta altura, os ativistas compunham uma forma de transfigu-rar as violências vividas em bairros empobrecidos por meio

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de expressões artísticas que as narravam reflexivamente e, com isso, orientavam a vivência das precariedades para uma arena de disputas simbólicas.

No início dos anos 1980, o rap aportou nas periferias de grandes cidades brasileiras e o break começava a ser prati-cado em bailes e/ou ruas dos principais centros urbanos. A literatura costuma destacar a cidade de São Paulo como aquela na qual o Hip Hop teria se estabelecido primeiro, com destaque para a ocupação de espaços públicos como o Lar-go de São Bento, a Praça Roosevelt e a Galeria 24 de Maio (Azevedo, 2001). Hoje, segundo Buzo (2010), o Hip Hop te-ria expressão em capitais de diferentes estados, em todas as regiões do país, mas o maior contingente de integrantes, e o maior mercado neste sentido, continuaria situado na região metropolitana de São Paulo.

No que tange à representação política mais especifica-mente, registra-se a criação do Movimento Hip Hop Organiza-do (MH2O) por Milton Salles em 1989, na cidade de Fortale-za/CE. Ele era sócio do grupo Racionais MC’s e a organização que criara, segundo destaca Contier (2005), fomentava a pro-dução de raps politizados de protesto e a formação de pos-ses85, sendo que as primeiras ocorrências deste tipo de agru-pamento são geralmente atribuídas ao contexto paulistano (Félix, 2005; Silva, 1998). Na sequência, teremos a criação da Zulu Nation Brasil na segunda metade da década de 1990, fi-liada à organização fundada por Afrika Bambaataa em Nova Yorque, e a Nação Hip Hop Brasil, já nos anos 2000. Obser-vando os sites destas entidades, percebe-se que seguem em atividade e partilham eventos e iniciativas de mobilização86.

85. As posses são associações locais de grupos de jovens rappers que têm como obje-tivo reelaborar a realidade conflitiva das ruas nos termos da cultura e do lazer. Mui-tas vezes, realiza ações sociais nas localidades de origem dos ativistas (Silva, 1998).86. Fica a pergunta pelas diferenças e divergências entre tais associações represen-tativas, que, poderia aventar, motivaram a criação de cada uma delas (ao invés da

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2.1 Aproximações ao hip hop em Porto Alegre...

Segundo os ativistas entrevistados em Porto Alegre, a ex-pressão da “cultura” na cidade teve como ambiência inicial as festas de soul e funk organizadas por grupos de black music desde meados dos anos 1970, como também teria ocorrido em São Paulo (Azevedo, 2001; Buzo, 2010). Estes espaços se-riam importantes lugares de agregação de comunidades de etnia negra de diferentes localidades da cidade e, segundo narravam, instigaram a formação de redes orientadas à troca sobre tendências musicais e à organização de práticas artís-ticas coletivas.

O rap e o break passaram a ser incorporados aos even-tos e, ademais, começaram a ganhar pontos de expressão nas ruas, no centro da cidade. Então, a atuação de rádios comuni-tárias e a prática de composição de coletâneas em fita cassete amparavam tal consumo.

Comecei em 76, dublando James Brown. Era pré essa ques-tão de internet; a vivência era fazer roda de música, trocar informação de discos [...] Conheci ídolos nas festas que a gente fazia. Nas festas que a gente teve contato com o rap. (DJ – Dez. 2011)

As práticas relativas à partilha e à circulação social ope-radas desde a fruição musical afrodescendente eram, além disso, a arena para contato com causas do movimento negro. Aliás, estas eram seguidamente visibilizadas em eventos e encontros vinculados ao Hip Hop que acompanhei. Não raro, meus interlocutores narravam associações àqueles que en-tendiam ser antecedentes de sua prática (Castro Alves, Mal-

simples filiação de ativistas ao que já existia). Nos propósitos deste texto, esta ques-tão não será alvo de análise, dado que tais entidades têm representatividade pouco expressiva na cena portoalegrense.

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colm X, Afrika Bambaataa, entre outros)87. Neste sentido, afirmaria que a militância negra contribuiu também à forma de atuação do movimento Hip Hop, quando este se mostra atento ao registro das memórias, à produção de narrativas identitárias e à valorização de representantes de suas causas.

Contudo, o sistema simbólico construído junto aos elemen-tos do Hip Hop encontrou lugar nas periferias de Porto Alegre, articulando-se a pelo menos outras duas redes constituintes da socialização dos ativistas. Constatei que lideranças no mo-vimento teriam usufruído de laços de reciprocidade e proteção que articulavam familiares e vizinhos nas suas localidades de origem88. Este parece ter sido o ambiente de formação de vín-culos com os bairros e para o engajamento em iniciativas de valorização e organização de comunidades de periferia.

E associada às duas anteriores, meus interlocutores men-cionavam as redes resultantes das relações de sociabilidade, que interagiam recursivamente com as alternativas de lazer disponíveis, estendendo os convívios ao espaço público e à apropriação do território. Assim, convivendo em espaços com parcas alternativas de entretenimento e cujas moradias têm a rua por pátio, a circulação com amigos parece ter sido significativo na partilha de gostos e na introdução ao consu-mo das artes do Hip Hop89.

Em meados da década de 1980, os primeiros grupos atu-antes nos elementos do Hip Hop na cena porto-alegrense

87. Postali (2010) e Rocha (2005) elaboram argumentos congruentes ao que afirmo quanto à vinculação entre “cultura” Hip Hop e elementos étnicos afrodescedentes.88. Refiro-me, por exemplo, à atuação de mulheres em bairros de periferia, quando estas desenvolvem iniciativas de apoio mútuo, como seria exemplo o cuidado de crianças em creches informais para que algumas mães possam trabalhar fora da comunidade.89. Para citar um exemplo. Lembro-me quando JR, um de meus interlocutores, con-tou-me sobre sua iniciação no break. Caminhava pelas vielas do bairro Bom Jesus, onde morava, até que avistou um vizinho dançando com seu pai. Estavam na rua em frente a casa na qual moravam. Aproximou-se e foi convidado a participar.

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já podiam ser reconhecidos. No entanto, percebe-se que os grupos dos ativistas consultados tinham origem concentrada no início dos anos 2000, com integrantes cujo envolvimento com a “cultura” teria começado em meados dos anos 1990, período de expressão crescente do estilo nas comunidades de periferia da cidade. A expressão do Hip Hop em Porto Ale-gre ganhara maior visibilidade nesta época por intermédio, especialmente, da realização de eventos nas comunidades de periferia e pela gravação dos primeiros CDs com coletâneas musicais no final da década.

O Hip Hop, quando eu conheci eu tinha 15 anos, né, eu hoje eu tô com 33. E a força, mesmo, onde tinha bastante Hip Hop naquela época era mais na Restinga. Foi, nesses lu-gares era os pontos que tinha Hip Hop mais forte, daí eu conheci na época. Na época, eu atuei no “Ideia de Rua”. (MC – Jun. 2011)

A partir dos anos 1990, segundo meus interlocutores, também o acesso a tecnologias digitais se intensifica, o que ampliou a gama de mixagens musicais, possibilitou circula-ção de informações em meio virtual e facilitou a produção e comercialização musical por meios alternativos, em redes distintas das controladas por gravadoras. Aqui, percebo con-sonância com o que afirma Herschmann (2000) acerca da expansão do gênero musical na década no Rio de Janeiro e em São Paulo, visibilizando, à época, a produção cultural de periferia e indiciando, ademais, as redes de sociabilidade e criação artística que a singularizam e constituem90.

Além disso, a maioria daqueles que passaram a interagir com o Hip Hop naquela década (em muitos casos, represen-

90. Exemplo bastante reconhecido e que, de certa forma, visibilizou a dinâmica so-cial que se constituía à época foi o sucesso obtido pelo grupo Racionais MC’s no final dos anos 1990.

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tantes políticos do movimento em Porto Alegre) teria viven-ciado o período de estímulo à participação e organização comunitária instaurada junto à gestão pública municipal da Frente Popular (liderada pelo Partido dos Trabalhadores). A política cultural desta atendeu a demandas por valorização do que era produzido em bairros de periferia, por intermédio de apoio na organização de eventos, contratação de músicos, gravação de CDs, etc.

Atualmente, a expressão do Hip Hop em Porto Alegre apresenta certa concentração, com maior número de par-ticipantes nos bairros Restinga, Bom Jesus, Cohab Rubem Berta e Vila Cruzeiro. Segundo nossos interlocutores, estes seriam historicamente as comunidades de mais intensa or-ganização no movimento, sendo a primeira a que se atribui o início das atividades na “cultura”91. De forma geral, tais regiões constituem-se historicamente desde ocupações e loteamentos irregulares, sendo locais com populações em elevada vulnerabilidade social e com os mais altos índices de violência no município92.

A maioria dos ativistas com quem dialoguei nasceu na se-gunda metade da década de 1970, tinha entre 30 e 35 anos de idade, tendo vivenciado relações bastante fragmentadas de escolarização e trabalho formal, a exemplo do que viven-

91. O bairro Restinga, localizado no extremo sul do município de Porto Alegre, foi criado por intervenção do poder público nos anos 1960. Resultou da remoção de fa-mílias das chamadas “vilas de malocas”, comunidades cujas habitações eram precá-rias e possuíam maioria de população negra. A localização de tais moradias era pró-xima ao centro da cidade, em área cobiçada pelo mercado imobiliário (Nunes, 1990). 92. Se articularmos ao corte socioeconômico a condição étnica, podemos evidenciar uma situação ainda mais vulnerabilizada. Historicamente, a população negra da cida-de se concentra em bairros periféricos, com maiores índices de violência e pobreza, tendo sido alvo, ainda, de políticas de remoção habitacional (Sommer, 2011). Em Porto Alegre, dados relativos a desemprego apresentam índices mais expressivos entre não brancos e o número de homicídios entre jovens negros é substancialmente expressivo (em 2010, 58% das mortes entre jovens negros do sexo masculino foi por homicídio).

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ciaram seus familiares. Em geral, eram homens, sendo que mulheres eram mais facilmente encontradas na plateia, as-sistindo às performances masculinas. Encontrava algumas jovens nos grupos, como bgirls, MCs, grafiteiras ou mesmo em fóruns políticos do movimento Hip Hop, porém eram mi-noria e seu posicionamento demarcava justamente o desejo e a necessidade de ampliar a participação feminina93.

Observei que os ativistas do Hip Hop instauravam inicia-tivas articuladas à expressão artística, à prática educativa--assistencial e/ou à atuação política institucional: em geral, práticas que associavam arte e mobilização político-cultural em prol de suas atividades e localidades94.

Caracterizavam-se pela informalidade em suas organiza-ções coletivas e na conformação de suas redes de contatos. En-tretanto, no que tange às parcerias e aos espaços instituciona-lizados que conformavam o campo de circulação dos ativistas, recorrentemente eram citados representações do movimento negro, órgãos públicos municipais (incluindo aí algumas es-colas), partidos políticos de diferentes orientações, entidades de fomento à economia solidária e organizações representa-

93. Há referências do que afirmo em outras realidades citadinas. Buzo (2010) tam-bém traz depoimentos acerca da participação proporcionalmente pequena de mu-lheres na cena Hip Hop nacional. Já Rosa (2006) analisa letras de rap e argumenta sobre a posição ocupada pelas mulheres nas composições, situadas como coadju-vantes de um cotidiano protagonizado por homens.94. As principais frentes de ação elencadas foram as seguintes: atividades artísti-cas em pelo menos um dos quatros elementos do Hip Hop (shows, gravação de CD, organização de festas, etc.); realização de oficinas de aprendizagem em dança, arte visual ou música; projetos educativos e sócioassistenciais em bairros vulnerabiliza-dos (não só com elementos do Hip Hop – fotografia, teatro, áudio visual, artesanato); mobilização e representação política em nome da cultura e/ou movimento (vincula-ções partidárias, integração de entidades representativas, participação em fóruns); participação em eventos e concursos na área; iniciativas de geração de trabalho e renda associadas à economia solidária; e elaboração/produção de mídias alternati-vas (rádio comunitária, fanzines, etc.).

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tivas do próprio movimento Hip Hop. Foram referidos tam-bém como espaços de participação o Fórum Social Mundial, o Orçamento Participativo e as festas que produzem, sendo estas também locais de trocas informais e de proposição de iniciativas (e não só de fruição musical-artística).

As frentes de ação dos ativistas em Hip Hop compunham um campo singularizado pela disputa cultural e simbólica re-lativa à delimitação de “o que” e “como” se constitui a “cultu-ra” Hip Hop, dispondo para agentes de outras esferas (con-sumidores, moradores de periferia, escolas públicas, arenas político-partidárias, outros movimentos sociais) certa unida-de na busca por reconhecimento de saberes e demandas pro-duzidos na periferia: o reconhecimento de sua produção cul-tural seria a pauta a perpassar diferentes formas de atuação.

3. As identidades e as tomadas de posição

Agora, a partir das aproximações resumidas acima, pro-curo elencar alguns aspectos que entendo abrangentes na produção identitária do Hip Hop em Porto Alegre, de modo a ter aqui uma síntese (sempre limitada e provisória) desde a qual possa seguir nas análises do espaço de ação, das dinâmi-cas de identização e reflexividade e das tomadas de posição de meus interlocutores.

3.1 Entre práticas e identidades...

Começarei meus argumentos pelo que considero o aspec-to mais reconhecido das atividades na “cultura” Hip Hop: a prática de “divergir”, no sentido problematizado por Dayrell (2002) em relação à produção do rap entre jovens de bairros de periferia em Belo Horizonte. Ao final de seu artigo, o au-tor elucida este argumento afirmando que “a diversão surge como ato ou direito de divergir: mudança de direção, desvio

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(do latim diversione)”. E diz ainda que este seria “o sentido do rap [...] que estimula o jovem a refletir sobre si mesmo, sobre seu lugar social, contribuindo para a ressignificação das iden-tidades como pobre e negro” (p. 133).

Essa característica, segundo entendo, interage com ou-tros elementos identitários que gostaria de discutir. Come-çarei pela (re)produção do linguajar. Expressa em músicas e nas conversações entre os integrantes do movimento, esta evidencia, de um lado, palavras, gírias e jargões comuns à co-municação nas “quebradas”; de outro, estiliza-os e os dispõe em um conjunto argumentativo, reafirmando-os.

...ja to até vendo bagulho só quem é + a rapa que curti soma pra hip hop taí!!!!!

...E aí rap unida no faceebroklys to só de passada pois es-tamos em obra no cenário rap ja com alguns som gravado loko pra soltar no mundo, so não pede pra min bota agora na rede pode cai hehe e nóis. (Exemplos de publicações de MC no Facebook – Mar. 2013)

Tal linguajar pode nos lembrar os argumentos de Bour-dieu (1996) a respeito da “linguagem popular” e os efeitos de diferenciação impetrados desde a linguagem legitimada. Meus diálogos sinalizavam para a estigmatização dos mora-dores de comunidades socialmente vulnerabilizadas, e sua forma de falar era uma das bases relacionais de segmentação. Porém, o movimento Hip Hop apropria o linguajar de peri-feria para promovê-lo como elemento não só de integração, mas de distinção, de forma que o palavreado e a eloquência nem sempre são compreensíveis aos que não compartilham o cotidiano na periferia.

Análise similar poderíamos fazer em relação às vesti-mentas e a gestualidade de meus interlocutores. Não raro, observava que as roupas dos ativistas se assemelhavam as

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de outros moradores dos bairros por onde transitávamos. No entanto, tendiam a conformar o estilo dando-lhe desta-que visual numa performance. Assim, refiro à tática de alguns de converter a imagem socialmente desprestigiada (do ban-dido, do vileiro, etc.) em marca distintiva ao incorporar al-guns trejeitos como, por exemplo, manter feições sisudas ou usar capuz para esconder o rosto enquanto circulavam pelas ruas. Geralmente, tal corporeidade se distinguia como que expressando certa musicalidade no jeito de interagir: cami-seta grande, bermuda e tênis em um corpo que embalava o caminhar em passos suavemente marcados, em um giro de corpo, no inclinar de braços cruzados, em uma parada de pés unidos quando do marcar posicionamento.

No palco, esse corpo que se movimentava musicalmente incorporava signos a representar gestos relativos à violên-cia e/ou belicosidade, reconstruindo-os como elementos de mensagens concernentes ao cotidiano e à sociabilidade de DJs, bboys, MCs e grafiteiros com quem dialoguei. Simboli-zar uma arma com a mão enquanto cantavam, fazer sinal de paz quando posavam para uma foto ou imitar golpes de luta enquanto dançavam era parte de uma narrativa não linear, e várias vezes metafórica, das vivências citadinas.

Merecem destaque, também, os usos que faziam do es-paço público urbano para atividades de arte e/ou fruição, ponto já assinalado por Sposito (2000). Assim, muitas vezes saindo da periferia, ocupavam locais de acesso facilitado por transporte coletivo e, a despeito dos medos que associamos à permanência na rua, transformavam aqueles pontos em lu-gar para “batalhas” de MCs ou “rachas” entre bboys. Confor-me observei, não precisavam de grande público, mas sim de um grupo de interesse comum que respondesse à proposta socializada em rede, participando das performances.

Ao passo que as gestualidades compunham as apresen-tações com plateia, certa espetacularidade transgredia os

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limites do “palco” muitas vezes, e os trejeitos peculiares ga-nhavam lugar em nossos diálogos mais informais, em corpos inquietos que comunicavam (não só pela fala) suas perten-ças. Se podemos afirmar com Herschmann (2005) que a “es-petacularização” se constitui em tática para disputa numa sociedade fortemente perpassada pelo espetáculo, creio que visualizava nas interlocuções com ativistas e na circulação com eles pelas ruas a expressão desta em jeitos de se postar e gestualizar que, na forma de uma disposição latente, era evo-cada como modo de comunicação e mobilização. Por exem-plo, na empolgação de uma explicação ou na necessidade de chamar a atenção de educandos, MCs educadores sociais “vertiam espetacularidade” em movimentos e, muitas vezes, sua narrativa diversificada resultava sensibilizadora.

Junto às idiossincrasias comentadas acima, posso real-çar, por fim, o componente discursivo em prol da resistên-cia (individual e/ou coletiva) às adversidades, que observava em mensagens que narravam histórias pessoais de logro e superação, a despeito das dificuldades da vida em situação de pobreza. Neste sentido, parecia conformar-se um código moral, com destaque à valorização de não violência, respeito à comunidade de origem, militância aguerrida e/ou suposta firmeza de caráter, dentre outros. Tomemos um exemplo:

Fulano tomou um pega porque roubou o varal da vizinha. Fulano roubou o varal da vizinha, por isso, mano velho, eu te falo a fita. Chinelão tinha que tomar um pau, quem mexeu MT. Roubou a tia que se acordava cedo pra trazer comida para família, se liga na fita. Os moleque tão crescendo, vai vendo...(Trecho de letra de rap cantado em entrevista com ra-pper – Maio 2011)

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O código moral que se fazia presente nas narrativas pro-duzidas pelos ativistas do Hip Hop lembra as imagens de cri-me, justiça e trabalho retratadas já por Zaluar (1994), quan-do esta narrava posicionamentos de moradores de favelas do Rio de Janeiro na delimitação do que entendem ser práticas condenáveis (como os casos de estupro, de roubos na própria comunidade, etc.) e, em sintonia, do que consideravam des-tacável, ao valorar positivamente o esforço e o trabalho. Isso sinalizava, uma vez mais, para as relações que constituíam as elaborações de ativistas do movimento e, em articulação, denotava o exercício narrativo e reflexivo que ancorava as práticas no Hip Hop.

...depois, indo pro Pronto Socorro e tal, até a chegada ao Pronto Socorro, sendo questionado pela Brigada e pelos cara da SAMU: “Ah, esse daí se drogou, bebeu demais e tal...”. Chegando lá, “pum”, cara, tinha dado uma falha num, numa veia do crânio do cara e, “pum”, tinha estou-rado ali e o cara praticamente tava morrendo, né, meu....graças a Deus, daí, “pum”, se recuperou e tal, daí eu: “Tá, meu, agora o nome do grupo vai ser Sequela, por causa que tu é sequelado”. (MC – Out. 2011)

Não raro, as performances operavam a conversão do es-tigma em emblema, quando os participantes do movimento faziam de marcas sociais supostamente desfavoráveis símbo-los de sua trajetória e a assinatura de um posicionamento, como nos assinala Reguillo (2012), acerca das culturas juve-nis. A potência reflexiva do “divergir” analisado por Dayrell (2002) tomava expressão em diferentes elementos, em prá-tica que fazia das identidades sua pauta, de maneira que as atividades e as narrativas que as conformavam não deixavam de enunciar signos para uma reflexividade bastante aderente aos que compartilhavam dos dilemas, convocando-os a toma-das de posição na cotidianidade.

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3.2 ...Tomadas de posição e tensões

Conforme observei, as práticas no Hip Hop instigavam os sujeitos a tomadas de posição por meio de diferentes formas de mobilização e disputa, indo da fruição musical e a materia-lização de uma política no cotidiano à militância institucional. Dentre aquelas que logrei acompanhar em minhas incursões, inicio pela relação com o tempo e o espaço nas localidades de periferia, principal locus de ação do movimento.

1. O Hip Hop disputava a mobilização de jovens em con-textos onde aparatos estatais eram pouco efetivos na assis-tência à população e onde a relação com atividades ilícitas e de risco (tráfico de drogas, furtos, prostituição, etc.) podia ser iminente. A música, a sociabilidade e a espetacularidade da “cultura” jogavam papel importante no apelo às juventudes e na busca por participar na organização do tempo destas.

O consumo da música e o acesso às rodas de dança eram, geralmente, os primeiros passos na integração de jovens à produção artística no Hip Hop e, potencialmente, à militân-cia do movimento. Neste cenário, considero a hipótese de que, para além do conteúdo das letras, o ritmo musical pro-porcionava certa cadência para se fruir a temporalidade. Em circunstâncias de acesso debilitado aos tempos institucionais (na escola e no emprego), a sociabilidade sob a “batida” do rap guardaria apelo identitário significativo aos jovens mora-dores da periferia, dispondo não só momentos reflexivos, mas uma ambiência vivencial e um artifício para “ancorar a pulsa-ção do tempo”, conforme tem nos inspirado Melucci (2004).

O rap é um som que ele dialoga muito com a gurizada de periferia, assim, tá ligado? É um som bem entendido por eles. É diferente se tu chegar num, se tu chegar numa fave-la, numa Restinga assim, com rock, as pinta não entende. (MC – Maio 2011)

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Ainda sobre este tema, poderia associar ao apelo artísti-co-musical e às narrativas aderentes ao cotidiano de bairros de periferia, as iniciativas de ativistas do movimento na orga-nização de atividades educativo-assistenciais (no ensino de técnicas artísticas, mas derivando também a cursos de for-mação profissional)95 e as disputas explícitas que eventual-mente exerciam pelo território nos bairros.

Aí, cara, nós tamo ali, nós tinha nossa galera, só que ti-nha a galera que não era daqui, os Miranda, que é uma do pessoal que não sobe [traficantes]. Aí, tinha os bandidinho que era o pessoal, aí, tipo, o pessoal que vivia na volta dele tava na nossa volta, as gurias, os amigos dele. Daí, os ami-gos deles “Ah que é tri diferente, aqui vocês se respeitam, não ficam ameaçando o outro com arma, brincando, sem-pre de palhaçada. Lá, com os outros caras não, os caras decidiam os negócios a força, tem que mostrar arma pra conseguir. Nesse momento, a gente tinha o apoio dos mo-rador tudo, a gente fazia bagunça mesmo, gritava, fazia pagode. Os morador até desciam pra curtir com a gente”. (Bboy do Bairro Bom Jesus – Set. 2012)

E o território, embora ocupado e disputado localmente, ganhava uma configuração que extrapolava a localidade de atuação e se transversalizava entre diferentes regiões (na ci-dade ou fora dela), passíveis de identificação pela condição social comum de precarização e/ou vulnerabilidade. Sob de-nominações discursivamente partilhadas e mobilizadoras, como é o caso da expressão “periferia” e/ou seus correlatos

95. Poderia citar como exemplo o trabalho da organização não governamental Ksulo, no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre/RS (entre os anos de 2004 e 2008). A ONG promovia oficinas em técnicas musicais para crianças e jovens da comunidade e, além disso, promovia a serigrafia de camisetas com a marca “470”, número da linha de ônibus do bairro, enfatizando uma identidade territorial desde uma atividade de geração de renda. A iniciativa contava com parceria de costureiras radicadas na mes-ma localidade e era divulgada nos espetáculos dos músicos que criaram a entidade.

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(quebrada, vila, etc.), aquele lugar se tornava locus de ação e definidor de pertencimento em uma narrativa que o elabora-va assim, identitariamente, como integrante de uma comuni-dade que está aqui e acolá (Barbio, 2011).

Destacavam-se, dessa forma, práticas na constituição de laços de sociabilidade, reciprocidade e apoio desde artefa-tos e enunciados propostos no âmbito da “cultura”. Iniciati-vas que não deixavam de evocar propostas já conhecidas em outros campos (como a formação de ONGs assistenciais por exemplo), mas que pareciam se distinguir ao tornar a frui-ção como meio de ação e um explícito apelo identitário como pauta de mobilização.

2. Uma segunda tomada de posição que gostaria de dis-cutir nos remete à relação com o campo econômico e, mais especificamente, com o mundo do trabalho e as condições de subsistência dos ativistas. Meus interlocutores no Hip Hop afirmavam que a maioria dos seus colegas exerciam ativida-des de trabalho fora do âmbito do movimento. Os exemplos apresentados sinalizam para atividades formais relacionadas à área de comunicação, a tarefas burocrático-administrativas, a espaços educativos, a iniciativas artísticas ou a atribuições no setor de comércio e serviços. Para ocupações informais fo-ram referidos trabalhos precarizados no setor de comércio e serviços ou na área educacional.

Ainda que predominassem atividades informais/precari-zadas ou de pouca qualificação, ao que parece, indiciava-se que a experiência no Hip Hop possibilitara inserções profissionais vinculadas ao desenvolvimento de habilidades artísticas e/ou técnico-comunicacionais. Em alguns casos, a opção por ocupa-ções relacionadas aos saberes aprendidos no movimento sig-nificava a escolha de inserções de remuneração reduzida ou menos legitimadas socialmente. Aqueles que exerciam traba-

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lhos bastante distintos do que faziam em Hip Hop mantinham práticas vinculadas à cultura, mesmo sem remuneração.

Creio que nos aproximamos, aqui, do que afirmava Bajoit (1997) acerca do sentido do trabalho entre jovens nos anos 1990:

enquanto antes ele era importante em si, pela partici-pação que assegurava ao projeto coletivo da sociedade industrial, agora ela se torna importante para o próprio projeto do indivíduo (p. 83).

A maioria dos ativistas em Hip Hop consultados iniciaram suas vivências juvenis nessa década. O trabalho mantinha expressão em meio a outras formas de sociabilidade (dança, música, etc.) e, neste sentido, garantiu/garantia para meus in-terlocutores o consumo e a vivência de sua condição juvenil.

Mesmo aqueles a quem poderíamos imputar o status de adulto, se tomarmos as delimitações formais96, parecem manter tal tomada de posição. Ora a atividade laboral estava orientava a algo relacionado à sua identificação com a “cul-

96. A Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece como juventude o período compreendido entre 15 e 24 anos. Para além de delimitações formais, poderíamos considerar também que parte dos ativistas já tinha assumido uma série de atribui-ções (filhos, subsistência, residência própria, etc.) que, como ritos de passagem, poderiam lhes dispor em uma condição adulta. Contudo, não poderia afirmá-lo de maneira cabal, dado que tais ritos não se apresentavam como marcadores estáveis nas situações juvenis vividas por meus interlocutores. Em seus contextos de sociali-zação, ocupações laborais podiam ser necessárias de maneira bastante precoce, mas a saída da casa dos pais podia acontecer após os 30 anos e/ou intercalar períodos de saída e retorno; a chegada de filhos podia anteceder o trabalho e, então, demandá-lo. Tal realidade se aproxima das problematizações apresentadas por Camacho (2004) e Carrano (2000), sinalizando para a flexibilização e, em alguns casos, para a amplia-ção dos limites do que denominamos “juventude”, como característica da condição juvenil contemporânea. Estes e outros pesquisadores do tema preferem referir “ju-ventudes”, de modo a indicar a diversidade que situações e estilos que as compõem na atualidade (incluindo-se aí as expressões do Hip Hop). Reforçam, neste sentido, a necessidade de compreendermos tal noção e a fase cronológica que designa como constructos históricos e sociais.

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tura” (como educador social ou produtor musical, por exem-plo), ora era uma experiência descrita como necessidade, apoiando financeiramente sua participação em atividades no Hip Hop nos horários vagos. Desta forma, gostaria de realçar que, embora as condições materiais e culturais ocupassem lugar importante na delimitação das possibilidades para os ativistas, estes não deixavam de exercer um posicionamento de resistência na relação com o mundo do trabalho.

3. Em relação ao campo educacional e, mais precisamen-te, à produção de saberes e ao sistema escolar configura-se tomada de posição que merece destaque também. É prática propalada no movimento Hip Hop a valorização do conheci-mento, citado pelos integrantes como um dos elementos da “cultura”: referiam normalmente à própria história e à con-juntura do movimento, mas também à ancestralidade negra e as informações sobre as condições de vida das localidades onde viviam e atuavam.

Percebia que a produção de saberes por integrantes do Hip Hop se constituía na disputa por legitimidade, operada, dentre outras formas, pela busca de acesso à escola. Exem-plo disso eram as oficinas realizadas na Semana Municipal do Hip Hop ou em outros eventos consoantes, cuja opção de local era reiteradamente o espaço escolar. A atuação do mo-vimento buscava deliberadamente acessar crianças e jovens na divulgação de sua mensagem e, neste sentido, posicionava sua discursidade junto às práticas de instituição legitimada.

Os discursos elaborados nas atividades do movimento, além de agregar os temas da não violência, da resistência e superação das adversidades e da valorização das comunida-des de origem, compunham enunciados de incentivo aos es-tudos e, muitas vezes, à permanência de jovens na escola. A valorização da educação ganhava sentido pela possibilidade de acesso a mais informações e a uma ampliação potencial

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de conhecimentos para produção de sua historicidade, em semelhança ao afirmado por Weller (2002) sobre jovens do Hip Hop na zona leste de São Paulo. Entretanto, os pronuncia-mentos sobre a escolarização assumiam forma de um impe-rativo muitas vezes a despeito das incompatibilidades entre a forma de atuação escolar e as vivências de participação das juventudes contemporâneas (Dayrell, 2010).

Não era uma relação isenta de tensões. Os ativistas pro-curavam por uma instituição onde a maioria dos integrantes do movimento teve passagem fragmentada. A escola, por sua vez, quando contratava educadores sociais em elementos do Hip Hop, instrumentalizava seus saberes e incluía-os em uma grade curricular que pouco dialogava com o conjunto das premissas do movimento social. Mas, de todo jeito, considero importante destacar que a tomada de posição em relação à institucionalidade, neste caso, orienta-se mais a uma busca de legitimidade sob tensões e resistências do que a uma ne-gação ou a um afastamento.

4. O movimento se fazia presente também na arena polí-tica institucional, disputando recursos públicos para a rea-lização de suas atividades artísticas. Praticamente todos os que atuavam com regularidade nesta seara eram do segun-do grupo etário com quem interagi. Teriam se vinculado à cena política também como alternativa de subsistência ou, noutros casos, eram representantes de ONGs vinculadas ao Hip Hop e atuantes na periferia, criadas ainda no período de maior efervescência do movimento. Neste cenário, ademais, percebia que se destacavam aqueles que usufruíam de algum domínio dos códigos formais, o que lhes facilitava o acesso a recursos mediante a elaboração de projetos culturais ou a candidatura partidária.

Nesse sentido, o movimento era tensionado pela vincula-ção de ativistas a diferentes partidos políticos (PT, PSB, PTB),

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o que interpunha nuances nas disputas por recursos públicos e no pleito por legislações referentes à “cultura” Hip Hop. Não se tratava, porém, de diferenças manifestas por filiação ideo-lógica. Normalmente, eram assessores de políticos de carrei-ra e, em poucos casos, vereadores e deputados eleitos. Havia entre os ativistas uma explícita intenção de influenciar a con-formação de políticas públicas, mas a vinculação aos partidos atendia, ademais, às necessidades pessoais de subsistência e/ou elevação de poder aquisitivo, de forma que a intensi-dade de seus pleitos estava condicionada à manutenção do posto e, por consequência, determinada por negociações com programas partidários e prioridades eleitorais97.

Vinculações a organizações nacionais de representação do Hip Hop tinham ocorrência limitada a poucos casos entre os frequentadores do Fórum Municipal do Hip Hop. Eventu-almente, a Nação Hip Hop Brasil ou MH2O eram menciona-dos, mas não pareciam ter papel aglutinador efetivo naquele locus. As discussões se orientavam sobremaneira à conquista de recursos para eventos na cidade e para efetivação de polí-ticas previstas em lei, mas que eram seguidamente negligen-ciadas pelo poder público municipal98.

A arena política do Hip Hop tinha sua caracterização efetivada predominantemente por MCs e rappers, de forma

97. Recordo-me de MCs que se candidatou a vereador no período de minha pesquisa. Não fora eleito e inclusive teve votação muito pouco expressiva. Não raro, sua atu-ação era alvo de críticas de outros ativistas, por entenderem que aquele MC estaria buscando promoção pessoal dentro do quadro partidário, antes de se preocupar com as pautas do movimento. 98. A Lei Municipal 10378/2008 prevê a realização anual da semana do Hip Hop. Contudo, o período de conquistas mais expressivas do movimento se deu até mea-dos dos anos 2000. Intervalo em que obtinham apoio para eventos e atividades em suas comunidades de maneira mais recorrente e, além disso, viabilizaram a criação de programa de TV em emissora estatal. Após este período, os ativistas perderam poder de interlocução com o executivo, em função de mudanças no espectro político da gestão pública municipal e/ou estadual.

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que tanto a visibilidade artística quanto a participação nos fóruns deliberativos eram menos expressivas entre bboys, DJs e grafiteiros, embora houvesse um esforço organizativo para representação de todos os segmentos em eventos co-memorativos. Dado esse que parece coerente com o histórico de protagonismo de MCs nas discussões políticas (Contier, 2005), mas também se associa à contundência do rap na co-municação das mensagens do Hip Hop nos eventos, de forma que a oralidade dos MCs é aquela mais diretamente reconhe-cida pelo público e por parcerias políticas como canal de pro-fusão do protesto.

De outra parte, artistas em outros elementos nem sempre mantinham regularidade nas discussões políticas. Os grafi-teiros, por exemplo, tomavam caminhos individualizados na condução de suas práticas e, algumas vezes, logravam certo reconhecimento (Buzo, 2010). No entanto, suas incursões pelo mercado artístico nem sempre significam a visibilização de pautas do movimento e suas obras podiam ser incorpora-das estritamente pela valorização da técnica.

Vale frisar que a participação na arena política institucio-nal não mobilizava a maioria das pessoas com quem interagi, que, na maioria das vezes, dizia-se desconfiada em relação à classe política. Preferiam a atuação direta com moradores de suas localidades ou, então, dedicavam-se apenas à fruição e/ou produção musical, com pouca vinculação às pautas do movimento. Questão crítica à manutenção dos temas de rei-vindicação, pois, em que pese a configuração dos movimen-tos sociais contemporâneos em atuações não dirigidas neces-sariamente ao Estado, conforme nos inspira Melucci (2001), prescindir da representação nesta arena na conformação de suas práticas pode fragilizar a consolidação da ação antago-nista do Hip Hop.

O histórico do movimento em Porto Alegre sinalizava que o acesso à arena estatal influenciava significativamente

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as possibilidades de realização de suas atividades, oriundas de localidades cujas condições socioeconômicas não com-punham recursos e redes relacionais que viabilizassem seus projetos artísticos e comunitários. Além disso, representava a possibilidade de legitimar a produção do Hip Hop por meio de disseminação de seus discursos e da formalização legal de direitos. Nas palavras de Melucci (2001), “os movimentos an-tagonistas ligam contradição e conflito porque se situam na intersecção entre a estrutura e a mudança”, e a arena estatal precisaria ser fortalecida como um dos âmbitos socialmente prioritários dessa construção na cidade.

5. Outra base de disputa, e provavelmente a mais reco-nhecida, ganhava corpo na relação com o mercado musical e artístico, na medida em que as atividades da “cultura” têm intensa articulação com as dinâmicas sociais do espetáculo (conforme assinalava já Herschmann, 2005). Para a totali-dade dos ativistas consultados, a atuação nos elementos do Hip Hop representava a possibilidade de trabalho em área de sua preferência e, além disso, a conquista de reconhecimento social. Esta última guardava certo enlace potencial com ape-los de mídia de massa, interpretados como signos de visibi-lidade e consolidação de uma carreira. Depoimentos sobre a importância de uma atuação de protesto, evitando o risco de atrelamento a um sistema de relações que descaracterizasse as pautas de militância do movimento ganhavam lugar então, a rivalizar com leituras abertas aos vínculos com práticas do mercado. Em semelhança ao assinalado por Bezerra (2009) para o contexto do Rio de Janeiro, entravam em discussão enunciados sobre o que seria a “essência” da “cultura” ou so-bre sua necessidade de se atualizar.

Para tomar um exemplo, posso afirmar que a frequência aos fóruns de deliberação política costumava ser maior quan-do a pauta incluía a indicação de grupos para eventos em que

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o movimento conquistara espaço de apresentação remune-rada. Entre os mais jovens, diferentemente do grupo etário no qual estava a maior parte dos protagonistas em instâncias políticas institucionais, o acesso às arenas deliberativas ins-titucionais não parecia interessar e era tratada de maneira refratária e desconfiada99.

Mas não poderia afirmar, no entanto, que se tratava da conformação clara de dois grupos polarizando uma disputa entre politizados e não politizados, entre militantes e indi-víduos orientados a ganhos e reconhecimento profissional. Muitos do que não frequentavam espaços políticos institu-cionais, exerciam atividades com repercussões políticas no cotidiano de suas comunidades; e os discursos de mercado também eram sedutores para muitos ativistas vinculados ao protesto e à reivindicação, incidindo sobre suas expectativas individuais. Tratava-se mais de enunciados que se infiltra-vam e/ou constituíam o campo e interpelavam os sujeitos, do que de posturas essenciais e estáveis.

***

99. Nesse cenário ademais, os conflitos entre sujeitos de diferentes grupos etários podiam ganhar conotação diversa. Nos eventos que acompanhei, alguns embates destacavam diferentes entendimentos sobre a produção artística de shows ou sobre a história do movimento. As discussões podiam versar sobre as músicas adequadas para cada tipo de dança ou sobre a origem de estilos musicais e sua relação com o Hip Hop. Noutros momentos, o próprio entendimento sobre o movimento estava em questão. Alguns preferiam distingui-lo das manifestações da “cultura”, que poderiam ocorrer desvinculadas de intencionalidades políticas, de forma que um de seus ele-mentos poderia ser incorporado em outro campo (o break em academias de dança, por exemplo) sem que isso impedisse meus interlocutores de continuar consideran-do-o como parte do Hip Hop. Entendo que a recorrência de tais discussões não só evidenciava diferenças concernentes a detalhes pontuais, mas indiciavam disputas entre formas de enunciar a prática, dispondo sua delimitação em movimento nas interações do cotidiano.

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Transitar pelo espaço de ação de meus interlocutores lançava-me a conhecer atividades que, mobilizadas em uma confluência identitária, sinalizavam para redes de vinculação diversas, depoimentos diferenciados e tomadas de posição, por vezes, contrastantes.

No conviver em bairros de periferia em interação com a precariedade e a violência urbanas, mas também com redes relacionais comunitárias e étnicas; e/ou nos pertencimentos construídos desde interações de disputa, ora resultantes da articulação com outras esferas de atuação, ora produzidas nas relações intrínsecas ao campo de ação, o cotidiano indi-ciava tensões entre unidade e diversidade no movimento100.

Em atenção ao que procurei narrar acima, posso afirmar que seria difícil circunscrever limites claros ao espaço de ação das atividades do Hip Hop. As fronteiras do movimen-to se apresentavam como um desenho de traços borrados e, neste contexto, creio necessário assumirmos que as identida-des se processavam desde diferentes bricolagens, operadas pelos sujeitos no curso das vivências e pertenças que cons-truíam e das táticas que produziam. Considerar, ainda, que a elaboração de narrativas e enunciados e o exercício reflexivo

100. As tomadas de posição e tensões que narrei ao longo do texto expressam um esforço de sistematização da diversidade e das divergências encontradas no campo. Com certeza, um esforço limitado e que poderia ser aprofundado desde outros re-gistros do cotidiano, ou de outros contextos. Para citar mais indícios, muitas vezes, os sujeitos e acontecimentos valorizados na história do Hip Hop em Porto Alegre diferiam conforme os bairros de origem e os grupos de circulação dos entrevistados, embora encontrasse pontos de congruência em suas narrativas. E no que tange ao estilo, as roupas e os vocabulários distinguiam-se sobremaneira. Estive dialogando com militantes cujas falas guardavam bastante zelo à linguagem formal e as roupas não diferenciam das usadas por seus colegas de emprego, em organizações partidá-rias e repartições públicas, mas isso não os impedia de usar trajes, vocábulos e gírias mais recorrentes no Hip Hop quando estavam em eventos do movimento. Da mes-ma maneira, interagi com ativistas que mantinham estrutura de fala referenciada na realidade de periferia em diversos espaços sociais e faziam opção pelo ativismo artístico e educacional em seu bairro de moradia.

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sobre as práticas perpassavam de maneira estruturante os processos de identificação, seguidamente feitos identização.

4. Para seguir... potências e limitações a um movimento social

Ao elaborar delineadores para as tomadas de posição dos ativistas com os quais dialoguei, fica patente uma relação ten-sa com a institucionalidade hegemônica (destacadamente, a escola, o emprego e as instâncias políticas). Em certa medida, uma situação configurada pelas condições sociais dos sujei-tos que produziam as iniciativas no Hip Hop nos bairros de periferia, mas que possuía também outros fatores constituin-tes. Parece-me congruente nesse sentido, articular mais algu-mas reflexões acerca das produções juvenis contemporâneas, dada a condição etária da maioria de meus interlocutores.

Diversos autores (Carrano, 2000 e 2012; Dayrell, 2002 e 2010; Reguillo, 2003 e 2012; Spositto, 2000 e 2010) caracte-rizam as formas de organização político-social e identitária juvenis (nas últimas duas décadas no Brasil, pelos menos) por uma ênfase na esfera cultural (arte, música, etc.), em modos de expressão bastante fluídos. Haveria certo distanciamen-to das formas tradicionais de mobilização como sindicatos, partidos políticos e/ou grêmios estudantis, sem que isto sig-nificasse necessariamente apatia ou desinteresse dos jovens.

Estaríamos frente a novas formas de sociabilidade e ação coletivas, não necessariamente vinculadas ao mundo do tra-balho e/ou à institucionalidade burocrático-estatal, bastante desenvolvidos no século XX (Carrano, 2012). E, neste sentido, as palavras de Melucci (2001) trazem argumento concernente:

nas sociedades com alta densidade de informação, a produção e a disputa não dizem respeito somente aos recursos econômicos, mas investem em relações sociais, símbolos, identidade, necessidades individuais (Melucci, 2001, p. 79).

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Ao pautar a fruição em espaços públicos e disputar a enunciação de suas identidades, os ativistas do Hip Hop, tri-butários do que temos caracterizado como a condição juve-nil da atualidade, tensionam a organização social desde sua forma de fazer política, orientada à expressividade artística e à visibilização do cotidiano em bairros empobrecidos. De-nunciando condições precárias de vida e pleiteando acesso a recursos sociais, este movimento social dispunha como “não negociável” o reconhecimento simbólico dos artefatos cultu-rais produzidos na periferia e, sobretudo, postulava seu di-reito à capacidade de enunciar identidades e cotidianos. Con-forme nos assinala Reguillo (2012), “la dramatización de los referentes identitarios, la imaginación para captar la atenci-ón de los medios de comunicación señalan la transformación en los modos de hacer política” (Reguillo, 2012, p. 117).

Porém, em que pese as potencialidades de sua articulação a arenas e tecnologias de uso crescente entre as juventudes, as práticas do movimento enfrentavam significativas restri-ções em Porto Alegre. À época da pesquisa, muitos de meus interlocutores reclamavam o predomínio do consumo de funk em suas comunidades, o que estaria reduzindo o acesso de jovens aos artefatos da “cultura” e a mobilização de novos praticantes101. Aí, colocava-se de manifesto a dificuldade do Hip Hop fortalecer posição em sua arena preferencial de dis-puta, sob efeito das oscilações de consumo de um mercado que não dominava (e que ademais, podia instrumentalizá-lo como mais um produto).

Quando interagia com o segmento mais jovem entre meus interlocutores, indiciavam-se vinculações mais fluídas com a “cultura”, se comparado com aqueles que passaram a integrar o Hip Hop a partir de meados dos anos 1990. Enquanto estes

101. Encontrei depoimentos assemelhados sobre a cena Hip hop de São Paulo em Buzo (2010).

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lutavam para garantir recursos e militavam pelo movimen-to, aqueles transitavam entre diferentes filiações (em igrejas, em grupos de danças, esportes, etc.), circulando na fruição do rap, do funk ou outros gêneros musicais. As identizações pareciam ganhar ainda mais fluidez e se constituírem como construções centradas nas individualidades, ancoradas em narrativas reflexivas sobre os lugares que desejavam e po-diam ou não ocupar. Algo que merece análise mais detida em campo, mas que pode sinalizar para o quão complexo se tor-na o contexto de disputas do Hip Hop.

Um cenário pouco favorável nas arenas políticas institu-cionais também influenciava a ação do movimento Hip Hop. As disputas junto ao poder público municipal resumiam-se à difícil manutenção das conquistas pregressas. Alguns logra-vam acesso a recursos federais mediante elaboração de pro-jetos, mas, em geral, eram aqueles que dominavam códigos formais e/ou tinham constituído estrutura organizacional no período de maior expressão do movimento na cidade.

Tal contexto, associado a uma diminuição do consumo dos artefatos do Hip Hop e/ou a uma forma de identificação mais fluida entre os mais jovens, restringia as possibilidades no espaço de ação e tendia a cristalizar algumas posições. Aqueles que representavam o movimento em Porto Alegre eram também os que conseguiram fazer da prática no Hip Hop sua fonte de sustento, de forma que os demais precisa-vam combinar seu ativismo com trabalhos em outras áreas.

“Salir a las calles”, romper las prohibiciones explícitas to-dos juntos, […] constituyen una fuente de certezas y de fuerza, pero transcurrido el acontecimiento hay que vol-ver a ocuparse de las cuentas, de los niños enfermos, de los roles tradicionales, de las mujeres en la cocina y los hombres en la calle. Ninguna “subjetividad” es capaz de resistir por demasiado tiempo el vértigo de lo novedoso,

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si se carece de un colectivo que lo sostenga a largo plazo. (Reguillo, 2004, p. 269)

Os diálogos faziam lembrar que o cotidiano interpunha demandas das quais os sujeitos não podiam se eximir e para as quais o espaço de ação no Hip Hop, no estado em que se encontrava, ainda não apresentava alternativas de solução. Contudo, na esteira das mudanças que as juventudes podem nos indiciar, vale seguir atento às formas diferenciadas de relação com a institucionalidade que podem ser construídas (ou seguir em construção) pelos sujeitos do Hip Hop.

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CAPÍTuLo 7Aos passos com bboys: identidades e individuações na

prática do break

Seguia em diálogo com ativistas do Hip Hop quando conhe-ci o Restinga Crew. Um grupo de dançarinos de break102 que mantinha atividades já havia dez anos, fato incomum entre as crews que conheci em minhas incursões em bairros de peri-feria de Porto Alegre. Passei a acompanhar os bboys em seus treinos abertos em um ginásio esportivo no bairro Restinga, a localidade que ambienta as interlocuções que narrarei aqui.

Desejava seguir pesquisando as produções identitárias no Hip Hop e, no curso das interlocuções com os bboys do grupo, senti-me instigado a conhecer mais de sua relação com prática de dança e com a “cultura”. Nos treinos organiza-dos pela crew, chamava-me a atenção a maneira significativa-mente autônoma como cada um conduzia seus exercícios e, também, a recorrente tônica na composição de estilos indivi-duais verbalizada pelos dançarinos, sem que isso fragilizasse a duradoura pertença destes ao coletivo.

Então, contribuições de Camarano (2006), Castells (2013), Pappámikail (2012), Viera (2012) e, principalmen-te, de Martuccelli (2007) auxiliaram-me a desenhar argu-mentos acerca do que presenciara juntos aos dançarinos, de

102. O break é considerado um tipo de dança de rua. Formou-se nos anos 1970 junto a outros elementos da “cultura” Hip Hop, em bairros de maioria populacional negra e caribenha de Nova Iorque. De início, compunham gestualidades que reportavam a circunstâncias de batalha, numa alusão à Guerra do Vietnã, destino de muitos jovens afrodescendentes e latinos do período (Oliveira, 2004). Hoje, o estilo agrega dança-rinos em campeonatos e atividades recreativas em diversos espaços urbanos. Entre meus interlocutores, era caracterizada especialmente pela flexibilidade na compo-sição das sequências coreográficas, integrando interpretações de acontecimentos cotidianos, passos de outras danças, etc.

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forma que este capítulo se configurou um exercício de pro-blematização de processos de identização dirigidos mais en-faticamente ao âmbito da individuação (Melucci, 2004), com destaque, neste sentido, à interpenetração entre esta e as di-nâmicas reflexivas produzidas na prática do breakdance.

As inferências expostas na sequência, tomadas em rela-ção ao conjunto das cenas apresentadas nos capítulos ante-riores, realçam o rumo assumido na caminhada: reconhecer e compreender as pertenças, as tomadas de posição e/ou as reflexidades construídas por meus interlocutores na feitura de suas práticas cotidianas, buscando, neste caso ademais, a problematização das singularizações produzidas por eles.

Para isso, procuro apresentar uma contextualização do grupo de bboys, seguida de uma breve análise dos itinerários biográficos de três jovens integrantes da crew: um modo de narrar a diversidade encontrada desde diferentes percursos de construção da existência, entre “provas sociais” e “supor-tes”. Depois, passo a detalhar as dinâmicas que produzem nos seus treinos e momentos de sociabilidade, buscando salientar as contribuições destas para seus processos de individuação. Passemos, antes, aos referentes específicos deste capítulo.

1. Para compreender...

Individuação é a tendência cultural que enfatiza os pro-jetos do indivíduo como supremo princípio orientador de seu comportamento. Individuação não é individualis-mo, pois o projeto do indivíduo pode ser adaptado à ação coletiva e a ideais comuns, como preservar o meio am-biente ou criar uma comunidade, enquanto o individua-lismo faz do bem estar do indivíduo o principal objetivo de seu projeto particular. (Castells, 2013, p. 168)

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A perspectiva apresentada por Castells (2013) sinaliza para a existência de contextos socioculturais cuja dinâmica organizativa propicia que os sujeitos construam seus proces-sos de socialização. Em seus argumentos, o autor contempla especialmente a ação de movimentos sociais e os efeitos da gestação de redes sociais ancoradas em tecnologias de co-municação e informação, a conformar trânsitos que já não dependem exclusivamente da ação de instituições sociais. Neste sentido, convida-nos a observar que a constituição de itinerários biográficos sofre alterações nas relações sociais contemporâneas.

Coetâneo, os rituais de passagem considerados indica-dores da transição à vida adulta (estabilidade profissional, conjugalidade, residência autônoma, filhos, etc. – em certa naturalização de referentes sociais produzidos no pós-guerra europeu) são adiados, dessincronizados e/ou revertidos hoje (Pappámikail, 2012), borrando as fronteiras do que supú-nhamos como fases de vida e, ademais, contribuindo para a diversificação dos rumos possíveis aos percursos individuais.

No caso europeu, novas dinâmicas dos sistemas produti-vos e laborais levaram a uma ampliação do tempo dedicado aos estudos e ao adiamento do ingresso de parcela dos jovens ao mundo do trabalho, prolongando o período compreendido como juventude. Já no Brasil, observa-se “um rearranjo” da sequência transicional, sendo que a ampliação da escolariza-ção convive com outros eventos considerados marcadores da transição para a vida adulta, como seriam exemplos a mater-nidade/paternidade e a inserção laboral precoce, realizada antes (e/ou em detrimento) da conclusão da educação básica (Camarano, 2006).

Podemos somar a isso dois outros fatores, indicados por Vieira (2012). Primeiramente, a inflexão das representações de infância e juventude na atualidade, tendendo a reconhecer a crianças e jovens a condição de indivíduos com autonomia,

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que merecem ter voz, intensificando a experiência de nos-sa herança da modernidade. E, potencializando o primeiro, a diversificação de contextos socializadores, com destaque aos grupos de pares entre os jovens, que interpõe a neces-sidade de que os sujeitos gerenciem e elaborem a pluralida-de em seus percursos. Este último, uma constatação trazida também por Melucci (2004) quando assinala a característica múltipla, processual e autorreflexiva das identidades hoje, gestadas em ambientes urbanos de alta diferenciação e in-tensos apelos informacionais.

Entretanto, as incursões em bairros de periferia, con-textos em que a presença da institucionalidade moderna é tensionada pela precariedade dos acessos e pela presença insuficiente do Estado, interpõe questões sobre as formas de apropriação da ambiência reflexiva contemporânea. Lash (2012) nos lembra que é necessário reconhecermos as for-mas pelas quais aparatos e recursos culturais chegam até o cotidiano dos indivíduos, para então observarmos as possibi-lidades e formas da reflexividade.

Eis que as proposições de Martuccelli (2007) acerca da sociologia do indivíduo podem ser provocantes neste sentido, apoiando uma aproximação contextualizada aos percursos biográficos. Consonante aos argumentos anteriores, o autor salienta que as relações sociais contemporâneas instigam ex-periências diversas, contribuindo para que estas se particu-larizem mesmo quando as pessoas ocupam posições sociais assemelhadas. Sua interpretação orienta-se ao processo de singularização estruturalmente produzido na modernidade e propõe operadores analíticos para a compreensão das formas pelas quais os indivíduos se constituem na relação com aspec-tos que perpassam a socialização na coletividade: uma relação que concerne à produção de identificação, mas que, para este autor, precisa ser problematizada aquém e além da identidade.

Martuccelli (2007) apresenta a noção de “prova” como artifício para compreensão dos processos de individuação,

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destacando os desafios sócio-históricos que os indivíduos são impelidos a enfrentar (conforme as condições sociais em que se encontram) e que podem ser vivenciados singularmente no produzir-se como sujeito. Tomemos uma citação do autor:

Las pruebas tienen cuatro grandes características. En primer lugar, son indisociables de un relato que les asig-na a los atores, individuales o colectivos, un papel mayor en la comprensión de los fenómenos sociales. En segui-da, las pruebas hacen referencia a las capacidades que tienen un actor para afrontar las prescripciones e pro-cesos difíciles a los cuales está sometido. En tercer lugar, toda prueba aparece como un examen, en realidad, como un mecanismo de selección a través del cual, en función de sus éxitos o fracasos, los actores forjan sus existen-cias. Por último, las pruebas son inseparables de un conjunto de grandes desafíos estructurales a los que los individuos están obligados a responder y que difieren en función de las sociedades y de los períodos históricos. (Martuccelli, 2007, p. 125)

A tal conceito o autor associa também a noção de “supor-te”, para falar das relações que amparam os indivíduos no en-fretamento de seus desafios existenciais. Aí, podemos situar laços de reciprocidade, redes de amizade e sociabilidade ou, então, a articulação a aparatos institucionais que garantam e/ou promovam condições para que os sujeitos efetivem seus projetos e/ou logrem seguir em disputa.

Numa aproximação ainda inicial a este referente, ambas as noções, “prova” e “suporte”, foram assumidas como uma ins-piração para interpretar as práticas e os itinerários dos bboys do Restinga Crew, observando condições materiais e culturais de sua existência e os caminhos trilhados para legitimação de suas escolhas e projetos individuais. Vejamos, pois, como pro-cedi em campo na consecução de meu propósito.

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1.1 Em campo

Minha interlocução com o Restinga Crew teve início quando passei a acompanhar os ensaios que realizavam em um ginásio municipal. Minhas incursões iniciaram no segun-do semestre de 2013 e, então, procurava registrar em diário minhas impressões sobre a forma como operavam na apren-dizagem de passos de dança e a maneira como sociabilizavam e partilhavam saberes sobre o break ou outras práticas de que participavam. Assim, aproximei-me gradativamente da maneira como fruíam música, mantinham laços de pertença e singularizam estilos.

Depois de seis meses de observação dos ensaios, incluin-do aí o acompanhamento a apresentações do Restinga Crew em eventos da cidade, passei a realizar entrevistas narrativas (Jovchelovitch, 2002). A técnica previa que contassem seus itinerários de vida da maneira espontânea possível e, em se-guida, eu lhes apresentasse tópicos para falas abertas. Neste caso, provoquei-lhes a expressar suas interpretações sobre o lugar do break e da “cultura” Hip Hop em suas trajetórias e, também, a realçar os desafios que consideravam marcantes.

As narrativas elaboradas pelos dançarinos apresentavam, ademais, suas rotinas nos demais espaços que frequentavam (escolas, empregos, etc.). Então, solicitei a três de meus inter-locutores que pudessem acompanhar suas atividades quando não estavam com a crew. Os integrantes foram escolhidos con-forme o tempo de permanência e posição no grupo e pelo tipo de ocupação preponderante no cotidiano: Julinho, líder da crew, participava das atividades desta desde seu início e tra-balhava como “oficineiro”103; Marcos “Cko” compunha o grupo havia 8 anos, responsabilizava-se por avaliar o conhecimento dos demais integrantes em relação à dança e à “cultura” Hip

103. Denominação utilizada por eles para designar sua atividade como facilitador em oficinas de aprendizagem em elementos do Hip Hop.

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Hop e também atuava como educador; e Anderson, dançarino havia dois anos, ainda considerado um dos mais recentes na formação do grupo, era estudante de ensino médio.

Dessa forma, após as entrevistas, consolidei um novo pe-ríodo de observação, de aproximadamente dois meses, no primeiro semestre de 2014. Acompanhava regularmente ati-vidades de Julinho, Cko e Anderson quando não estavam com o Restinga Crew e, especialmente, quando permaneciam em seus locais de trabalho e estudo.

Meus registros em diário e as narrativas elaboradas por meus interlocutores foram analisados procurando problema-tizar as vivências de ‘provas’ e ‘suportes’, no sentido atribuído por Martuccelli (2007). Passagens narradas como marcantes foram ponderadas como indiciadores dos “êxitos” (ou “fra-cassos”) no enfrentamento dos desafios que seus contextos sociais lhes interpunham e, também, como sinalizadores das disposições e redes de pertença que suportavam seus percur-sos. Leituras sobre as condições de vida em suas localidades e sobre as frentes de ação do Hip Hop, assim como um olhar transversal sobre os vários percursos narrados oportuniza-ram-me esboçar a delimitação de desafios estruturais, situ-ando aí também as práticas em breakdance.

Em que pese a similaridade das posições sociais ocupadas pelos bboys, o contraste das táticas no delinear de itinerários oportunizou-me ponderar as nuances das buscas por distin-ção, interpretando suas narrativas pessoais como expressão de processos de individuação socialmente experienciados.

2. O contexto e a crew: o ponto de encontro

Restinga é o nome do bairro onde se originou o grupo. Localidade do extremo sul do município de Porto Alegre, a aproximadamente 25 quilômetros de distância do centro da cidade. Por conta de políticas tecnocráticas de higienização e

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de valorização de áreas urbanas centrais implementadas nos anos 1960, foram removidos para lá contingentes que resi-diam nas chamadas vilas de “malocas”, resultantes sobretudo do processo de êxodo rural iniciado a partir dos anos 1940 (Aigner, 2012). Muitas delas eram também comunidades que abrigavam população de etnia negra, ocupante das atividades de trabalho precarizadas ou subalternas no centro urbano (Sommer, 2011).

Os primeiros moradores da Restinga foram dirigidos a uma área sem serviços públicos de saneamento, forneci-mento de água ou energia elétrica e com escassa frequência de transporte coletivo. À época, havia a expectativa de que o poder público construísse moradias e implantasse a infra-estrutura urbana necessária. Porém, quando isso ocorreu, já nos anos 1970, os primeiros grupos chegados ao lugar não tiveram acesso aos conjuntos habitacionais construídos nas proximidades, por conta dos preços das prestações e da con-dição precarizada e instável de suas ocupações laborais (Nu-nes, 1990). Passaram a residir na nova área habitantes de ou-tros bairros, que também almejavam casas próprias.

Passou a compor o território e constituir as identidades no bairro de então, uma divisão entre Restinga Velha, forma-da por ruas estreitas, habitações vulneráveis e infraestrutura urbana precarizada, e a Restinga Nova, com vias largas, con-juntos habitacionais planejados e recursos mínimos de sane-amento e fornecimento de água e energia elétrica. Nos anos seguintes, muitos dos conflitos entre grupos de tráfico atuali-zaram tal segmentação, inclusive (Aigner, 2012).

Difícil precisar o tamanho atual da população dessa re-gião. Os dados oficiais indicam que há cerca de 60 mil habi-tantes (OBSERVAPOA, 2014), mas não estariam computados aí os residentes em áreas irregulares. Entidades que atuam na localidade costumam trabalhar com uma estimativa de

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mais de 150 mil habitantes, o que faria deste o bairro mais populoso de Porto Alegre.

Em que pese as conquistas dos moradores e a notória or-ganização cultural e política naquela localidade, o bairro ain-da carece de melhores serviços públicos e a população ainda está entre as mais empobrecidas da cidade104. Neste sentido, a estigmatização das pessoas oriundas da Restinga, e em es-pecial da Restinga Velha, continua existindo, de forma que a população costuma ser associada genericamente a situações de violência e criminalidade.

Segundo os ativistas do Hip Hop com quem tenho dialo-gado, a Restinga é também um dos bairros de maior expres-são da “cultura”. Alguns afirmam que teria sido a comunidade onde a organização política do movimento primeiro se esta-beleceu. No final dos anos 1980, os grupos criaram a União Rapper da Tinga (URT), com o intuito de promover debates e integração entre os grupos existentes naquela localidade e fazer frente a negociações com o poder público para obter apoio para suas atividades culturais. Teve funcionamento in-tenso durante os anos 1990 e, no início dos anos 2000, a URT

104. O bairro conta, hoje, com postos de saúde, escolas públicas, instituto federal, unidade hospitalar, parque industrial e um significativo número de estabelecimen-tos comerciais. Quem adentra o bairro por sua avenida central, poderia compará-lo a algumas cidades da região metropolitana de Porto Alegre. Ademais, por efeitos da mobilização comunitária, há duas escolas de samba, significativa expressão do Hip Hop e a localidade é reconhecida por sua organização política e cultural. Contudo, apesar dos esforços dos moradores, os serviços públicos oferecidos ainda são insu-ficientes e as condições de vida são comparativamente precarizadas. O rendimento dos responsáveis por domicílio, a despeito das desigualdades internas no bairro, é de 2,10 salários mínimos em média (sendo 5,4 SM para Porto Alegre). O analfabetis-mo funcional de responsáveis por domicílio é de aproximadamente 20% (12% para a cidade). A aprovação no ensino médio é de 44% (69% para Porto Alegre). Além disso, a Restinga apresenta índices superiores de homicídio (especialmente para jo-vens negros) e registros inferiores de aprovação na educação básica, se comparados às médias do município (OBSERVAPOA, 2014).

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passou a se chamar União Hip Hop da Restinga. Contudo, a frequência às reuniões diminuiu gradativamente e a organi-zação desarticulou-se (Laitano, 2001).

Foi nesse cenário que o grupo Restinga Crew foi constituí-do. No início dos anos 2000, a maior parte dos integrantes da atual formação da crew passou a frequentar o ginásio do Cen-tro de Comunidade Restinga (CECORES) para acompanhar ati-vidades de dança. À época, Jukinha, bboy que realizava oficinas de break naquele espaço, articulava suas aulas à formação de um grupo para apresentações em eventos. Ele havia integrado as atividades do Hip Hop no bairro desde o final dos anos 1980 e participado de outros grupos de dança, o que lhe oportuni-zou trabalhar como educador de break em entidades assisten-ciais de diferentes bairros da cidade (Reckziegel, 2004).

O grupo passou a ensaiar naquele ginásio público e, gra-dativamente, a fazer apresentações em eventos e/ou espaços onde Jukinha atuava como educador105. Inicialmente, a crew era formada apenas por jovens moradores da Restinga, mas, em função da visibilidade obtida na cidade e também das re-des de sociabilidade e trabalho de seus integrantes, passou a congregar dançarinos de diferentes bairros de periferia. Quando de nossa interlocução, o grupo tinha aproximada-mente 10 anos de existência e, na medida de suas possibili-dades financeiras, procurava garantir representação em cam-peonatos no Estado ou no centro do país e, algumas vezes, protagonizava a organização de eventos no bairro e na cida-de. Seguia sem qualquer tipo de fomento institucional; costu-mava usar espaços públicos (escolas municipais ou mesmo o CECORES) para seus ensaios e a fruição de suas atividades faziam das praças e ruas um locus de ação.

105. Quando realizei a pesquisa, Jukinha não compunha mais o grupo. Havia saí-do por divergências com os demais integrantes em 2009. Permanecia trabalhando como educador de dança e, além disso, atuava politicamente junto ao Fórum Perma-nente do Hip Hop em Porto Alegre.

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Apesar da oscilação do número de integrantes, o grupo mantinha ensaios regulares três vezes por semana, à noite. Eram aproximadamente oito integrantes, com idade entre 17 e 29 anos e, na maioria dos casos, com carreiras escolares fragmentadas ou interrompidas pela necessidade de traba-lhar e, entre os mais velhos, pela chegada dos filhos na ado-lescência. Percebia, ademais, que entre aqueles com menos idade, a escolarização era mais bem sucedida, com vistas à conclusão do ensino médio.

3. Individuações em narrativa

Cabe, agora, abordar de maneira resumida os itinerários biográficos de três integrantes do Restinga Crew, integran-do análises sobre as condições de produção social de suas individuações.

3.1 Julinho, entre a sociabilidade e a astúcia

Entre os bboys do Restinga Crew, Julinho era reconhecido como a referência para contatos, agendamentos e, também para a organização das iniciativas do grupo, dos ensaios aos eventos na cidade106. De jeito calmo, tinha o hábito de me perguntar como estava e parecia sempre desejar saber com o que me ocupava. Sua escuta era seguida de seu próprio de-poimento sobre as atividades do grupo e, principalmente, so-bre sua própria rotina na dança ou como educador. À época

106. Durante o período em que acompanhei o grupo, percebi que frequentemente se dedicavam a organizar eventos de dança no bairro e na cidade, acessando pon-tos culturais reconhecidos de Porto Alegre (Casa de Cultura Mário Quintana, Usina do Gasômetro, etc.). As programações associavam rachas de break, oficinas e festas, sendo que, em alguns casos, tratava-se de etapas (classificatórias) de campeonatos de circuito nacional. Geralmente, Julinho tomava a frente na organização, o que in-cluía acolher participantes de fora do estado ou do município em sua casa.

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de nossa interlocução, tinha 29 anos e vivia na Restinga Ve-lha, onde crescera. Tinha três filhos de seu primeiro relacio-namento e, então, namorava uma bgirl da crew.

Contou-me que, no início da infância, sua família residia na Restinga Nova e vivia sob condições econômicas estáveis. Julinho o afirmava citando que o pai possuía emprego, que presenteava a ele, a seu irmão e a sua irmã com brinquedos frequentemente; dizia que tinham empregada e costumavam fazer doações no Natal. No entanto, em função de problemas financeiros, teriam perdido quase tudo que possuíam e foi pre-ciso que se mudassem para a Restinga Velha, em casa cedida pela avó. Então, logo após a mudança, veio a separação dos pais.

Ele procurava não referir à mudança de localidade ou à separação dos pais como algo vivido com grande pesar. Não muito tempo depois, por volta dos seis anos de idade, sua mãe o deixou sob cuidados da avó, em outra casa. Segundo narrava, sua mãe trabalhava durante o dia e, de quinta a do-mingo, envolvia-se com as festas e a discotecagem. Assim, permanecia sozinho em casa por várias horas, o que preo-cupava os familiares. Em sua narrativa, as referências para proteção e apoio eram sua avó, com quem crescera, e seu irmão mais velho, com quem aprendera a dançar. Contudo, mantinha contato regulares com os pais e frequentava suas casas regularmente: uma composição que se aproxima às dinâmicas familiares e de circulação de crianças narradas por Fonseca (2004).

A casa da minha mãe sempre tinha muita gente. Todos os amigos do meu irmão, que dançava. Tinha amigos da minha mãe. E sempre tinha música. Minha mãe tinha um estúdio de som. Faziam festa, discotecava. Eu era pequeno e ficava sentado no sofá e eu via eles se preparando. Era som alto, minha mãe dançando. (Maio 2014)

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Enfatizou que, logo cedo, teve contato com a música, com a dança e com a circulação de amigos em casa. Contudo, apesar dos convites do irmão para que praticasse dança em suas oficinas, resistiu a começar. Dizia ser “gordo” e sentir--se constrangido. Já escutava rap desde criança e desejava destacar-se cantando. Quando um amigo de sua idade, então com aproximadamente 15 anos, decidiu aprender break e o convidou para acompanhá-lo, encorajou-se a tentar.

Enquanto narrava seu itinerário na aprendizagem da dan-ça, fez uma das poucas menções à escola. A custa de certo es-forço, conseguiu aprender os passos, mudando sua condição física inclusive. Á época então, soube da existência de uma oficina de dança na escola pública onde estudava. Passou a integrar as aulas, assessorando o educador no ensino dos co-legas. Conforme contava, o espaço escolar teria sido, assim, o primeiro cenário onde obtivera significativa visibilização pelo que fazia; o lugar vivenciado com timidez, especialmente pela condição física, passou a local de destaque entre os colegas.

Coincide com a imersão e destaque na dança o nascimen-to do primeiro dos três filhos (todos frutos do primeiro na-moro). Junto a isso, veio a necessidade urgente de trabalhar, o que lhe conduziu a uma série de atividades informais e precárias e ao abreviamento da trajetória escolar, encerrada no primeiro ano do ensino médio. Em relação a esta última, Julinho não parecia demonstrar vínculos significativos e se resumia a mencionar casos associados à sociabilidade com colegas e/ou de visibilização pela dança.

Contando com o apoio de familiares para suprir a sub-sistência dos filhos, e apesar da condição precarizada, Juli-nho permaneceu praticando dança e, conforme assinalava, frequentava rigorosamente os treinos do grupo ainda em formação. A esta altura, sua rotina estava sobremaneira or-ganizada em função das atividades da crew. Os colegas e ami-gos frequentavam sua casa regularmente e permaneciam até

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tarde da noite, assistindo vídeos e conversando sobre suas atividades; em alguns casos, chegavam a residir com ele por algum tempo107. A participação em eventos e campeonatos se intensificavam nesse momento.

Logo após a constituição do Restinga Crew, em 2003, o bboy conseguiu a primeira inserção como oficineiro de dança em um projeto assistencial. Em depoimento bastante reflexi-vo, a relação com a prática é narrada em diferentes fases.

Quando eu comecei a dançar eu queria desenvolver os mo-vimentos que eu via nas fitas cassete, entendeu? Eu queria usar mais os meus braços, porque eu não gostava daque-la coisa de colocar as costas no chão. O segundo interesse porque eu queria dançar: um comecei a ficar muito conhe-cido e dava muito ‘pé quente’ com as gurias. Como eu era muito gordinho, eu no colégio não tinha essas coisas de ter namorada. Então, eu sempre fui muito caseiro, mui-to na minha. Eu queria cada vez fazer movimentos mais difícil pra chamar a atenção das gurias e os caras chegar aí: “olha o cara!”. E o terceiro momento, eu queria ganhar mais dinheiro com o que eu gostava de fazer. Esse terceiro momento foi que me levou a elaborar coreografia, procu-rar conhecimento, participar de campeonato.

O depoimento de Julinho traz uma elaboração narrativa de diferentes momentos em sua trajetória, sinalizando para intentos continuados de distinção articulados aos contextos relacionais em que se situava. Seus relatos indiciavam que a

107. Segundo Julinho, seu primeiro relacionamento teria terminado em parte por conta da intensidade com que se envolvia com a dança e os amigos, fazendo de sua casa um espaço frequentemente tomado pelas dinâmicas do grupo. Faço tal desta-que porque, na brevidade das narrativas que apresento, considero oportuno lem-brar das tensões que percorreram os itinerários contados, evitando a impressão de que se constituíam como biografias lineares e projetadas. Trata-se mais de um olhar retrospectivo sobre a trajetória, que se formara numa série de tentativas, percalços, descontinuidades e táticas.

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dança de rua, na qual contava com aportes da socialização fa-miliar, foi o espaço onde construiu distinção (não vislumbra-do da mesma forma na sala de aula ou em ambientes de tra-balho). A prática da dança gestada nas iniciativas do Hip Hop, ao que parece, constituiu-se como a arena onde encontrou, articuladamente, suportes e “provas” que oportunizassem reconhecimento social; arena na qual participa procurando tomar posição e singularizar-se.

Refiro-me à participação individual e grupal nos campeo-natos e/ou na organização de eventos, mas também às inser-ções logradas e táticas produzidas por Julinho. As atividades como oficineiro eram sua principal fonte de renda (então, com vínculo formal) na época em que dialogávamos. Ade-mais, posicionava-se procurando replicar e ampliar as vivên-cias de sociabilidade, fruição e visibilização que experenciara em seu itinerário. Neste sentido, contava ele que um de seus objetivos em trabalhar como educador residia em divulgar o Restinga Crew e encontrar novos dançarinos para o grupo.

Eu pensava em dar aula de dança porque eu queria ter mais dançarinos, entendeu?! Ir pros lugares e trazer mais pessoas para o Restinga Crew. Ampliar a rede e hoje a gente não tem gente só da Restinga. Aonde ia o Restinga Crew eu sempre dava um jeitinho de colocar os meus alunos para apresentar. Isso de estar no palco, nas apresentações foi o que foi aflorando nosso conhecimen-to. Foi adquirindo mais vontade de dançar com isso aí. Então, se a gente não incentivar as outras pessoas, nós não vamos ter pessoas novas, entendeu?

Contara-me, certa vez, que teria chegado à prática edu-cativa por conta das necessidades e oportunidades que sur-giram. Não pretendia ser educador; almejava ser dançarino. Então, dadas as circunstâncias, teria criado um jeito de traba-lhar. Nas oficinas conduzidas por ele no contraturno das aulas

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de uma escola pública municipal108, percebia que procurava instaurar um programa de trabalho orientado às festividades escolares. Ensinava passos básicos para que, compondo uma sequência, os alunos pudessem apresentar em eventos.

Se a instituição escolar agregava o break apenas como uma técnica a ser ensinada, ou tinha o intuito de atender aos alunos nominados como “agitados” ou “problemáticos”, a despeito da “cultura” a que se vinculava a dança para o bboy, ele não parecia tomar isso em consideração como empecilho significativo. Seu trabalho se prestava mais a garantir a vivên-cia daquilo pelo que a identidade preferencial mais clamava. Não percebia identificação de Julinho com a dinâmica escolar e, como sinalizado acima, ele se ocupava mais de fazer da ati-vidade como educador o espaço para suas iniciativas.

De toda forma, sua tomada de posição não impede de ob-servarmos os logros alcançados a partir do capital cultural acumulado em suas práticas informais de dança, fruição e sociabilidade.

Conservando en primer los cambios históricos y los ine-vitables efectos del diferencial del posicionamento social entre los actores, las pruebas permiten justamente dar cuenta de la manera en que lo individuos son producidos y se producen. (Martuccelli, 2007, p. 112)

108. A oportunidade de trabalhar em escolas públicas (e não só em programas assis-tenciais) chegou para Julinho após implementação de políticas governamentais de integralização da educação. A Secretaria Municipal de Educação viabiliza projetos educativos no contraturno escolar com recursos federais (pelo Programa Mais Edu-cação) e, também, por convênios com organizações não governamentais atuantes na cidade. À época da pesquisa, meu interlocutor era contratado por fundação perten-cente a um clube de futebol local. Essa era sua principal ocupação. Eventualmente, fazia atividades para complementação de renda ou para arrecadar fundos que viabi-lizassem a participação (sua e/ou de colega da crew) em eventos de dança.

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3.2 Cko, hip hop e a distinção pelo conhecimento

Quando ia aos ensaios do Restinga Crew, nem sempre encontrava Cko109. Muitas vezes, faltava-lhe recursos para se descolar do bairro onde residia e trabalhava até a Restinga. Isso, contudo, não parecia distanciá-lo do grupo. Pelo con-trário, fazia questão de demonstrar sua pertença nas falas e, sobretudo, nas várias tatuagens que seu corpo exibia. Era aquele, ademais, que se preocupava em se aproximar de mim e explicar o que o grupo fazia, articulando várias informações sobre tipos de passos, gêneros de dança e “cultura” Hip Hop.

Tinha 25 anos de idade e era casado há dois. Integrava o Restinga Crew fazia oito anos e trabalhava como educador em uma escola pública municipal, vinculado ao Programa Mais Educação, atendendo crianças no contraturno das au-las. Antes de conseguir atuar como oficineiro, teve algumas experiências de trabalho em restaurantes fastfood.

Cko passou a infância no bairro Lomba do Pinheiro, lo-calidade de periferia de Porto Alegre. Não conheceu seu pai; vivia apenas com a mãe, que precisava deixá-lo sozinho em casa para ir trabalhar. Conversando comigo, lembrava que es-perava ela sair para o trabalho e logo ia para a casa de um vi-zinho, para jogar videogame. Contou-me em tom crítico que não ia à escola e ficava nas ruas próximas de sua casa.

Segundo narrava, a liberdade com que conduzia seu tempo teria sido censurada quando sua mãe, preocupada com riscos da permanência na rua, levara-o para viver com os avós na cidade de Sapiranga, na região metropolitana de Porto Alegre. Lá, os avós passaram a disciplinar sua rotina e, em especial, sua frequência escolar. Neste sentido, seu depoi-mento dispunha o avô como importante figura moral.

109. Marcos recebera o apelido dos demais bboys em função de sua condição física. Quando dialogávamos, “Cko” era já sua assinatura nas redes sociais e no espaço do Hip Hop.

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Ela falou que eu ia passar as férias com os meus avós e ela já me mandou de mala e cuia pra lá. Eu tinha oito anos de idade [...] Hoje eu agradeço ela porque se não fosse pela minha mãe com certeza hoje, cara eu vou ser bem sincero, eu ia ta morto ou ia ta envolvido nas drogas certamente. Aí, eu tive uma coisa sempre comigo, uma coisa que eu le-vei do meu vô que é “se você tem respeito você vai a qual-quer lugar”. (Abr. 2014)

Porém, isso não teria feito com que ele conduzisse a esco-larização com mais atenção. Contava que era um aluno muito agitado e não tinha desempenho satisfatório. É interessan-te ressaltar, no entanto, que, diferentemente de Julinho, Cko trouxe espontaneamente a instituição escolar para a narrati-va de seu itinerário, e o fez várias vezes. Não deixava de de-monstrar, além disso, certo constrangimento ao declarar que tinha encerrado sua carreira escolar no primeiro ano do ensi-no médio, em decorrência da necessidade trabalhar.

Foi na escola que tomou contato mais direto com a músi-ca. Aos 16 anos, em oficina sobre confecção de instrumentos musicais, conheceu colega que dançava break e o convidou a dançar com amigos. Assim teria sido iniciado nos elementos da “cultura” Hip Hop. Treinavam para que pudessem fazer exibições em festas nos finais de semana ou no intervalo das aulas, na escola. E, então, a sociabilidade na dança teria alte-rado sua relação com a disciplina escolar.

Lá na escola, uma professora viu que eu era muito agitado e resolveu botar eu num projeto. Então, ia pra escola de manhã e fazia um turno oposto, fazia oficina de fazer ins-trumentos musicais com taquara. E nesse mesmo projeto entrou um outro aluno e ele já dançava break [...] toda vez que a professora saía da sala ele saía do lugar dele e ficava lá dançado, lá na frente do espelho [...] Eu disse, “Ô meu, o que que tu ta fazendo?”. “Ah eu tô dançando”. “Bah, me

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ensina um passo”. Daí eu aprendi e ficava praticando em casa, em casa mas ficava praticando todo desajeitado. Aí, depois ele me convidou pra treinar na casa de um amigo dele. Quando eu comecei nessa febre de dança foi onde que eu mudei, eu comecei a fazer as coisas em sala de aula, porque eu não queria que as professoras me barrassem na hora do recreio, porque o recreio era o auge!

A possibilidade de protagonizar atividades em relações com outros jovens, incluindo-se aí a escola, fez-se significati-vo na narrativa de Cko, assim como na de seu colega Julinho. Neste contexto, uma “boa” relação com a disciplina escolar passou a elemento tático, mas, vale considerar, a trajetória narrada por meu interlocutor indica que isso não implicou maior identificação com os propósitos escolares. Isso parecia ter lugar em sua narrativa como decorrência de seu recente retorno ao espaço escolar, como educador.

Por volta de seus 17 anos, voltou a morar com a mãe, em Porto Alegre. Trabalhava em restaurantes fastfood, onde re-clamava ter sido sobrecarregado com funções operacionais múltiplas e intensificadas, mas que mantinha pela necessida-de de ajudar nas finanças da casa. Seguia envolvido com ati-vidades do Hip Hop: procurava e assistia vídeos na internet, escutava e colecionava músicas e seguia praticando passos de break. Então, em 2006, tomou conhecimento da existência do Restinga Crew por intermédio de um programa de TV regio-nal. Decidiu procurar o grupo em uma apresentação que faria na Usina do Gasômetro (notório ponto cultural e turístico da cidade). Lá, conversou com Jukinha, líder do grupo na época, e foi convidado para partilhar o palco com eles.

A integração à crew foi facilitada pelo domínio de dança que já possuía. Disse-me com orgulho que, na ocasião, o gru-po não considerou necessário fazer uma votação, como era praxe. Sua fala sinalizava ainda para o quanto aquele teria

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sido um espaço de forte identificação. Encontrara no incen-tivo de Jukinha e na amizade com os demais bboys estímulo para seguir em atividade que gostava e, além disso, teria en-contrado uma forma de singularização: Cko não costumava realizar passos acrobáticos; dedicou-se à aprendizagem de fundamentos do break e, principalmente, a buscar conteúdos sobre o Hip Hop.

Olha eu vou te dizer, eu particularmente sou bem dife-rente dos guris porque eu foco muito no conhecimento, porque o Jukinha me plantou essa sementinha. Então, eu sou muito aquele que é “Ó, tu quer ser parte do grupo então tu começa estudando”.O nosso grupo a gente tem a sistemática. Eu faço isso com eles de estudar, a gente faz prova. São 35 questões. Essas 35 questões são todas relacionadas com o Hip Hop e os quatro elementos. Então, eu passo a prova pra eles; eles fazem a prova, me passam, eu corrijo até porque eles con-fiam em mim! Porque eu sou o que mais estudo deles.

O artifício da avaliação de conhecimentos, mais comum em espaços educativos formais, teve sua implementação in-centivada por Cko. A prova representava condições social-mente exigidas para atuação naquele espaço de ação, e com um nível de explicitação incomum nas relações que observa-va entre os bboys, geralmente organizadas desde critérios tá-citos, tratados na informalidade das deliberações orais.

Após os diálogos com ele, foi possível depreender que sua tomada de posição articulava aspectos morais, procuran-do delimitar posicionamentos dentro do grupo. Assim, suas falas vinham carregadas de ênfases sobre a necessidade de esforço e estudo, associando as possibilidades de êxito no Hip Hop e fora dele, articulando a necessidade de se man-ter uma “boa imagem” para a crew. Considero a hipótese de que tal discursividade era atualizada em integração às suas

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expectativas como dançarino e como educador, que entendia realizadas de alguma maneira pelo reconhecimento obtido pelo Restinga Crew na cidade e pela conquista de ocupações remuneradas em escolas.

A distinção pela demonstração de conhecimento ganha-va importância no itinerário de realizações que tinha cons-truído e, como modo singular de lograr êxitos, constituiu-se como mote de sua identização. Este bboy parecia expressar tal característica em seu corpo, aliás, nas inúmeras tatuagens que explicava reflexivamente, elaborando com detalhe mo-tivações e conteúdos relacionados aos símbolos que trazia consigo. Os elementos do Hip Hop, a alusão à família e signos de superação às adversidades se faziam presentes em suas explicações, como parte da multiplicidade de uma identidade em narrativa.

No caso aqui é o “FreeStyle”. No grafite, tem cinco tipo de grafite, um deles se chama freestyle; quer dizer “estilo li-vre”, né. É uma coisa, tipo: “Ah, livre, eu sou livre”. O “Hip Hop” foi a primeira tatuagem que eu fiz. Eu tava come-çando. Aqui, as iniciais de cada membro da minha crew. O “RC” é Restinga Crew. A “nota musical” relacionada à música. Aqui, minha mãe, eu e minha irmã, eterno! O “S” de sabedoria; muito importante, o “S” também do nome da minha mãe, que é Sandra e, aí, é um “S” em estilo grafite também. A “caveira” e a frase “Bboy or die”, que é “bboy até a morte”. Aqui, são duas tampinhas de spray, que querem simbolizar um o grafite e o outro a dança. Aqui na orelha tem o “desenho do coringa”, mas é uma coisa minha, por-que eu sou muito fã do coringa, eu acho muito interessante a história, não pelo que ele faz com a humanidade, mas pelo jeito que ele lida com diversas situações. Uma coisa que o Batman não consegue tirar dele é o sorriso, mesmo que ele esteja na pior, nunca consegue tirar o sorriso dele. Na barriga, tenho Restinga Crew tatuado: Restinga Crew é família, tinha que representar de alguma forma, né?!

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Então, todas as minhas tatuagens têm significado; nunca faço tatuagem sem significado, não consigo!

Cko trabalhava como oficineiro há aproximadamente quatro anos e teria iniciado por indicação de Jukinha. De-preendia-se de seus depoimentos que fazia uso da ambiên-cia hipertextual da internet de maneira intensa. Os saberes desenvolvidos desde suas leituras e pesquisas (na internet, sobretudo,) teriam sido suportes importantes para manuten-ção de seus vínculos de trabalho. Muitas vezes, precisou ela-borar projetos e currículos para se candidatar a vagas como oficineiro, noutras, necessitava elaborar conteúdos para suas aulas, e teriam sido as disposições construídas nas buscas por informações sobre Hip Hop e dança os potencializadores de seu capital cultural.

Entretanto, percebia que Cko tinha sua identidade tensio-nada na interface entre as práticas como bboy e como edu-cador, nos moldes de um “jogo do eu”, como assinalado por Melucci (2004). Em todos os locais que o encontrava, via-o vestido como ativista do Hip Hop (tênis com cadarços largos, camiseta grande e serigrafada, boné, etc.), mas na escola ti-nha atitude diferente de quando estava com seu grupo. Suas falas eram menos incisivas, sua gestualidade mais contida. Não se apagavam as marcas de sua pertença preferencial, no entanto, ele também demonstrava desejo de reconhecimen-to pela qualidade de seu trabalho no espaço escolar. Para os professores, distinguia-se como oficineiro de Hip Hop, mas seu depoimento indicava iniciativas orientadas a consolidar posição naquele locus.

Eu cheguei pra ela e perguntei: “professora, eu quero que a senhora me analise. Como foi a minha estadia aqui no escola? O que a senhora acha que eu posso melhorar, o que a senhora acha que eu tô bom? Eu não digo na forma de

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ensinar Hip Hop, até porque a senhora não conhece Hip Hop, mas digo no sentido de trabalhar com as crianças”.

Cko tinha por rotina acompanhar grupos de crianças ou adolescentes no contraturno das aulas. Como acontecia com seu colega Julinho, não gozava do status de professor, era educador ou oficineiro. Contava que não havia reunião com professores, embora o tivesse solicitado e que alguns pro-fessores não gostavam das práticas em contraturno, porque geravam movimentação e ruído que, supostamente, atrapa-lhariam as aulas. Além disso, as oficinas que realizava não eram articuladas a conteúdos curriculares ou a práticas de docentes nas disciplinas. Indiciava-se certa hierarquização entre capitais culturais e o trabalho que realizava parecia instrumentalizado sob o intento de oferecer alternativas de ampliação do tempo de permanência na escola.

Como a escola já tem regras que não pode isso, não pode aquilo, é assim, assim, assim, que tu tem que fazer o A, o B e o C. Pra mim, seria complicado trabalhar com as crian-ças livres aqui e todos os outros cursos. Todo mundo pa-drão, então eu tenho que me adequar no padrão também.

Sua oficina na escola diferia muito das dinâmicas dos en-saios do Restinga Crew. Havia uma programação de ensino de passos detalhados em pequenos movimentos, que, em aula, os alunos podiam repetir, imitando o oficineiro e seguindo suas orientações. Tempo e frequência eram controlados, como de praxe entre as atividades escolares, e quando Cko oferecia a alternativa de um tempo para experienciação individual, os alunos preferiam fazer coisas distintas da dança (brincar, cor-rer, conversar, sair da sala, etc.). A atuação de meu interlocu-tor parecia reconfigurada pelo contexto institucional.

De toda forma, embora tivesse reservas em relação às assi-metrias das relações na escola, de maneira um tanto pragmática,

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sua tomada posição se orientava a fazer daquele espaço um lugar de reconhecimento, ampliando seu espaço de possibilidades.

3.3 Anderson, a dança e a potência de um “projeto”

Diferente da maioria de seus colegas de grupo, Anderson não cresceu em um bairro de elevada precarização das con-dições de vida. Segundo me contou em entrevista na sala de estar de sua casa, vivia até então no bairro Aberta dos Morros, em área semi-rural vizinha à Restinga. Tinha 17 anos, era filho único e morava com os pais. Sua mãe trabalhava em casa e tinha concluído a quinta série escolar; seu pai concluíra a ter-ceira série do ensino fundamental e trabalhava desde os oito anos de idade em atividades de jardinagem e construção civil.

Sua infância teria transcorrido naquele espaço. Costuma-va brincar com os amigos na rua em frente à sua casa e dizia ser a localidade onde residia um local tranquilo, sem os riscos de um “bairro como a Restinga”. A carreira escolar começou na educação infantil e, a partir dos dez anos de idade, passou a acompanhar seu pai nas atividades de trabalho. Na parede da sala figurava uma foto sua de criança, vestindo toga: “foi a formatura da creche”, como me disse, ao narrar o forte incen-tivo dos pais aos estudos.

À distinção de seus colegas, Anderson integrava um nú-cleo familiar que não passara por mudanças de composição ao longo de sua curta trajetória. Neste cenário relativamente estável, o estímulo ao envolvimento precoce com práticas la-borais e o incentivo aos estudos parecem ter materializado exemplo das “razões do improvável”, no sentido definido por Lahire (1997) ao elencar aspectos que poderiam levar filhos de grupos populares ao sucesso escolar, mesmo quando o re-duzido capital cultural não o ensejasse.

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Sim, sim, é, meu pai sempre exigiu que, embora eu traba-lhasse, sempre fosse minha educação em primeiro lugar, minha mãe também nunca me deixou eu faltar. Teve um ano que eu não faltei nenhum dia de aula. Então, eu sem-pre tentei ser o mais assíduo possível nas aulas. Nunca faltei, não minto, faltei uma vez só pra fazer uma apresen-tação em que foi a apresentação da Feeling Gaúcho com o Renato Borghetti, no teatro. (Mar. 2014)

Anderson definia como pessoa bastante disciplinada, concluiu o ensino médio sem reprovações e pretendia cursar faculdade. Vale considerar, aqui, que a relação com a carrei-ra escolar, mesmo articulada a projeções pessoais, não pare-cia significar adesão aos propósitos escolares. Demonstrava disposições orientadas a construção de um caminho próprio de independência, de “fazer por si”, gestadas junto à moral familiar operada pela inserção precoce ao trabalho e na es-colarização. Assim, embora tenha atuado em conformidade com a instituição, a produção de sentidos em relação a ela apresentava nuances.

Por volta dos 10 anos de idade, decidiu frequentar um Centro de Tradições Gaúchas (CTG), por desejo de experi-mentar algo diferente das tarefas de sua rotina. Sua demanda foi atendida pela família, que passou a frequentar também as atividades do Centro. Disse-me que seus pais participavam apenas para acompanhar e incentivá-lo. Tão logo Anderson deixou o CTG, eles também pararam de frequentar.

O único contato que eu tinha com a cultura hip-hop era a música, né?. O rap que eu sempre gostei, Eu conheci a dan-ça sem sair daqui, né?, por alguns amigos meus que come-çaram a dançar. A gente treinava aqui em casa. Um deles dançava freestyle e fazia capoeira e, aí nessa da capoeira, ele conheceu um rapaz que treinava no grupo Restinga Crew. Daí, ele trouxe o rapaz pra treinar conosco, porque

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ele sabia muita coisa. Ele convidou nós pra ir treinar no grupo. E aí, todo mundo ficou muito empolgado pra ir, mas eu não fui porque meus pais não deixaram, porque era a Restinga e tal. Eu tinha doze anos na época, por aí... Com quatorze anos, eu comecei a ir nos treinos assiduamente.

Sua relação com o break foi antecedida pelo consumo de rap, iniciado já aos oito anos de idade. Seguia vinculado ao CTG quando amigos lhe ensinaram alguns passos. Acessou os treinos do Restinga Crew por intermédio de sua rede de sociabilidade e quando passou frequentá-los, o grupo já era bastante conhecido na cena Hip Hop de Porto Alegre. Afirmou em entrevista que a dança representava, de início, uma espé-cie de compensação da rotina que tinha: além de frequentar a escola e auxiliar seu pai, ele trabalhava em diversas ativida-des informais que garantissem rendimentos e uma relativa independência financeira.

A dança pra mim surgiu num momento que ela foi como uma válvula de escape, né? Eu só estudava e trabalhava, então era um, um robô! Então a dança me tirou disso né, porque não interessa o que acontece da porta do treino pra for aa partir de um momento que tu ouve uma música que tu gosta teu sentimento já é outro, tua cabeça já é ou-tra, tu quer dançar e não interessa o resto, sabe?Acho que a melhor coisa que eu tiro da dança assim é ver o olhar das pessoas te admirando, sabe? Acho que, bah, acho que isso não tem preço.E não seria um hobby, porque hobby é uma coisa que se tu… Ah quarta-feira eu vou sair com a minha namorada, então não vou dançar. Não, não tem como, sabe?! É uma coisa que não consigo mais faltar, por algum motivo as-sim. Uma coisa que tu já precisa daquilo sabe?

Segundo sua narrativa, estar entre os bboys representa-va a possibilidade de fruição, reconhecimento e, consonan-

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te com o modo de “fazer por si”, uma forma de experienciar autonomia na aprendizagem de seus passos. Ademais, foi o meio pelo qual a vivência do espaço urbano se reconfigurou: com amigos, passou a circular por diferentes partes da cidade e, algumas vezes, a viajar para participar de eventos; também com eles aprendera a caminhar pelas ruas, identificando e evitando potenciais situações de risco.

Porém, a pertença de Anderson à dança precisa ser co-locada em perspectiva. Ele afirmava com prioridade as pro-jeções de continuidade de sua carreira escolar e de inserção profissional. A vinculação ao grupo e ao break não eram apre-sentados como temporários, mas também não gozava de cen-tralidade. Ao invés de se colocar o compromisso de escolher, ele tendia a apostar na possibilidade de conciliar interesses e pertenças múltiplos.

Retomando os argumentos de Vieira (2012), considero que seu processo de individuação ambientou-se em pelos menos três elementos: na socialização oportunizada pela fa-mília, que, por seus meios, parece ter reconhecido logo cedo sua condição de indivíduo com autonomia; em complemen-taridade e contraste, na liberdade de fruição e no protagonis-mo construídos junto aos amigos, em relativo distanciamento dos pais; e na assunção da relação institucional educação-tra-balho, na qual vinha atuando com disciplina e êxito, para a narrativização de um projeto individual.

Eles já passaram mais necessidade do que eu, né. Mas eles viveram muito mais intensamente dança do que eu tam-bém, né? Quando eles se apegaram naquilo, eles realmente se jogaram! Eu tenho um controle muito grande em torno das outras coisas que eu quero, né. Não quero só dançar pelo resto da vida.

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Assim, se Julinho e Cko fizeram seu caminho de individu-ação desde as possibilidades construídas na prática do break, logrando, depois, inserções em outros locus, Anderson conce-bia projeções mais próximas a arenas institucionais, confor-me o espaço de possíveis que se lhe apresentava. Mas buscava também articular suas pertenças e manter viva a vinculação à dança e ao grupo, que considerava visceral e significativa em sua ainda curta existência.

Observando os três casos, as redes relacionais constituin-tes dos itinerários, incluindo-se aí espaços institucionais, es-truturam diferentes estímulos à individuação. As provas so-ciais recorrentes remontam à necessidade de lograr trabalho e sustento e, em articulação, a buscas por distinção. Neste, entretanto, a escolarização surge como desafio concernente. Impelidos à subsistência por conta da vulnerabilidade das condições de existência, pela moral familiar de valorização do trabalho e da independência financeira ou mesmo pela chegada prematura de filhos, estes jovens parecem ter sido precocemente interpelados à responsabilização por suas ati-vidades cotidianas.

A escola também parece ter exercido papel singularizante nos casos em análise, na medida em que, no intuito de am-plificar as possibilidades de vinculação dos alunos, cria di-ferentes iniciativas para integração destes. Seria o exemplo da dança para Julinho e Cko, desde a qual passaram, por seu turno, a se posicionar taticamente na relação com a institui-ção escolar. Também o faz, ainda, quando estimula distinção entre alunos, creditando valor ao esforço sob o discurso do mérito individual. Neste caso porém, não são muitos os casos de êxito entre os bboys do grupo e Anderson se diferencia, ao que parece, porque tivera consigo os estímulos familiares ora em apoio e presença em atividades que desejava realizar, ora em orientações para que se autonomizasse.

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O mundo do trabalho, desde as inserções informais e pre-cárias a que estiveram submetidos, ou mesmo na condição de educadores, parece ser um espaço de táticas que, interpondo o desafio da subsistência, reforça as ações de singularização pela astúcia frente a vínculos instáveis e aos riscos de uma trajetória errante. Assim, a conquista de atribuições como educadores em dança parece reforçar existencialmente as pertenças preferenciais, ao representar certo reconhecimen-to do que fora construído no itinerário, convertendo-se em distinção entre os pares110.

No correr desse processo, o consumo parece se estender como forma de reafirmação das singularidades, nas vesti-mentas e tatuagens que conseguem dispor. Ali, as identifica-ções se explicitam e, junto a outras filiações, a pertença ao grupo, ao Hip Hop e à dança se fazem visíveis de maneira contundente.

Nesse sentido, vale salientar que a dança no Hip Hop se constitui para eles, a uma só vez, arena para provas e supor-tes. A prática de breakdance e as relações que condensa am-bientam disputas por reconhecimento (individual/coletivo) em torneios e/ou celebrações em espaços públicos, integra-das ao espaço de ação da “cultura”. Configura também redes que, junto aos laços de reciprocidade familiar, constituem o apoio (concretizado especialmente na crew) para manuten-ção de atividades e para produção de saberes que, por vezes, oportunizam a inserção individual em outros campos. Pelo que se observa, para a maioria dos dançarinos a articulação ao grupo é, de um lado, parte de uma rede não muito extensa

110. Neste caso, é preciso assinalar que as conquistas se devem também a uma am-pliação das oportunidades para “oficineiros” na rede escolar, em função de progra-mas de investimento na integralização da educação e do aumento de investimentos na área. Assim, o desafio do trabalho e da subsistência conta com suporte institucio-nal constituído em nível nacional. Porém, são políticas e recursos cuja permanência sempre guarda certa imprevisibilidade decorrente das altercações políticas.

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na qual o suporte se concretiza efetivamente, diante a uma realidade de presença insuficiente de aparatos institucionais do Estado. De outro, tende a ser o lugar onde logram reco-nhecimento mais expressivo para suas singularidades numa sociedade que os pergunta por projetos individuais. Eis que cabe compreender o cotidiano destas dinâmicas.

4. Sobre as dinâmicas reflexivas: o grupo, os ensaios e a singularização

A problematização de processos de individuação mere-ce análises que destaquem não somente a configuração de itinerários biográficos frente ao múltiplo e ao instável dos contextos de socialização (e aos desafios interpostos aí), mas também uma análise de como cada espaço social se organi-za cotidianamente na produção de arranjos singularizantes, na composição de provas e suportes. Assim, nos limites des-te texto, gostaria de fazer tal exercício de maneira mais de-tida retornando às práticas construídas pela crew, locus de identização preferencial da maioria de meus interlocutores e, conforme procurarei detalhar, uma ambiência privilegiada de singularização.

De início, vale destacar que os laços entre meus interlocu-tores transcendiam os treinos e apresentações. Desde a con-vivência no grupo, formavam entre si vínculos de amizade e reciprocidade que, recorrentemente, eram reafirmados em suas falas e em publicações de redes sociais. Costumeiramen-te, mencionavam que a crew era também sua “família”; mui-tas vezes, a participação em eventos de alguns era amparada por recursos do coletivo; e, noutras situações, colaboravam com colegas de grupo, acolhendo-os por tempo indetermina-do em suas casas.

Em seus encontros, quando evocavam memórias, estas vinham acompanhadas da menção às condições de vida e

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da afirmação do enfrentamento às adversidades como mo-tivo de distinção dos integrantes da crew. Quando narravam suas rotinas diárias, realçavam seu esforço para manterem a qualidade de suas performances, a enunciar a necessidade de resistência e superação para se alcançar o desejado. Neste sentido, afirmavam ser possível levar em conta as dificulda-des experienciadas e também admitir ignorância sobre algo, mas não se admitia que o sujeito se eximisse de tentar e mar-car uma posição. Aqui, a palavra “atitude” parecia ser signo desse discurso e as incursões em campo indicavam que este seria um traço corrente ao sistema simbólico do Hip Hop, a exemplo do que afirma Pardue (2008).

Se, de um lado, essa discursividade configurava parte dos apelos por distinção individual, de outro e em articulação, sinalizava também para critérios de ingresso no grupo. Os treinos eram abertos, mas a integração à crew passava pelo atendimento de requisitos. Contaram-me, a propósito, que haveria uma espécie de processo seletivo, o que incluía de-monstração de empenho nos treinos, disposição para acom-panhar o grupo em eventos, permanência e regularidade de presença entre as atividades e vivência dos elementos da “cultura”. A partir dessa configuração, embora se pudesse ter várias pessoas a partilhar saberes sobre passos de dança nos treinos, a formação do Restinga Crew em apresentações públicas mantinha um núcleo de participantes relativamente estável. Dos oito dançarinos que compunham a crew no perí-odo de nossas interlocuções, cinco tinham ingressado à épo-ca de sua constituição, em 2003.

Todas as vezes que gente ia se apresentar a gente tinha que dizer o nome [...] “Fala o nome, fala onde tu mora”. Já começava aquela palhaçada: “bah... fecha a porta que os caras da Restinga estão aqui. Guarda as bolsas!” Aí, a gen-te resolveu criar o Restinga Crew. (Julinho - Set/2013)

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Aspecto significativo nessa ambiência é a forma como foi composto o nome da crew. Segundo contam, teria surgido em decorrência das exibições fora da Restinga. Eram frequentes os comentários preconceituosos quando informavam a ori-gem do grupo. Então, em rechaço à discriminação, tomaram posição dispondo signo do bairro no nome do grupo, fazen-do do estigma um emblema (Reguillo, 2012). E tal formula-ção parece se articular aos modos de operar nas práticas em dança e aos arranjos relacionais que as constituem, tessitu-ras essas que denominarei, aqui, como ‘dinâmicas reflexivas’, no intuito de realçar uma das especificidades da forma como atuavam e sociabilizavam os bboys.

Na sequência então, passarei a uma apresentação das di-nâmicas instauradas pelo grupo em seus treinos. Estes eram os principais momentos de encontro e sociabilidade dos bboys e, também, iniciativas que me sinalizavam para os mo-dos como produziam saberes, pertenças e singularizações na produção de sua prática.

4.1 Em fruição, dos treinos aos ensaios

Acompanhei os treinos que faziam semanalmente no CE-CORES. Costumavam chegar por volta das 19h no ginásio. As atividades aconteciam em espaço contiguo a uma quadra poliesportiva, em local aberto e podia ser acompanhado por quem quisesse. Aqueles que desejavam aprender a dançar podiam se aproximar e participar. Os bboys costumavam dar algumas orientações sobre movimentos básicos.

Julinho, liderança do grupo no que tange à organização das atividades, era o primeiro a aportar por lá geralmente. Trazia consigo uma caixa de som e sua mochila e logo dispu-nha os equipamentos em funcionamento. O som de músicas em alto volume tomava o espaço e, pouco a pouco, integra-vam-se os demais integrantes. Cada pessoa que chegava cum-

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primentava os presentes um a um e, em um caso ou outro, conversavam e partilhavam acontecimentos do dia. Alguns dos dançarinos trocavam de roupa, colocando toucas, bonés, joelheiras e tênis que consideravam apropriados para a dan-ça; outros permaneciam com a roupa que estavam.

Em geral, percebia que os treinos tinham uma sequência iniciada por alongamentos e aquecimentos. Em seguida, de-dicavam-se a práticas individuais de realização e qualificação de passos, numa dinâmica persistente de tentativas e erros. Por fim, faziam uma roda de dança entre todos os presentes, quando em um círculo todos embalavam ao som da música e, paulatinamente, os dançarinos iam ao centro, faziam sua per-formance e provocavam um colega para que também o fizesse.

Essa rotina era variável. Alguns resistiam a fazer alonga-mentos e aquecimentos e preferiam partir para o treino indi-vidual; a roda de dança nem sempre acontecia ou podia ser substituída por um momento de deliberação do grupo. A in-tensidade dos treinos podia variar conforme a temperatura, e o frio das noites de inverno no ginásio podia limitar a prá-tica. Quando realizado plenamente, porém, o treino parecia compor uma estrutura análoga a das vivências do grupo em sua inserção no campo da dança de rua e, então, configurava--se como ensaio. Com isso quero dizer que, ao estabelecer-se uma sequência que passava da prática individual a apresen-tações para o coletivo, refletia-se a organização de sua prá-tica entre prioridades e rotinas: períodos de preparação e a expectativa de apresentações públicas entre pares e para uma plateia, em um percurso permeado por fruição musical, sociabilidade e reconhecimento.

Impressionava-me como sentia a fruição do tempo na-quele lugar. Frequentemente, os ritmos musicais pareciam cadenciar os exercícios dos bboys, a estimulá-los na partilha de movimentos, de expectativas de êxito nos passos, de brin-cadeiras jocosas sobre os jeitos individuais. Lembro-me de,

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certa vez, contemplar Cko ensaiando passos em frente ao es-pelho e, em seguida, Anderson o acompanhar como se fosse uma coreografia. Chamaram outro garoto e seguiram os três. O som em volume alto tomando o espaço parecia concentrá--los e conectar seus corpos que, em movimento cadenciado pelo ritmo, fluíam em gestos assemelhados e traziam a mim, como observador, a sensação de uma fruição empolgante, a ancorar a pulsação do tempo (Melucci, 2004) em uma experi-ência de partilha, integração e protagonismo.

Noutra ocasião, assistia um torneio de dança realizado mediante rachas entre bboys durante a Semana Municipal do Hip Hop. Os dançarinos formavam duplas e participavam de embates, que acabavam por aludir simbolicamente batalhas de gangues. Cada dupla fazia uma performance com pelo me-nos a sequência básica do break111 e, ao final, convidava os oponentes a atuarem confrontando-lhes com uma provoca-ção (um olhar, um gesto, etc.), normalmente seguida de ova-ção ou risos do público. Após três performances de cada du-pla, os jurados informavam sua apreciação, definindo quem seguiria na competição.

Em um dos embates em que participavam integrantes do Restinga Crew, a disputa ficou bastante acirrada, entu-siasmando quem assistia. Percebi que certa vibração trans-cendia a prática daqueles diretamente envolvidos e tomava os integrantes das crews que assistiam ali próximos, sobre o palco: as atuações dos bboys eram acompanhadas de pro-vocações também performáticas dos demais componentes dos grupos. Imbuídos da emoção da “batalha musicada”, os movimentos expressavam a plasticidade de um espetáculo

111. O break apresenta como sequência básica o toprock (combinação introdutó-ria de passos feitos em pé), footwork (parte da dança em que o bboys podem fazer composições de passos, incluindo movimentos de solo) e freeze (encerramento da performance com a exibição imóvel de uma posição singular). Os dançarinos podem acrescentar movimentos acrobáticos, chamados de power move.

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e evidenciavam, para além de conceber um público, imersão em uma prática e conexão com uma ambiência de reflexivida-de mimética (Lash, 2012). Uma intensa vivência de sentir-se parte e sentir-se socialmente potente, indiciando, além disso, a incorporação de formas de expressão culturalmente valori-zadas em uma sociedade permeadas por espetáculos (Hers-chman, 2005).

4.2 A mimese

Retornando à rotina dos treinos, vale assinalar que em-bora estivessem todos no mesmo espaço e fruindo a mesma música, cada dançarino concentrava-se em um ou outro pas-so que estava tentando aprender. Eventualmente, trocavam olhares ou sinalizavam com poucas palavras a necessidade de alguma alteração de movimento a um colega. Não havia ali a figura de um educador que centralizasse as orientações. Os iniciantes recebiam orientações elementares, o estímulo para não se acanharem e, sobretudo, para persistirem. De-pois, teriam igualmente que seguir repetindo e experimen-tando individualmente.

Na maioria dos casos, tratava-se de aprendizados por mi-mese, no sentido descrito por Bourdieu (1990) em relação às práticas esportivas. A visualização do exemplo e a tenta-tiva de imitá-lo ganhava lugar importante. Assim, a presença e atuação dos mais experientes eram significativas, criando referências para apropriação de movimentos e memorização corpórea de gestos e sequências. Vale aventar, ademais, que o estruturar do modo de dançar operava desde uma ambiência que extrapolava os exercícios em treino, de forma que a mi-mese derivava sua efetividade da imersão em outras práticas que faziam o contexto dos bboys, como seriam exemplos as experiências relatadas por eles em capoeira, ginástica ou o próprio consumo musical e a frequência a festas.

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Certa vez, integrava uma roda de conversa entre profes-sores de dança e integrantes do Restinga Crew quando fomos convidados por Lucas, um dos criadores do grupo, a expe-renciar passos básicos. Nesta ocasião, o bboy se postou como educador e, à nossa frente, repetia movimentos lentamente e explicava como deveríamos proceder. Procurei seguir suas orientações, mas o resultado parecia-me desconcertante. Fa-zia um enorme esforço de concentração para imitar o que os corpos treinados de meu instrutor e de meus colegas (oriun-dos do curso de dança) pareciam fazer com muita facilidade. Tentamos passos básicos de toprock e footwork e meu corpo sinalizava que me faltava força e equilíbrio, fazendo-me pensar em todo o trabalho representado pela corporeidade de meu instrutor. Seu corpo hábil “conectava” passos de maneira fluída e iniciava as sequências coreográficas por qualquer ponto, na expressão de uma memória para além do racionalizado.

4.3 A criação e as tecnologias

Para além e em articulação com a mimese contudo, o tra-balho individual dos bboys nos treinos representava a busca pela construção de estilo, ou de flavour, como dizia Julinho, usando expressão corrente no meio. Alguns poderiam ser mais melódicos nos gestos, outros poderiam explorar carac-terísticas de elasticidade ou força. Desta maneira, os passos receberiam variações conforme as singularidades dos dança-rinos. Embora o domínio dos fundamentos fosse uma busca, a aprendizagem rigorosa dos passos não se resumia a uma realização padronizada; era associada explicitamente à cons-trução de um jeito próprio de fruição, que singularizasse o bboy junto aos pares.

A construção do estilo ancorava-se, ainda, em estudos. Os dançarinos despendiam horas na internet, buscando mate-

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riais (músicas, vídeos, tutoriais, etc.) que lhes informassem sobre a história da “cultura”, sobre eventos e manifestações de dança e sobre exibições de dançarinos de break ou ou-tros gêneros. No caso destas últimas, replicavam um hábito iniciado com o uso de fitas VHS pelos mais velhos e ampli-ficavam seus acessos, conhecendo contextos de diferentes partes do globo. Afirmavam procurar materiais e inspirações na rede, de modo que um vídeo poderia ser analisado várias vezes para que pudessem replicar um passo e, em seguida, alterá-lo compondo algo de pessoal e original. Tal dinâmica lembrava-me os argumentos de Feixa (2009) sobre a concre-tização local de produções juvenis cosmopolitas que, frente à diversidade de acessos e à pluralidade de interações, esta-riam propensas à individualização de suas práticas.

Em uma noite bastante fria, percebi que nem todos se exercitavam no ginásio. Alguns estavam assistindo um vídeo no computador. Versava sobre a história do Hip Hop e mos-trava cenas do início dos anos 1980. Cko comentava comigo as roupas e estilos diferentes no vídeo. Para exemplificar o que explicava, caminhava pelo espaço representando jeitos de caminhar de bboys americanos e brasileiros, tentando de-limitar elementos das identidades que percebia.

Esse não era um fato isolado. Em geral, os integrantes do grupo usavam tecnologias digitais desde celulares, no-tebooks, tablets. Além de estudarem os passos de outros dançarinos, filmavam seus treinos para analisarem os movi-mentos; gravavam suas apresentações, editavam de maneira rudimentar os registros e divulgavam em redes sociais.

Penso, nesse sentido, que as condições de acesso a equi-pamentos culturais de que dispunham meus interlocutores se aproximava do afirmado por Barbosa (2013) acerca das juventudes nas favelas do Rio de Janeiro. Não havendo a ofer-ta de alternativas por aparatos público-estatais, eles seguiam construindo suas experiências estéticas em atividades infor-

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mais, combinando linguagens áudio-visuais e técnicas infor-macionais na produção de suas estratégias de fruição, apren-dizagem e socialização do que faziam.

Seus usos de recursos digitais sugeriam, ademais, que poderíamos retomar ideias de Lévy (1997) acerca da noção de “ecologia cognitiva”. A demonstração de disposições para navegar por um ambiente hipertextual e, a partir daí, compor acervos próprios para consultas e estudos (músicas e vídeos, sobretudo) e operar na composição de seus próprios arte-fatos para compartilharem em rede, parecia configurar um modo preferencial de aprender, ancorado no que lhes era sig-nificativo, ambientado pelas possibilidades tecnológicas das quais conseguiam usufruir.

Os integrantes do Restinga Crew, salvo em casos de men-sagens curtas em redes sociais, não faziam uso muito exten-sivo da escrita ou da leitura. Suas experiências de escolariza-ção tinham garantido apenas uma apropriação elementar de tais códigos. Contudo, o uso de imagens e o acesso à internet possibilitava novas bases de memória estendida para o que lhes interessava conhecer/pesquisar e, também, para o que desejavam registrar e socializar dentre suas realizações.

Pra se inventar o passo, tu faz uma pesquisa através de um passo básico. Tu pesquisa vários vídeos de outros dançari-nos pra ver a forma como eles estão fazendo aquele passo. Daí, tu tenta errar aquele passo. Depois que eu fiz ele erra-do, eu vou tentar fazer ele errado o tempo todo, entendeu?, pra eu criar uma identidade e as pessoas ver que eu não estou errando. Não é um erro porque eu não sei fazer, mas sim um erro porque eu quero fazer daquela forma, pra ti ter reconhecimento, entendeu? (Lucas – Jan. 2014)

Além disso, sentindo-se a descartabilidade do que se acessa ou disponibiliza, dada a intensidade da circulação de informações, e a dificuldade de se garantir autoria, quando a

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cópia ou a adaptação de passos era corrente, a construção do estilo individual parecia ser uma busca vivida como neces-sária nessa ambiência. Assim, voltamos ao flavour, condição para distinção entre os pares e possibilidade para ancorar a singularização frente à produção massiva e recorrente de va-riações sobre o tema (de que eles próprios eram coautores).

4.4 A estética

No curso de tal análise, penso adequado considerar tam-bém a relação dos bboys com sua prática pela potência da produção artística. Frequentemente, meus interlocutores narravam o break como aquele gênero de dança cuja flexibi-lidade e abertura à composição mereceria destaque. Caracte-rística que podia observar nos demais elementos do Hip Hop, quando via as mixagens feitas por DJs ou, noutro exemplo, as composições de rappers.

A sensibilidade112 que professavam se dirigia especialmen-te à interação com aqueles que se dispunham a partilhar mo-mentos de dança com eles. Afirmavam sua abertura em nome das possibilidades de aprendizagem recíproca. Segundo os dançarinos, mesmo aquele que ainda não sabe poderia contri-buir com um jeito de andar, com alguma ideia sobre a qual não tinham pensado. A experiência estética a que se propunham parecia se associar uma disposição ética, aberta a interações naquilo que os move e, neste sentido, respeitosa do que o outro sabe e pode dispor para a partilha desde o que lhe é peculiar.

Afirmavam que poderiam compor sequências coreográfi-cas com passos de diversos tipos de danças, práticas esporti-vas ou acontecimentos cotidianos. Neste sentido, afirmavam a necessidade de sensibilidade ao que o entorno lhes apre-

112. Para “estética”, considero, aqui, a acepção relacionada ao termo grego “aisthe-

sis”, que designa percepção, sensibilidade.

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sentasse. Penso que me falavam do que Pereira (2012) chama de uma “atitude estética”, como uma “atitude desinteressa-da, uma abertura, uma disponibilidade não para o aconteci-mento em si, para os efeitos que ele produz na percepção” (p. 186). Tal condição de suscetibilidade seria, para o autor, a po-tencializadora da experiência estética que instiga a criação.

Assim, diria que fruíam as músicas deixando que o corpo construísse o caminho no gingar de movimentos, dessa forma, tinham ideias para sequências de passos. Cko me contou, cer-ta vez, como teria imaginado a proposta da “Feeling Gaúcho”, a coreografia mais conhecida do grupo na cena de Porto Alegre. Estava a escutar músicas de madrugada e, quando organizava seu acervo de canções gauchescas, teve a intuição de compor passos de break ao som destas. Em seguida, telefonou para Julinho e falou da inspiração. Naquele momento, não era mais que isso, uma epifania. Depois, para a composição da coreo-grafia, Julinho disse-me que deixou que a música escolhida lhe instigasse sobre que passos dispor em sequência.

...a produção artística é um ensaiar, um proceder atra-vés de propostas e esboços, interrogações pacientes da matéria. Mas esta aventura criativa tem um ponto de re-ferência e um termo de comparação. O artista procede por tentativas, mas a sua tentativa é guiada pela obra tal como deverá ser, algo que, sob a forma de um apelo, e de uma exigência intrínseca à formação, orienta o processo produtivo: o ensaiar dispõe, portanto, de um critério, in-definível mas muito sólido: o pressentimento do resulta-do... o adivinhar da forma. (Eco, 2008, p. 18)

Disseram-me que não haveria uma narrativa (em senti-do estrito) na sequência que compuseram. Mas a tomada de posição era explícita: a possibilidade de integração, de que fruíssem juntos aqueles que, costumeiramente, viviam sepa-rados. Falo, então, de algo não necessariamente racionaliza-

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do, mas que compunha uma criação passível de interação e mobilização; algo intuitivo, performático e espetacular que condensa certa reflexividade do cenário e convida a plateia a partilhar desta última.

5. Ainda sobre individuações, o break e a reflexividade

Os elementos que procurei destacar nas relações constru-ídas pelos integrantes do Restinga Crew, em associação ao Hip Hop e na realização de sua prática, sinalizam para a potência de individuação daquela ambiência, dialogando, aqui, com as inferências de Martuccelli (2007). Penso que as oportunida-des para fruição em coletivo, os laços de amizade e reciproci-dade, as disposições estéticas e as dinâmicas de aprendizagem e singularização de estilos abordados configuravam desafios em seu espaço de possíveis e, ao mesmo tempo, suportes des-de os quais os sujeitos buscavam conquistar reconhecimento social e significar existências individualizadas.

A partir da narrativa sobre as dinâmicas instauradas cole-tivamente nos ensaios do Restinga Crew e das trajetórias de três dos bboys que integravam o grupo, trouxe argumentos sobre as possibilidades de individuação instigadas no âmbito da dança (mas não só), conforme os sujeitos participavam em seus espaços de possíveis, a exemplo do que contam Leão e Carrano (2013) sobre o “jovem Milton”

Tomando os itinerários narrados, mais especificamente, foi possível observar que os dançarinos conseguiram não só lograr espaços para singularizar práticas e estilos, mas, tam-bém, acumular capitais culturais que lhes oportunizassem ocupações profissionais mais aproximadas do que deseja-vam fazer e desde as quais conseguissem posicionar-se. Aqui, podemos considerar que, pela prática da dança, encontraram espaço de construção de autonomia e ampliaram suas pos-

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sibilidades de independência, tomando aqui a problematiza-ção apresentada por Pappámikail (2012).

Considerando a contratação de ativistas do Hip Hop por instituições educacionais e/ou assistenciais, a dança de rua era tomada por uma interlocução culturalmente mais mobili-zadora e uma conexão mais efetiva os educandos, articulando os saberes de meus interlocutores como capitais. Conjuntura essa que, conforme indiciavam as práticas do Restinga Crew, é construída na potência reflexiva relativa às experiências em localidades de periferia e, ao mesmo tempo, em aproximação com relações sociais articuladas à espetacularização.

Em que pese as condições econômicas e culturais ad-versas das localidades de origem de meus interlocutores, a expressão no Hip Hop garantiu redes de sociabilidade e de reciprocidade propícias à produção de projetos de distinção individuais113. Contudo, a articulação entre individuação e autonomia não prescindia de laços institucionais (como su-gere Castells, 2013) e se organizava mais na integração de âmbitos institucionalizados e redes informais operada pelos sujeitos em seus percursos.

O trânsito de meus interlocutores por diferentes espaços, impelidos pelas necessidades ou instigados pelo desejo, pa-

113. Aqui, faria uma ressalva. As práticas do Hip Hop em Porto Alegre, conforme tenho observado, sofrem de certa perda de sua capacidade mobilizatória. As inicia-tivas da “cultura’ parecem estar setorizadas e muitos daqueles que eram lideranças, alocados em posições institucionalizadas (como produtores ou assessores políti-cos), sem que, com isso, o movimento tenha conquistado uma organização política que lhe garantisse condições satisfatórias de disputa por recursos públicos. Além disso, o rap já não tem o mesmo apelo nas comunidades de periferia que tinha nos anos 1990 e início dos 2000. Faço essas considerações para refletir sobre a posição de grupos como o Restinga Crew nas disputas de poder. Embora tivessem conheci-mento valorizado e fossem consultados eventualmente em função disso (por pes-quisadores, jornalistas, empresas, etc.), esse quadro não muda a vulnerabilidade de sua condição material. Embora os bboys logrem ocupações melhor remuneradas em alguns casos, estas são instáveis. Se há possibilidades à individuação, as possibilida-des de independência material ainda são restritas.

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rece compor o cenário em que recorrentemente elaboravam seus itinerários biográficos, enunciados na profusão das falas sobre o que faziam, sobre os anseios e sobre as expectativas em suspenso; comunicadas na delimitação de estilos, em rou-pas, nos gestos, nas tatuagens, nos passos de dança. Não raro, percebia que objetivavam com significativa facilidade seus percursos, narrados como trajetórias prenhas de realizações (apesar da pouca idade de meus interlocutores) e à expectati-va de um futuro de mais reconhecimento e visibilização.

Nesse sentido, considero que a duradoura pertença à crew erige-se em forte articulação às possibilidades de indi-viduação, constituídas por intermédio das dinâmicas reflexi-vas de suas atividades artísticas, pelos laços de sociabilidade e reciprocidade construídos, assim como pela conversão de saberes em capitais culturais, que lhes resultavam efetivos à subsistência e significativos à existência.

Os jovens do Restinga Crew pareciam ter consigo uma prá-tica reflexiva de maneira intensa e regular. E a dança, tomada em suas alusões simbólicas a guerras e/ou a batalhas entre gangues, ou nas composições com elementos percebidos no cotidiano, traz um convite à contemplação da realidade, para “devolvê-la” aos pares e ao público em versão encenada. Além disso, creio que os treinos e os rachas, especialmente, são momentos que promovem disposições reflexivas ao lan-çar os sujeitos em diálogos gestuais que, mais que a imitação, exige resposta provocativa e um argumento. O break traz um componente interpretativo sem que isso signifique racionali-zação, ao modo de uma reflexividade estética (mimética), que nos remete a uma comunidade onde se partilha uma “herme-nêutica de reapropriação” (Lash, 2012).

Condição que não contraria necessariamente, e pode ser complementar à reflexividade cognitiva realizada por ativis-tas do Hip Hop, cujas narrativas e enunciados sobre a história e a “cultura” podem orientar identificações. Mas que guarda

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a singularidade de não se encerrar obrigatoriamente no dis-curso, ensejando fruição nos alinhavos da conotação. Consi-dero a hipótese de que, como uma forma de expressão repre-sentativa das fragmentações e descontinuidades do cotidiano urbano, as sequências coreográficas levavam às plateias da crew movimentos cuja inter-relação não seria linear e racio-nalizada, mas não deixava de comunicar sensações concer-nentes às vivências na urbe. Procurando uma analogia, diria que assistir as apresentações era como assistir cenas de um filme em ritmo acelerado, ou fixar os olhos na paisagem mo-vediça avistada pela janela de um ônibus.

Creio que a dança praticada por meus interlocutores se constituía intuitivamente para um mostrar ao Outro; expres-são do que se percebe e sente. Parecia uma bricolagem espe-tacularizada, devolvendo-nos o cotidiano urbano multiforme, intensificado que produzimos atualmente. Embora não seja narrativo em sentido estrito, não deixa de nos contar “vejam, divirtam-se vendo o que é possível realizar; sintam o que te-mos a manifestar assistindo o que conseguimos fazer”; por ícones múltiplos, passíveis de interpretação hipertextual de quem assiste, o break comunica por sintonias.

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CAPÍTuLo 8Ensaio sobre as dúvidas – reflexividades e narrativas

no redesenhar do itinerário

Tenho costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda

E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes tinha visto

Alberto Caeiro – Pessoa

“Sei ter o pasmo comigo...”, dizia Fernando Pessoa. Mas como fazê-lo? Como se deixar conduzir pelas admi-

rações e surpresas, se preciso trazê-las em palavras depois, uma tarefa difícil, se não desconfortavelmente insuficiente?

Pois procurava um jeito de trazer elaborações finais, mas sem fechar em demasia minhas considerações. Queria, de al-guma forma, expressar quão aberta concebo esta síntese, e as palavras do poeta foram a melhor forma de manifestar meus sentimentos frente às realidades que se assomavam e asso-mam nas incursões, do que conseguirei dar vazão na sequên-cia, no constrangimento das palavras que me faltam, apenas na forma das perplexidades que me habitam e dos questio-namentos que gostaria de aventar desde e para interlocuções de pesquisa.

De todos os textos aqui, este é possivelmente aquele de escrita mais livre. Procuro traçar alguns alinhavos desde um olhar transversal aos diferentes casos que retratei antes e, no mais, faço disso um novo ponto de partida. Ensaiar as dúvi-das produzidas no curso de minhas escritas tem o lugar de registro e de construção de um recanto para contemplações outras e, quem sabe, fazeres políticos diversos.

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Nos capítulos antecedentes, destaquei diferentes configu-rações identitárias, na forma de eixos de tensionamento en-trelaçados a espaços de ação. Não tinha a intenção de afirmar formas cabais para as identidades logicamente, mas desejava caracterizar tomadas de posição e reflexividades junto a prá-ticas que regularmente ocupavam os dias das pessoas com quem interagi e, desde as quais, elas elaboravam muito de suas pertenças. Foi este o caminho metodológico para apresentar os sujeitos em seus posicionamentos, que me pareciam, em geral, relativamente abertos e sutilmente movediços.

Meu foco se orientava às condições sociais de tal produ-ção. Imaginar a identidade como campo de vetores, constru-ído desde (mas não só) a narrativização das experiências, foi a forma de compreender relacionalmente as identificações como processos e como multiplicidade, vivenciadas pelos sujeitos em buscas (mais ou menos provisórias) de unidade, conforme se lhes interpunham as descontinuidades da reali-dade social. Nas contingências de meus diálogos, mas também a partir das potencialidades desses encontros, foi possível contextualizar as práticas, compor posicionamentos e discutir interpretações para conceber identidades em narrativa.

Essa foi a forma de abordar as produções identitárias em contextos distintos, na relação com condições sociais, posi-ções e/ou redes de sociabilidade, na relação com práticas mais ou menos institucionalizadas, indo, em alguns casos, a situações de individuação. Assim, procurei esboçar eixos de pertença e reflexividade no cotidiano de educadores sociais, que apesar da crescente institucionalização de suas práti-cas, podem nuançar suas tomadas de posição conforme lhes constituem os enunciados que historicamente produzem o campo; catadores foram retratados em posições, mas tam-bém em algumas de suas táticas no contexto de inclusão pre-carizada em que atuam; trabalhadoras de pequenos empre-endimentos foram apresentadas desde suas redes de ação,

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com destaque à situação de gênero e aos laços comunitários, no contraste com sua pertença à economia solidária; ativistas do Hip Hop sinalizaram para o exercício narrativo e reflexivo crescente de práticas que tomam a identidade como pauta e a fruição como tática; e, no mesmo espaço de ação, bboys in-dicavam a potência dos saberes que produziam na busca de distinção e como âmbito de singularização.

A diversidade de práticas e pertenças de sujeitos em con-dição assemelhada nos acessos a recursos socialmente legi-timados (escolaridade, renda, moradia, acesso à saúde, etc.), indiciavam tessituras comuns aos contextos narrados. Há o enunciar de itinerários em que se realçam as adversidades “superadas” (daqueles que “fizeram por si”), que o movimen-to Hip Hop lança à visibilização de maneira contundente; há laços de reciprocidade e ajuda mútua que suportavam a “su-peração”, quando aparatos institucionais chegam, em geral, de maneira insuficiente; e existe a produção de capitais (so-ciais e culturais) que lhes garantem diversificação das experi-ências e amplificam as possibilidades de subsistência.

De outra parte, os cenários esboçados apresentavam dis-tintas condições para a produção de reflexividade, indo de artifícios da prática, gestados na forte assimetria de poder, a elaborações que procuravam narrar realidades e enunciar demandas por mudança. Algo que, entre as juventudes, pa-rece explicitar a ampliação do uso de narrativas e o exercício regular de auto reflexividade associada a buscas por singu-larização individual, que faz pensar sobre as consequências disso para a vivência do legado moderno da individualização, ou, de maneira mais ampla, para a experiência da modernida-de em periferias urbanas.

Nesse sentido, de um lado a outro das experienciações, entre diferentes espaços de prática ou no contraste de distin-tas condições etárias, desejo conceber o que perpassa, cicia-do nas “notas de rodapé” da textualidade; e, em consonância,

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seguir perguntando-me pelas possibilidades de diálogos que sejam educativa e politicamente provocadores e pelo lugar das narrativas neste percurso.

***

Achegar-me ao cotidiano em periferias urbanas me leva-va a problematizações sobre o que fazer político dos sujeitos com quem dialoguei, que podem, de certa forma, servir como uma contextualização à discussão sobre “reflexividades” e “narrativas”.

Na maioria das vezes, na conformação das práticas, perce-bia pessoas entre urgências e táticas; noutras menos comuns, via-as em filiações políticas institucionais, de ação abrangen-te ao município ou ao país, próximos a retóricas universali-zantes (de gênero, étnicas, partidárias, relativas a melhorias de vida em suas localidades). Porém, as elaborações formais e genéricas não pareciam ser os espaços de sentido mais re-correntes. Pleitos por educação, saúde, paz, dentre outros, estavam lá e falávamos sobre isso, mas a cotidianidade sinali-zava para ações voltadas à concretude de suas vivências e de seus contextos imediatos.

Na maior parte do tempo, não observava participação os-tensiva em movimentos ou espaços com pautas programáti-cas de atuação e que mirassem o Estado como arena privile-giada de disputa. Havia casos de filiação com forte expressão de engajamento, porém, o mais comum era uma vinculação eventual e orientada à conquista dos recursos sociais de que precisavam. Inspirado por Denis Merklen, diria que contem-plava a mobilização de redes de ação em uma politicidade do possível, que apropriava conquistas conforme lhe eram ofere-cidas as alternativas. Uma forma de atuação que, se pondera-da desde suas formas de organização, podia conviver com os apelos clientelistas que surgiam no caminho, mas não se res-

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tringiam à vitimização por estes, pois os tomava entre outras frentes de acesso a recursos que precisavam ser buscadas. Re-des, portanto, que se visibilizavam em mobilizações, mas não se extinguiam na conquista do que pretendiam, mostrando-se quando se avizinhava nova oportunidade. Tratava-se, pois, da configuração de arena em que se guarda certa margem às “ar-tes de fazer”, na forma analisada por Michel de Certeau.

Nesse cenário, tenho considerado que a noção de “capi-tal”, por vezes, pode ser analiticamente pertinente. Antes de uma caracterização dos acessos a recursos socialmente legi-timados como dominantes, considero o uso da noção propos-ta por Pierre Bourdieu para reflexões sobre os saberes e dis-posições produzidos na periferia, que resultam efetivos nas disputas por subsistência e também distinção. As incursões em campo sinalizam para a produção de capitais sociais e culturais que, na informalidade das práticas e na capilaridade de interações e contatos, logravam subsistência, inserções e reconhecimento. As atividades no Hip Hop teriam exemplos disso, mas antes delas, as dinâmicas culturais associadas à etnia negra114 e as iniciativas de mulheres nas periferias tam-bém o indicavam.

As práticas de bboys, como espaço de distinção, traziam elementos do que afirmo acima. Os jovens dançarinos do Restinga Crew fizeram de seu encontro com as expressões e sensibilidades das artes algo potente, sendo que o uso inten-sivo de artefatos imagéticos parece ter sido a mediação para aprendizagens e para a participação na produção de capital

114. Nas entrevistas realizadas, as dinâmicas étnicas negras, que, por uma condição histórica, têm presença massiva nas periferias, destacavam-se na formação de redes de interação cultural (sobre música e dança sobretudo), na produção de memória oral e na afirmação de identidade. Nesta ambiência, conteúdos veiculados em mídia de massa eram incorporados para fruição nos circuitos de trocas, que envolviam bailes e circulação em diferentes bairros de Porto Alegre. Teria sido esta uma das bases para formação do Hip Hop.

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cultural concernente ao Hip Hop. De tal forma, ademais, al-guns logravam ocupações remuneradas em função do que poderiam ensinar, a despeito da ambiência de frágil domínio de códigos formais de que eram originários (incluindo-se, aí, os usos da escrita).

Saberes e disposições se fazem capitais quando se situ-am na disputa, e sua potência se mostra mais efetiva quando extrapola o restrito locus de ação onde foram gerados e se convertem em artefatos capazes de mobilizar interesses ou-tros. E, em relações densamente desiguais, quando instigam destacadamente aqueles que usufruem de maior poder social acumulado. Então, considerar a feitura dos dias nas perife-rias desde a tessitura das disputas nos leva a questões atinen-tes às condições de apropriação desde as quais os sujeitos constroem seus espaços de ação e seguem na construção de recursos que garantam e signifiquem a existência.

Tomemos por exemplo a relação com os especialistas e os saberes que representam. Ulrich Beck menciona que a mo-dernização reflexiva comporta a crítica aos peritos, desde a insuficiência de suas explicações frente às ambivalências da sociedade de risco. Diria, pois, que nas periferias que conheci vê-se mais a desconfiança do que uma crítica elaborada, re-sultante da condição insegura de contar com o representante de aparatos de presença instável ou inoperante, e, então, da preferência por dispor as explicações especializadas no con-traste ou em articulação a saberes de outras filiações: o que se aprendera com os mais velhos; as aprendizagens da ex-periência; a segurança das divindades frente à permanente margem do imponderável.

No entanto, o que os diálogos em campo demonstravam é que não se questionava a posição do especialista, nem tam-pouco o lugar dos saberes especializados. Quando havia algo em desaprovação, tratava-se de censuras a um perito ou outro em particular. Os conhecimentos destes, cuja extensão e lógi-

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ca de produção são nebulosas àqueles que se colocam como usuários ou consumidores, ora eram reconhecidos como vá-lidos, ora eram relativizados, se os resultados não atendiam às expectativas115. Se determinados profissionais podiam ser questionados em suas escolhas e explicações, as bases de sua legitimidade nem sempre, e o sistema simbólico que assegu-rava poder aos saberes especializados se mantinha, mesmo que numa articulação tensa com outras bases. Aqui, antes do repercutir das reflexividades apresentadas por Beck, a con-figuração de uma modernidade inconclusa e de uma multi-plicidade cultural hibridizada e de ambiguidade, nos moldes preconizados por José de Souza Martins.

Quando observadas as trajetórias narradas por diferen-tes interlocutores nas periferias, em geral a relação com a institucionalidade era apresentada de forma tensa116. A par-

115. A caracterização que afirmo, aqui, encontrava mais seguidamente nos diálogos com pessoas idosas. Para dar exemplos, certa feita, uma moradora de periferia me contara que teve a oportunidade de trabalhar para médicos e, desde então, tinha dificuldade de confiar neles. Conforme observei, ao perceber comportamentos des-conformes aos seus juízos morais, que, além disso, explicitavam uma fragilidade não esperada entre os especialistas, aquela senhora teve sua confiança nos médicos aba-lada. Dizia confiar mais no farmacêutico que lhe atendia regularmente. Noutro caso, uma senhora me relatava a circunstância de uma cirurgia e dizia que era necessário confiar nos médicos, pois se precisava deles, mas afirmava que não se deveria credi-tar todos os resultados a eles. As mãos médicas seriam guiadas por “forças maiores”.Na área da educação, por seu turno, observei interlocutores falando da necessidade dos filhos estudaram e relatarem situações em que usavam de autoridade pela força se fosse necessário garantir que as crianças frequentassem a escola. A forma de con-duzir a negociação contradizia o discurso pedagógico corrente, evocando uma forma de autoridade não argumentativa ou dialógica, mas acabava por apoiá-lo ainda assim.116. Posso citar alguns exemplos. As escolarizações eram apresentadas como pro-cessos incompletos e/ou fragmentados, cujas memórias priorizavam as sociabilida-des com colegas. Neste contexto, para além do recordado pelos sujeitos, as repercus-sões da frequência à escola pareciam se mostrar no cotidiano, no uso rudimentar ou instrumental de saberes linguísticos e/ou de aritmética, que eram aprendizagens pertinentes para seus cotidianos. Além disso, observava que a instituição escolar mantinha certo poder simbólico, associado às possibilidades de ascensão social.

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tir daí, sinto-me inspirado a situar as produções dos sujei-tos de minhas pesquisas no âmbito de uma apropriação por bricolagem, articulando a outros elementos o que se impõe, mas que, de outro lado, chega de forma episódica ou precária. Aquilo que poderíamos chamar modos alternativos de ope-rar (sem que seus autores os compreendam necessariamen-te como tal), cerceados por condições materiais e culturais comparativamente vulnerabilizadas, mas não só, organiza-dos também nas redes que construíram historicamente, para fruição cultural, reciprocidade comunitária e distinção social.

Contudo, desde esse cenário de construção relacional (não necessariamente institucionalizada) e tática de condi-ções de existência, vale mantermos questões sobre o que-fazer político em referência às alterações engendradas no curso da modernização reflexiva e, especialmente, quando os discursos caminham rumo a dinâmicas de “responsabili-zação”, incitando-nos a iniciativas individualizadas (a uma só vez, competitivas e aflitivas), ou quando tendem do discipli-namento para a “estratégia da incerteza” como forma de mo-bilização no terreno movediço da fragilização de condições e descentramento de normatividades.

As interlocuções com jovens117 podem ser elucidativas nesse sentido, se lembrarmos, com Alberto Melucci, que as

Algo difuso muitas vezes, mas que era pronunciado ainda assim. As interações com os espaços de trabalho eram intermitentes e/ou a vinculação a estes era afirmado prio-ritariamente por questões de subsistência, ou por uma questão moral relativa à com-preensão de que cada indivíduo precisaria garantir sua subsistência. Se observarmos as composições das famílias, aproximamo-nos das análises de Cláudia Fonseca sobre as dinâmicas familiares em grupos populares. Refiro à formação de arranjos diver-sos, associados a laços de reciprocidade com parentes e vizinhos, sendo a atuação de mulheres (muitas vezes, responsáveis por domicílios) conformada também em participações no espaço público do bairro. Assim, sugere-se uma relação distinta dos processos de modernização, sendo a moralidade associada à “família” apropria-da de forma variável.117. Ademais, vários pesquisadores brasileiros (citados nos textos anteriores) ana-lisam singularidades das culturas juvenis contemporâneas, destacando as mudanças

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juventudes podem sinalizar para mudanças sociais em cur-so, ao viver de maneira mais envolvente em suas trajetórias o fluxo das rupturas estruturais que experenciamos. Perce-bia, pois, que estavam lá relações vividas com fugacidade, a ânsia por um rápido reconhecimento pessoal, a mobilização dos desejos por apelos de consumo, a fragilização de laços de reciprocidade. Todavia, entrelaçados com esses, construídos no curso do consumo, da fruição e das buscas por distinção, estavam suas formas de sociabilidade, a apropriação do es-paço público e, em alguns casos, a ampliação das redes de apoio mútuo, que significavam vínculos familiares agregados aos de amizade.

Se penso nas dinâmicas de grupos juvenis, indicia-se que a experiência com a música e a arte e a filiação a coletivos de pares tecem diversos elementos, indo das sociabilidades e a da fruição ao protagonismo e à distinção social, passan-do pela produção de saberes, meios de subsistência e dispo-sições éticas. A dicotomia trabalho-lazer é insuficiente para nominar esta complexidade, que, como produção identitária, disputa o entendimento de como se deve proceder, conviver, agir; cria formas de atuar organizadas desde a mobilização dos desejos, lutando para definir prioridades e, neste sentido, interage com as dinâmicas de controle do sistema.

As contingências econômicas e culturais e as tensões com a institucionalidade permaneciam, mas os recursos informa-cionais de que dispõem e a afeição pela arte potencializavam narração e reflexividade, configurando as formas de socia-bilidade e modificando as condições de enunciação de seus

que indiciam. De maneira alguma, filio-me a retóricas generalizantes que caracteri-zam os jovens por supostas atitudes descomprometidas, individualistas e/ou con-sumistas. Se e quando o há, penso que explicitam vivências que também compõem as práticas de adultos, sinalizando-nos para o que nos perpassa; e sua existência precisa ser considerada na articulação e na potência de formas de sociabilidade, so-lidariedade e ação política que também se engendram ali.

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cotidianos e identidades. Se os registros se constituíam efê-meros em espaços virtuais e se alterações efetivas nas con-dições de subsistência, ao final, seguiam restritas a poucos, isso não pode esmaecer questionamentos sobre as inflexões em processo. Apesar das contingências vivenciadas nas peri-ferias, os jovens com quem tenho dialogado parecem sinali-zar para buscas de autonomia mesmo quando as condições materiais inibem a independência e, como assinalou Michel Maffesolli118, tendem a uma ética da estética na cotidianidade e à horizontalidade nas relações e na produção de saberes, em distinção ao paradigma da verticalização que rege as are-nas institucionais.

Quando contrasto itinerários de diferentes grupos etá-rios, percebo que, entre os mais velhos (40 anos de idade ou mais), as atividades de trabalho e as relações na família fo-ram fortemente disciplinadoras. Eram-no pela regularidade de rotinas ou pela filiação coletiva, mas também pelo impe-rativo de garantir subsistência em contexto de opções limi-tadas. Aqui, a autoridade (paterna/materna, patronal, etc.) tinha lugar relevante e consideravelmente estável e a mora-lidade associada ao “fazer por si” na conquista de condições de existência se instituía associada ao labor. Com os jovens, meus diálogos traziam nuances. A ênfase ao “fazer por si” continuava presente, mas não somente na relação com o tra-balho/sustento (agora em posição relativa, ao lado de várias atividades artísticas, de entretenimento e lazer possíveis). Ademais, um contexto em que segue o imperativo da necessi-dade, mas no qual parecem ser apropriados crescentemente argumentos por reconhecimento. Espaço em que, tendencial-mente, a autoridade não estaria dada a priori e seria melhor

118. Refiro-me à conferência de abertura ministrada no Seminário Internacional de Educação – O Conhecimento e as Juventudes do Século XXI, organizado pela Secreta-ria Estadual da Educação, em Porto Alegre em jun. 2014.

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aceita se construída relacionalmente, a realçar a necessidade de demonstração de implicação pessoal entre as partes, efe-tivo sentido à prática e reconhecimento às individualidades.

As condições estruturais experienciadas nas periferias inibem “grandes voos”, limitando as arenas de protagonismo e a abrangência da ação política. A relação com instituições ainda baliza acessos, pautando o domínio de códigos formais, e as conquistas que se consolidam quando os sujeitos logram o reconhecimento de seus capitais culturais são ainda limita-das. Contudo, onde as condições materiais e a aproximação a saberes formais são em muito as usuais bases explicativas das desigualdades, reside um redimensionamento das possi-bilidades de reflexividade e individuação que as práticas ju-venis expressam de alguma maneira, com repercussões, por vezes, às disputas por enunciação das formas de atuar, arena onde passam a situar também suas tomadas de posição.

Falamos de um cenário em que os sujeitos participam mais ativamente de seus processos de socialização, conforme já afirmava Juarez Dayrell, referenciado por François Dubet, acerca do rap e o funk entre jovens de Belo Horizonte. Uma condição que, segundo entendo, não era de todo estranha ao conjunto dos moradores de periferia, na medida em que es-tes precisavam construir itinerários em ambiências de relati-va instabilidade, tendo com a institucionalidade uma relação tensa. Porém, observamos com as juventudes das periferias, a uma só vez, uma intensificação e também uma mudança: desde um contexto em que a modernidade era experenciada de maneira diferenciada, os ventos do descentramento de pa-râmetros desta tem um acento distinto, mas a diversificação dos apelos de consumo (ainda que virtualmente), a amplia-ção das alternativas de fruição e pertença e a interposição crescente de discursos e práticas individualizantes, amplifi-cam as tensões com o instituído enquanto instigam dinâmi-cas reflexivas diferentes e, quem sabe, no entrelaçar e além

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do que possamos julgar efêmero e/ou precário, perguntas pelos sentidos do que entendemos ser relações e projetos so-cial e eticamente válidos.

***

Desejo voltar, agora, ao tema das reflexividades para avançar nas problematizações. E devo enfatizar que, em meu entendimento, não as vivenciamos como no contexto euro-peu e tal como abordado por Ulrich Beck e Anthony Giddens. Scott Lash foi mais enfático ao afirmar que o instaurar de uma modernização reflexiva precisa ser ponderada confor-me as condições estruturais (incluindo as informacionais) produzidas nas diferentes partes do globo. O autoconfronto com as certezas da sociedade industrial e o questionar das tradições modernas, corporificadas em instituições cujo ápi-ce na Europa podemos situar no Pós-Guerra, não me parece ocorrer da mesma forma nas periferias de cidades brasilei-ras119. Pelo contrário, vemo-nos em buscas pela ampliação e democratização de acesso a recursos sociais, nominados e materializados em instituições modernas, cuja abrangência

119. A peculiaridade de tal condição pode ser vislumbrada nos casos analisados nos capítulos precedentes e em outras pesquisas que lhes são pertinentes. Vale consi-derar diferenças para a experiência de uma reflexividade estrutural nas periferias quando: os núcleos familiares já apresentavam composição diversa, em dinâmicas de reciprocidade distintas do padrão nuclear pressuposto em discursos vigentes, como assinala Cláudia Fonseca; o papel da mulher em localidades empobrecidas não era consensual, com incursões nos espaços públicos do bairro e formas de atuação cuja peculiaridade é preciso reconhecer; as relações com o trabalho, configurando--se em boa medida na informalidade, já condensavam boa dose de instabilidade e de responsabilização individual; a escolarização, muitas vezes fragmentada, tem lugar relativo nos itinerários e na produção de capitais que garantam subsistência e elaboração de projetos; e, por outro lado, a relação com o “ambiental” difere, ins-trumentalizando discursos e tomando a “reciclagem” vinculada ao costume popular do “reaproveitamento”.

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de ação é ainda limitada e/ou precária. Permanece a tare-fa de se ponderar as reflexividades possíveis em lugares de “modernidade inconclusa” e de uma multiplicidade cultural híbrida e vivida na ambiguidade.

Não obstante, penso que é válido examinar as condições nas quais a reflexividade merece atenção. Para efeito desta análise, consideremos que ela resulta da suspensão do que antes era “regra” ou impossibilidade, ampliando o leque de escolhas e/ou situando-nos no enfrentamento da ambivalên-cia, ou, pelo menos, na necessidade de discutir o que antes não era questão. No âmbito das identidades então, evidencia--se no frequente olhar sobre si, para narrar o que constitui e inquieta quando a incerteza e o diferente se avizinham. E podemos ventilar que situações reflexivas se constituem a partir de contextos diversos, e com nuances a cada caso. Nem sempre (ou não só) chegaria pela fragilização de institui-ções modernas antes instauradas; pode existir na presença residual e/ou episódica destas; nas promessas combinadas à precariedade histórica de acessos a recursos sociais, que instiga posicionamento amiúde; no curso de um processo de institucionalização específico, que, para ocorrer, desestabili-za o que antes estava.

Um retorno aos casos narrados pode ser ilustrativo. Quando de meus diálogos com educadoras sociais, tomei co-nhecimento do processo de institucionalização de sua práti-ca, que deslocou laços com ativistas comunitários e dispôs nossos agentes e saberes no campo. Conforme os depoimen-tos, foram mudanças que aconteceram sob resistências e, no período de tal transição, podemos aventar as táticas daqueles que desejavam permanecer e percebiam seu poder de ação diminuir frente as “regras” que começavam a vigorar. Contex-to esse que, segundo procurei tratar, apresentava diferentes eixos de pertença e de tomadas de posição mesmo no curso da institucionalização, de forma que os educadores sociais

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eram instigados a se posicionarem impelidos entre a inten-sificação do trabalho, as violências e vulnerabilidades do en-torno, as filiações religiosas e os enunciados profissionais.

Podemos observar o contexto acima como campo em que a escolha se tornava necessidade, mediante os efeitos da intensificação e das vulnerabilidades sobre as rotinas, e/ou se fazia possibilidade, quando filiações religiosas eram colocadas em perspectiva. Contudo, os vetores de pertença se faziam eixos de reflexividade possível (não necessária) no espaço de ação. Com isso, quero afirmar que as tensões varia-vam a cada sujeito segundo este fosse tocado em seu itinerá-rio pelas questões que os enunciados e práticas carregavam. No caso da educação social (mas não só nele), a condição de gênero, por exemplo, configurava uma forte pertença e orga-nizava modos de agir, mas nem sempre era experenciada em reflexões atinentes a mudanças de tomada de posição; muitas vezes, situava-se no autoconfronto (um tanto aflitivo) com os discursos que interpelavam por protagonismo e emancipa-ção, vividos no contraste com as atribuições habitualmente exercidas pelas mulheres.

Se nos voltarmos à situação de catadoras e de trabalhado-ras de pequenos empreendimentos solidários, podemos con-siderar outras nuances para as reflexividades. As táticas das primeiras diante de situações adversas e de reduzida mar-gem de poder nos convidam a reconhecer a capacidade de elaboração e posicionamento na delimitação de prioridades e na configuração de artifícios para lográ-las. E tal reflexivi-dade “da e para a prática” podíamos encontrar de forma as-semelhada entre as integrantes da associação de costureiras com quem dialoguei. Ali, no entanto, percebia também estra-tégias ambientadas e constituídas por laços de reciprocidade na comunidade, tensionadas nas relações com as atividades da economia solidária e com as práticas de comercialização. Via, ademais, o infiltrar de enunciados relativos à etnia negra

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e à condição de mulher, que compunham as tomadas de posi-ção de minhas interlocutoras. No encontro com adversidades e/ou na interação com formas diversas para tomar posição, percebia minhas interlocutoras ora fazendo escolhas frente a regras que precisavam relativizar, ora debatendo-se em de-poimentos aflitos sobre o que precisariam ou deveriam ter feito (como mulher, vizinha, descendente negra, etc.), e ainda não fora possível realizar120.

No Hip Hop, a capacidade de elaboração simbólica das identidades, na forma de identizações, faz-se manifesta. O re-curso a diversos artifícios para “divergir” denota pertenças estilizadas e em comunicação: não falamos apenas de uma reflexividade da prática, mas da produção de enunciados sobre os cotidianos de periferia e da disputa por definições identitárias, que nos remetem à autorreflexividade de ativis-tas e demais moradores de localidades vulnerabilizadas. E o convívio com bboys indiciava a construção de individualida-des como “projetos reflexivos”121, na forma analisada por An-

120. Em articulação ao problematizado no primeiro capítulo, vale lembrar a condi-ção processual e múltipla das identidades. Nos casos mencionados, aqui, podería-mos ampliar a diversidade de vetores de reconhecimento/diferenciação do campo identitário se considerarmos que cada um deles pode guardar certa multiplicidade interna. No caso das trabalhadoras de pequenos empreendimentos solidários, por exemplo, ao serem interpeladas em relação à situação de gênero, a configuração des-ta estava em disputa entre demandas por tarefas domésticas e de cuidado e enuncia-dos por uma atitude feminina empreendedora.121. Aqui, gostaria de traçar uma breve ressalva. Afirmar a expressão de “proje-tos reflexivos” entre jovens não pressupõe relação com a concepção de “projetos de vida”. Embora considere uma articulação possível, vale destacar que entendo a construção do primeiro como a elaboração narrativa de si, como a formulação de personagem a quem se concebe um passado e se imagina um futuro, mas sendo este virtualizado pela mutação. A ênfase está em definir-se no presente (pela palavra, pelo gesto, pelo estilo...), agenciando passado e futuro conforme se confronta cir-cunstâncias, escolhas e renúncias. Neste sentido inclusive, a pergunta pelo que virá pode ter como resposta o silêncio e pode ser vivído como aflitivo em relações que premem por programação se o futuro instiga incerteza.

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thony Giddens, e, em congruência, suas experiências com o break demonstravam diferentes formas de individuação.

A partir dos exemplos retomados, entendo que podemos conceber práticas reflexivas na ambiência da precariedade e da instabilidade e na conformação das táticas. De outra par-te, devemos reconhecer que pertenças diversas disputam a mobilização de práticas na periferia; que lá chegam também a intensificação de ritmos e apelos e alguns questionamentos sobre as “regras” que nos constituem. O contraste entre gru-pos etários e, uma vez mais, o olhar sobre as práticas juvenis podem apoiar tais constatações.

Nesse cenário, penso que o consumo cultural e informa-cional deve ser destacado como âmbito para produções re-flexivas. Na forma de reflexividades estéticas, como assinala Scott Lash, refiro-me ao acesso a programas de TV e rádio e às narrativas e aos enunciados que veiculam, mas também às formas de apropriação de tais conteúdos e aos circuitos de partilha de práticas musicais e de lazer. Entre os jovens, ade-mais, os usos de tecnologias de informação e comunicação (TICs) se constituíam um aspecto de impacto cotidiano122. Na relação com esse conjunto, pode-se depreender a configura-

122. Elmir de Almeida, Juarez Dayrell e Paulo Carrano, em apresentação no II Fó-rum da Associação Internacional de Sociologia, em Buenos Aires/2013, intitulada “Sociabilidade, lazer e construção de estilo de vida de jovens na realidade brasileira contemporânea”, trazem dados sobre a importância de atividades de tempo livre, considerando aquelas não rotinizadas, que oferecem aos sujeitos possibilidades de construírem sua nomos entre os pares. Assinalam os autores que, entre os jovens de camadas mais empobrecidas, o consumo doméstico de programações de TV aberta e as atividades de sociabilidade e de conotação mimética em espaços públicos tem lugar importante. Da mesma forma, uma crescente apropriação de TICs (incluindo aparelhos celulares) integraria as práticas de lazer e, apesar dos acessos por vezes limitados, constituiria processos de subjetivação das juventudes no Brasil. O “Rela-tório Brasil” da pesquisa “Juventudes Sul-americanas: diálogos para construção da democracia regional”, menciona também o uso predominante da TV para busca de informações e, se comparado com adultos, um uso crescente da internet, especial-mente com fins de sociabilidade. O acesso à escolarização também daria sinais de

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ção de pertenças que extrapolavam os territórios de suas lo-calidades e tendiam à ampliação de acessos e à individuação de suas inscrições.

As pertenças se mostravam tendencialmente mais fluidas e múltiplas entre os jovens (se comparadas com as de meus demais interlocutores). Diversificavam suas experiências transitando por diferentes lugares, práticas e grupos, quan-do podiam escolher, esforçando-se, ademais, para manter atividades culturais que consideravam importantes, mesmo quando eram impelidos a deixa-las por conta das necessida-des. Mais que alternativas várias de lazer ou vivências de to-tal efemeridade, conciliavam as filiações no presente de suas experenciações e diziam manter os vínculos, mesmo quando não frequentavam regularmente os grupos. Além disso, rea-firmavam relações familiares e, não raro, estendiam aos ami-gos os laços de reciprocidade e os lastros que lhes garantiam segurança na condução da vida.

Nesse contexto, com jovens certa narrativização vertia, como se estivessem a conceber, amiúde, sujeito e experiên-cia123. A autorreflexividade tendia a exercício corrente e seus depoimentos evidenciavam que o vetor de suas vivências pendia à realização como indivíduos, com eventuais reclames por reconhecimento. E, com isto, não estou me referindo a expressões de individualismo, em contraponto à prática de representantes de coletividades, tributários de enunciados

ampliação entre jovens e as formas de participação preferenciais seriam as culturais e esportivas (Ibase, 2010).123. A narrativização a que me refiro não significa o uso extensivo da palavra e/ou a elaboração de itinerários pessoais espontaneamente. Estes ocorriam geralmente em entrevistas instigadas por mim, pesquisador. Destaco a procura por contar o que se faz e definir-se, ora em palavras, ora na configuração de estilos ou performances. As maneiras de fazê-lo não se restringem à palavra e se concretizam em diferentes arte-fatos (tatuagens, gestualidades assumidas, roupas detalhadamente escolhidas, etc.), cuja articulação tensa e variável é sustentada pelo autor da composição de signos.

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universalizantes. Estes últimos, encontrava de maneira loca-lizada, entre ativistas de movimentos sociais quando atua-vam em palcos ou arenas públicas de disputa. No mais, creio mesmo que essa polarização seria pouco frutífera para o con-texto que analiso aqui.

Os conteúdos de tais narrativas da individuação ganhavam forma na expressão das adversidades superadas e, na apro-priação de uma capacidade de enunciação que as juventudes demonstram disputar com veemência, explicitavam a produ-ção de indivíduos desde a necessidade de atuar para fazer va-ler sua existência (certo “fazer por si” que mencionava antes). Com isso, aproximo-me dos argumentos de Danilo Martuc-celli124, quando afirma que o individualismo latino-americano não se erige na ficção de um contrato social entre indivíduos preconcebidos, produzido por organizações e programas ins-titucionais, como na Europa; constituir-se-ia desde práticas e habilidades de pessoas que, para se integrarem à sociedade, precisam atuar e garantir existência e reconhecimento.

Segundo Martuccelli, isso se explica, em parte, pela forma como o poder se instaura em nossos países. Algo que se não estabelece tal como no “Norte”; algo que se indica, mas não se efetiva totalmente; como a lei que não se cumpre sempre, que varia nas circunstâncias, com uso da violência se necessário. De tal forma que, esse indivíduo que precisa atuar (frente ao incerto do não funcional das instituições, ou do arbitrário do poder), precisa do outro para sobreviver, já que os aparatos impessoais modernos não representam garantia. Então, o relacional torna-se fundamental para organização da vida, sendo que, historicamente, uma rede de poucas pessoas su-

124. Estou citando, neste caso, a palestra “Sociologia do Indivíduo e Estrutura Social na América Latina” ministrada em encontro promovido pelo Observatório Jovem/Universidade Federal Fluminense. Disponível em: <http://www.uff.br/observato-riojovem/materia/danilo-martuccelli-sociologia-do-indiv%C3%ADduo-e-estrutu-ra-social-na-am%C3%A9rica-latina>.

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portaria as trajetórias dos sujeitos em seus cotidianos, e não as instituições necessariamente.

Nesse contexto em que o poder e as instituições lançam a promessa, mas não dão conta de garantir a existência, creio possível situar o conjunto de meus interlocutores. Neste sen-tido inclusive, suas narrativas não são exatamente uma apre-sentação de sujeitos cujas realizações são resultado do êxito individual. Observadas com atenção, contam sobre individuali-dades que, tendo a institucionalidade por coadjuvante em suas histórias, sabem da importância dos laços de reciprocidade que sustentam sua subsistência e os explicitam em suas narrações.

Penso que as experiências juvenis, e as vivências no Hip Hop especificamente, podem ser tomadas como indiciado-res do cenário que se desenha acima, quando os jovens de-monstram capacidade de simbolizar e enunciar os cotidianos na periferia, mediante o uso de tecnologias de informação e comunicação e na fruição em atividades culturais. Algo que, a uma só vez, visibiliza os modos de individuação historica-mente produzidos e gera sistemas simbólicos para identifica-ção, reflexividade e, por vezes, reflexão e reafirmação.

E, então, tomo argumentos José de Souza Martins. Ele afirma nossa “modernidade inconclusa”125, gestada na captu-ra de signos do moderno por uma cultura popular que os arti-cula com tradicionalismos. As análises do autor nos falam das hibridações, que fazem usos e consumos diversos dos signos da modernização. Assim, nossa “crítica” seria geralmente a resistência passiva e dissimulada ao novo, sem a repercussão em doutrinas e partidos; preferiríamos o riso e o deboche à reivindicação; a tradição se associaria mais ao mundo da fé e

125. Admito a ideia de uma “modernidade inconclusa”, porque entendo que o “mo-derno” se coloca a nós como promessa e, podemos considerar, desde históricas rela-ções de poder, mobiliza nossos esforços na organização de nossas relações sociais, contemplando o Norte como horizonte. Antes de uma interpretação evolucionista, o reconhecimento de uma produção cultural.

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da festa do que ao do trabalho; o cotidiano seria fragmentado pela continuidade indiscernível entre realidade e fantasia.

A questão que se coloca é que, para Martins, a moderni-dade só o é quando carrega o moderno e a consciência crítica do moderno, associada à ética da multiplicação do capital, ao cálculo da relação meios-fins e à reconstituição dos sentidos da ação. A modernidade se efetiva quando o sujeito se obje-tiva e se põe estranho em relação a si mesmo. Aspectos que assumiríamos de maneira hesitante e ambígua, na produção de uma cultura de “travessia”.

Aqui se situa uma de minhas perplexidades. Por um lado, poderia pensar que as reflexividades construídas nas perife-rias carregam consigo articulações entre o moderno e o tra-dicional, observando realizações e projeções individualizadas fronteiriças a laços de reciprocidade (familiares, mas não só) ou na relação com forças das divindades; ou, então, conside-rando práticas ditas progressistas em integração a atividades altamente exploratórias. Por outro, caberia ponderar que a racionalidade moderna, na forma de uma objetivação de si e do ambiente, dá sinais de presença mais contundente nas pe-riferias, quando estas passam a reivindicar o peculiar de suas identidades e indiciar “projetos reflexivos”. Não penso possível traçar uma síntese, mas creio que deveríamos nos atentar às repercussões do inscrever modos de vida em narrativizações.

Por ora, ficam as perguntas: quando observamos que, mesmo na condição de acesso epidérmico às instituições da modernidade, as juventudes estão a produzir práticas refle-xivas na periferia, deveríamos aventar consequências para sua vivência da modernidade, conforme problematizada por Martins? Estaríamos frente a mais um exemplo de apropria-ção híbrida do “moderno”, vislumbrando, entretanto, o para-doxo da experiência ampliada de auto reflexividade instau-rada no correr de uma modernização institucional (ainda) frágil? De outra parte, na hipótese da formação de sujeitos

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cuja reflexividade incorpora disposições da modernidade, haveria repercussões a supor para a vivência do tradicional? Ou, ao contrário, as juventudes estariam a sinalizar que tais classificações (moderno e tradicional) não dão conta das (re)apropriações feitas nas periferias urbanas e que, desta forma, deveríamos buscar outras maneiras de compreender as dinâ-micas do porvir?

***

Creio necessário seguir em pesquisas e ponderações so-bre a pertinência e a abrangência das relações de poder e das condições de reflexividade que problematizei acima. Desde esse cenário porém, e não obstante os limites de meus argu-mentos, gostaria de retomar reflexões sobre as potências e os limites da produção de narrativas na compreensão das expe-riências daqueles com quem interagia, encaminhando-me às considerações finais em minha escrita. Assim, aproximo-me das intencionalidades políticas que me animam, dispondo inferências relativas às formas de diálogo que produzo em campo. Começarei, pois, por uma questão que nos remeta às caracterizações precedentes: se concebo sujeitos da elabora-ção de táticas, da construção de capitais culturais e sociais e, ademais, da gestação de si como projetos reflexivos, que sig-nificado atribuir à narrativização na experiência do outro e como nos integrarmos a ela não só como pesquisadores, mas também como educadores?

Os encontros da pesquisa mostram os usos e a produção de narrativas em intensidades diversas. Concorrem para tal configuração pelo menos a condição etária, a densidade de ritmos e apelos sofridos pelas pessoas e, em articulação, os recursos econômicos e os acessos culturais disponíveis. Fato-res influentes na maneira como se organiza a relação com o

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tempo (na interpenetração entre memórias e expectativas) e nas possibilidades de elaboração enunciativa.

Entre as pessoas idosas, a autoria de narrativas estava nos causos e anedotas, nas vivências da prática e episodicamente suas falas se concentravam em depoimentos autocentrados de suas escolhas e do sentido atribuído a elas. Narrações sobre si, incluindo trajetórias e explicações sobre as opções do itinerá-rio, ocorriam sobretudo quando, como pesquisador, lançava os questionamentos. Então, com visível satisfação narravam sua vasta experiência, instigadas em falar para quem ocupa lugar supostamente importante, legitimado como professor. Mas também mostravam-se estimuladas pela possibilidade de partilhar as lembranças produzidas na vivência estendida de quadros culturais e familiares, em condição existencial me-nos incitada pelas demandas do presente e as projeções do futuro, com um “pano de fundo” definido e prestes a ser com-partilhado, conforme nos inspira Ecléa Bosi126.

É preciso registrar que que tal condição se nuançava con-forme percebia experiências intensas de trabalho, escolari-zação ou ativismo político e/ou cultural. Algo a ser explorado com mais tempo nas pesquisas, mas que indiciava apropria-ção da premissa de um projeto ou de uma carreira, conforme se experenciava vinculações institucionais. Então, as falas versavam mais sobre os sentidos atribuídos às escolhas do itinerário e/ou sobre a importância do que fora realizado. Algo explicitado desde um olhar mais atento à posição indi-vidual no espaço de ação e no domínio de códigos para uma narração mais linear da historicidade.

Para aquelas pessoas com menos idade, bastante envol-vidas nas lidas diárias por sustento e realização, denotava-se uma narrativização das opções cotidianas, como se precisas-sem (re)elaborá-las no curso de suas escolhas experienciais,

126. Nas referências, Bosi (1994).

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tensionadas entre interpelações várias, decorrentes das exi-gências e/ou na inconstância no trabalho, das delimitações de papéis concernentes a gênero, das vulnerabilidades viven-ciadas e das expectativas de melhoria, do desejo de distinção diante os óbices gestados na precariedade ou na obliteração da virtualidade.

Narrativizações que interpreto como reverberações do esforço por interpretar a existência e tentar delimitar identi-dades. Processo ainda mais visível entre os jovens com quem interagi, desde cedo sob os ventos da mudança. Com alguns deles, porém, as elaborações sobre seus itinerários e perten-ças já pareciam em curso e minhas questões evocavam nar-rativas já em experimentação. Em que pese a brevidade de suas trajetórias, a construção de projetos reflexivos se fazia presente em registros variados, no corpo, nas redes sociais, nas conversações, etc.

De outra parte, também com as juventudes vivenciei in-quietações relacionadas à pertinência da produção narrativa, se a tomarmos no sentido estrito de elaboração de enredos, em que desenvolve funcionalidade entre fatos e agentes e li-nearidade no curso de acontecimentos. Interações com ativi-dades como a dança de rua fizeram-me pensar nos limites do ato narracional assim entendido. Embora houvesse ali certo “contar ao outro”, era expressivo do que se sente de forma, às vezes, intuitiva e, em geral, multi-indicial. O break, por exem-plo, parecia-me uma bricolagem espetacularizada, devolven-do-nos o cotidiano urbano multiforme, intensificado (e até fragmentado) que produzimos atualmente, lembrando-nos que nem tudo cabe à palavra, mas não é menos significati-vo por isso. E, então, nos espaços de sociabilidade e de êx-tase, naqueles momentos intensos na tomada do corpo, na suspensão dos sentidos e com foco na duração da partilha, a narrativa podia ocupar lugar secundário, embora a experi-ência temporal fosse patente e central, como fruição e como

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ritualidade do encontro (e sem necessidade da “chancela” de uma instituição).

Noutras situações, se interpretações de passado e futuro estavam ali a compor os enunciados, poderia dizer, em con-traponto, que percebia-as tensionadas pelo exercício de es-colhas e renúncias no entrelaçar de apelos diversos e recur-sos insuficientes, de filiações variadas e buscas de sentido, fazendo das lembranças talvez algo ainda mais movediço e das projeções elementos mais incertos e aflitivos. E, por ve-zes, surdia a questão: como situar a narrativização quando certa instabilidade se avizinha e as filiações diversas podem borrar a concepção de um itinerário, esmaecendo os sentidos da historicidade?127

O que percebia, porém, não tendia simplesmente à fluidez e à volição pontual, mas a um esforço de delineamentos. Creio que o gosto pela fruição e a vivência do realce das oscilações de curso precisam ser analisados em articulação às formas de reflexividade e individuação que também compõem as práti-cas juvenis. Desta forma, observo que a narrativização se in-tensifica e, em composições variáveis e provisórias, explicita ainda mais a constituição de identidades narrativas, no senti-do defendido por Paul Ricoeur, ao expressar uma relação com as descontinuidades do real no curso do tempo. Se havia uma ênfase presencial nas relações de meus interlocutores jovens, ela não se dava sem o desejo de posicionar-se e de esboçar trajetórias e de acalentar expectativas, e tendia, ademais, a si-tuar a historicidade nos recantos da experiência individuada.

Se a narrativização se adensa em formas variadas e cir-cunstanciais e tem a experiência por signo de unidade possí-vel, vale aventar a hipótese de que esta tenda a ser o centro gravitacional da configuração de relações, pertenças e senti-

127. Em tal ambiência, sinto fortemente instigantes as elaborações de Alberto Me-lucci sobre a “invenção do presente” e sobre o “jogo do eu”.

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do. E uma ênfase que, segundo concebo, gera inflexões tam-bém na relação desses sujeitos com os saberes.

As mudanças vivenciadas nas bases de acesso e produção informacional, na forma como apropriadas por meus interlo-cutores, talvez seja o indicador mais visível de que a possibi-lidade de navegar e comunicar tem potencializado singulari-zação e partilhas, intensificando redes que estavam aquém e além da internet. Uma forma de produção social que tende à horizontalidade e pode deslocar concepções de “criativida-de”, caso nos atenhamos ao conceito de uma inovação cabal-mente original. Os atos criativos são apresentados em versões localizadas e práticas, desde uma disposição para bricolagem intensa, constituída desde a convivência. Tratar-se-ia de uma criatividade relacional e orientada aos pequenos avanços po-éticos, de forma que a autoria ficaria bem mais difusa.

Os esforços de aprendizagem estão lá e verticalizam a produção de conhecimento nos acúmulos do itinerário, mas nem sempre criam hierarquias demasiadamente rígidas para o compartilhar de saberes. As singularidades afirmadas aos outros eram, muitas vezes, as inspirações para construções próprias e o ponto de partida para o exercício da criação. Este parece-me o cenário de produção de saberes fortemente as-sociada à experienciação. E, quem sabe, poderíamos encon-trar processos assemelhados nas trajetórias de outros grupos etários nas periferias, cujas vidas se organizavam também no trilhar de alternativas em contexto precarizado e instável, de maneira que o “aprender fazendo” e as dicas advindas das re-des de apoio eram o esteio da caminhada.

Conceber relações entre saberes e experiência possivel-mente reforça argumentos já correntes no campo educacional. No entanto, devo frisar que, para além das vivências marcan-tes que possamos tomar como recursos pedagógicos ou que queiramos conciliar a práticas educativas, está representado aí um modo de aprender, um jeito experiencial de apropriar

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saberes e criar opções à ação, de pessoas que se constituíam tendo os desafios e adversidades como motes de aprendiza-gem, incluindo aí a produção de capitais sociais e culturais al-gumas vezes. Então, a experiência, aqui, é signo da produção de saberes não só significativos, mas construídos relacional e ensaisticamente, ao passo que os jovens o explicitam, mas também o redimensionam ao elaborá-lo no curso das nar-rativizações de si e dos seus. “Isso que me passa”, conforme problematizado por Larrosa128, fica mais patente nas refle-xividades juvenis e as vivências podem se fazer experiência de forma regular. Assim, considero que o manifestam não só como constituinte, mas como preferência e demanda129.

Em minhas incursões, mantinha aspirações educativas para as interlocuções. Tinha ciência de que exercia uma in-tervenção com minha presença relativamente “estrangeira” e com minhas questões. Porém, entendo significativo pro-blematizar e realçar a dimensão educativa, aproximando-me das experiências, acercando-me do que constitui e que se di-mensiona ao enunciar, mas que não se pode transmitir, para, quem sabe, produzir encontros que passem a tomar parte no experenciado.

Frases de Alberto Melucci me foram elucidativas e inspi-radoras então. Assinalava ele que

128. Nas referências, Larrosa (2011).129. Neste ponto, poderia lançar uma provocação adicional. Se tomarmos compa-rações feitas pelo IBGE relativas ao acesso à educação em 2002 e 2012, podemos perceber ampliação da taxa de frequência escolar, da permanência no ensino médio e do ingresso no ensino superior e elevação do percentual de jovens que somente estudam. Quais os efeitos deste cenário para as experiências juvenis? Creio que an-tes de ventilar influências sobre o domínio de códigos formais, cabe atentar para as repercussões do aumento da escolarização na organização das práticas dos jovens e a apropriação que fazem disso, quando lhes é oportunizado mais tempo juntos aos pares e distante dos reveses do labor e da subsistência. Ampliar-se-iam as atividades reflexivas e de individuação neste contexto? De toda forma, uma realidade que pare-ce se construir em aproximação crescente ao cotidiano dos educadores.

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o narrar, como espaço que retém e que revela ao mesmo tempo, parece responder à difícil tarefa de conjuntar a mul-tiplicidade [...] Frente à intensificação da necessidade de sentido, existe, no entanto, o risco de mistificação daquilo que se apresenta como capaz de reter a experiência.130

Desenhava-se para mim uma forma de compreensão do que observava e, ao mesmo tempo, um horizonte de participação.

Se a narrativa configura a existência e a narrativização tende a ser contemporaneamente intensa e corrente, ela se explicita como espaço de atuação, como campo para pro-blematização das opacidades e relações de poder que cons-tituem nossos dias e o próprio ato de narrar. Assim, venho reelaborando os usos das narrativas, imaginando que pode ser estratégia socialmente pertinente promover e integrar processos narrativos, para compreender itinerários e coti-dianidades, mas sobretudo para compartilhar inquietações e ensaiar juntos em reflexividades da experiência que nos une.

Com certeza, são muitas as contribuições acadêmicas so-bre os usos de narrativas em pesquisa, consideradas, sobre-tudo, como fontes de informação. Elas configuram um exer-cício interpretativo-identitário, comportando a apropriação de elementos do contexto (fatos e artefatos) para compor um enredo; um enredo com sentido, corporificado conforme o espaço de ação do autor e a interação entre os interlocutores. A partir delas (e em associação com outras técnicas), pode-mos problematizar as vivências do itinerário e as inventivi-dades do percurso, as práticas usuais do cotidiano, as redes sociais de circulação e pertença, os códigos de domínio, as condições materiais e culturais experenciadas e os discursos ou sistemas simbólicos de que comungamos.

130. Ver Melucci (2001b, p. 95). Tradução minha.

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Tais informações são fundamentais às pesquisas que ve-nho conduzindo. Contudo, meus interesses caminham em rumo complementar, mas um pouco diferente, atento espe-cialmente à participação em processos sociais que lá estão, e que gostaria de integrar de maneira significativa para as pes-soas com quem dialogo. Não raro, meus interlocutores solici-tavam que suas biografias (individuais ou coletivas) fossem contadas; noutros casos, procurava fazer com que as inicia-tivas próprias da pesquisa se diversificassem nas formas de narrar (entrevistas, ensaios fotográficos, vídeos, diagramas, etc.), evocando as funcionalidades socialmente legitimadas a elas e ampliando as bases de problematização das identida-des em narrativa.

Diante às assimetrias culturais que constituem nossas interações, a intencionalidade e o desafio educativos cru-ciais, aqui, residem em fazer de tais práticas dinâmicas cres-centemente dialógicas. Por ora, carrego comigo as questões e a expectativa de novos encontros. Desejo saber mais das pertenças que nos enlaçam frente às aporias do tempo, le-var adiante as provocações de minha experiência e me deixar invadir pelas inquietudes daqueles que de lá me escutam: es-sas alteridades gestadas que são as periferias, tão próximas e constituintes.

Sigo, enfim, procurando jeitos de andar juntos para “ver-mos aquilo que nunca antes tínhamos visto”.

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Identidades em narrativa: práticas e reflexivida-

des na periferia

Leandro R. Pinheiro

Kátia Ayache

Augusto Pacheco Romano

Érica Cintra

Renato Arantes Santana de Carvalho

Wendel de Almeida

Taine Fernanda Barriviera

14 x 21 cm

288

Cambria

Offset 75g/m2

Fevereiro de 2016

Título

Autor

Coordenação Editorial

Assistência Editorial

Capa e Projeto Gráfico

Assistência Gráfica

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1ª Edição

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