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110 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA” O propósito do presente trabalho 1 é explorar a fronteira da crítica marxis- ta – entre o pensamento de Marx e Engels e o darwinismo – a partir de questões levantadas por Dominique Lecourt, há mais de duas décadas, so- bre a intelecção de Marx a respeito de Darwin e o modo como o marxismo dogmático se apropriou do assunto. Embora Lecourt tenha feito uma análise pontual do pensamento de Marx, é preciso ir além e considerar que os materialistas de então acalentaram o projeto onde as ciências do homem e as ciências da natureza integravam a “ci- Considerações sobre um Marx “anti- darwinista” CARLOS ALBERTO DÓRIA * Teólogos extintos jazem no berço de toda ciência (Thomas Huxley, 1860) ência positiva da natureza e da histó- ria” 2 . Da antiga problemática do conhe- cimento restaria apenas “a teoria do pen- samento e suas leis – a lógica formal e a dialética” 3 . Portanto, era fundamental mergulhar em todos os campos do sa- ber, especialmente a biologia, donde a necessidade imperiosa de compreender Darwin. Por outro lado, deve-se consi- derar que o materialismo moderno é fruto de toda uma geração – a “geração do materialismo” 4 – originando uma nova cultura e uma nova visão de mun- do. Ao expulsar Deus do campo de de- terminações, os materialistas impuseram- * Doutorando em Sociologia pelo IFCH-Unicamp. 1 O presente texto é o desenvolvimento da comunicação apresentada ao 4 o Colóquio Marx e Engels, promovido pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp), Campinas, 2005. 2 Frederico Engels, Anti-Dühring, Madrid, Editoral Ciência Nova, 1968, p. 29. 3 Idem, Ibidem. 4 Carlton J. H. Haynes, Una Generación de Materialismo:1871-1900, Madrid, Espasa-Calpe, 1946. O autor define esta geração como o conjunto de intelectuais ativos entre 1840 e 1870 que, de modo explícito, considerou em suas obras o significado da doutrina darwinista sobre a origem do homem.

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110 • CONSIDERAÇÕES SOBRE UM MARX “ANTI-DARWINISTA”

O propósito do presente trabalho1

é explorar a fronteira da crítica marxis-ta – entre o pensamento de Marx eEngels e o darwinismo – a partir dequestões levantadas por DominiqueLecourt, há mais de duas décadas, so-bre a intelecção de Marx a respeito deDarwin e o modo como o marxismodogmático se apropriou do assunto.

Embora Lecourt tenha feito umaanálise pontual do pensamento deMarx, é preciso ir além e considerar queos materialistas de então acalentaram oprojeto onde as ciências do homem e asciências da natureza integravam a “ci-

Considerações sobreum Marx “anti-

darwinista”CARLOS ALBERTO DÓRIA*

Teólogos extintos jazem no berçode toda ciência

(Thomas Huxley, 1860)

ência positiva da natureza e da histó-ria”

2. Da antiga problemática do conhe-

cimento restaria apenas “a teoria do pen-samento e suas leis – a lógica formal e adialética”

3. Portanto, era fundamental

mergulhar em todos os campos do sa-ber, especialmente a biologia, donde anecessidade imperiosa de compreenderDarwin. Por outro lado, deve-se consi-derar que o materialismo moderno éfruto de toda uma geração – a “geraçãodo materialismo”4 – originando umanova cultura e uma nova visão de mun-do. Ao expulsar Deus do campo de de-terminações, os materialistas impuseram-

* Doutorando em Sociologia pelo IFCH-Unicamp.1 O presente texto é o desenvolvimento da comunicação apresentada ao 4

o Colóquio Marx e

Engels, promovido pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx-Unicamp), Campinas, 2005.2 Frederico Engels, Anti-Dühring, Madrid, Editoral Ciência Nova, 1968, p. 29.3 Idem, Ibidem.4 Carlton J. H. Haynes, Una Generación de Materialismo:1871-1900, Madrid, Espasa-Calpe,1946. O autor define esta geração como o conjunto de intelectuais ativos entre 1840 e 1870que, de modo explícito, considerou em suas obras o significado da doutrina darwinista sobrea origem do homem.

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se a tarefa de encontrar as leis que regi-am a matéria em todas as suas formas.

Para esta revolução, talvez a teo-ria de Darwin seja a mais importanteteoria na “virada”, e mais radical do quea crítica marxista ao idealismo alemão.Por isso tem especial importância a re-lação do marxismo com o darwinismo;uma relação conflitiva, contraditória,mas sem a qual não se compreende odesenvolvimento do próprio pensamen-to de Engels e Marx. Portanto convémregistrar de pronto o que escreveuEngels, em 1875, sobre o darwinismo:

Da doutrina darwinista eu acei-to a teoria da evolução, mas nãotomo o método de demonstra-ção de Darwin (struggle for life,natural selection) além de umaprimeira expressão, uma expres-são temporal e imperfeita, de umfato que se acaba de descobrir.[...]A interação dos corpos naturais –tanto os mortos quanto os vivos –implica também a harmonia, assimcomo a colisão, a luta, do mesmomodo que a cooperação. Se, porconseguinte, um pretenso natura-lista se permite resumir toda a ri-queza e toda a diversidade da evo-lução histórica em uma fórmulaestreita e unilateral, na ‘luta pela exis-tência’ [...] semelhante método con-tem em si sua própria condenação5.

Ao explicitar a distância entre asduas ordens, no tocante ao método, Engelsindica o seu fundamento real: “a diferen-ça essencial entre as sociedades humanase as animais consiste em que essas, namelhor das hipóteses, coletam, enquantoos homens produzem. Basta esta diferen-ça, única mas capital, para tornar impos-sível a transposição sem mais reservas dasleis válidas para as sociedades animais paraas sociedades humanas”.

Darwin, como se concordassecom Engels, admitira antes, em 1871,que a ênfase nos mecanismos de seleçãonatural havia sido interpretada de modoabsoluto, o que não refletia o seu pontode vista com exatidão:

[na] A origem das espécies talveztenha emprestado excessiva im-portância à ação da seleção na-tural ou à sobrevivência dos maiscapazes[...]. Seja-me permitidodizer, como justificativa, que ti-nha em mente dois assuntos dis-tintos: o primeiro, o de que asespécies não haviam sido criadasseparadamente; e o segundo, o deque a seleção natural tinha sidoo agente principal das mudanças,embora largamente coadjuvadopelos efeitos hereditários dos há-bitos e claramente pela ação di-reta das condições ambientais6.

Esta ponderação é de grande va-lor historiográfico, pois entre o grande

5 F. Engels, “Carta a Piotr Lavrovich Lavrov”, Londres, 12-17 de novembro de 1875.6 Charles Darwin, A origem do homem e a seleção sexual, São Paulo, Hemus, 1982, p. 78.

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impacto de A origem das espécies e até arevelação das leis da genética odarwinismo chegou mesmo a viver ummomento de desprestígio e um conse-qüente revival do lamarckismo, vistoque Lamarck se ocupou frontalmentedos problemas da adaptação e o do pa-pel do meio-ambiente na evolução dasespécies. Esta retomada, conhecidacomo neo-lamarckismo, nos diz que,embora a evolução fosse considerada umprincípio inquestionável, o valor domecanismo que Darwin propôs paraexplicá-la variou ao longo da história dabiologia e em muitas abordagens a ên-fase recaiu em princípios alternativos,atuando simultaneamente e conferindoum papel secundário à seleção natural7.

Essa digressão histórica é impor-tante porque, como veremos, as dúvi-das de Marx sobre as lacunas teóricasdo darwinismo serviram à grande con-fusão promovida por DominiqueLecourt por ocasião do centenário damorte de Charles Darwin. Para oepistemólogo, Marx, isoladamente, co-meteu um erro grave de avaliação dopensamento de Darwin.

Da intriga ao objetoNa comemoração francesa do cen-

tenário da morte de Charles Darwin8,Dominique Lecourt, com o propósito deestabelecer um novo campo de críticapara análise das relações intelectuais en-tre Darwin e Marx, resolveu acertar con-tas com a leitura enviesada que esse teriafeito da obra do naturalista. Utilizou paratanto – teatralmente – um conjunto deseis cartas trocadas entre Marx e Engels,entre agosto e outubro de 1866, sobreum livro de Pierre Trémaux, quando am-bos divergiram sobre a teoria deste me-díocre autor a respeito da importânciado solo (geologia) no desenvolvimentodas espécies animais e raças humanas9.

O “caso Pierre Trémaux” – vamoschamá-lo assim – se assemelha a um “es-cândalo” na cidadela do marxismo. Aomenos é o tom que Dominique Lecourtdeu à sua comunicação intitulada “Marxau crible de Darwin”, texto que aparecenos anais do encontro sob a rubrica de“aberrations marxistes”. O uso da palavraaberrações10 sugere que jamais houve rela-ção profícua entre Marx e o darwinismo,tratando-se de uma anomalia11.

7 Peter Bowler, The eclipse of darwinism, Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1992.8 Trata-se do « Congrès International pour le Centenaire de la mort de Darwin », realizadoem Paris-Chantilly, de 13 a 16 de setembro de 1982, pelo Centre d´Histoire et d´Épistémologiedes Théories Scientifiques et des Doctrines Philosophiques de l Université de Picardie.9 Os trechos principais das cartas em relação à polêmica são reproduzidos como anexo aopresente Comentário.10 Dominique Lecourt, “Marx au crible de Darwin”, In: De Darwin au Darwinisme: Scienceet Idéologie”, Congrès International Pour le Centenaire de la Mort de Darwin, Paris-Chantilly,13-16 Septembre 1982, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1983.11 Segundo o preformacionista Jean-Frédéric Meckel (1781-1833), as anomalias (“arrêtsde développement”) significariam que a “força formatriz” teria estancado em algum mo-mento por uma carência inscrita na origem do germe.

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Para maior clareza, vale explicitaros elementos do “caso” criado porDominique Lecourt:

1. Em 1859 aparece em Londresa Origem das Espécies.

2. Em 1865 aparece em Paris olivro de Pierre Trémaux12. Nele,o autor pretendeu expor a teoriado desenvolvimento dos seres vi-vos determinado pelo tipo desolo de seu habitat.

3. Durante o ano de 1866, Marxtrocou cartas com Engels nasquais revelou grande entusiasmopela teoria de Trémaux, apesar deEngels tê-lo advertido seguida-mente sobre grande equívoco emque incorria.

4. Estas cartas, apesar de consta-rem da Marx-Engels Werke(Berlim, 1963-68) não foramincluídas nas múltiplas coletâne-as de correspondências13. Este“incrível silêncio” (a expressão éde Lecourt) seria evidência dopropósito de se ocultar o mo-

mento infeliz da história da for-mação do pensamento de Marx.

O “caso Pierre Trémaux” fere vá-rios problemas para o marxismo: o es-tágio do desenvolvimento teórico doevolucionismo e a assimilação da revo-lução promovida por Darwin; o desen-volvimento do pensamento de Marx eEngels sobre as ciências da natureza; ahistoriografia do marxismo. Por outrolado, a idéia de “escândalo” é um juízoque transcende o enfrentamento cien-tífico entre as obras de Darwin e Marx,mesclando-o com política ehistoriografia. Para a biologia, o “caso”não pareceu digno de maiores atenções,valendo registrar que Stephen JayGould, referindo-se ao erro de Marx,observou sobre a obra de Trémaux: “eujamais li uma tese mais absurda e maldocumentada”14.

A teoria de Pierre TrémauxVisto da perspectiva atual, Pierre

Trémaux era um típico orientalista ro-mântico15 que se aventurava a dar a suacontribuição para a “verdadeira expli-cação sobre as transformações dos seresvivos”, propondo-se a superar o enor-

12 Pierre Trémaux, Origine et Transformation de l’Homme et des Autres Êtres. Première Partie,Paris, Librairie de L. Hachette, 1865.13 Tais cartas teriam “aparecido” pela primeira vez em Karl Marx e Frederic Engels, Lettressur les sciences de la nature, Paris, Editions Sociales, 197314 Cf. John Bellamy Foster, A ecologia de Marx: materialismo e natureza, Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 2005, p. 393, nota 44.15 Ele havia escrito até então livros como Voyages au Soudan Oriental ; Des Édifices Ancienset Modernes; Exploration Arquéologique en Asie Mineure.

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me dissenso entre várias correntes cien-tíficas.

O tema das leis da transformaçãoera, de fato, um dos mais candentes àépoca no debate científico e filosóficoconduzido pelos naturalistas, e não éde estranhar que alguém, à busca denotoriedade, se dedicasse a ele. Ora,durante várias décadas duas grandescorrentes se enfrentaram em torno doassunto: aquela para a qual a transfor-mação dos seres vivos é fruto de umaperfeita adaptação ao ambiente – eportanto uma harmonia da criação semanifesta através dela – e aquela que,ao contrário, via no processo de ajus-tamento a ausência de qualquer dire-triz, sendo o próprio ambientemutável. Como corolário, surgiram ashipóteses sobre a diferenciação ou di-vergência das espécies como formas deadaptação; não sendo ela útil ter-se-iaentão a degenerescência. Ao se pergun-tar “no que consiste esta misteriosa leique produz sempre a fixidez, a varia-ção, o progresso, a degenerescência”,Trémaux situa-se nessa arena de deba-tes e ensaia a resposta “definitiva”. A“grande lei de aperfeiçoamento dos se-res” tem o seguinte enunciado: “a per-feição dos seres é proporcional ao graude elaboração do solo sobre o qual vi-vem. E o solo é, em geral, bem mais

elaborado quando pertence a uma for-mação geológica mais recente”16.

O “segredo da formação das espé-cies”

17, posto como “mistério”, mostra-

o resistindo ao darwinismo, preferindose filiar ao “grande espírito de concilia-ção de M. de Quatrefages”, assim comofazia um grande número de naturalis-tas franceses. Este “atraso” dos france-ses em relação a Darwin se atribui espe-cialmente à grande influência de Cuviersobre o ambiente acadêmico, pois, mes-mo após sua morte, e até o século XX,“darwinismo” e “evolução” eram consi-derados termos pertencentes à culturaanglo-saxônica, quando, para consumointerno, se utilizava transformismo – ter-mo derivado da tradição lamarckiana18.

Trémaux repete e adapta as tesesde Quatrefages sobre os processos dediversificação e unificação das espécies:a ação do solo diversifica segundo a na-tureza, e o crescimento unifica. Assim,dirá, “o tipo de homem corresponde deuma maneira muito forte à formaçãogeológica do meio e especialmente àqualidade do solo sobre o qual está es-tabelecido. Nos homens que vivem so-bre terrenos primitivos das regiões equa-toriais [...] a deformação dos tipos ésempre mais pronunciada”19.

16 Trémaux, op. cit., p 17.17 Idem, Ibidem, p. 1018 Cf. Robert E. Stebbins, “France”. In: Thomas F. Glinck (Ed.), The Comparative Receptionof Darwinism, The Univ. of Chicago, Chicago, 1988, p. 117.19 Trémaux, op. cit., p. 25.

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Como Marx e Engels leramTrémauxNa carta em que Marx se refere

pela primeira vez a Pierre Trémaux elediz que o livro, “apesar de todos os de-feitos [...] constitui um apreciável pro-gresso em relação a Darwin”. Este esta-ria na idéia de que os cruzamentos nãoproduzem as diferenças entre as espéci-es, mas a unidade típica delas, e, ao con-trário, o terreno (o solo) é que levaria àdiferenciação das mesmas. Assim, o que“para Darwin é puramente casual,aparece aqui como necessário com basenos períodos de desenvolvimento docorpo terrestre”. Como corolário, adegenerescência, “que Darwin não con-segue explicar, é mostrada como sim-ples, podendo-se dizer o mesmo quan-to à rápida extinção das formas de purapassagem [...] de modo que as lacunasda paleontologia, que perturbamDarwin, sejam vistas como necessárias.Igualmente como lei necessária, ele de-senvolve a estabilidade (prescindindo devariações individuais etc.) das espécies,uma vez constituídas”

20.Nesta passagem está condensada

a problemática da origem e transforma-ção das espécies antes do surgimento dagenética, isto é, a questão da diferencia-ção originada dentro da própria espécie,pela divergência dos tipos individuais(cuja razão do surgimento ainda se des-conhecia), ou por obra e graça da adap-

tação ao ambiente exterior. Desse modo,a frase de Marx resume boa parte dasdiferenças entre Lamarck e Darwin.Outro trecho importante da carta équando Marx diz que “nas aplicaçõeshistóricas e políticas é muito mais im-portante e rico de conteúdo do queDarwin” porque, a partir de Trémaux,“questões, como nacionalidade” podemser contempladas no seu “fundamentonatural”.

Na carta-resposta Engels diz quea teoria “é desprovida de conteúdo” e“o livro não vale nada. Pura compilaçãoque luta contra os fatos”21. Marx, emseguida, volta ao tema acusando Engelsde reproduzir os argumentos de Cuviercontra a teoria da variabilidade das es-pécies, e acrescenta que “a idéia centralde Trémaux sobre a influência do solo[é] uma idéia que precisa somente serexposta para conquistar, de uma vez portodas, o seu direito de cidadania na ci-ência”22. Em seqüência, Engels reconhe-ce o “mérito de [Trémaux] ter dadomaior destaque à influência do ’terre-no‘ sobre a formação das raças e, conse-qüentemente, das espécies”, além de “terdesenvolvido as opiniões a respeito docruzamento mais corretamente [...] doque todos os seus predecessores”. MasEngels não pára aí. Recorda que Darwintem razão “sobre o poder do cruzamen-to para determinar mutações” e tambémjamais desconsiderou “a influência do

20 Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.21 Engels a Marx, 2 de outubro de 1866.22 Marx a Engels, 2 de outubro de 1866.

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terreno”, não lhe dando maior destaquepor não se saber “como age esse terreno,exceto que o terreno fértil age no senti-do favorável e o árido no sentido desfa-vorável” 23.

Ainda que a tese de Trémaux fos-se uma estupidez, é inegável que Marxe Engels estão discutindo, através dela,questões absolutamente pertinentes paraa biologia da época.

Como Dominique Lecourt re-criou o “caso Trémaux”A análise de Dominique Lecourt

inicia com a dissipação da falsa históriade que Marx teria escrito a Darwin, em1880, manifestando o propósito de lhededicar a edição inglesa de O Capital,solicitando a concordância deste.Lecourt mostra que Marx jamais pro-pôs a Darwin semelhante homenagem,e que a confusão foi repetida como ver-dade por mais de cem anos, mesmo de-pois de 1975, quando a “verdade” foifinalmente restabelecida. A função darepetição teria sido “calar os argumen-tos tanto dos darwinistas anti-marxis-tas quando dos anti-darwinistas anti-marxistas e dos marxistas anti-darwinistas”24. É este o contexto políti-co da analise do “caso Pierre Trémaux”.

Como antecedentes da posição deMarx, Lecourt lembra que Engels, em24 de novembro de 1859, havia lhe fa-lando entusiasticamente do aparecimen-to da Origem das Espécies, sendo que

Marx demorou um ano para “fazer eco”à carta e, ao fazê-lo, reconheceu que naOrigem das Espécies estava “o fundamen-to histórico-natural da nossa concep-ção”, opinião repetida a Lassalle doismeses depois: “o livro de Darwin émuito importante e me serve como baseda luta histórica das classes. Apesar detodas as insuficiências [...] é um golpede morte aplicado na ‘teleologia’ pelasciências da natureza”.

Lecourt percebe que em 1862 oentusiasmo inicial cede lugar à reserva,especialmente pela aplicação queDarwin faz de Malthus às plantas e ani-mais, observando Marx que o próprioMalthus havia explicitado que sua teo-ria não era aplicável à natureza, e queentendia que Darwin estava projetan-do nela um modelo da própria socieda-de inglesa e sua “luta pela vida”. Assim,diz Lecourt, a maior parte dasreferencias à obra de Darwin nos textosde Marx e Engels está marcada por estaambivalência: a concordância e adiscordância pela aplicação do malthu-sianismo.

Sobre esses fatos constrói-se umahistória que é apresentada pelos mar-xistas como tendo duas vertentes: umacordo científico fundamental e umdesacordo ideológico secundário, ape-sar de sério pelas suas “redobradas con-seqüências metodológicas e políticas”.Uma história “edificante” na medida em

23 Engels a Marx, 5 de outubro de 1866.24 Lecourt, op. cit., p. 228.

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que seu objetivo é ilustrar uma verdadepré-estabelecida:

[a] potência da filosofia marxista(dita ‘materialismo dialético’) emse mostrar apta a fazer o corte, emuma obra científica maior, entreo ‘bom’ (a tese da evolução) e o‘mal’ (a struggle for life imputadaa Malthus), tendo ainda um du-plo benefício secundário: o de darà teoria marxista da história (odito ‘materialismo histórico’) oaval de uma teoria científica re-conhecida e sustentar, assim, suaprópria pretensão à cientificidade;e o de sugerir, como os manuaissoviéticos jamais deixaram de fa-zer, que a teoria darwinista é, defato, a ‘aplicação’ inconsciente,portanto inconseqüente, do mes-mo método filosófico que o ‘ma-terialismo histórico’, o ‘materialis-mo dialético’, que antecipou ‘pordireito’ a teoria darwinista25.

Só essa razão, justifica ele, é capazde explicar o incrível silêncio que cercaa correspondência Marx-Engels quecompõe o “episódio Trémaux” – o mo-mento que revela a face oculta da histó-ria do marxismo. E conclui:

O episódio merece, a meu ver,um tratamento epistemológico e

histórico distintos. A análise exa-ta das teorias de Trémaux, o exa-me dos argumentos de Marx parafundamentar o seu entusiasmo,o estudo atento, enfim, dos ar-gumentos que ele contrapõe aEngels, que permitem dar umsentido particularmente forte aosilêncio da tradição ao jogar umaluz bastante dura sobre os limi-tes da compreensão dodarwinismo por Marx e Engels26.

A dissipação da intrigaÉ um exagero de Lecourt reinventar

Trémaux como um teórico digno de nosconsumir o tempo. Talvez o caminhoproposto devesse começar pela análiseda concepção marxista da relação pro-dutiva com a natureza, especialmente como solo, contraposta ao malthusianismo que“rejeitava qualquer noção de progressorápido e contínuo no cultivo da terraou na criação de animais pelo homem,bem como de todas as possibilidades deprogresso social”27. Nas cartas, está cla-ro no “equívoco” de Marx o propósitode encontrar um argumento que liqui-de, de uma vez por todas, com a con-cepção malthusiana, pois seria o solo, enão as leis da população, o vetor a ar-rastar consigo o desenvolvimento daespécie humana.

Este não é um argumentodarwinista, nem tampouco um argu-

25 Idem, ibidem, p. 231.26

Idem, Ibidem, p. 232.27 Foster, op. cit., pág. 156.

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mento marxista na melhor tradição dasanálises do próprio Marx sobre a rela-ção homem-natureza, quando o homemse transforma ao produzir os seus meiosde vida. E é inegável que no entusiasmode Marx por Trémaux vislumbra-se umatese cara ao materialismo mecanicista, aoadmitir um princípio de determinaçãogeológica das formas vivas.

Como observa Naccache, o textode Trémaux nada mais foi do que umcatalizador do entusiasmo de Marx so-bre um “necessitarismo biológico fun-dado num progressismo geológico”, su-perando o que em Darwin é “aciden-tal” e caminhando em direção ao “ne-cessário”28. Este tema, que não é exclu-sivo das preocupações de Marx, ocupaposição central naquilo que inicialmentedenominamos neo-lamarckismo.

Esta corrente de pensamento bio-lógico centra-se nas questões para asquais Darwin ofereceu respostas consi-deradas insatisfatórias. Diante dosimpasses, muitos biólogos retornaramaos textos de Lamarck, especialmentepara tratar da adaptação ou influênciado ambiente sobre o desenvolvimentodas espécies. Em outros termos, a ques-tão era: o processo de evolução é con-trolado pelas influências ambientais ex-ternas ou por forças internas ao próprioorganismo?29.

Um exemplo dessa corrente neo-lamarckiana é Ernst Haeckel. Na suainterpretação, a evolução sempre crianovos caracteres que são testados e in-corporados pela seleção no plano dacompetição interespécies. Esta noção devariação como adição é fundamental paraa sua teoria da “recapitulação” ou “leibiogenética”; tal noção estabelece, ain-da, uma sorte de analogia entre heredi-tariedade e memória, à luz da qual aevolução aparece como uma progressãoentre estágios de desenvolvimento reti-dos pelo indivíduo (ontogênese) numpercurso cumprido pela espécie toda(filogênese) em direção a formas sem-pre superiores, de modo a poder se tra-çar um percurso unilinear e hierar-quizado de transformação de todos osseres vivos a partir da unidade originalda matéria viva (mônada)30. A heredi-tariedade haeckeliana é tomada comouma força centrípeta interna, contra-balançada pela força centrífuga externadada pela adaptação, sendo a fixidez dasformas “o resultado da preponderânciamomentânea exercida por uma das duasforças formadoras”31. Na seleção natu-ral, essas forças agem segundo a dinâ-mica da luta pela existência que se travaporque o número de vegetais e animaisviventes é mais ou menos o mesmo nasuperfície da terra32. Assim, o neo-

28 Bernanrd Naccache, Marx critique de Darwin, Paris, VRIN, 1980, p. 103.29 Bowler, op. cit., p. 9.30 Idem, ibidem, p. 68.31 Ernst Haeckel, História da creação dos seres organisados segundo as leis naturaes, Porto,Lello & Irmãos, 1930, p. 186.32 Idem, ibidem, p. 189.

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lamarckismo recupera a idéia de que aherança de caracteres adquiridos – ba-seada em forças desconhecidas que di-rigiam a matéria orgânica na absorçãode impressões originadas no ambiente– é a força principal na determinaçãoda transformação.

A Marx pareceu bastante registrarque o argumento de Darwin em rela-ção às influências ambientais é insufici-ente para explicar as variações, sendopreciso avançar para o plano da necessi-dade. O exemplo de Haeckel – contem-porâneo de Marx, Engels e Darwin –mostra um Marx que indagava a histó-ria natural numa direção bastante fre-qüente antes da descoberta das leis dagenética. Assim, sem ser fruto da “ig-norância” pessoal, como sugerem boaparte dos argumentos de Lecourt, evi-dencia uma participação pertinente nosdebates da biologia de seu tempo.

Mas Lecourt vai além dessas dis-cussões teóricas quando indica que asrelações entre Marx e Darwin têm sidoum objeto de análise nem sempre bemfreqüentado pelos marxistas. De fato,podemos dizer que um dos trabalhosmais célebres, Marxismo e Darwinismo,do marxista-conselheirista AntonPannekoek, surgido em 1909, ainda étomado como modelar entre aquelesque reivindicam para si a tradição mar-xista33. Nele é clara a confusão entre as

ordens dos fenômenos naturais e soci-ais, contrariando a concepção de Engelsque reproduzimos no início de nossotexto. Mas o programa de Pannkoek ébastante extenso e corresponde àquiloque o marxismo vulgar entendeu daspalavras de Engels diante do túmulo deMarx, em 1883: “Do mesmo modo queDarwin descobriu a lei da evolução danatureza orgânica, Marx descobriu a leida evolução da história humana”.

Podemos entender, porém, que oque Engels apontou foi a homologia en-tre dois planos distintos de desenvolvi-mento do materialismo como exemplosequivalentes de atitude revolucionáriano plano do conhecimento, o que ja-mais autoriza o leitor moderno a com-preender a luta de classes como sinôni-mo de “luta pela vida”. A distinção en-tre as leis biológicas e as leis sociais estáclara também quando, comentandoTrémaux, Marx diz “nas aplicações his-tóricas e políticas [Trémaux] é muitomais importante e rico de conteúdo do queDarwin”34. Lida de modo distinto doque fez Lecourt, esta passagem nos dizque, para Marx, a teoria de Darwin nãoserve a aplicações histórico-políticas.

A necessidade de se diferenciar cla-ramente a luta pela vida e a luta de clas-ses tem uma outra razão histórica: en-tre Marx, de um lado, e Darwin, deoutro, interpõe-se um pensamento es-

33 Anton Pannekoek, Marxism and Darwinism, Chicago, C.H. Kerr & Co, 1912; disponí-vel em http://www.marxists.org/archive/pannekoe/1912/marxism-darwinism.htm. Há umatradução brasileira [Anton Pannekoek, Marxismo e darwinismo, Suplemento de Cultura,Livraria do PCO, São Paulo, s/d].34 Grifo nosso.

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tranho a ambos: o “darwinismo social”.Foi esta doutrina que estabeleceu que a“luta pela vida” (caricatamente tomadacomo sinônimo de darwinismo) pode– ou mesmo “deve” – ser aplicada às so-ciedades humanas, sendo que a sua pri-meira aparição é debitada à tradutorade Darwin para o francês, ClémenceRoyer. Foi ela quem, em 1862, numprefácio do qual Darwin não teve co-nhecimento senão quando publicado –e que repudiou de pronto35 – afirmouque a “lei da seleção natural”, aplicadaàs sociedades humanas, revela o quantosão “falsas” as leis política e civis, de fun-do religioso (idéias de virtude, de solida-riedade social, etc), cujo único resultado éa proteção dos “desgraçados da natureza”.

Mais tarde Royer se deu ao traba-lho de escrever uma vasta obra,intitulada Origem do homem e das socie-dades, cujo grande objetivo era destruira argumentação de Rousseau36 sobre o“bom selvagem”, mostrando-o, ao con-trário, como o “lobo do homem”. Des-sa maneira, o “darwinismo social” nas-ceu simultaneamente à Origem das Es-pécies, e embora seja um ressurgimentodo malthusianismo, migra do campo dateologia para buscar legitimidade nasconquistas científicas inéditas de Darwin.Marx jamais coonestou as opiniões deRoyer, tendo manifestado desacordo com

estas posições que avançaram na Alema-nha a partir do congresso de naturalistas,ocorrido em Munique em 187737.

Sem dúvida Dominique Lecourttem razão quando surpreende Marxdando um passo atrás em direção a ex-plicações teleológicas38 graças ao entu-siasmo com a hipótese de que se pudes-se, finalmente, estabelecer uma relaçãoevolutiva, comandada pelo tempo geo-lógico, entre o tipo de solo e os animaisque o ocupam.

. Mas cabe perguntar:

qual o valor explicativo desta falseadade Marx no sentido de estabelecer asbases do seu método? Não seria o argu-mento de Lecourt mero oportunismopara atacar o “sovietismo” que, comoindica, falhou historicamente na com-preensão da relação Darwin-Marx?

Do ponto de vista do desenvolvi-mento do pensamento de Marx, a ques-tão levantada por Lecourt tem o mes-mo sentido das conhecidas vacilações deDarwin em direção à construção do seumaterialismo biológico. Tanto para umcomo para outro são os resultados do con-junto dos seus estudos que iluminam acaminhada intelectual frutífera. Portan-to, parece mais produtivo para a com-preensão do marxismo situá-lo, e aodarwinismo, no processo de construçãodo materialismo moderno diante de umcorpus mais complexo e amplo que

35 Trechos do prefácio e uma análise do escândalo que se seguiu encontram-se em AndréPichot, Histoire de la notion de vie, Paris, Gallimard, 1993, p. 764-773.36 Clémence Royer, Origine de l homme et des sociétés, Paris, Éditions Jean-Michel Place, 1990.37 Naccache,op. cit., p. 129.38 Lecourt, op. cit., p. 238.

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CRÍTICA MARXISTA • 121

abarca vários embates entre o pensamen-to nascente e a decadente teleologia deparóquia.

Por fim temos o histrionismo deDominique Lecourt ao escandalizar o“caso Pierre Trémaux”. A razão é natu-ralmente a “ocultação” de documentosde valor histórico que permitiriam umacompreensão mais correta do desenvol-vimento do pensamento de Marx. Masé preciso ir além e ter presente que Marxnunca está no centro do universo mate-rialista, em torno do qual gravitam pla-netas menores, quando a questão é aevolução biológica; e a síntese das ciên-cias que ele e Engels buscaram não en-travou o desenvolvimento específico eulterior de cada uma das ciências natu-rais em separado. Ora, o materialismopossui várias constelações, mas já nãose trata de explicar a física newtonianae, sim, o contínuo desdobrar desse uni-verso em formação. No tocante aoevolucionismo biológico, o “Marx-centrismo” dificultou para as geraçõessubseqüentes a abertura para os novosconhecimentos produzidos no campodessa ciência.

Mas, o “pensamento de pároco”não foi, de modo algum, soterrado. Porisso há a necessidade objetiva de fazerconvergir, mais uma vez, os interessescientíficos e políticos de darwinistas emarxistas no combate às novas teoriasdeístas e ao criacionismo. Sabe-se que

não é mais a “internacional negra” deque falava Ernst Haeckel a grande ini-miga das ciências, pois os ataques vêmespecialmente daqueles que fizeram dasciências e da técnica a alavanca mons-truosa do moderno capitalismo.

Excertos das cartas entre Marxe Engels a respeito de PierreTrémaux39

Marx a Engels, em Manchester

Londres, 7 de agosto de 1866

Querido Fred,(....)Uma obra importantíssima que

lhe enviarei (porém sob condição dedevolução, porque não é de minha pro-priedade), tão logo eu tenha extraído asnotas necessárias, é: P. Trémaux, Origi-ne et transformations de l’homme et desautres êtres. Paris, 1865. Apesar de to-dos os defeitos de que me dou conta,constitui um apreciável progresso emrelação a Darwin. As duas teses funda-mentais são: os croisement

40 não produ-

zem, como se pensa, a diferença, mas aocontrário a típica unidade das espèces41.Em contrapartida, a conformação doterreno leva às diferenças (não por si só,mas como base fundamental). O pro-gresso, que para Darwin é puramentecasual, aparece aqui como necessário

39 Tradução do italiano, por Rita Marguerita de Luca.40 cruzamentos41 espécies

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com base nos períodos de desenvolvi-mento do corpo terrestre, e adegénerescence42, que Darwin não con-segue explicar, é mostrada como sim-ples, podendo-se dizer o mesmo quan-to à rápida extinção das formas de purapassagem, em comparação à lentidão dodesenvolvimento do tipo da espèce, demodo que as lacunas da paleontologia,que perturbam Darwin, sejam vistascomo necessárias. Igualmente como leinecessária, ele desenvolve a estabilidade(prescindindo de variações individuaisetc.) das espécies, uma vez constituídas.As dificuldades da hibridação paraDarwin, são aqui, vice-versa, pilares dosistema, pois está demonstrado que, defato, uma espécie é constituída somen-te a partir do momento em que ocroisement com outras deixe de ser fe-cundo ou possível etc.

Nas aplicações históricas e políticasé muito mais importante e rico de con-teúdo do que Darwin. Para algumas ques-tões, como nacionalidade etc., apresentasomente o fundamento natural. Por exem-plo, ele corrige o polonês Duchinski –confirmando entretanto os argumentosdeste sobre as diferenças geológicas entre

a Rússia e os eslavos ocidentais – que diznão serem os russos eslavos e sim tártarosetc.

43, quando a verdade é o contrário, pois

pela constituição predominante do terre-no na Rússia, o eslavo é tartarizado emongolizado. Ele demonstra também (es-teve muito tempo na África) que o tipocomum negro é apenas a dégénérescencede um tipo de estatura muito superior.“Hors des grandes lois de la nature, lesprojets des hommes ne sont que descalamités, témoins les efforts des czars pourfaire du peuple polonais des Moscovites.Même nature, mêmes facultés renaîtrontsur un même sol. L’oeuvre de destructionne saurait toujours durer, l’oeuvre dereconstitution est éternelle... Les racesslaves et lithuaniennes ont avec lesMoscovites leur véritable limite dans lagrande ligne géologique qui existe au norddes bassins du Niémen e du Dniéper...Au sud de cette grande ligne: les aptitudeset les types propres à cette région sont etdemeureront toujours différents des ceuxde la Russie44.”

SalutSeu K. M.

42 degenerescência43 Cf. Marx a Engels, 24 de junho de 1865.44 “Fora das grandes leis da natureza, os planos dos homens não são nada mais do quecalamidades, como demonstram os esforços dos czares para transformar o povo polonêsem moscovita. A mesma natureza, as mesmas capacidades renascerão no mesmo solo. Aobra de destruição não poderia durar para sempre, a obra de reconstrução é eterna... Asraças eslavas e lituanas, em relação aos moscovitas, têm o seu verdadeiro limite na grandelinha geológica que corre do norte das bacias de Niemen e do Dniepr.. Ao sul desta grandelinha: as atitudes e os tipos peculiares desta região são e continuarão sendo sempre diferen-tes dos da Russia”.

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Engels a Marx, em Londres

Manchester, 10 de agosto de 1866

Querido Mouro,(....)Quando custará aproximadamen-

te o livro de Trémaux?45 Se não for muitocaro, devido às ilustrações ou qualqueroutra razão, vou comprá-lo e, assim,você não terá que enviá-lo.

Marx a Engels, em Manchester

Londres, 12 août46 1866

Dear Fred,

(....)O título do livro: P. Trémaux: Ori-

gine et transformations de l’homme e desêtres. Première partie. Paris (Librairie deL. Hachette), 1865. A segunda parteainda não saiu. Não há ilustrações. Osmaps47 geológicos do autor estão nassuas outras obras.

Saudações.Receberei também a principal

obra do médecin48 parisiense citado aci-ma, que lhe enviarei, para seu conheci-mento, tão logo eu a tenha lido.

Teu K. M.

Engels a Marx, em Londres

Manchester, 2 de outubro de 1866

Querido Mouro,(....)Um dia desses escreverei mais

detalhadamente sobre Moilin49 eTrémaux50; o segundo ainda não li in-teiro, mas estou convencido de que asua teoria é desprovida de conteúdo,porque ele não entende de geologia nemé capaz da mais usual crítica histórico-literária. As histórias do negro SantaMaria e da transmutação dos brancosem negros é de morrer de rir. Principal-mente quanto às tradições senegalesasmerecerem fé incondicional, justamen-te porque essa gente não sabe escrever!Além disso, é até sedutora a atribuiçãodas diferenças entre um basco, um fran-cês, um bretão e um alsaciano à confor-mação do território, ao qual natural-mente também deve ser atribuído o fatodesses povos falarem línguas diversas.

Como explica esse senhor que nós,renanos, no nosso território da era depassagem devoniana (que muito tempoantes da formação do carvão fóssil nãohavia afundado no mar) não nos tenha-

45 Cf. a anterior carta de Marx a Engels.46 Agosto.47 Mapas.48 Cf. Marx a Paul Lafargue, 13 de agosto de 1866.49 Cf. Marx a Engels, 13 de agosto de 1866.50 Cf. Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.

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mos transformado, desde os temposmais remotos, em idiotas ou negros?Talvez o faça no segundo volume, ouentão afirmará que somos verdadeira-mente negros.

O livro não vale nada. Pura com-pilação que luta contra os fatos e quedeveria, para cada demonstração que cita,fornecer todas as vezes demonstração.

Saudações às ladies.Teu. F.E.

Marx a Engels, em Manchester

Londres, 3 de outubro de 1866

Caro Engels,(....)Ad vocem Trémaux51: o seu juízo

“que sua teoria é desprovida de conteú-do porque ele não entende de geologianem é capaz da mais usual crítica histó-rico-literária”52, pode ser encontrado qua-se que textualmente em Cuvier, no seuDiscours sur les révolutions du globe con-tra a teoria da variabilité des espèces53 onde,entre outros, ele ridiculariza os fantasiososnaturalistas alemães que expunham emtudo e por tudo a idéia fundamental deDarwin, apesar de conseguiremdemonstrá-la muito pouco. Isto porémnão impediu que Cuvier – que era umgrande geólogo e, para um naturalista,também um excepcional crítico históri-

co-literário – estivesse errado e aquelesque expunham as novas idéias tivessemrazão. A idéia central de Trémaux sobrea influência do solo (apesar dele não le-var em conta as modificações históricasdesta influência, e eu incluo entre estasmodificações históricas também a mu-tação química da superfície pela ação daagricultura etc., além das diferentes in-fluências que tiveram coisas como os es-tratos de carvão fóssil nos diversos mo-dos de produção) é, na minha opinião,uma idéia que precisa somente ser ex-posta para conquistar, de uma vez portodas, o seu direito de cidadania na ciên-cia, e isso independentemente das expo-sições feitas por Trémaux.

Saudações.Teu K.M.

Engels a Marx, em Londres

Manchester, 5 de outubro de 1866

Querido Mouro,(....)Ad vocem54 Trémaux. Quando eu

te escrevi, na verdade tinha lido somen-te a terça parte do livro e seguramente apior (o princípio). O segundo terço, acrítica das escolas, é bem melhor; a ter-ceira parte, as conclusões, de novobastante ruim. O homem tem o méritode ter dado maior destaque à influência

51 No que se refere.52 Cf. a anterior carta de Engels a Marx.53 variabilidade das espécies.54 No que se refere.

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CRÍTICA MARXISTA • 125

do “terreno” sobre a formação das raçase, conseqüentemente, das espécies, e emsegundo lugar de ter desenvolvido asopiniões a respeito do cruzamento maiscorretamente (apesar de, na minha opi-nião, muito unilateralmente) do quetodos os seus predecessores.

Darwin tem razão de um lado comas suas concepções sobre o poder do cru-zamento para determinar mutações,como de resto Trémaux tacitamente re-conhece tratando, quando lhe convém,o cruzamento como meio de transfor-mação, mesmo se no final uniformizante.Do mesmo modo, Darwin e outros ja-mais desconsideraram a influência do ter-reno, e se não lhe deram um destaqueespecial foi por não saberem nada sobrecomo age esse terreno, exceto que o ter-reno fértil age no sentido favorável e oárido no sentido desfavorável. E maisdo que isso nem Trémaux sabe. A hipó-tese de que o solo se torne, em geral,mais favorável ao desenvolvimento deuma espécie superior por ser de forma-ção mais recente tem algo de extraordi-nariamente plausível, e pode ou não sercorreta: mas se olho para as provas ridí-culas sobre as quais Trémaux procurafundar a sua demonstração – 9/10 dasquais se baseiam em dados errados oumal interpretados e um décimo nãodemonstra nada – não posso deixar depassar minhas desconfianças do autorda hipótese para a própria hipótese. Ese depois ele declara que a influência dosolo mais recente ou mais antigo, corri-

gido através do cruzamento é a únicacausa das mutações das especies orgâni-cas no que diz respeito às raças, entãonão vejo mais nenhuma razão para se-guir o autor tão longe, pelo contrário,levanto inúmeras objeções.

Vocë diz que também Cuvier55

jogou na cara dos filósofos naturalistasalemães a sua ignorância quanto à geo-logia, quando afirmavam a mutabi-lidade das espécies, e que depois elesacabaram tendo razão. Mas então a coi-sa não tinha nada a ver com a geologia.De fato, muito diferente é alguém sus-tentar uma teoria da mutabilidade ex-clusivamente baseada na geologia e de-pois cometer os mais grosseiros dispa-rates geológicos, falsificando a geologiade países inteiros (por ex. da Itália e daprópria França) e buscando os exemplosrestantes entre os países sobre a geolo-gia dos quais sabemos pouco ou quasenada (África, Ásia Central etc.). No quese refere especialmente aos exemplosetnológicos, envolvendo países e povosconhecidos, as premissas geológicas ouas conclusões deles extraídas são, quasesem exceção, falsas; e ele deixa totalmentede lado os muitos exemplos em contrá-rio, como as planícies aluvionais no inte-rior da Sibéria, a enorme bacia aluvionalda Amazônia, o inteiro território aluvionalao Sul de La Plata quase até a pontameridional da América do Sul (a Ori-ente da Cordilheira dos Andes).

Que a estrutura geológica do ter-reno tem muito a ver com o que geral-

55 Cf. a anterior carta de Marx a Engels

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56 Cf. Marx a Engels, 13 de agosto de 1866.57 Nesse ponto os franceses os vencem de longe.58 No manuscrito: novembro

mente cresce nele é uma história anti-ga, do mesmo modo que esse terrenovegetativo exerce uma influência sobreas raças vegetais e animais que vivem so-bre ele. E também é correto dizer que atéagora essa influência foi pouco, ou me-lhor, nada estudada. Mas daí até a teoriade Trémaux há um salto enorme. De qual-quer forma, é um mérito ter dado desta-que a essa parte até agora negligenciada e,como eu disse, a hipótese de uma influ-ência que favorece o desenvolvimento doterreno, em relação à sua maior ou menorantiguidade geológica, pode dentro de cer-tos limites, ser correta (ou então não ser),mas quanto a todas as outras conclusões aque ele chega, eu as considero totalmenteerradas ou então terrivelmente exageradasnum sentido unilateral.

O livro de Moilin56 me interessoumuito especialmente pelos resultadosalcançados pelos franceses através davivissecção; este é o único caminho paraestabelecer as funções de certos nervose as consequências das suas alterações;parece que eles levaram a tortura dosanimais a um alto grau de perfeição, eposso entender muito bem o hipócritafuror inglês contra a vivissecção; expe-riências desse tipo foram frequentemen-te muito desagradáveis aos sonolentossenhores daqui e jogaram por terra assuas especulações. Eu não posso julgaro que existe de novo na teoria das infla-mações (darei o livro a Gumpert), mastenho a impressão que essa nova escola

francesa no seu conjunto tenha um cer-to caráter inconformista e, por isso ten-de a ser muito afirmativa e a tratar levi-anamente a demonstração. No que dizrespeito aos medicamentos, não há nadaque todo o médico alemão de bom sen-so não conheça e não pratique; Moilinesqueçe somente que 1) frequentemen-te devemos escolher o mal menor, o re-médio, para afastar o maior, ou seja, umsintoma que gera por si só um perigodireto, do mesmo modo que sedestróem cirurgicamente também os te-cidos, quando não há mais nada a fazer,e 2) devemos-nos ater aos remédios en-quanto não houver nada melhor. Tãologo Moilin consiga curar a sifilis com asua eletricidade, o mercúrio desaparece-rá, mas antes disso será difícil. De resto,ninguém venha me dizer que somenteos alemães sabem “construir” sistemas,the French beat them hollow at that57.

Marx a Ludwig Kugelmannem Hannover

Londres, 9 de outubro de 186658

1, Modena Villas, Maitland Park,Haverstock Hill

Querido amigo,(....)PS. Li recentemente: Dr. T.

Moilin, Leçons de médicine physiologique,que saiu em Paris em 1865. Tem mui-

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CRÍTICA MARXISTA • 127

tos sofismas e “construção” em dema-sia, mas também muita crítica contra avelha terapêutica. Gostaria que o senhoro lesse e me comunicasse detalhada-mente sua opinião. Gostaria também deaconselhar-lhe Trémaux, De l’origine detous les êtres etc.. Apesar de ter sido es-crito de um modo descuidado, de estarcheio de disparates geológicos e de seressentir enormemente da ausência decrítica histórico-literária, ele contém –with all that and all that59 – um pro-gresso em relação a Darwin60.

59 Feitas as contas.60 Cf. Marx a Engels, 7 de agosto de 1866.