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cadernos Nietzsche 10, p. 27-47, 2001 Interpretação enquanto princípio de constituição do mundo Marco Antonio Casa Nova* Resumo: O objetivo do texto é apresentar o papel fundamental da interpreta- ção para o pensamento nietzschiano: ele procura mostrar acima de tudo como a interpretação não se reduz aí a um mero procedimento subjetivo, mas se estende sim originariamente ao próprio processo incessante de constituição do mundo. Para tanto, buscamos nos concentrar preponderantemente na úl- tima fase da obra de Nietzsche e retirar dos fragmentos desta última fase o caminho de tematização de nosso problema. Palavras-chave: interpretação – linguagem – coisa em si – fenômeno – pers- pectiva – vontade de potência – constituição – mundo. “Interpretação Se faço de mim uma exegese, então acabo por me interpenetrar: Não posso ser o próprio intérprete de meu caminhar. Mas quem apenas se alça à sua própria via, Carrega também minha imagem sob a plena luz do dia”. (FW/GC § 29) A concepção nietzschiana da interpretação encerra em si mesma um extenso leque de temas diversos que perfazem e dis- tinguem radicalmente os traços fundamentais do pensamento * Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Interpretação enquanto princípiode constituição do mundo

Marco Antonio Casa Nova*

Resumo: O objetivo do texto é apresentar o papel fundamental da interpreta-ção para o pensamento nietzschiano: ele procura mostrar acima de tudo comoa interpretação não se reduz aí a um mero procedimento subjetivo, mas seestende sim originariamente ao próprio processo incessante de constituiçãodo mundo. Para tanto, buscamos nos concentrar preponderantemente na úl-tima fase da obra de Nietzsche e retirar dos fragmentos desta última fase ocaminho de tematização de nosso problema.Palavras-chave: interpretação – linguagem – coisa em si – fenômeno – pers-pectiva – vontade de potência – constituição – mundo.

“InterpretaçãoSe faço de mim uma exegese, então acabo por me interpenetrar:

Não posso ser o próprio intérprete de meu caminhar.Mas quem apenas se alça à sua própria via,

Carrega também minha imagem sob a plena luz do dia”.(FW/GC § 29)

A concepção nietzschiana da interpretação encerra em simesma um extenso leque de temas diversos que perfazem e dis-tinguem radicalmente os traços fundamentais do pensamento

* Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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nietzschiano como um todo: linguagem e coisa-em-si, força plás-tica e apropriação criativa, perspectiva e valor, vontade de potên-cia e eterno retorno do mesmo etc. Se quisermos apresentá-la su-ficientemente, faz-se portanto necessário antes de mais nada esta-belecer uma ordem adequada para os temas centrais nela abarca-dos. Esta ordem não pode além disto ser cunhada aleatoriamente,mas tem sim de respeitar as orientações presentes nos própriosescritos nietzschianos. Ela precisa em outras palavras nascer emsintonia com uma leitura atenta destes escritos, mesmo que a suadinâmica de realização se construa em função de uma completareestruturação dos elementos a princípio aparentemente dados. Noque concerne a esta articulação essencial entre a leitura atenta e adescoberta de uma ordem específica para os temas acima mencio-nados, uma anotação datada entre o outono de 1885 e o início doano de 1886 nos fornece um primeiro impulso:

“O caráter interpretativo de todo acontecimento. Não há ne-nhum acontecimento em si. O que acontece é um grupo de fenô-menos interpretados e reunidos por uma essência interpretativa”(KSA 12, 1[115]).

A anotação acima inicia-se com uma articulação decisiva parauma determinação primária do cerne de nosso problema. Nietzschenão designa aí a interpretação como um esclarecimento meramen-te subjetivo de uma situação qualquer já previamente dada e deci-dida em seu teor ontológico próprio. Ao contrário, ele a estabele-ce sim muito mais enquanto o caráter essencial a todo e qualqueracontecimento. A interpretação sempre transpassa com isto con-ceptivamente tanto o modo como o acontecimento mesmo se rea-liza quanto o modo segundo o qual ele é percebido. O porquê de ainterpretação desempenhar uma tal função no interior da consti-tuição de todo acontecimento pode ser deduzido a partir da segun-da sentença. À medida que não há nenhum acontecimento em si,

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todos os acontecimentos são determinados pela dinâmica da inter-pretação. Mas até que ponto podemos retirar o caráter interpre-tativo de todo acontecimento a partir do fato de não haver nenhumacontecimento em si? Como Nietzsche dá em verdade sustentaçãoa uma tal asserção? O pensamento metafísico não tentou eviden-ciar constantemente a subsistência de uma diferença no cerne doacontecimento mesmo entre a coisa-em-si e o fenômeno? Por quetemos então de concordar com esta afirmação? Nietzsche respon-de a estas perguntas em uma anotação do outono de 1887: “Que ascoisas possuem uma constituição em si, totalmente abstraída dainterpretação e da subjetividade, é uma hipótese completamentepachorrenta: uma tal hipótese pressuporia, que o interpretar e oser-subjetivo não são essenciais, que uma coisa, apartada de to-das as suas relações, ainda é uma coisa” (KSA 13, 9[40]).

A metafísica sempre trabalhou efetivamente com uma cisãoentre coisa-em-si e fenômeno: entre um mundo verdadeiro e umoutro aparente. Esta cisão pressupõe contudo fundamentalmente,que tenhamos um acesso real a este mundo verdadeiro: que possa-mos considerar uma coisa em sua constituição essencial comple-tamente apartada de todas as suas relações. Só estaríamos entre-tanto em condições de levar a cabo uma tal consideração, se pu-déssemos nos libertar de uma maneira qualquer de nosso aprisio-namento na sensibilidade e concebêssemos através daí o mundoverdadeiro em sua constituição pura: se tivéssemos uma possibili-dade qualquer de alcançar um conhecimento do mundo, que nãopossuísse nenhuma fenomenalidade e estivesse além disto em co-nexão essencial com o que se encontra para além de toda aparên-cia. Exatamente neste ponto apresenta-se porém um problema detodo insolúvel. Nós precisamos nos desprender inteiramente daligação sensível com o mundo, mas não temos absolutamente ne-nhum meio de levar a termo este desprendimento; precisamos cu-nhar uma linguagem adequada para este conhecimento, mas sópossuímos nossa própria linguagem empírica enquanto instrumento

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de uma tal cunhagem.(1) O que resulta daí pode ser acompanhadoplenamente através de uma formulação paradigmática de Hegelem uma passagem da introdução à sua “Fenomenologia do Espíri-to”: “Se investigarmos agora a verdade do saber, parece queestamos investigando o que o saber é em si. Somente nesta inves-tigação ele é nosso objeto: é para nós. O em-si do saber resultantedessa investigação seria antes seu ser para nós: o que afirmásse-mos como sua essência não seria sua verdade, mas sim nosso sa-ber sobre ele. A essência ou o padrão de medida estaria em nós, eo (objeto) a ser comparado com ele não teria necessariamente dereconhecer sua validade” (Hegel 3, “Introdução”, p. 76). A dife-renciação entre fenômeno e coisa-em-si vai com isto paulatina-mente se dissipando, pois toda e qualquer tentativa de uma deter-minação da coisa-em-si sempre acaba por trazê-la até o seio dofenômeno e assim necessariamente fracassa. A partir da vivênciaincessantemente reiterada deste fracasso surge então finalmente apossibilidade da inserção da interpretação no próprio processo deconstituição da realidade e ganha força ao mesmo tempo a clarezaquanto à inexistência de propriedades ontológicas abstraídas detoda interpretação: “Uma “coisa-em-si” é tão equivocada quantoum “sentido em si”, uma “significação em si”. Não há nenhuma“instância factual em si”, mas um sentido sempre precisa ser pri-meiramente introduzido, para que possa haver uma instânciafactual. O “o que é isto? é uma instauração de sentido empreendi-da por um outro. A ‘essência’, a ‘essencialidade’ são algo pers-pectivístico e pressupõem uma pluralidade. No fundo encontra-sesempre ‘o que é isto para mim?’ (para nós, para todos os que vi-vem)” (KSA 12, 2[149]). A inserção da interpretação no processode constituição da realidade e a clareza quanto à inexistência depropriedades ontológicas dadas ainda não são porém por si mes-mas suficientes para caracterizar a interpretação enquanto o prin-cípio da constituição do mundo. Nós podemos continuar inserin-do uma certa substância por detrás da interpretação e designando

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esta substância como o único ser verdadeiro: nós podemos seguirassumindo a subjetividade como o ponto de partida de toda inter-pretação e considerando a interpretação como um mero modo deexpressão subjetivo. Para afastar esta possibilidade, Nietzscheconcebe o problema da interpretação em uma conexão interna coma sua teoria do perspectivismo. No que diz respeito a esta teoria eà sua incompatibilidade com posições subjetivistas, uma anota-ção datada entre o final de 1886 e o início do ano de 1887 é espe-cialmente significativa:

“Contra o positivismo, que permanece junto ao fenômenoafirmando “só há fatos”, eu diria: não, justamente fatos não há,há apenas interpretações. Nós não podemos fixar nenhum fato“em si”: talvez seja mesmo um disparate querer algo assim. “Tudoé subjetivo”, vós afirmais: mas já isto é interpretação. O sujeitonão é nada dado, mas algo anexado, colocado por detrás. – É porfim necessário colocar ainda o intérprete por detrás da interpre-tação? Já isto é poetização, hipótese.

Conquanto a palavra “conhecimento” possui acima de tudosentido, o mundo é cognoscível: mas ele é passível de receberoutras explicitações, ele não possui nenhum sentido por detrásde si, mas infindos sentidos, “Perspectivismo” (KSA 12, 7[60]).

“Não há nenhum fato, há apenas interpretações”. Com estaspalavras, Nietzsche apresenta o traço fundamental de seu inter-pretacionismo. Tudo é fundamentalmente interpretação e não háconcomitantemente nada dado para além de cada empreendimen-to de uma determinada interpretação. De acordo com o texto daprimeira anotação citada, a interpretação nos remete contudo es-sencialmente para um “grupo de fenômenos interpretados e reuni-dos por uma essência interpretativa”. Considerando uma tal afir-mação, poderíamos ser então levados apressadamente a concluirque toda interpretação seria levada a termo pela subjetividade en-quanto uma tal essência interpretativa e que tudo seria do mesmo

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modo essencialmente subjetivo. Em máxima sintonia com os in-tuitos primordiais do pensamento hegeliano, poderíamos identificara vida da realidade com as sínteses efetivamente possíveis da aper-cepção e assim manter através daí ao menos o princípio de todainterpretação fora da dinâmica de concreção das mais diversas in-terpretações singulares.(2) Tudo seria portanto realmente interpre-tação, mas a condição de possibilidade mesma de toda interpreta-ção permaneceria intacta para além de toda e qualquer interpreta-ção específica. Contra esta conclusão apressada nos fala entretan-to o próprio texto nietzschiano: “Tudo é subjetivo, vós afirmais:mas já isto é interpretação, o sujeito não é nada dado, mas algoanexado, colocado por detrás”. Ao assumirmos o sujeito enquantoa essência interpretativa responsável pelo estabelecimento da ditareunião do grupo de fenômenos em uma aparência determinada,não nos deparamos finalmente com o em si da realidade. O sujeitonão subjaz a priori a todo processo de conformação da objetivida-de. Ao contrário, ele só se assenhora de uma tal posição em rela-ção aos objetos a partir de um movimento prévio de anexação desi mesmo ao fenômeno e de interpretação de todos os elementosaí vigentes a partir de seu papel supostamente estruturador. Se asubjetividade repousa porém de fato sobre uma tal anexação, aprópria diferenciação da totalidade em sujeitos e objetos tambémse mostra como estabelecida através de um movimento congênere.Nós perguntamos por isto juntamente com Nietzsche: “É mesmopor fim necessário colocar o intérprete por detrás da interpreta-ção?” O que nos leva a aceitar tão facilmente esta hipótese?

Nós podemos acompanhar inicialmente o veio central da ar-gumentação nietzschiana com o auxílio de uma alusão ao queNietzsche toma como sendo uma característica distintiva de todopensamento metafísico: “a fé na gramática” (JGB/BM § 34). Seperguntarmos a nós mesmos uma vez mais por que tomamos afi-nal como imprescindível a colocação do intérprete por detrás dainterpretação, é maximamente provável que apontemos para um

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pressuposto gramatical. Nós precisamos colocar o intérprete pordetrás da interpretação porque toda ação em geral requer logica-mente a presença de um sujeito enquanto o suporte ontológico desua realização. Este pressuposto gramatical não encontra contudoeco apenas em nossa experiência cotidiana, mas também no cerneda concepção metafísica moderna do problema da subjetividade.(3)

Segundo a metafísica moderna, consideramos o mundo a partir deum “cantinho” na interioridade, no qual o sujeito enquanto o fun-damento ontológico de toda e qualquer constituição da objetivi-dade possui a sua morada. O problema desta concepção é de qual-quer modo exatamente o mesmo que tivemos a oportunidade deacompanhar em relação à coisa-em-si. Nós pressupomos aí a exis-tência de um sujeito que desempenha uma ação e que não se con-funde simplesmente com os traços estruturais desta última. Umsujeito que leva a termo por exemplo a ação de pensar e que sedenomina portanto enquanto pensante. Para que possamos fixareste sujeito pensante, precisamos inevitavelmente empreender umadiferenciação entre este sujeito e o seu ato. Nós teríamos então deum lado o sujeito e do outro o ato deste sujeito. O sujeito sem oseu ato não contém todavia nenhuma fenomenalidade e está total-mente cindido de todas as suas relações. Um tal sujeito não existecontudo de maneira alguma: ele é, como nos diz o próprio Nietzsche,“uma segunda conseqüência derivada da falsa auto-observação,que acredita em “pensamento”: aqui é primeiramente um ato ima-ginado, que nunca tem realmente lugar, “o pensar”, e, em seguida,um sujeito-substrato imaginado, no qual todo ato deste pensar enada mais tem sua origem; ou seja, tanto a ação quanto o agentesão imaginados” (KSA 13, 11[113]). Tanto a ação quanto o agen-te são portanto imaginados porque nascem de um processo pri-mordial de abstração que os retira do solo de seu acontecimentooriginário. Em meio a este solo, o que tem lugar não é um sujeitoapartado arbitrariamente de sua ação e descrito estaticamente comoo fundamento puro desta última, mas a imiscuição de ambos em

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uma dinâmica criativa de síntese de uma série de elementos diver-sos. “Não somos sapos pensantes, aparelhos de objetivação e re-gistro com vísceras friamente dispostas. Precisamos constantemen-te gerar nossos pensamentos de nossa dor e dar-lhes maternalmentetudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo, desejo, pai-xão, sofrimento, consciência, destino, fatalidade. Viver significapara nós transformar incessantemente tudo o que somos e tudo oque nos diz respeito em luz e fogo: não podemos agir de outramaneira” (FW/GC § 127). À medida que nenhum pensamento podeser realizado para além da combinação dos prazeres, desprazeres,pulsões maximamente diversas, o sujeito não pode em outras pa-lavras se mostrar enquanto condição de possibilidade de toda in-terpretação de mundo. Se o conceito nietzschiano de uma essên-cia interpretativa que reúne e interpreta um grupo de fenômenosnão tem no entanto nada em comum com a concepção hegelianada subjetividade absoluta, nós precisamos agora buscar uma deli-mitação mais próxima do conteúdo significativo deste conceito.Nós perguntamos então: O que tem em vista Nietzsche com umtal conceito? Em que medida ele se encontra em conexão com aexpressão perspectivismo? Qual o sentido nietzschiano do termoperspectivismo? Como este termo articula-se com a interpretaçãoe o empreendimento da reunião de um certo grupo de fenômenos?Até que ponto os acontecimentos abarcam em si mesmos não ape-nas um fenômeno, mas um grupo de fenômenos?

O título perspectivismo não diz em um primeiro momentonada além do seguinte: tudo é perspectiva e não há conseqüente-mente nenhuma dimensão não perspectivística da realidade. Só sealcança contudo um sentido mais determinado deste título depoisde uma descrição exata dos múltiplos elementos que ele traz con-sigo originariamente. A universalização das perspectivas apontaprimariamente para o fato já apresentado aqui em seus traços maisprimordiais de que não existe absolutamente nada que possa vir ase mostrar de fora como o fundamento incondicional de toda e

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qualquer perspectiva: de que se dissipou completamente a neces-sidade de se inserir o intérprete por detrás da interpretação en-quanto o seu suporte ontológico próprio. Como se encontra for-mulado em um aforismo central de “A Gaia Ciência”: “nós jáestamos hoje ao menos distantes da imodéstia risível de decretar apartir de nosso canto, que só se tem o direito de possuir perspecti-vas a partir deste canto” (FW/GC § 374). Se não há entretantonenhum fundamento incondicional de toda perspectiva capaz deinterromper radicalmente o processo de sua extensão ao todo darealidade, então as perspectivas nunca se deparam verdadeiramentecom um limite efetivo para si mesmas e se apresentam assiminexoravelmente como infinitas. O perspectivismo é portanto umadoutrina que se acha em ligação intrínseca com a idéia da infini-dade de possibilidades de constituição perspectivística do mundo.Exatamente em virtude disto é que Nietzsche nos diz logo após aalusão à superação da dita imodéstia risível: “O mundo se tornouuma vez mais “infinito” para nós, conquanto não podemos rejeitara possibilidade de ele encerrar em si mesmo infinitas interpreta-ções” (FW/GC § 374). O perspectivismo implica com isto funda-mentalmente a existência de uma infinidade de perspectivas pos-síveis do mundo e repercute ao mesmo tempo a experiência deque todas as tentativas de corrigir esta infinitude acabam sempreinevitavelmente por ratificá-la. Tomada por si mesma a afirmaçãoda infinitude das perspectivas é contudo insuficiente para trazer àtona o caráter essencial a cada perspectiva em específico. Nestesentido, precisamos analisar em um segundo momento a palavraperspectiva em sua significação própria. Para especificar esta sig-nificação, talvez seja interessante seguir a orientação fornecidapela experiência cotidiana do termo. Nós indagamos por conse-guinte: o que se entende normalmente pelo termo perspectiva? Quala situação que serve de parâmetro básico para a construção de umatal compreensão? Quais os pressupostos estruturais da represen-tação mediana da noção de perspectiva? Em que medida esta com-

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preensão é ou não capaz de dar conta do que Nietzsche tem emmente com este termo?

Via de regra compreendemos a perspectiva como um modomeramente subjetivo de considerar a realidade. Alguém está porexemplo em um certo teatro e vê a partir de uma determinada po-sição os atores no palco desempenhando papéis em uma peça. Seuolhar empreende incessantemente um recorte possível das cenaspresentes, compondo-o através daí com uma gama inumerável devivências singulares anteriores. Ao mesmo tempo uma outra pes-soa se acha porém sentada em uma outra posição, traz consigo umconjunto totalmente diferente de vivências e apreende assim amesma peça a partir de um ponto de vista diverso. As maneirascomo os dois vêem a cada vez o mesmo de modos diferentes sãoassumidas então enquanto suas perspectivas ou enquanto os as-pectos da mesmidade. Para que este modelo de esclarecimentopossa ser tomado como plausível, pressupõem-se contudo de an-temão algumas coisas. Pressupõem-se primeiramente a existênciade uma realidade dada e a legitimidade da designação desta últi-ma enquanto a fonte de uma multiplicidade de aspectos possíveisde si mesma. Pressupõe-se em seguida a existência de um sujeitocapaz de perceber particularmente esta realidade previamente dadae de corporificar um de seus aspectos determinados. E pressupõe-se ainda por fim que a perspectiva consiste na relação deste sujei-to dado com esta realidade dada. De acordo com o que tivemos apossibilidade de acompanhar detalhadamente, não há todavia nemuma realidade nem tampouco um sujeito vigindo para além de todae qualquer perspectiva. Não há nenhuma instância factual envol-vendo dois entes a priori constituídos em sua determinação subsis-tente e constante, mas estes entes mesmos só se estabelecem en-quanto tais no interior de uma instância factual através de um pro-cesso poético primevo de anexação interpretativa dos dois ao acon-tecimento e de construção igualmente poética deste último enquan-to um fato isolado. O fato também nasce em outras palavras de

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uma perspectiva, mas só vem à tona efetivamente através de umesquecimento primário de seu próprio caráter perspectivístico. Con-quanto não há porém nem uma realidade previamente dada nemtampouco um sujeito que possua a priori as suas determinaçõesessenciais, não há sentido algum em pensar na perspectiva como arelação entre os dois. Nós poderíamos concluir assim apressada-mente pela completa inadequação da representação mediana dasperspectivas e abandoná-la em nome de uma outra qualquer. Umatal postura acaba no entanto por inviabilizar uma apreensão doque há de maximamente significativo nesta representação: a cu-nhagem do campo semântico do termo “perspectiva” a partir doscontornos da relação mesma. Se retivermos esta determinação pe-culiar e introduzirmos além disto sem sobras tanto o sujeito quan-to a perspectiva no interior da relação, então nos aproximaremosmuito do sentido nietzschiano deste termo. A perspectiva continu-ará se mostrando neste caso como a relação entre o indivíduo sin-gular e o mundo fenomênico, mas se aquiescerá aí simultanea-mente à plena impossibilidade de alcançar seja o indivíduo singu-lar seja o mundo fenomênico para além da respectiva relação quea cada vez se estabelece. Nós já sempre nos movimentamos porassim dizer no seio de uma perspectiva porque já sempre estamosparticipando da dinâmica de instauração de uma certa unidade vitala partir de uma série de ingredientes diversos e porque esta dinâ-mica é determinada de maneira relacional. No que se refere aoprocesso de formação desta unidade, a perspectiva não é por suavez senão o princípio da síntese a cada vez alcançada.(4) Nós chega-mos portanto ao derradeiro elemento do perspectivismo nietzschia-no: ao contexto primariamente visual da palavra perspectiva.

O termo perspectiva deriva-se diretamente do latim perspice-re e diz literalmente o mesmo que “atravessar com o olhar”. Eleparece apontar assim de imediato para a presença de alguém queconsidera um certo estado de coisas em específico. À medida quenão nos deparamos contudo com as determinações ontológicas de

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nenhum indivíduo e não estamos tampouco em condições de fixarnenhum estado de coisas para além de toda perspectiva, o aconteci-mento de uma tal consideração carece necessariamente de um es-clarecimento ulterior. No interior de uma perspectiva não se trans-passa com o olhar um determinado estado de coisas dado, massurge sim primordialmente a possibilidade tanto do olhar quantodo estabelecimento efetivo de um estado de coisas. A perspectivaviabiliza originariamente o despontar da visão e propicia ao mesmotempo a constituição do visto, uma vez que se atém à multiplicidadeprimevamente amorfa como um catalizador e provoca então o apa-recimento de uma unidade vital singular. A cada instante a totali-dade vem à tona em uma configuração própria. Esta configuraçãonão pré-existe ou mesmo sub-siste às perspectivas em meio a umaestrutura meramente factual, ela nasce muito mais em ressonânciade fundo com o vir-a-ser de um feixe de relações sob o domínio deum princípio perspectivístico de ordenação. No que concerne aeste feixe, não nos encontramos além disto em uma posição defranca superioridade e nunca podemos sequer chegar até ele defora. Ao contrário, já sempre estamos desde o princípio coinseridosnele e tomados pelo poder de coesão da respectiva perspectiva aívigente. Tal como Nietzsche escreve em uma anotação datada entreo outono de 1885 e o outono de 1886: “Toda unidade só é unidadeenquanto organização e conjunção: nada além do modo como umacoletividade humana é uma unidade: enquanto contraposta à anar-quia atomista; com isto, uma conformação de domínio, que assu-me uma significação una, mas não é una” (KSA 12, 2[87]). O verperspectivístico apresenta-se em face de cada “conformação dedomínio” enquanto o princípio de sua instauração. A sua signifi-cação própria não é com isto construída primordialmente em fun-ção da apreensão sensível de uma situação factual, mas sim emfunção das condições de possibilidade de uma tal apreensão. Eledescreve em última análise o que já sempre se precisa ter visto,para que o ver seja então possível.(5)

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Concluímos no último parágrafo o movimento de determi-nação do conteúdo significativo da concepção nietzschiana do pers-pectivismo. Diante de uma tal conclusão talvez seja interessanteapresentar agora uma formulação definitiva para esta concepção,que englobe simultaneamente os seus três aspectos essenciais:perspectivismo é aqui uma teoria que, a partir da compreensãoda infinitude das possíveis interpretações do mundo, pensa a pers-pectiva como o princípio sintético de todas as relações entre o vere a realidade, assumindo-a ao mesmo tempo enquanto condiçãode possibilidade do surgimento tanto do ver quanto do visto. Setemos clareza quanto a este ponto, é preciso dar um passo à diantee indagar uma vez mais: qual a identidade própria à essência in-terpretativa que abre sempre novamente uma perspectiva em espe-cífico? Qual o sentido da afirmação nietzschiana de que “o queacontece é um grupo de fenômenos interpretados e reunidos poruma essência interpretativa”? A resposta a estas perguntas apare-ce indicada em uma anotação datada entre o outono de 1885 e ooutono de 1886:

“A vontade de potência interpreta: em meio à formação deum órgão trata-se de uma interpretação; ela delimita, determinagraus, diferencialidades de poder. Meras diferencialidades depoder não poderiam ainda ser apreendidas sensivelmente enquantotais: um algo que quer crescer precisa estar presente; um algoque quer crescer e interpreta todo outro algo que quer crescer apartir de seu valor. Aí justamente – Em verdade, a interpretaçãomesma é um meio de se tornar senhor sobre algo (o processoorgânico pressupõe ininterruptamente o interpretar” (KSA 12,2[148]).

A resposta nietzschiana à primeira das perguntas acima sur-ge logo no começo da anotação: “a vontade de potência interpre-ta”. A vontade de potência é assim em outras palavras a essênciainterpretativa que sempre abre novamente a cada instante uma

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perspectiva em específico. Mas em que medida é possível afirmara vontade de potência enquanto uma tal essência interpretativa?Até que ponto o discurso acerca de uma essência interpretativanão recai uma vez mais na suposição metafísica da necessidade deinserir o intérprete por detrás da interpretação? Ao assumir a von-tade de potência enquanto a essência interpretativa que conduz oprocesso de instauração das determinações perspectivísticas dosfenômenos em geral, Nietzsche não está simplesmente repetindoo procedimento característico da suposição metafísica acima refe-rida. E ele não está simplesmente repetindo um tal procedimentoporque a expressão “vontade de potência” não designa aqui ab-solutamente um ente em si mesmo autônomo e por si subsistentecapaz de funcionar como o fundamento a priori do movimento derealização da interpretação. Não há em verdade nenhuma entida-de transcendental denominada “vontade de potência” que levariarespectivamente a termo a ação da interpretação enquanto o seusuporte ontológico próprio. O conceito “vontade de potência” nãosurge através da descoberta de alguma nova substância metafísi-ca, à qual todas as dimensões da realidade poderiam serreconduzidas e a partir da qual todas poderiam ser ao mesmo tem-po explicadas.(6) Diferentemente de Schopenhauer que pensava “omundo fenomênico (como) o espelho e a objetividade” de umainstância metafísica chamada vontade (Schopenhauer 6, p. 380),Nietzsche procura realçar a absoluta inexistência de uma tal ins-tância. Como aparece formulado no final de uma anotação decisi-va para a compreensão do conteúdo significativo da noção “von-tade de potência”: “Não existe nenhuma vontade: existem pontu-ações volitivas que constantemente aumentam ou perdem o seupoder” (KSA 13, 11[73]). Mas se não há efetivamente nenhumavontade no sentido de uma entidade alheia à dinâmica de configu-ração da realidade, então a vontade de potência não pode ser umaessência interpretativa extrínseca ao movimento de concretizaçãoda interpretação. Ela não pode ser antes ou depois de um tal movi-

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mento, mas precisa sim se mostrar como comum-pertencente aele. Esta comum-pertencência repousa sobre o acontecimentomesmo da interpretação. Toda interpretação implica necessaria-mente um processo criativo de integração de um número variadode elementos sob a vigência de um princípio determinado de sis-tematização destes elementos. No momento em que empreende-mos agora, por exemplo, uma interpretação específica do pensa-mento nietzschiano, trazemos uma série de aspectos deste pensa-mento para o seio de uma ordenação diversa da que eles encon-tram imediatamente no texto original e nos deixamos simultanea-mente guiar por um horizonte próprio de condução desta ordena-ção. A interpretação nunca pode ser confundida com uma meraparáfrase do já escrito: ela sempre pressupõe a presença de umnovo horizonte de problematização e conseqüentemente tambémde um princípio diverso de apresentação. Toda interpretação per-faz-se em resumo necessariamente através da subsunção de umamultiplicidade de elementos a um determinado princípio de estru-turação, assim como só se mostra em sua identidade mais consti-tutiva em função do próprio empreendimento de uma tal estrutu-ração. Se ela só se mostra porém em sua identidade mais constitu-tiva em função da estruturação da multiplicidade, ela não possuirealidade alguma para além da dinâmica de instauração destaestruturação. Não há em resumo interpretação alguma antes doarranjo singular da pluralidade em jogo com o acontecimento dainterpretação e toda interpretação está portanto fundada sobre umtal arranjo. Exatamente como tivemos a oportunidade de acompa-nhar anteriormente em meio à consideração da concepçãonietzschiana do perspectivismo, não existe contudo nenhuma ins-tância autônoma frente ao despontar de toda e qualquer interpre-tação. A totalidade precisa acompanhar com isto o caráter próprioà interpretação e uma essência interpretativa só pode ser pensadaem sintonia com este caráter. A vontade de potência enquanto aessência interpretativa não pode em outras palavras se achar apar-

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tada da vida das diversas interpretações, ela precisa sim descrevermuito mais o modo de sua realização. À medida que ela traz consigouma tal descrição, não devemos senão buscar aí mesmo uma elu-cidação para a sua assunção enquanto uma essência interpretativa.

O parágrafo acima procurou mostrar a incompatibilidade daasserção nietzschiana da vontade de potência enquanto uma es-sência interpretativa com a cisão metafísica do sujeito frente àssuas ações. Para tanto, buscamos revelar antes de mais nada a co-nexão essencial entre a própria realidade das diversas interpreta-ções e o movimento de sua concretização singular no instante.Este movimento aponta para o empreendimento de um certo pro-cesso de integração de uma multiplicidade de elementos a partirdo fio condutor de um determinado princípio de condução destaintegração: a partir de uma certa “perspectiva”. Perspectiva e in-terpretação nos falam conseqüentemente de aspectos intrínsecos auma mesma experiência. Quando esta experiência ganha o cerneda totalidade, ela requer para si o aparecimento de uma nova ex-pressão fundamental. Mas que experiência é esta afinal? Que novonome é capaz de traduzir agora o seu caráter mais essencial? Aexperiência da inserção máxima da interpretação no coração darealidade já foi previamente apresentada aqui em meio à tematiza-ção da noção de “coisa-em-si”. Como não há possibilidade algu-ma de alcançar uma delimitação do conteúdo significativo do em-si através de nossa linguagem constitutivamente empírica, a inter-pretação ganha o estatuto de marca distintiva de todas as configu-rações da totalidade. Não há nenhuma dimensão da objetividadeque ganhe corpo para além de toda e qualquer interpretação, as-sim como não há nenhuma substância subjetiva capaz de funcio-nar enquanto suporte ontológico da ação de interpretar. Reina comisto originariamente uma infinitude de interpretações possíveis darealidade e estas infinitas interpretações também implicam ao mes-mo tempo uma infinitude de perspectivas. Todas estas perspectivasestão desde o início presentes enquanto possibilidades de estrutu-

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ração da multiplicidade e cada uma delas traz consigo uma leiprópria. Se elas se fazem incessantemente presentes enquanto taispossibilidades e se os seus respectivos princípios de ordenaçãolhes são próprios, então elas se acham desde o início em luta umascom as outras. O fato de apenas uma única possibilidade estar acada vez em condições de funcionar como princípio de sistemati-zação da pluralidade faz com que a realidade sempre assuma con-figurações através de um embate primordial entre as infinitas pos-sibilidades concorrentes. Da incontornabilidade deste embate es-clarece-se o conteúdo significativo próprio à compreensãonietzschiana de vida como vontade de potência. Tal como apareceexpresso em uma anotação do outono de 1887: “Todo aconteci-mento, todo movimento, todo devir é a fixação de relações de graue de força: uma luta” (KSA 12, 2[85]). Antes do empreendimentode uma tal fixação não nos deparamos com uma essencialidadeindiferente às diversas composições da superfície, assim como paraalém do mundo fenomênico não vige uma vontade-em-si que en-contra posteriormente expressão em suas objetivações. Ao contrá-rio, a representação imaginária da supressão de todas as relaçõesde força aponta para a concentração de uma pluralidade caótica depuras possibilidades “dinâmicas” de integração.(7) Uma vez queestas possibilidades “dinâmicas” já estão porém desde sempre emluta umas com as outras, elas se expõem ininterruptamente a par-tir de uma composição e de uma conseqüente preponderância deum direcionamento singular. Vontade é aqui o nome para o des-pontar de um imperativo a partir de um tal direcionamento.(8)

Como o que nasce deste imperativo é um arranjo de toda uma plu-ralidade de elementos em jogo em um determinado acontecimen-to (de um grupo de fenômenos) sob o controle de um único princí-pio de ordenação, todo ato volitivo forja uma certa injunção depoder. Nas palavras de Nietzsche: “O grau de resistência e o graude poder-sobre – é disto que se trata em todo acontecimento”. Von-tade de potência é com isto o nome da estrutura fundamental de

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todos os acontecimentos da totalidade, uma vez que todos estesacontecimentos surgem através de uma luta entre possibilidadesde condução do processo constante de composição das forças emjogo na realidade e uma vez que esta luta sempre resulta no apa-recimento de uma via imperativa de expansão destas forças sob odomínio interpretativo de uma possibilidade em específico. Àmedida que a interpretação (a perspectiva) transpassa porém radi-calmente a essência da vontade de potência, ela se mostra comodeterminante para a constituição dos acontecimentos em geral.

Em todo acontecimento nos defrontamos com o estabeleci-mento de uma relação entre elementos perspectivísticos de orde-nação da pluralidade de forças em jogo. Cada um destes elemen-tos perspectivísticos encerra em si mesmo uma determinada as-censão sobre esta pluralidade de forças e uma determinada capa-cidade de resistir aos elementos contrários à sua vigência. O mun-do caracteriza-se então por um embate entre princípios de compo-sição e estes princípios não estão senão inseridos em uma relaçãonecessária de poder uns em relação aos outros. De acordo comuma certa formulação recorrente nos cadernos nietzschianos de1887/88, eles são quanta de poder e se instauram em sua identida-de própria a partir “do efeito que exercem e ao qual resistem”.Porque o mundo é marcado originariamente por uma luta entrequanta de poder e porque se mostra em sua dimensão mais pri-mordial enquanto uma guerra entre perspectivas detentoras de umacapacidade de domínio, temos a cada instante o despontar de umaconjuntura de poder. Esta conjuntura de poder precisa incessante-mente transmutar-se em função de sempre novas composições,visto que a sua instauração não encerra de uma vez por todas aguerra, mas apresenta sim inversamente uma mera pontuaçãovolitiva. Vontade de potência descreve com isto por um lado o pro-cesso de conformação de uma conjuntura de domínio no instantee se revela simultaneamente em sintonia com a eterna dinamicidadedestas composições. Cada uma destas conformações vitais repou-

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sa contudo por outro lado sobre a integração de uma multiplicida-de a partir de “algo que quer crescer e interpreta todas as outrascoisas que querem crescer a partir de seu valor”: a partir de algoque sempre se lança criativamente para além de si mesmo. A von-tade encontra portanto a cada vez seu teloj no interior da teciturade uma malha de poder, pois somente em meio a uma tal malhatem lugar uma ordenação harmoniosa da multiplicidade originá-ria (kosmoj). Conquanto esta ordenação harmoniosa e constante-mente instaurada adquire seu caráter próprio através da facticidadeda interpretação (perspectiva), toda estrutura de poder está essen-cialmente em ligação com esta última. Interpretação é por istoefetivamente um meio mesmo para se assenhorar de algo: ela é otraço fundamental do movimento de realização de vida como von-tade de potência. O que surge a partir deste assenhoramento não éoutra coisa senão mundo. Interpretação é então ao mesmo tempoprincípio de constituição do mundo.(9)

Notas

(1) Quanto à compreensão nietzschiana do caráter empírico da linguagem,conferir a formulação presente no escrito póstumo “Sobre Verdade e Men-tira no Sentido Extra-moral”. Conferir também o volume das anotaçõespara as preleções do semestre de inverno de inverno de 1871/72 até o se-mestre de inverno de 1874/75. Em especial, “Apresentação da RetóricaAntiga”, § 3.

(2) Conferir o segundo capítulo do livro de Friedrich Kaulbach “Philosophiedes Perspektivismus”: “Perspektivismus bei Hegel”.

(3) Em meio à demonstração cartesiana da verdade do cogito, o que se faz nãoé outra coisa senão lançar mão deste pressuposto. Da atividade de pensa-mento deduz-se a existência da res cogitans, uma vez que não pode haver

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aparentemente ação alguma sem a presença de um suporte ontológico daação. Quanto à crítica nietzschiana a esta suposição, conferir KSA 13,11[113].

(4) Conferir Volker Gerhardt, “Vom Willen zur Macht. Anthropologie und Me-taphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsches”, p. 326.

(5) Martin Heidegger tematiza explicitamente este sentido do termo ver emseu escrito “A Sentença de Anaximandro”, em “Holzweg”, p. 341-4.

(6) Na década de 80, o filósofo alemão Wolfgang Müller Lauter influenciouintensamente toda uma geração de intérpretes do pensamento nietzschianocom as suas críticas à leitura heideggeriana de Nietzsche. O ponto básicode sua crítica era por sua vez a afirmação de que a vontade de potência nãopode ser assumida como um princípio metafísico e não determina por con-seguinte o modo de ser do ente na totalidade. Conferir do mesmo“Nietzsche: Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seinerPhilosophie” e “Nietzsches-Lehre vom Willen zur Macht”, em “Nietzsche-Studien 3.

(7) Conferir Nietzsche, KSA 12, 9[106].(8) Conferir Volker Gerhardt, “Vom Willen zur Macht. Anthropologie und

Metaphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsches”, Parte3, VIII, 5, “Wille ist Wille zur Macht”, p. 265: “Vontade – da forma admi-tida por Nietzsche – é o conceito para a unidade atual das aspirações depreponderância e comando. Ela designa o impulso vetorial a partir de umamultiplicidade de exteriorizações de força e se baseia na dinâmica viven-ciada de uma pulsão dominante”.

(9) Uma análise mais detalhada do papel estruturante da interpretação podeser encontrada na obra do filósofo alemão Günter Abel: “Nietzsche: DieDynamik der Willen zur Macht und die ewige Wiederkehr”.

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Referências Bibliográficas

1. ABEL, Günter. Nietzsche: die Dynamik der Willen zur Machtund die ewige Wiederkehr. Berlim, De Gruyther, 1998.

2. GERHARDT, Volker. Vom Willen zur Macht. Anthropologie undMetaphysik der Macht im exemplarischen Fall FriedrichNietzsches. Berlin, De Gruyther, 1996.

3. HEGEL, G.W.F. Hauptwerke in 6 Bänden. Frankfurt, Mainer,1999.

4. KAULBACH, Friedrich. Philosophie des Perspektivismus I.Tübingen, J.C.B Mohr, 1990.

5. NIETZSCHE. Werke. Kritische Gesammtausgabe. Edição Collie Montinari. Berlim, Walter de Gruyther & Co., 1967-78.

6. SCHOPENHAUER, Arthur. Die Welt als Wille und Vorstellung.Frankfurt, Insel Taschenbuch, 1996.

Abstract: This article intends to introduce the fundamental role of the inter-pretation in Nietzsche‘s work: it try to explain first at all, in wich way the inter-pretation should be not consider as a mere subjective procedure, but as con-stitutive to the originary process of configuration of the world. We concentrateso ourselves preponderantly at the last phase Nietzsche‘s writings and buildup here the way of explanation of our problem.Key-words: Interpretation – language – Thing-in-itself – phenomenon –perspective – will to power – constitution – world.