Intervenção de Carlos César
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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Escola de Psicologia e Ciências da Vida
Sessão Solene de Abertura do Ano Académico – Aula Magna
…sobre os nossos factores de desenvolvimento
UM CONTRIBUTO ESSENCIAL DO PORTUGAL INSULAR, O MAR
Por Carlos César*
*presidente do Governo dos Açores 1996/2012
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Autoridades universitárias
Senhor Diretor da Escola de Psicologia e Ciências da Vida,
Docentes e alunos
Minhas Senhoras e meus senhores
Começo, naturalmente, por saudar os presentes no início de mais um
ano letivo. A todos aproveito para augurar os melhores sucessos
académicos e pessoais.
Agradeço também, vivamente, o convite que me foi formulado pelo
Professor Doutor Carlos Alberto Poiares - que muito me honra, sendo
ele um distinto docente e investigador -, para vos falar neste momento
tradicionalmente solene na vida das instituições de ensino superior.
Nasci, como devem saber, nos Açores. Sou, afinal, um descendente
dos portugueses e de muitos outros povos europeus com os quais
fomos estabelecendo relações. Desde sempre, pois, a nossa geografia
colocou-nos como região associada à comunicação civilizacional e à
globalização.
O diálogo entre a terra e o mar é a constante da história açoriana e da
sua condição física. Raul Brandão, referindo-se ao cenário natural das
terras dos Açores com que se confrontou nas suas viagens em 1924
escreveu que “O que completa a beleza desse grande panorama de
trabalho e de luz é a colaboração do oceano e da serra”. Como
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também referenciou Vitorino Nemésio, "As ilhas são o efémero e o
contingente: só o mar é eterno e necessário".
É, justamente, dessa maresia e da consciência do seu valor como um
dos elementos estratégicos para o benefício do nosso país que vos
falarei mais adiante, com maior detalhe, no âmbito dos fatores de
sustentabilidade do desenvolvimento que Portugal procura.
Os Açores dos finais dos anos cinquenta, quando nasci, ou mesmo
dos primeiros anos da democracia, eram muito diferentes, para pior,
dos de hoje, mesmo considerando os efeitos atuais da crise que se
dissemina por todas as regiões do país, quer nos planos económico e
social quer na qualidade da sua inserção nos níveis nacional e
europeu.
Éramos então a região mais atrasada do país quando este era o mais
atrasado da Europa. Representávamos cerca de 40% da média do PIB
nacional per capita, o que contrasta bem com os quase 95% atuais e
com a boa aproximação que fizemos à média europeia por habitante
(11 pp nos últimos 15 anos). Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo
que a dívida dos Açores pouco nos últimos anos sendo de 19% face
ao PIB da Região contra os 124% de Portugal em relação ao PIB em
Dezembro passado.
Os Açores não só não contribuem actualmente para o desiquilibrio
orçamental do país como realizaram uma consolidação orçamental
real. Quando por vezes alguns falam das transferências financeiras
para as regiões autónomas atente-se que, no caso dos Açores, estas
hoje já não chegam a metade do que por exemplo o Estado gastaria
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se detivesse na Região a administração dos setores da Saúde e da
Educação.
A extraordinária mudança que ocorreu não foi alheia à instauração do
regime autonómico que conferiu amplos poderes políticos e
legislativos às regiões insulares. De outro modo não teria sido
possível.
As autonomias, pese embora os incidentes processuais e os seus
resultados últimos na Madeira, são experiências bem sucedidas que
reforçaram a unidade nacional e a coesão económica e social entre o
Portugal continental e insular. Podemos dizer que foi e é uma das mais
relevantes reformas político-administrativas na organização do Estado
português, depois do colonialismo, e só é pena que não se tenham
desenvolvido, entretanto, processos semelhantes descentralizadores
de reforço das competências da administração local e ou das regiões
no território continental.
Ainda recentemente, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
António Costa, salientava com muita oportunidade que, no âmbito da
reforma do Estado de que o País carece, “a descentralização deve ser
a pedra angular” desse processo. Uma reforma do Estado assente,
como ele diz, “na simplificação e modernização administrativa, que
transmita eficiência e diminua custos de contexto, que poupe na
burocracia, nas redundâncias, nos desperdícios e na ostentação”, em
síntese que reoriente de forma adequada, racional e produtiva a
despesa. Em sentido semelhante falou Silva Peneda afirmando que
“falar de Reforma do Estado sem falar da regionalização não tem
sentido”.
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Não há, estou convicto, nada a temer - em matéria de eficiências, ou
de multiplicação de efeitos burocráticos e na despesa, ou de desbulhe
do Estado ou de efeitos desagregadores -, de uma descentralização
inteligente, qualquer que seja a sua intensidade.
A realidade tem provado que esses processos são virtuosos se e
quando o seu enquadramento e condicionalidades não são
desacautelados, podendo resultar numa redistribuição eficaz de
recursos, numa transferência de serviços periféricos de proximidade
para as regiões, num modelo de estabilização demográfica, em
sinergias que melhoram a integração, tal como na superação de
gritantes ausências de planeamento à escala regional que têm
acentuado descontinuidades e desigualdades no desenvolvimento do
país e menorizado e excluído regiões, pessoas e empresas.
As vantagens, pois, da dispersão organizada de núcleos de
responsabilização e de autogoverno são muitas e, ao contrário do que
a politicagem centralista propaga, os perigos são conhecidos,
escassos e, sobretudo, controláveis. Portugal é um exemplo flagrante:
quando centralizado não evitou a decomposição e descentralizado, no
que toca aos Açores e à Madeira, não tem riscos de fragmentação.
Num período de transição entre paradigmas de gestão, de
desenvolvimento e de exercícios de cidadania, como aquele que ora
se vive, os apelos justificados à Reforma do Estado são, neste caso,
uma boa oportunidade para reequilibrar o âmbito competencial dos
diversos níveis de poder, facilitar a rapidez das decisões e para
melhorar a participação cívica (participação que, diga-se, conjugada
com a sensação de revolta e desconfiança que se vai generalizando
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no país, é a melhor alternativa à instabilidade incontrolada em que,
como avisa Adriano Moreira, “o imprevisível está à espera de uma
oportunidade”).
Portugal está, assim, a meu ver, incompleto na sua reconstrução
democrática e penalizado nas suas eficiências com a falta de
oportunidades que as suas regiões continentais têm para dispor, com
maior autodeterminação, sobre aspetos específicos dos seus destinos.
O mesmo, sem dúvida, acontece, ou devia acontecer nos contextos
europeus. Na verdade quanto mais associadas estiverem as
representações democráticas nacionais e europeias às aspirações e
sensibilidades regionais e locais mais robustas ficarão as nossas
democracias e menor será o temor da desconstrução europeia que
paira sobre todos nós como uma ameaça quase civilizacional.
Na verdade, para além da necessidade absoluta que Portugal hoje
tem de ser parte de uma Europa providente e reguladora, o nosso
destino também não poderá deixar de estar associado, na evolução
que ambicionamos positiva, a uma Europa exigente, que arrepie
caminho da debilitação e disfuncionalidade da sua governação e da
desilusão e da sugestão de deliquescência da solidariedade entre
Estados, governos e Povos.
Não é um apelo serôdio o de aspirar a uma verdadeira União, que
recupere do debilitamento do que designarei como “o espírito de
necessidade de Europa”, que animava Jacques Delors ou mesmo
Helmuth Kohl. Mesmo uma Europa que, na esteira de Maurice
Shumann, se estruture com “realismo sem ideologia” serviria. Ao
contrário, o prevalecimento das razões de uma advocacia patrona da � 6
renacionalização de alguns poderes – que pode, é certo, satisfazer a
visão do Reino Unido de coexistência mínima europeia, a proverbial
suspeita alemã ou os avanços da direita populista –, o prevalecimento
dessa tendência, dizia, liquidará por muitos anos um projeto europeu e
destruirá progressivamente a competitividade de cada um dos seus
atuais estados membros, inclusive os agora mais fortes.
Só institucionalmente unida, também, a Europa poderá diminuir a
probabilidade futura de eclosão novos conflitos internos fatais para as
pessoas e para a sua economia. Sem um espaço europeu dotado de
uma coordenação económica e financeira central e efetiva, de
coordenadas de caracterização da Europa Social e da centralização
de políticas conducentes ao redesenho dos poderes europeus em
matéria de segurança e defesa, vai ser iminente e doloroso para os
povos a destruição do ideal europeu sob a ilusão do honorifico
beneficio da renacionalização de poderes. E, com isso, todos ficarão
expostos a todos os perigos.
A incorporação de preocupações de uma estratégia de crescimento
para a zona euro, que parece animar o novo compromisso partidário
do governo alemão, pode ser um sinal animador de inversão da
deterioração que temos visto, goradas que foram as principais
espectativas que haviam acompanhado a ascensão dos socialistas em
França.
Sabemos que só uma Europa socialmente mais forte e
economicamente mais coesa poderá dar uma resposta mais eficaz
aos desafios de desigualdade e de desemprego que alastram na
União Europeia, pelo que não devemos temer uma reacção negativa
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dos que são hoje contribuintes líquidos do Tesouro da União quando
lhes reiteramos que a Europa só se preservará como espaço de paz e
tolerância e só vencerá no concerto da competitividade mundial e da
modernidade se tiver um Governo efetivo e com um poder fundado
numa legitimidade democrática, direta e verdadeira que trate os
cidadãos europeus com a equidade necessária.
Minhas Senhoras e meus Senhores
Num momento em que tudo entre nós se parece confinar ao deve e
haver do dia seguinte e em que cresce a convicção de que não
sabemos o que fazer de Portugal, para além das práticas cruéis de
confiscação e das políticas de cronometria “orçamentalista” que nos
atingem, é fundamental perscrutar outras dimensões que podem
ajudar a romper com esse imediatismo político conservador e
restringente.
A descentralização interna, por um lado, e uma governação europeia
efectiva e provedora, por outro, são, seguramente, factores de
sustentabilidade da autonomia e do progresso do país e informadores
da reforma do Estado.
É verdade que Portugal atravessa uma crise gravíssima que tem uma
fortíssima componente estrutural. Mas, podendo ser uma das mais
graves, não é única na nossa História nem na dos países com que
convivemos, nem é irreversível. Não refaremos certamente o nosso
futuro apenas com sobreviventes de uma epidemia de fome e miséria;
todos deveremos superar estas dificuldades. E isso é possível.
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Como dizia Roosevelt em 1936, ao referir-se aos desafios com que a
sua geração de compatriotas se confrontava, “Há um ciclo misterioso
nos eventos humanos. Para algumas gerações muito é dado. De
outras gerações muito é esperado.” Roosevelt iniciou e concretizou o
tenso e delicado processo de construção do pacto entre Estado,
trabalho organizado e capital, que, no pós-guerra, fundamentaria o
Estado de Bem-Estar americano e um longo período de prosperidade.
E logo avisou que “ A Humanidade veio primeiro”, ou seja que para
equilibrar o orçamento no pico do desemprego e da grande depressão
ele teria “de virar a … cara com indiferença ao sofrimento humano” e
isso não faria.
São convicções de impressionante incisão na conjuntura portuguesa
penosa que atravessamos, e porventura difíceis de seguir, no
enquadramento europeu e internacional que temos e no humanismo
que infelizmente escasseia. A alternativa, porém, tem sido
depauperadora.
Tenho pesar nesta constatação, mas não vale a pena negar as
evidências. A verdade é que o País não conseguiu superar bem,
nestes quase quarenta anos de democracia, os seus maiores défices
estruturais, que condicionaram e condicionam os principais fatores de
desenvolvimento: falo, por exemplo, da qualificação, da produtividade,
dos desequilíbrios no consumo de recursos do Estado, do continuado
mau funcionamento das funções judiciais, da inconstância nas
prioridades económicas do investimento público, do contínuo
desequilíbrio na balança de pagamentos, ou da falta de massa crítica
do sector privado estabelecido para ser um motor de crescimento.
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Simultaneamente, temos que reconhecer que falhámos na criação de
um enquadramento propício estável para o investimento privado, pois,
se revisitarmos todo este período antecedente verificamos que, para
além da profusão burocrática, há uma marca profunda de instabilidade
legislativa e insegurança jurídica, de alterações constantes nas
políticas fiscais, de incentivos ao investimento, na lei laboral, no
licenciamento industrial empresarial, entre outros aspetos.
Outro exemplo, ainda é o do Sector Empresarial do Estado: apesar de
necessário como potenciador de investimento, de crescimento
económico e de correção de falhas de mercado, na verdade,
mantivemo-lo sobredimensionado, com empresas inúteis em alguns
casos e funcionando noutro como veículos do Estado para contornar
limites de endividamento. O seu endividamento, hoje, absorve parte
importante da capacidade de crédito do país e prejudica o tecido
empresarial tendo em conta o valor da sua dívida a fornecedores.
Alimentados por conjunturas económicas em que o acesso à liquidez
externa – ou seja, ao crédito facilitado – era grande e estimulado,
obtiveram-se, todavia, níveis significativos de crescimento e de
emprego ainda que numa base de sustentabilidade provisória.
É bom notar que mudámos a realidade do país em várias dimensões
com enormes benefícios e disso somos beneficiários e não nos
devemos arrepender. Mesmo assim, atente-se, os governos
desaproveitaram fundos europeus, que receberiam a fundo perdido,
deixando por concretizar várias infraestruturas necessárias em
sectores como a ferrovia e os aeroportos ou na economia do mar, na
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modernização da agricultura, na ciência e na reestruturação do sector
secundário.
Gerámos, pois, progressos indiscutíveis mas não gerámos riqueza
suficiente para assegurar a maior longevidade desse percurso.
Permanecemos vulneráveis à conjuntura externa de referência que tal
como nos beneficiou agora nos prejudica, que tal como nos incentivou
para o aumento do investimento público com dívida inverte
subitamente o critério e, para usar a expressão mais popular, retira-
nos o tapete tal como a outros países que seguiram percursos
semelhantes. A crise, também nesse sentido, é europeia…e não só!
O país vive com défices orçamentais há décadas, que ora foram
cobertos por remessas de emigrantes, ora por fundos comunitários,
ora por receitas extraordinárias, ora por recurso à dívida. Uns anos
mais, outros menos, sempre assim foi possível prosseguir. Não foi um
problema criado em 2009 ou 2010, nem agravado com este governo.
Foi sim um problema que passou a ter outro enquadramento externo
que tornou difícil ou irrepetível essa trajetória.
As consequências foram inevitáveis: a economia frágil não se mostra
capaz de reerguer sem assistência, a banca tem como prioridade
salvar-se antes de acudir à economia, o Estado debilita-se com a
quebra de receita e com os estabilizadores automáticos no máximo, a
dívida e a desconfiança externa crescem de mãos dadas favorecendo
o impasse.
Talvez por lembrança do recurso ao FMI nos anos oitenta foram feitas
várias tentativas para reverter a situação da dívida. Lembro que já em
2001 o governo Guterres equacionou um plano de redução de � 11
despesa que não foi concretizado nem seguido pelo governo posterior,
aumentando-se, como se sabe, em cerca de 60%, a despesa pública
primária nos dez anos seguintes. O mesmo foi conseguido numa
primeira fase pelo governo Sócrates e tentado de novo com o
desfecho conhecido do PEC 4. Enfim, como dizia Eça de Queirós,
“Todo o ministro que entra – deita reforma e coupé. O ministro cai – o
coupé recolhe à cocheira e a reforma à gaveta. (…)”.
E aqui chegámos. Em matéria de austeridade, de 2011 para cá
passámos a fazer de objectivo aquilo que quisemos sem sucesso
várias vezes fazer de adjuvante. E assim tudo para todos ficou pior.
Um olhar sobre o que poderemos chamar de ação de superfície do
actual governo, não nos leva além da verificação das várias formas de
austeridade e de recurso a receitas extraordinárias. Porém, a despesa
do Estado cresceu, a receita na maior parte dos impostos desceu, o
desemprego atingiu um valor aflitivo, a restruturação da banca ainda é
uma incerteza e o endividamento público subiu para valores nunca
antes esperados pela Troika. A única boa notícia é o facto das
empresas produtoras de bens transacionáveis terem continuado a
aumentar as suas exportações, para onde se reorientam em maior
parte e em consequência do estrangulamento no mercado interno.
O caminho que estamos a fazer tem agravado problemas conjunturais,
como o défice e o endividamento, sem corrigir desequilíbrios
estruturais nem ativar fatores de sustentabilidade de crescimento e de
desenvolvimento como os que resultariam de uma correta reforma do
Estado.
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Economistas de várias tendências apontam, com contas feitas, para a
forma negligenciada como se tem avaliado os chamados “efeitos
multiplicadores” da austeridade intensiva: um corte salarial que gere
uma poupança imediata de 100 na despesa do Estado pode induzir,
por via do prejuízo sobretudo no consumo, uma diminuição ad riqueza
do país em 150, com consequências óbvias na receita fiscal direta e
indireta e no crescimento das prestações sociais como no subsídio de
desemprego, penalizando assim afinal o Estado em 50. Se juntarmos
ao efeito real das medidas o clima económico que resulta da
antecipação do comportamento das empresas e das pessoas face à
possibilidade de penalizações futuras o efeito multiplicador negativo é
ainda maior. Estranhamente é um tribunal, neste caso o
Constitucional, um dos fatores momentaneamente mais importantes
de melhoria no clima económico.
O caso da Reforma do Estado, que todos reclamam como necessária,
é outro dos impasses incompreensíveis. Faz-se afinal o que é
económica e socialmente mais oneroso e não o que seria mais
necessário e reformador, ou seja reduz-se a alocação de meios para
as mesmas estruturas com as mesmas funções, que é como quem diz
– aposta-se apenas no definhamento do Estado. Por exemplo, com os
cortes efetuados e a redução do número de funcionários públicos –
como escreveu Daniel Oliveira, para níveis face à população ativa três
vezes inferiores aos da Dinamarca ou da Noruega - as análises de
projetos de investimento e a obtenção de determinadas licenças e
certificados passaram a levar o dobro do tempo.
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Cumulativamente, a realidade mostra-nos, pesem embora alguns
borrifos de indicadores de conjuntura, que a recessão está para ficar
face à reincidência dos métodos e instrumentos que têm sido
utilizados com insucesso, o que nos levará, com muita probabilidade,
a um segundo resgate.
Com este ou outro governo não vejo outra via racional, na óptica dos
credores como na dos devedores, do que o reconhecimento da
impreteribilidade da reestruturação da dívida pública portuguesa com a
dilatação dos respetivos prazos de pagamento. Basta verificar as
nossas necessidades de financiamento até 2017 e os custos que
gerarão, ainda que sob assistência no recurso ao mercado (o
chamado programa cautelar), para percebermos como seriam
insuportáveis para o erário público, proibitivos de quaisquer funções
úteis do Estado de previdência social como de impulso ao
crescimento. Recordo que só em 2013 o montante de juros pagos
atingirá um valor equivalente a 4,4% do PIB.
Obama referiu num discurso que o seu papel “não é representar
Washington junto das pessoas, mas sim representar as pessoas em
Washington”. Importa, pois, colhendo esse espirito e adotando outra
atitude, garantir junto das instituições internacionais o financiamento
até 2017 em conexão com uma travagem da austeridade e uma folga
para o investimento, ao mesmo tempo do compromisso de reformas
estruturais com enfoque na eficiência e não no corte simples da
despesa.
A alternativa a esse rumo é o perdão parcial da dívida que se seguirá
ao incumprimento, com a destruição da credibilidade e de uma
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autonomia mínima de decisão política do Estado português e com o
prejuízo dos credores.
Estou convencido que uma renegociação naqueles termos permitirá
um acordo de incidência de médio prazo entre os principais partidos
portugueses e uma garantia de estabilidade, de cumprimento e de
interlocução com os credores. Paradoxalmente, ou não, uma decisão
negativa do Tribunal Constitucional nos casos mais significativos da
projeção orçamental para o próximo ano – pensões e remunerações
da função pública – ajudará fortemente o país nessa renegociação e
na construção de um novo compromisso nacional de que tanto
necessitamos. Se daí advier entretanto uma crise política, tanto
melhor: que seja rápida e contribua para o compromisso que nos falta
para o futuro!
Minhas senhoras e meus senhores
Já mencionei atrás que o nosso país não resolveu ainda muitos dos
seus mais importantes défices estruturais, que inquinam o nosso
desenvolvimento e competitividade: relevo as questões associadas à
qualificação, com destaque para a Universidade, e a reforma do
Estado na ótica da economia portuguesa, designadamente nos
segmentos da produtividade, da atratividade, da fiscalidade, da função
judicial, da burocracia e da seletividade do investimento no quadro do
cofinanciamento europeu até 2020.
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Uma breve nota, pois, sobre a prioridade na Educação e outras notas
seguintes sobre essas dimensões da reforma do Estado que se
constituem como fatores de desenvolvimento.
A prevalência da Educação entre os investimentos mais reprodutivos,
como aposta no capital humano, é dificilmente compaginável em
Portugal com os cortes de financiamento que têm ocorrido. Na
educação não pode vigorar a insolência liberal que clama “O Estado
que desampare a loja!”.
Se ao nível da escolaridade obrigatória cresce o incumprimento e no
ensino profissional eclodem as dificuldades, o decréscimo de
ingressos no ensino superior triplicou face ao ano anterior. Isto, num
país com uma taxa de diplomados de 26,5% no grupo etário dos 30
aos 34 anos face a uma média europeia que chega aos 40%.
A universidade é “alma-mater” da Investigação & Desenvolvimento.
Dela agora se exigiria os caminhos inversos que lhe estão a
proporcionar: a universidade – tal como, de resto, os politécnicos –
tem de aumentar a sua porosidade, em múltiplos campos, com as
empresas e instituições, com o corpo social, na sua pluralidade de
manifestações e necessidades, no relacionamento externo, fora das
fronteiras nacionais, na fluidez do relacionamento com o mundo da
economia. A universidade, porque o é, é abrangente: não é só
tecnológica. É por excelência o domínio das ciências sociais e
humanas e das artes. E isso tem tudo a ver com o desenvolvimento
dos povos e mentalidades.
Acredito que nesta casa em que estamos, bem gerida e pensada,
essa reflexão é permanente. � 16
Volto, pois, minhas senhoras e meus senhores, a algumas incidências
mais necessárias no âmbito da reforma do Estado com impacto direto
na economia portuguesa.
Portugal é um dos países da Europa onde menos se remunera o
trabalho e onde mais horas se trabalham, mas em que a produção por
cada trabalhador é das mais baixas. A produtividade é, portanto, um
dos problemas que temos que resolver, não por via da continuada
diminuição dos custos do trabalho mas através de um pacto social,
envolvendo sindicatos e partidos, que estabeleça metas e
compromissos para os próximos dez anos nos âmbitos da formação
profissional e da legislação laboral.
Sabemos que o investimento privado externo e interno é indispensável
nesta fase e que carece, para se processar, de estabilidade, de
segurança e de agilidade na resposta do Estado. Impõe-se,
igualmente com sentido alargado de compromisso, contratar com o
sector bancário para este desígnio, utilizar fundos europeus de forma
criteriosa e com a taxa de co-financiamento máxima possível e agir
com determinação e impacto imediato nos incentivos fiscais. Tal como
no caso da produtividade está em causa a aplicação de recursos
financeiros nacionais bem modestos.
A constante alteração no sistema fiscal português, tal como o excesso
de carga fiscal, é outro fator que mina a confiança e importa retificar. O
Pacto Fiscal que está a ser trabalhado ao nível do IRC deve ser
negociado como todos os intervenientes sociais e alargado a todos os
impostos, por forma a garantir uma estabilidade fiscal durante pelo
menos uma década. O Partido Socialista, por exemplo, não se deve
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excluir nem ser excluído desse esforço de consenso que deve ser
rapidamente concluído com êxito.
O caso da Justiça é um dos factores mais inibidores de um novo ciclo
de eficiência. Algumas alterações no sistema e no mapa judicial
provocaram alarde mas não contrariaram uma realidade: a Justiça é
cada vez mais cara, processualmente complexa, desigual no acesso,
lenta e um fator insegurança nas relações económicas e de
ineficiência no combate à corrupção. O mesmo acontece com a
burocracia onde até o programa Simplex, premiado a nível europeu,
foi suspenso. São reformas necessárias onde, uma vez mais, estamos
a falhar e não precisávamos nem precisamos de dinheiro para não
falhar.
Sabemos bem, por fim, como importa reverter a queda do
investimento privado interno e externo e do investimento público
ocorrida nos últimos dois anos. Estamos num momento em que
necessitamos de resolver uma contradição a favor do nosso
desenvolvimento: por um lado, avizinham-se novas e importantes
oportunidades com o novo Programa Operacional Comunitário
2014/20, que podem fazer-nos chegar recursos financeiros
extraordinários; por outro, são grandes as dificuldades em mobilizar a
comparticipação financeira própria para cativar e aproveitar esses
vultuosos fundos.
Temos que fazer alguma coisa para ganhar esse processo e, mais
uma vez, impõe-se concatenar e potenciar a influência externa dos
atores nacionais, com relevo para os partidos políticos, para obtermos
facilidades como a diminuição da componente necessária de
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investimento próprio para co-financiamento dos fundos, bem como,
por exemplo, a criação de Eurobonds, (títulos de dívida mutualizados),
para financiamento dessa componente, pelo menos nos 3 primeiros
anos. Isso é fundamental para alicerçar o crescimento económico de
que necessitamos.
E é fundamental, simultaneamente, que sejamos capazes de usando
esses fundos, aplicá-los como se fossem os últimos: no apoio à
competitividade empresarial em função do emprego e dos bens
transacionáveis gerados; na sustentação de postos de trabalho em
empresas exportadoras; na requalif icação profissional de
desempregados; no apoio à construção de acessibilidades
enquadradas nas redes europeias e transatlânticas de transportes; na
redução da balança energética do país.
Minhas senhoras e meus senhores
A experiência de governo ensinou-me que a nossa ambição legítima
nem sempre é realizável e que os compromissos que assumimos com
muita seriedade encontram, por vezes, obstáculos imprevistos que se
mostram inultrapassáveis para a concretização do pretendido. Todavia,
o tempo que vivemos é de desvalorização da palavra dada e de quase
indiferença perante o compromisso. Não creio que seja possível
superar o descrédito no exterior, o desânimo e a indignação
crescentes das pessoas e manter a paz social que ainda temos sem
que termine o turbilhão de incumprimento político que nos persegue e
a incapacidade de compromisso que nos desenraíza.
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É verdade que, como diz Tarso Genro – um dos intelectuais brasileiros
que mais e melhor tem refletido sobre o destino da esquerda
democrática na Europa – “ …há uma visão consolidada em grande
parte da população da inutilidade da política”, a que se soma a ideia
de que “Os partidos têm uma margem decisória muito pequena porque
a lógica financeira dos orçamentos foi capturada pelas necessidades
do pagamento da dívida…”. Porém, para evitar essa incompatibilidade
que se aprofunda entre a democracia representativa e as aspirações
dos cidadãos de equidade e de direitos é urgente a criação de um
bloco político e social, no país como na Europa, que proclame essa
conciliação e recupere das algemas que lhes impuseram os direitos
sociais mínimos que incorporam os valores de segurança e dignidade
das pessoas.
Estamos, pois, no tempo certo para acertar as nossas obrigações face
ao estado de emergência do país, o que deverá ser facilitado com a
atualização da vontade democrática do povo português e, assim, do
modo e da medida em que nos devemos conjugar – e isso é
irrecusável - para vencer tantos e tão difíceis desafios.
Minhas Senhoras e meus Senhores
Volto, justamente, a propósito das questões de sustentabilidade sobre
as quais tenho estado a ponderar, a recorrer ao contributo essencial
do Portugal Insular, para vos falar, finalizando, da importância do Mar
como fator do nosso desenvolvimento e afirmação.
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Os Açores europeus, situados no encontro das plataformas tectónicas
americana e europeia, são um valor acrescentado, sem par, na
comunidade nacional e especialmente numa perspetiva de
qualificação da afirmação portuguesa no Atlântico.
Pelos Açores passaram, obrigatoriamente – por cobiça, ou para
abrigo, descanso e aprovisionamento –, desde as primeiras viagens
marítimas intercontinentais, os que demandavam a Europa, a África e
as Américas.
Graças às suas regiões insulares, o nosso País, o centésimo primeiro
em dimensão territorial, é o oitavo no Mundo, o segundo na Europa e
o primeiro na União Europeia em área marítima exclusiva. É por causa
disso que a Portugal cabe, por exemplo, a maior responsabilidade
europeia no controlo do espaço aéreo e da segurança e salvamento
marítimos.
Acresce que todos esperamos que o território nacional seja ampliado
proximamente resultando avolumada a sua massa crítica, geográfica e
estratégica com a fixação pelas Nações Unidas dos novos e muito
mais latos limites da plataforma continental portuguesa. E, note-se,
isso acontece por causa dos Açores, cuja dispersão pelo oceano gera
desde logo uma zona económica exclusiva com cerca de um milhão
de quilómetros quadrados. Se a essas águas acrescentarmos a
imensa área de fundos oceânicos que – nos termos da Convenção
das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – pode ser considerada
como extensão da plataforma continental em torno dos Açores,
teremos, já não um, mas quase três milhões de quilómetros quadrados
e, no total, quatro milhões, o que quer dizer 43 vezes a área terrestre
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do país. Isso alerta-nos para o facto de que, independentemente da
decisão da ONU, todos já deveríamos estar numa fase mais adiantada
de preparação minuciosa para esse novo enquadramento e de
organização das parcerias indispensáveis.
A esse respeito quero salientar, também, outro aspeto pouco
conhecido do contributo açoriano. Na verdade, os Açores conseguiram
ver classificadas 41 áreas marinhas que abrangem uma área superior
a 11,2 milhões de hectares, que na sua maior parte passaram a
constituir formalmente o Parque Marinho dos Açores, integrado por
diversos montes submarinos e fontes hidrotermais. A grande maioria
desta área encontra-se fora das 200 milhas da ZEE, em águas
internacionais, mas propostas no âmbito do alargamento da
plataforma continental, exatamente por influência dessa classificação
no âmbito da Convenção de Paris da OSPAR. Essa classificação,
aliás, abrange não apenas o solo e o subsolo, mas toda a coluna de
água. Trata-se pois de um trabalho bem sucedido nos planos científico
e político, que projetou a Região e o País para uma posição de
liderança, a nível europeu e mundial, não só no que à salvaguarda
ambiental marinha diz respeito mas também aos interesses
económicos, nacionais e regionais, que estavam em presença. E estes
são muitos.
Em vários outros domínios a relevância da componente insular
portuguesa é evidente e do senso comum, com são os casos que
resultam do seu potencial geográfico de localização de centros
reguladores, tecnológicos ou de investigação desde as áreas da
climatologia às das ciências do espaço. Mais dominante no debate
� 22
político tem sido o seu papel nos planos da segurança internacional:
de facto, considerando apenas o caso dos Açores estes são um ativo
português em consideração constante - os Açores são a fronteira de
segurança próxima da América, o lugar geométrico da relação
transatlântica e, subsequentemente, a mais relevante fronteira
europeia de cooperação internacional em matéria de segurança do
mundo ocidental.
Neste caso não resisto a, por oposição à inércia de muitos
governantes, fazer aqui um registo da observação voluntariosa da
deputada europeia Ana Gomes que, a propósito do tema da dimensão
marítima da Política Comum de Segurança e de Defesa que deverá
estar em análise no Conselho Europeu de Dezembro, questionava:
“Porque é que o governo português não começa a pôr a Base das
Lajes, sem prejudicar os acordos que temos com os Estados Unidos,
no centro de uma política europeia de segurança e defesa por
exemplo para a vigilância de toda a zona do golfo da Guiné e da
imensa zona que passará a ter implicações com o alargamento do
Canal do Panamá?”. Na verdade, esta postura questionadora tem
desde logo o mérito de lembrar potenciais centralidades e
capacidades portuguesas que não devem ser negligenciadas e muito
menos em tempo de uma crise que é também de desvalorização
nacional.
É, pelo menos por tudo isso mas não só, uma urgência a
compreensão, pelos políticos nacionais e pelos diferentes actores, da
evidência da necessidade do investimento e da valorização nacional e
perante terceiros dos territórios portugueses insulares atlânticos.
� 23
Sem estes, sem a correta consideração dos Açores e da Madeira, a
afirmação portuguesa no processo de construção europeia, e no
Mundo, confinada à sua insuficiente faixa continental, ficaria
drasticamente diminuída. Tenho dito várias vezes e há vários anos: é
esse o dever de perceção e de ação de um país que se conheça a si
mesmo, que tenha consciência das vantagens competitivas da sua
geografia. Uns por ignorância, outros por preconceito forjado na
babugem centralista, não compreendem o país assim e não vão além
do imediato e do transitório. Infelizmente o país está a abarrotar de
políticos e de decisores assim.
É verdade que o nosso país, ao contrário do que se repete com
frequência- neste caso, sim, com masoquismo – não é um território
desprovido de recursos que podem contribuir para a melhoria dos
níveis de cobertura da sua sustentabilidade económica e da geração
de riquezas. Pena é que não estejam a ser aproveitados.
No mundo em que vivemos, recursos como a água, a produção
alimentar e agrícola em geral, os combustíveis e os minerais, tal como
a adequação das infraestruturas e a qualidade dos recursos humanos
são essenciais.
Já me referi nesta comunicação a fatores fundamentais como o da
qualificação e emprego dos nossos recursos humanos e, em
particular, no que toca à Universidade. Também já referi que o país
dispõe de uma rede de infraestruturas físicas com uma razoável
distribuição pelo território mas ainda incompleta na cobertura das
funcionalidades económicas e sociais mais reprodutivas.
� 24
O potencial de alguns outros recursos pode ser genericamente
avaliado por considerações como estas: temos uma extensa área de
solo arável, sendo que na sua maior parte não tem exploração
económica; possuímos boas reservas de água doce, quer subterrânea
quer de superfície; temos, com maior ou menor interesse, reservas de
ferro, cobre, tungsténio, lítio, urânio; também de ouro, prata e de
carvão mineral de boa qualidade; desenvolvem-se trabalhos de
prospecção avançados de petróleo e gás natural, tanto na costa
ocidental como no Algarve, que se têm revelado muito promissores,
que se alude serem suficientes para as nossas necessidades de
abastecimento ao longo deste século.
Se nuns casos isso será compreensível ou mesmo inevitável noutros
casos corremos riscos desnecessários de redução drástica da nossa
capacidade de retenção do seu valor por causa da sua entrega por
omissão a meios de investigação, ciência e empresas exteriores, que
se deve ora à nossa falta de capacidade de investigação em meio
empresarial ora à governação de salvação do imediato e de
comprometimento do futuro que tomou conta do país. Salvaguardo,
claro, por um lado a impreteribilidade e ou as vantagens de se agir em
cooperação internacional e, por outro, o esforço e os resultados de
algumas, poucas, instituições, que têm casos de sucesso na criação
de spin-offs nessas áreas como é o caso do DOP da Universidade dos
Açores actualmente dirigido pelo Professor Doutor Helder Marques da
Silva.
É, justamente, nessa ordem de razões e preocupações, que devemos
e podemos também reforçar a consideração do Mar e, na origem
� 25
disso, o carácter essencial do contributo do Portugal insular para o
nosso crescimento, desenvolvimento e autonomia.
Como relembrava Avelino Meneses – um historiador prestigiado que já
foi Reitor da Universidade dos Açores – “Todas as épocas da história
de Portugal, do nascimento ao apogeu, à decadência e às tentativas
de regeneração, dependeram (…) da influência do Mar, isto é, da
conquista ou da perda de predomínio nos mares”. Podemos e temos
de tornar o Mar, para utilizar a expressão utilizada na proposta de
Estratégia Nacional para o Mar para 2013/20 “um activo com
benefícios económicos, sociais e ambientais permanentes”
Há quem ainda olhe o Mar, infelizmente, quase só como se de um
território inculto se tratasse, onde a principal novidade é a ameaça dos
efeitos desastrosos da subida do nível das águas em um metro até ao
final do século por causa das alterações climáticas.
É verdade que há trabalho avulso feito em Portugal na área do Mar,
particularmente a partir da segunda metade dos anos noventa e com a
formação sucessiva de instâncias e organismos na periferia dos
governos, por impulso das universidades e em cooperação com
entidades internacionais, mas nunca esse trabalho foi devidamente
integrado ou sequer considerado num plano de ação mensurável e
objetivo como se exige estando nós em presença de um vetor
estratégico. Continua a não haver uma alocação planeada, ou sequer
uma linha de perceção dos meios humanos, informativos, financeiros e
técnicos necessários.
Possuímos, como já salientei, a maior Zona Económica Exclusiva da
UE, que é tão grande como todo o continente europeu. Sensivelmente � 26
metade diz respeito ao mar dos Açores. Os interesses económicos
associados crescem diariamente e reportam-se sucessivamente aos
mais variados domínios de recursos e de exploração.
Mesmo face a tal diversidade, ou então talvez por isso, emergem por
vezes disputas e contenciosos internos que retardam o
aproveitamento deste potencial. Falo, por exemplo, face à área de mar
contida na sub-área Açores – que é, afinal, parte integrante da unidade
ecossistémica da Macaronésia –, do relacionamento jurídico complexo
entre o Estado e a Região Autónoma dos Açores, do qual têm
resultado sucessivas dúvidas que acabam por lesar o investimento
nesta área, tanto ao nível económico como científico. O caso da
prospeção de minerais nos Açores é um dos exemplos dessa
incapacidade das autoridades nacionais trabalharem construtivamente
com as administrações regionais autónomas na gestão partilhada
desses espaços e não persistirem numa atitude suspeitosa e, em
consequência, contenciosa e paralisadora.
A clarificação e o bom relacionamento entre entidades intervenientes
são assim muito importantes e deverão conhecer um novo ciclo mais
produtivo. Aliás, a nível europeu, os fundos a disponibilizar até ao
Horizonte 2020 contemplam um volume considerável de recursos para
cofinanciamento para a designada economia azul que Portugal tem
que aproveitar na íntegra e da melhor maneira. Trata-se assim de uma
oportunidade, mais uma, promissora para se avançar nos
investimentos prioritários de base nacional que se incluem na aposta
decidida no Mar que não deve ser retardada.
� 27
Ao nível do mar a pesca surge como um setor relevantíssimo. É
verdade que o é, porventura, desde sempre, para as populações e
territórios com orlas marítimas, mas ao longo das duas últimas
décadas teve uma revalorização considerável por razões que se
prendem com a apreciação da qualidade e a imagem de
sustentabilidade ambiental e com a procura seletiva mas crescente do
produto de pescado selvagem cada vez menos disponível.
Considerando que 50% da produção mundial de pescado é
processada em regime de aquacultura e que nos próximos anos e
décadas essa percentagem aumentará muito significativamente em
resultado da escassez de recursos selvagens e da regulação
internacional de direitos de pesca, é seguro prever (aliás, como o
dizem a FAO e a OCDE) uma grande valorização do produto no mar
se for bem dirigido, apoiado técnica e cientificamente, fiscalizado e
monitorizado e se for mantida na produção nacional a frota pesqueira
modernizada nos últimos anos. Isso, não falando da sua procura para
efeitos de transformação, sobretudo para conserva, e do que pode
representar de contributo para a atividade exportadora.
Infelizmente, porém, o Estado português – tão frequentemente
empenhado em missões internacionais de natureza humanitária de
segurança ou no âmbito da NATO –, é, ao invés, condenado em
tribunal por omissão do dever de fiscalização das águas dos Açores o
que tem permitido, especialmente para além das 100 milhas e por
embarcações estrangeiras, importantes danos de natureza ecológica e
económica. A nossa Marinha procura, é certo, dentro dos seus
escassos meios cumprir as suas missões o melhor possível, mas,
� 28
como já a propósito dizia o Almirante Fernando Melo Gomes, com
candura diplomática, “é imperioso que se faça o muito que há a fazer”.
Hoje, o produto da pesca, embora se perca muito valor na fileira até ao
consumidor final e se deprecie incompreensivelmente os recursos
humanos envolvidos na atividade, tem importância no rendimento e na
exportação. Se parece muito provável que o produto da pesca
continue a diminuir não subsistem razões, todavia, para que as
capturas não venham a ser muito melhor remuneradas e o produto
extraordinariamente revalorizado.
Refiro, aqui, também, o que representa, na dimensão do Portugal
ibérico como no do Portugal insular, o nosso potencial próprio e
logístico no que concerne ao transporte marítimo de passageiros de
cargas quer nos modelos em uso quer, sobretudo, nos esforços
inovadores que estão em curso.
Recentemente, o coordenador do projeto europeu das “Autoestradas
do Mar”, defendeu, no quadro desse cometimento, a realização
urgente de estudos para a criação nos Açores de uma plataforma “de
reabastecimento dos navios a gás natural liquefeito, cujo uso será
intensificado”. Valente de Oliveira, partindo da perceção da posição
privilegiada dos Açores e da prioridade que está a ser dada ao preço e
ao impacto ambiental dos efluentes da combustão no transporte
marítimo, sobretudo entre os lados americano e europeu, tornou claro
que esta posição geográfica única tem que ser aproveitada.
Na verdade estamos já hoje ligados, desde o seu início, ao chamado
projecto europeu COSTA , que surge no âmbito da Estratégia 2020 e
da nova política da rede de transportes transeuropeias, visando � 29
desenvolver as condições necessárias para a utilização de gás natural
como combustível de navios, o que poderá vir a revolucionar o
transporte marítimo mundial, e cuja área de atuação inicial será a
consolidação de um masterplan centrado no eixo Mar Negro, Mar
Mediterrâneo e Oceano Atlântico.
É sabido que de entre todos os segmentos do transporte marítimo
internacional, que se processa em regime de grande concorrência, é o
transporte da chamada “carga geral”, geralmente produtos
industrializados, que absorve cerca de 2/3 dos custos dos fretes
marítimos internacionais e que gerou uma utilização intensiva do
contentor, sobretudo depois da última década de oitenta. Essa
inovação alterou profundamente as características dos serviços de
transporte marítimo, designadamente com o surgimento e a
necessidade de portos concentradores onde se realizam operações de
transbordo e de terminais próprios.
Concomitantemente, a conclusão do alargamento do Canal do
Panamá em 2015 acentuará a circulação transatlântica, como parece
que só há dias, para espanto geral, os mais altos responsáveis
portugueses constataram extasiados por ocasião dos trabalhos da
Cimeira Ibero-Americana. Impõe-se, pois, uma intensa preparação,
que já devia estar muito mais adiantada e não interrompida, da nossa
infraestrutura marítimo-portuária de Sines liderando e organizando a
oferta na fachada continental atlântica. Ao mesmo tempo, é igualmente
importante deter uma posição no cruzamento das rotas (este-oeste e
norte-sul) do tráfego marítimo atlântico centrada nos Açores.
� 30
A criação do Hub Atlântico dos Açores, no porto oceânico da Praia da
Vitória é outro investimento do qual a administração central e a própria
UE devem, a meu ver, ser partes investidoras. O projeto consiste no
desenvolvimento de um terminal portuário de contentores que possa
servir de suporte para a organização desse novo tipo de serviço de
transporte marítimo no Atlântico. Este tipo de serviço permitirá também
descongestionar o tráfego terrestre, nos portos europeus e norte-
americanos, dado que o acesso a esses portos será efetuado através
da utilização de navios porta-contentores de médio porte, com maior
agilidade operacional em comparação com os designados “mega
carriers”. Estão identificados como potenciais clientes os gestores de
terminais de contentores, os armadores de linhas marítimas e os
Estados/regiões.
Como curiosidade note-se que em 2011 foram registados 1570 navios,
que passaram a menos de 80 milhas das ilhas do arquipélago.
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Falo-vos também aqui de outras três áreas emergentes relacionadas
com o mar que são muito desconhecidas das pessoas em geral e
frequentemente negligenciadas pelos decisores e até, com raras
excepções, ainda não adotadas pelos investidores nacionais. São
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elas: a biotecnologia azul; as fontes hidrotermais; e, os montes
submarinos.
A biotecnologia marinha está em crescimento significativo,
representando hoje o mar cerca de 4% das fontes de biotecnologia.
Embora os oceanos constituam 70% da superfície da terra, apenas
menos de 5% da diversidade marinha é incorporada em serviços e
produtos. Estes indicadores mostram bem o potencial inexplorado do
mar.
Sobretudo nestes últimos anos, a biotecnologia marinha tem-se
desenvolvido em conexão com as fontes hidrotermais no oceano
profundo. No caso dos mares dos Açores já foram identificadas seis
zonas hidrotermais de grande importância em cerca de duas décadas
de missões cientificas, a primeira das quais em 1992 designada por
Lucky StriKe. Nestas comunidades têm sido encontrados organismos
quimiosintéticos que estão adaptados a ambientes extremos e que
têm desvendado compostos cuja atividade metabólica representa uma
fonte para a descoberta de novos produtos de interesse
biotecnológico, como sejam enzimas de utilização industrial,
farmacêutica, agro-alimentar, bioenergética, de bio-remediação e para
a investigação científica em geral.
O potencial associado a esses ecossistemas é reconhecido pela
comunidade científica internacional, conforme o demonstram as
sucessivas expedições exploratórias de grupos estrangeiros às fontes
hidrotermais de ambiente marinho profundo na Zona Económica
Exclusiva dos Açores, ou mesmo o crescendo associado de atividades
de serviços de informações públicos e privados e, pelo menos assim o
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espero, dos nossos serviços de informação da República. Nos últimos
anos em que presidi ao governo dos Açores todos os diplomatas
estrangeiros que recebi procuraram de forma mais ou menos
explícitas informações concretas nestes domínios.
Nestes campos hidrotermais, como se conclui de relatos vários mais
ou menos reservados, bactérias extremófilas e comunidades
faunísticas são objeto de coletas para estudos científicos posteriores
em que se caracterizam os mecanismos fisiológicos e moleculares de
adaptação a ambientes extremos.
Só em mexilhões de fontes hidrotermais, de acordo com a informação
disponível nos meios científicos, foram detetados inúmeros genes com
possível aplicação biotecnológica em domínios como o dos
anticoagulantes, antitumorais, antibacterianos, antifúngicos e
antivirais, proteínas alimentares com fortes propriedades adesivas,
manipuladores de células humanas, hemoglobina (transportador de
ferro e de oxigénio), fatores de formação e crescimento de tecidos
epidérmicos e de desenvolvimento dos ossos, entre outros potenciais
já identificados.
Nestes casos, como noutros que já referi, pontuam as dificuldades de
colher para nós pelo menos uma boa parte das mais-valias da sua
utilização por terceiros, cujo poder científico, logístico, financeiro e
empresarial nos são impostos. Nos Açores, por exemplo, foi publicada
legislação específica para o efeito para regular o acesso a recursos
naturais para fins científicos mas, nesta como em outras situações, as
nossas omissões e insuficiências de meios e de investimento na
fiscalização já nos saíram e ainda nos sairão mais caras.
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Uma outra área com forte potencial económico é a exploração mineral
de nódulos polimetálicos, crostas de ferro-manganês ricas em cobalto
e sulfuretos maciços polimetálicos muito abundantes nos fundos
submarinos dos Açores.
Nestes casos os interesses e os pedidos de prospeção e exploração
são já insistentes, especialmente por empresas com capacidade
demonstrada de exploração destes recursos em profundidade. O valor
de uma tonelada destes minerais no mercado, em bruto, atinge
montantes muito compensadores. Mas, se é verdade que o Estado é
por vezes acusado de agir frequentemente atrapalhando iniciativas e
resultados, era importante nestes casos, não descurar os interesses
dos Açores e do país na ilusão de um pequeno avanço ou
remuneração imediata.
Volto também a referir o caso da aquacultura para salientar um
aspecto alternativo do crescimento que tem tido. É que, também no
âmbito da economia do mar, é possível crescer aproveitando este
segmento emergente, pois grande parte desta produção é feita em
terra e em águas interiores (água doce e marinha) incorporando, em
regra, problemas envolventes de eutrofização. A chamada produção
offshore, é ainda pouco expressiva mas deverá ter um forte
incremento com os sistemas de produção que estão ainda em
desenvolvimento e que se deverão generalizar ao longo desta década.
Faço notar, por exemplo, que, apesar da enorme carência de pescado
no mercado europeu – do qual é tão fortemente deficitário que importa
mais de 60% do que consome (o nosso próprio país importa mais de
50%) – há mais de uma década que a escassa produção europeia
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estagnou. Vastas zonas, incluindo o caso dos Açores (lembro que os
Açores e a Madeira têm uma orla marítima com uma extensão de 918
Km, ou seja praticamente igual à de Portugal Continental que é de
943Km), vastas zonas, dizia, poderão ser utilizadas neste novo
formato produtivo, desde que se estabeleça uma legislação positiva e
um plano adequado para esta atividade. Refira-se, a este propósito,
que só o arquipélago vizinho das Canárias produz anualmente cerca
de uma dezena de milhar de toneladas.
Estamos assim em presença de uma diversidade de oportunidades
que o país ainda não aproveita em parte ou no todo para gerar riqueza
em sectores onde tem certamente um potencial competitivo e de
recursos.
Mesmo em áreas de exploração mais tradicional temos muito caminho
a fazer e muitos benefícios em criação de valor e de riqueza a
procurar e a readquirir.
A readquirir, por exemplo, na área da reparação e construção naval
que tem sido destruída em Portugal pela incúria e pelo
desinvestimento das tutelas governamentais nos últimos anos, como o
documenta a incrível incompetência que o Ministério da Defesa e as
administrações da empresa têm demonstrado no caso dos Estaleiros
de Viana de Castelo, agora subconcessionados em termos que não
estão completamente clarificados.
A continuar a procurar, por exemplo, no caso das atividades marítimo-
turísticas que têm observado, ainda assim, um forte incremento
nacional, captando importantes nichos de mercados emissores de
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turismo e sustentando muitas iniciativas, economias e empregos
locais.
Nos Açores, como em outros lugares, a observação de cetáceos, a
pesca e outras práticas náuticas desportivas, a caça submarina, a
escala de grandes navios de cruzeiros e os pequenos cruzeiros
costeiros, o mergulho de lazer e mais recentemente também o
mergulho com tubarões e jamantas são alguns exemplos mais
chamativos destas atividades que convocam micromercados de
elevado potencial e retenção de valor. Saliento, ainda, as atividades
ligadas aos roteiros culturais associados à arqueologia e ao património
subaquático – nesta dimensão, recentemente, um especialista do
Centro de História Além-Mar, referindo-se igualmente aos Açores a
propósito do registo em fontes escritas de cerca de 700 naufrágios
relevantes entre os séculos XVI e XX, destacou não só o seu elevado
potencial científico como na vertente a explorar do turismo cultural. O
mesmo acontece por quase toda a costa e baías do território
continental.
A minha convicção como governante ao longo de 16 anos e a
demonstração que insisto em fazer são que: em todas essas
modalidades, podemos crescer e fazer melhor por todo o país e
ganhar mais usando concertadamente estas nossas vantagens
naturais comparativas. O que nos entristece é que, em regra, não se
ouve e ainda menos se sente – pese embora a reconhecida qualidade
do titular da Secretaria de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu -
qualquer pensamento estratégico na ação governativa multissectorial
reportada ao Mar, nem na perspetiva nacional nem em âmbitos mais
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vastos, ou mesmo, como seria interessante fazê-lo, no quadro dos
países da CPLP – todos eles países marítimos. O que é estranho é
que isso é mais evidente neste governo do que nos anteriores e, dos
cinco primeiro ministros com os quais trabalhei como presidente do
governo dos Açores, é o atual o que menos adstrito ao tema parece
estar.
Minhas Senhoras e meus senhores
Fui mais exaustivo – e espero que não definitivamente cansativo – na
abordagem destas questões ligadas ao Mar, como o poderia ter sido
em outros casos que fui sumariando, porque pretendo chamar a
atenção, tal como o faço há muitos anos, para este lado
impropriamente negligenciado pelas políticas públicas de conjuntura
com que convivemos.
Ao longo desta exposição procurei, com prejuízo do ritmo e da
sonoridade que os “textos ao ataque” sempre favorecem, procurei,
dizia, demonstrar que o país político pode pensar o destino dos seus
cidadãos e do seu território para além da redução da despesa, da
vendagem do património público e da nacionalização e extorsão dos
rendimentos privados.
Há um país real pleno de recursos por aproveitar e fazer explorar e há
um saldo resultante do somatório dessas omissões persistentes que é
suficiente para trabalhar no presente e preparar com maior margem e
mais confiança o futuro. O potencial de desenvolvimento que esses
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recursos representam precisa de ser rapidamente apropriado pelo
país, sob pena de outros o fazerem. O caso do Mar é paradigmático.
Há um Portugal em Portugal que pode dar-nos as garantias da
sustentabilidade que outros têm ou alcançaram. Saibamos nós
governar hoje sem excluir o futuro.
Carlos César
Outubro de 2013
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