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1 Corrupção e qualidade da democracia Luís de Sousa, Investigador do ICS e Presidente da TIAC (ponto de contacto nacional da Transparency International) (www.transparencia.pt ; http://blogues.publico.pt/asclaras/ ) Hoje, é recorrente ouvir falar-se de desempenho dos regimes democráticos ou de qualidade da democracia. A corrupção foi um dos fenómenos que nos últimos anos mais contribuiu para a crescente preocupação sobre a qualidade ou as qualidades da democracia. Passou de um assunto de menor porte tratado no rodapé dos jornais, para se tornar numa manchete de sucesso. Independentemente da sua possível orientação ou instrumentalização política, os media e, em primeiro plano a imprensa escrita, motivaram-se e mobilizaram esforços para dar cobertura aos últimos detalhes e especificidade técnica de mais um escândalo político ou processo judicial que implicasse uma figura de relevo na vida pública nacional. A contínua exposição pública de casos de corrupção envolvendo altas figuras do Estado, mas também a cobertura extensiva do modo como a classe política tem reagido (ou não) ao fenómeno, abalou uma opinião pública que durante anos ignorou por completo o problema. Nem sempre a corrupção é causa de indignação. Se, em tempo de “vacas gordas”, os cidadãos fecham os olhos a práticas e comportamentos da classe política, considerados “pequenos caprichos do poder” e perfeitamente toleráveis; num contexto de crise económica, a diminuição do “bem-estar” produz na opinião pública atitudes hostis em relação aos políticos, partidos e instituições representativas e a uma condenação generalizada do fenómeno de corrupção. Segundo o Barómetro Global da Corrupção da Transparency International para o ano de 2010, 83% dos portugueses considera que os níveis de corrupção aumentaram em Portugal nos últimos três anos.

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Corrupção e qualidade da democracia Luís de Sousa, Investigador do ICS e Presidente da TIAC (ponto de contacto nacional da Transparency International) (www.transparencia.pt; http://blogues.publico.pt/asclaras/) Hoje, é recorrente ouvir falar-se de desempenho dos regimes democráticos ou de qualidade da democracia. A corrupção foi um dos fenómenos que nos últimos anos mais contribuiu para a crescente preocupação sobre a qualidade ou as qualidades da democracia. Passou de um assunto de menor porte tratado no rodapé dos jornais, para se tornar numa manchete de sucesso. Independentemente da sua possível orientação ou instrumentalização política, os media e, em primeiro plano a imprensa escrita, motivaram-se e mobilizaram esforços para dar cobertura aos últimos detalhes e especificidade técnica de mais um escândalo político ou processo judicial que implicasse uma figura de relevo na vida pública nacional. A contínua exposição pública de casos de corrupção envolvendo altas figuras do Estado, mas também a cobertura extensiva do modo como a classe política tem reagido (ou não) ao fenómeno, abalou uma opinião pública que durante anos ignorou por completo o problema. Nem sempre a corrupção é causa de indignação. Se, em tempo de “vacas gordas”, os cidadãos fecham os olhos a práticas e comportamentos da classe política, considerados “pequenos caprichos do poder” e perfeitamente toleráveis; num contexto de crise económica, a diminuição do “bem-estar” produz na opinião pública atitudes hostis em relação aos políticos, partidos e instituições representativas e a uma condenação generalizada do fenómeno de corrupção. Segundo o Barómetro Global da Corrupção da Transparency International para o ano de 2010, 83% dos portugueses considera que os níveis de corrupção aumentaram em Portugal nos últimos três anos.

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Este agravamento das percepções domésticas sobre corrupção resulta, por um lado, de uma maior e mais frequente exposição mediática de escândalos de corrupção envolvendo líderes políticos e altas figuras do sector financeiro e por outro lado, de uma perceptível ineficácia do combate à corrupção. São cada vez mais os portugueses que consideram ineficaz a luta contra a corrupção por parte do governo, passando de 64% em 2007 para 75% em 2010. A ineficácia nas políticas de combate à corrupção é acompanhada por um descrédito na Justiça. Os resultados do inquérito “Corrupção e Ética em Democracia: O Caso de Portugal” de 2006 dão nota desta percepção generalizada de inoperância e de dualidade de critérios que se materializa em sentimentos de injustiça social e de impunidade. De um modo geral, os portugueses consideram que a Justiça é pouco severa com os membros do Governo (87,2%), deputados da Assembleia da República (85,3%), dirigentes desportivos (85,2%) e Presidentes de câmara (78,7%). Os gestores de empresas integram também este grupo, ainda que com um valor menos acentuado (72,9%). O Eurobarómetro 72.2 realizado em Setembro de 2009 corrobora estas percepções sobre a ineficácia da Justiça: 70% dos portugueses consideram que as sentenças dos tribunais em casos de corrupção são pouco severas. Não se trata de percepções infundadas. As conclusões do projecto “A corrupção participada em Portugal 2004-2008. Resultados globais de uma pesquisa em curso” comissionado pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal da Procuradoria Geral da República corroboram o fraco desempenho do aparelho repressivo no combate à corrupção: 53,1% dos processos instaurados entre 2004-2008 encontra-se arquivada; somente 14 casos, isto é, 1,7% do universo global de 838 processos em análise resultaram em condenações. Do baixo volume de condenações transitadas em Tribunais de Primeira Instância, poucos são os condenados que cumprem pena de prisão efectiva. Este agravamento das percepções da corrupção e da ineficácia do poder político e da Justiça no seu combate, tem um impacto directo na qualidade da democracia. Numa escala de 1 a 5, em que 1 é nada corrupto e 5 é visto como muito corrupto, de acordo

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com os dados do Barómetro Global da Corrupção de 2010, os piores classificados do ponto de vista da ética são os partidos políticos (4,2), seguidos do parlamento (3,7) e do sector privado (3,6) ambos acima da média da UE. Estes resultados reflectem a percepção que os cidadãos têm sobre os tipos de corrupção com maior impacto na que legitimidade e eficácia do sistema democrático. Crise económica, política e institucional tornaram-se nos elementos dominantes da actual conjuntura. O imperativo ético em democracia passou a fazer parte do léxico da opinião pública e dos debates e reformas políticas que se seguiram. A corrupção é o cancro das democracias. Corrói as fundações éticas da democracia, retirando legitimidade ao poder político, enfraquecendo a responsabilidade e confiança públicas, e permitindo que certos membros da sociedade tenham um acesso privilegiado e, por vezes, obscuro aos bens públicos e decisões. A corrupção torna disfuncional a eficácia e legitimidade popular dos governos, a dois níveis:

� Por um lado, retira a confiança necessária ao normal funcionamento das instituições representativas. Os governos não foram feitos para gerir escândalos de venalidade dos seus eleitos. Governar é gerir escassez e complexidade social. Em períodos de crise, a corrupção constitui um factor adicional de tensão e de instabilidade governativa;

� Por outro lado, reduz a capacidade de resposta do sistema

político face às necessidades existentes, porque aumenta o custo das obras e serviços públicos, o que acresce à despesa pública e por conseguinte implica uma maior carga fiscal sobre os cidadãos e as empresas.

A corrupção fere assim a competitividade da economia. O Índice Global de Competitividade indica que Portugal desceu, no espaço de uma década, da 28ª posição em 2000 para a 46ª em 2010. Entre outros factores, o acelerado decréscimo em competitividade da nossa economia está directamente relacionado com:

� O desperdício de recursos públicos;

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� O favoritismo recorrente em decisões governamentais; � O peso da burocracia; � A ineficácia da Justiça; � A má gestão verificada em aquisições, contractos,

participações em negócios, e parcerias público-privadas desastrosas para o Estado;

� A corrupção e desvio de dinheiros públicos; e � Leis e regras pouco claras que alimentam a

discricionariedade na norma a aplicar. Tudo isto se traduz num aumento descontrolado da despesa pública e inevitavelmente num aumento da carga fiscal, tornando a economia pouco atractiva para o investimento privado de qualidade e sustentável. Para além dos custos globais para a economia, a corrupção tem também um impacto directo na qualidade de vida dos cidadãos, provocando uma disfunção nos sistemas de redistribuição. A corrupção é discricionária, porque distorce o acesso a bens e serviços públicos. O suborno funciona como filtro: quem paga tem acesso, quem não paga sujeita-se ao que for possível. A corrupção é também um imposto regressivo: taxa os mais vulneráveis. As estruturas de oportunidade para a corrupção têm crescido consideravelmente nos últimos anos, devido a um crescimento do Estado e da sua função reguladora na economia. A maior permeabilidade da esfera pública aos valores e interesses do mercado tem também conduzido a um enfraquecimento dos custos morais e por conseguinte a uma maior tolerância do fenómeno da corrupção em sociedade. Importa sublinhar três fenómenos que se têm manifestado com maior acuidade nas democracias de matriz ocidental durante as últimas duas décadas. Em primeiro lugar, a transformação da relação entre as esferas pública e privada e a dinâmica cartelizada do sistema democrático criou espaço para o surgimento de uma nova estirpe de políticos: o “político de negócios” ou business politician. O “político de negócios” está ao centro da corrupção política dos nossos dias. Trata-se de um indivíduo hábil que se move entre as

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veredas do palácio do poder e o mundo empresarial com enorme apoio e protecção política; percepcionando o interesse público como o interesse de um “clã” e os recursos públicos como privilégio pessoal ou familiar; distribuindo benefícios discricionariamente com base na lealdade e serviço prestado ou para comprar silêncio (sem subestimar o papel da intimidação); recolhendo “comissões” para os seus protectores e “donativos” para o seu partido; compensando o seu baixo capital profissional próprio com a audácia de desafiar a lei sempre que o valor partidário fale mais alto e consciente de que “os seus” nunca o deixarão cair. São, regra geral, indivíduos com uma personalidade forte e tal como Janus, pequenos deuses intocáveis com duas faces: uma esculpida pela sua arrogância, exibicionismo e audácia; outra pela sua capacidade empreendedora, inovadora e adaptativa. Para este género de políticos, o reconhecimento é de ordem clandestina e de natureza económica. A sua principal função é a de mediação entre os diversos participantes no pacto de corrupção, quer se trate de criar contactos ou de facilitar as negociações entre as partes (duas ou mais) implicadas nessa troca oculta. Os principais recursos consistem em conhecimentos e informações ‘reservadas’ que são assim recolhidas e transaccionadas nos mercados ilícitos. Parte da impopularidade dos partidos políticos nos últimos tempos, sobretudo os do arco do governo, deve-se à má publicidade dos escândalos de corrupção associados a estas figuras que entram na vida partidária com uma lógica de vassalagem: servir-se do poder conferido para enriquecimento pessoal próprio e do seu partido. As receitas conseguidas para o partido, ou mais concretamente, para o seu protector dentro do partido, são compensadas com cargos de nomeação política em posições estratégicas, que possam ser posteriormente rentabilizadas. Um segundo desenvolvimento tem a ver com os níveis insustentáveis de desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Durante longos anos, os analistas políticos consideravam os baixos níveis de confiança, assim como o apaziguamento

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ideológico, um padrão comum das democracias ditas avançadas. Uma sociedade mais sofisticada e informada é inevitavelmente uma sociedade mais exigente e menos satisfeita. Porém, o descontentamento expressivo dos cidadãos em relação à eficiência e honestidade das elites políticas que se fez sentir nos protestos de Reiquiavique, Dublin, Atenas, Madrid e Lisboa, alerta para uma crise mais profunda das nossas democracias. As sociedades democráticas são regidas por sistemas complexos de instituições, papéis e regras. Cada papel está associado a um conjunto de regras, que regem a sua função, gerando expectativas em relação ao desempenho das instituições. As instituições formais são a base da ordem social, oferecendo padrões de conduta para os cidadãos, do que é expectável ou não fazer. Quando as instituições de referência do Estado de Direito democrático – ao centro os partidos, o parlamento, o governo, mas também a administração, o mercado, a justiça – são sistematicamente bombardeadas por escândalos de corrupção, estas deixam de ser um ponto de ancoragem para os cidadãos. É esta a gravidade da crise que estamos a atravessar. Como referiu oportunamente um meu colega argentino, Marcelo Moriconi, o modelo de vida constitucional-legal preconizado pelas democracias de matriz ocidental perdeu um critério de veracidade, abrindo a porta a um conjunto de práticas, convenções e instituições informais que vão orientando o comportamento dos cidadãos em sociedade e que não se regem pelos mesmos princípios éticos. A par destes dois desenvolvimentos, existe um terceiro problema de fundo das sociedades democráticas contemporâneas que importa salientar: os cidadãos convivem mal com a corrupção ao nível simbólico, mas ao nível estratégico aceitam a sua funcionalidade. A maior ou menor prevalência da corrupção numa sociedade democrática depende dos seus níveis de organização e da cultura cívica dos seus cidadãos. A corrupção é um fenómeno de poder e em democracia, de um modo geral, o poder manifesta-se de uma forma competitiva e plural e a relação representativa entre eleitor e eleito organiza-se de uma forma contratual. Em teoria, as democracias dispõem de um conjunto de regras e mecanismos institucionais que limitam a expansão da corrupção a

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níveis incomportáveis, entre outros: eleições universais, livres e justas; liberdade de expressão, associação, manifestação; pluralismo político, competição eleitoral e alternância no poder; uma série de contra-pesos e garantias constitucionais; uma comunicação social livre e atenta ao exercício do poder; e uma cidadania informada, formada e exigente. Na prática, não obstante todos estes mecanismos, a corrupção continua a manifestar-se com bastante vigor e frequência em democracia, por vezes com consequências devastadoras para a sua estabilidade e legitimidade. A ineficácia da Justiça no combate à corrupção política e de “colarinho branco” levanta um problema de accountability. Se no mercado, para além da actuação dos reguladores e da Justiça, o cidadão-consumidor dispõe de poucos instrumentos para combater a venalidade dos empresários; na política, a par da responsabilidade penal, os eleitos estão também obrigados a um conceito de responsabilidade política, peça basilar do contracto de representação. Em democracia, o voto é o último rácio para restituir à sociedade um conceito de legalidade. O problema é que a punição da corrupção política através do voto nem sempre se materializa. O contrato social de representação é, muitas das vezes, preterido em relação a um contrato social de corrupção que satisfaça a necessidade particulares dos cidadãos. Não é afinal essa a função de qualquer governo? – diria o cínico. Não. Não é. As sociedades podem governar-se através do clientelismo, favorecimentos de ordem vária e corrupção. Mas até quando? Com que justiça e equidade? Com que legitimidade? Com que custos para as gerações futuras? Decerto, a democracia que hoje vivemos é substancialmente menos do que a poliarquia ideal desejada, mas também não pode ser refúgio para incompetência e falta de integridade. É possível fazer melhor. E os partidos políticos, pela centralidade que a Constituição lhes confere na nossa democracia, não podem omitir-se da responsabilidade de exigir maior rigor e transparência, internamente nas suas próprias organizações, assim como, no que concerne o desempenho global das instituições da República.