Introducao a Cosmovisao Reformada CCM-1

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Introdução à Cosmovisão Reformada 1 “O Cristianismo tem um conteúdo para ser acreditado e uma visão de mundo a ser adquirida” - Perry G. Downs. 2 “A menos que Deus mude a maneira de pensarmos o que Ele faz em alguns pelo milagre do novo nascimento nos- sas mentes sempre nos dirão para nos virarmos contra Deus o que é preci- samente o que fazemos” James M. Boice. 3 “Se a cosmovisão cristã pudesse ser restabelecida no lugar de destaque e respeito na universidade, isso teria um efeito de fermentação no meio da so- ciedade. Se mudarmos a universidade, mudaremos nossa cultura por intermé- dio dos que a moldam” J.P. Moreland; William L. Craig. 4 “Ora, se conseguirmos fazer com que os homens fiquem a formular perguntas assim: ‘isto está em consonância com as tendências gerais dos movimentos con- temporâneos? É progressista, ou revolu- cionário? Obedece à marcha da Histó- ria?’ então os levamos a negligenciar as questões efetivamente relevantes. E o caso é que as perguntas que assim insis- tirem em formular são irrespondíveis; vis- to que não conhecem nada do futuro e o que o futuro haverá de ser dependerá muitíssimo, exatamente, daquelas prefe- rências a propósito das quais buscam socorro do futuro. Como consequência, enquanto suas mentes ficam assim a zumbir nesse verdadeiro vácuo, temos nossa melhor oportunidade de até imis- 1 Estudo iniciado na Comunidade Cristã de Maringá no dia 01 de março de 2012. 2 Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 178. 3 James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 111. 4 J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 16. Veja-se também: William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vi- da Nova, 2010, p. 14.

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Introdução à Cosmovisão Reformada1

“O Cristianismo tem um conteúdo para ser acreditado e uma visão de mundo a ser adquirida” − Perry G.

Downs.2

“A menos que Deus mude a maneira de pensarmos – o que Ele faz em alguns pelo milagre do novo nascimento – nos-sas mentes sempre nos dirão para nos virarmos contra Deus – o que é preci-samente o que fazemos” ‒ James M.

Boice.3

“Se a cosmovisão cristã pudesse ser restabelecida no lugar de destaque e respeito na universidade, isso teria um efeito de fermentação no meio da so-ciedade. Se mudarmos a universidade, mudaremos nossa cultura por intermé-dio dos que a moldam” ‒ J.P. Moreland;

William L. Craig.4

“Ora, se conseguirmos fazer com que os homens fiquem a formular perguntas assim: ‘isto está em consonância com as tendências gerais dos movimentos con-temporâneos? É progressista, ou revolu-cionário? Obedece à marcha da Histó-ria?’ então os levamos a negligenciar as questões efetivamente relevantes. E o caso é que as perguntas que assim insis-tirem em formular são irrespondíveis; vis-to que não conhecem nada do futuro e o que o futuro haverá de ser dependerá muitíssimo, exatamente, daquelas prefe-rências a propósito das quais buscam socorro do futuro. Como consequência, enquanto suas mentes ficam assim a zumbir nesse verdadeiro vácuo, temos nossa melhor oportunidade de até imis-

1 Estudo iniciado na Comunidade Cristã de Maringá no dia 01 de março de 2012.

2 Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura

Cristã, 2001, p. 178. 3 James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo, Cultura Cristã, 2003, p. 111. 4 J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 16. Veja-se também: William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vi-da Nova, 2010, p. 14.

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cuir-nos para forçá-los à ação corres-pondente aos nossos propósitos. A obra já realizada neste sentido é enorme” −

C.S. Lewis.5

INTRODUÇÃO Há uma relação indissolúvel entre comportamento e o que você crê. Quando sa-bemos no que cremos, as decisões tornam-se mais fáceis. No entanto, uma das questões difíceis de responder é: no que você crê? A resposta a esta questão reve-lará uma série de pressupostos – conceitos implícitos em sua fala –, muitos dos quais talvez jamais tenham ocorrido, pelo menos de forma teórica, ao entrevistado. É possível que sem percebermos o nosso pensamento revele uma série de inconsis-tências e, até mesmo, excludências. O fato é que nossos conceitos, explícitos ou não terminarão por se juntar a outros e, deste modo, sem consciência e mesmo con-sistência, vamos aos poucos formando uma maneira de ver o mundo6 e, conseguin-temente, de avaliá-lo. “De fato, escreve Cheung, se pensarmos profundamente o suficiente, perceberemos que cada proposição simples que falamos ou cada ação que realizamos pressupõe uma série de princípios últimos inter-relacionados pelos quais percebemos e respondemos à realidade. Essa é nossa cosmovisão”.7 Esta percepção determinará de forma intensa o nosso comportamento na socie-dade em que vivemos, tendo implicações em todas as esferas de nossa existência. A epistemologia antecede à lógica e esta, por mais coerente que seja, se partir de uma premissa equivocada nos conduzirá a conclusões erradas e, portanto, a uma é-tica com fundamentos duvidosos e inconsistentes. “Uma cosmovisão contém as respostas de uma dada pessoa às questões principais da vida, quase todas com significante conteúdo filosófico. É a infra-estrutura conceitual, padrões ou arranjos das crenças dessa pessoa”.8 Ainda que não pretendamos ser exaustivos, podemos, inspirando-nos em Nash (1936-2006),9 dizer que a nossa cosmovisão é constituída por um conjunto de cren-ças que estabelecem essencialmente a sua distinção de outras cosmovisões ainda que haja no cerne de cada cosmovisão diferenças importantes, porém, que não são

5 C.S. Lewis, Cartas do Interno, São Paulo: Vida Nova, 1964, p. 160-161.

6Cf. Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cris-

tã, 2008, p. 8. Veja-se também: Franklin Ferreira; Alan Myatt, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 2007, especialmente, p. 8-10. 7Vincent Cheung, Reflexões sobre as Questões Últimas da Vida, São Paulo: Arte Editorial, 2008, p.

61. 8Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 13. “Modo pelo qual a pessoa vê ou interpreta a realidade. (...) É a estrutura por meio da qual a pessoa entende os dados da vida. Uma cosmovisão influencia muito a maneira em que a pessoa vê Deus, ori-gens, mal, natureza humana, valores e destino” (Cosmovisão: Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 188). 9Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 15ss.

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excludentes. Vejamos algumas dessas crenças:

a) Deus: Ainda que o nome de Deus nem sempre apareça em nossas discus-sões, a fé em Deus envolvendo, obviamente, o conceito que temos Dele é ponto capital em qualquer cosmovisão. Deus existe? Ele se confunde com a matéria? Há um só Deus? Ele age? É soberano? É um ser pessoal? As res-postas que dermos a estas questões são cruciais para identificar a nossa cosmovisão.

b) Metafísica: A Metafísica trata da existência e da natureza e a qualidade da-

quilo que é conhecido. A nossa cosmovisão determinará um tipo de compre-ensão de questões tais como: Todos os homens têm a mesma essência? To-do evento deve ter uma causa? Há realidade além daquilo que podemos ver? Existe um mundo espiritual? Há um propósito para o universo? Qual a relação entre Deus e o universo?

c) Epistemologia: A Epistemologia é o estudo das questões relacionadas aos

problemas filosóficos do conhecimento. O seu objetivo é conhecer, interpretar e descrever filosoficamente, os princípios essenciais que conduzem ao conhe-cimento científico ou, em outras palavras, "estudar a gênese e a estrutura dos conhecimentos científicos".10 A Epistemologia trata de questões tais como: Como conhecemos alguma coisa? É possível um conhecimento certo a respeito de alguma coisa? Os sentidos nos dão um conhecimento certo a res-peito dos objetos sensíveis? Nossas percepções dos objetos sensíveis são i-dênticas a esses objetos? Qual a relação entre o intelecto e a matéria? Qual a relação entre a razão e a fé? Podemos conhecer algo sobre Deus? É o méto-do científico o melhor método para o conhecimento?

d) Ética: Lalande (1867-1963) interpretando determinada compreensão, define

ética como o "conjunto das regras de conduta admitidas numa época ou por um grupo social".11 A Ética filosófica analisa a vida virtuosa no seu valor último, e a propriedade de certas ações e estilos de vida. Ela se refere à conduta humana, às normas e princípios a que todo o homem deve ajustar seu comportamento nas relações com seus semelhantes e consigo mesmo. O filósofo moral não é apenas um cientista teórico envolvido em especulações abstratas, ele é alguém comprometido com a realidade, buscando soluções para os problemas práticos que nos cercam e que deram origem à pesquisa. A sua preocupação também, não se limita à ação certa, mas, também, ao princí-pio que a justifica. Perguntas comuns a esta disciplina: É justo falsificar a de-claração de imposto de renda? O aborto é correto? E financiar instituições que em suas pesquisas contemplem a prática do aborto? É viável a pena de mor-

10

Hilton F. Japiassu, Introdução ao Pensamento Epistemológico, 3ª ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1979, p. 38. Vejam-se descrições complementares In: Thomas R. Giles, In-trodução à Filosofia, São Paulo: EPU/EDUSP, 1979, p. 121; Franklin L. da Silva, Teoria do Conheci-mento: In: Marilena Chauí, et. al. Primeira Filosofia, 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, © 1984, p. 175; Jo-hannes Hessen, Teoria do Conhecimento, 7ª ed. Coimbra: Arménio Amado – Editor, 1976, p. 25. 11

Moral: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 705. Para uma distinção entre Ética e Moral, veja-se: W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 56.

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te? A eutanásia? Há um padrão absoluto de moral ou ele é relativo à épocas, culturas e pessoas? A moralidade transcende ao lugar, época e cultura? Como distinguir o bem do mal?

e) Antropologia: O conceito que temos a respeito do homem revela aspectos de

nossa cosmovisão. O ser humano é apenas matéria? De que forma a morte determina o fim de nossa existência? Existe algum tipo de recompensa ou pu-nição após a morte? A alma é imortal? O homem é um ser livre ou determina-do por forças deterministas? Qual o propósito da vida?

f) História: “A Filosofia da história é a reflexão crítica acerca da ciência

histórica e inclui tanto elementos analíticos quanto especulativos”.12 Ela parte do princípio de que o homem é uma síntese entre o passado e o presen-te, tendo as suas decisões atuais relação direta com as suas experiências pre-téritas, daí algumas perguntas: O alvo da explicação histórica é predição, ou meramente entendimento? Visto que escrever a história envolve seleção de material pelo historiador, um documento histórico pode ser considerado objeti-vo? A História é linear13 ou cíclica?14 Existe alguma finalidade, ou um padrão que confira sentido à História?

12

N.L. Geisler; P.D. Feiberg, Introdução à Filosofia, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 27. 13

“O importante princípio que devemos manter sempre vívido na mente é que a única ma-neira de entender a longa história da raça humana é dar-se conta de que ela é resultado da Queda. Essa é a única chave da história, de qualquer espécie de história, tanto da histó-ria secular como desta história mais puramente espiritual que temos na Bíblia. Não se pode entender a história da humanidade se não se leva em conta este grande princípio. A história é o registro do conflito entre Deus e Suas forças, de um lado, e o diabo e suas forças, de ou-tro; e o grande princípio determinante é de imensa importância, não só para entender-se a história passada, como também para entender-se o que está acontecendo no mundo hoje. É, igualmente, a única chave para compreender-se o futuro. Ao mesmo tempo, é a única maneira pela qual podemos compreender as nossas experiências pessoais" (D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 72). "A his-tória não saiu das mãos de Deus" (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 64). 14 "O conceito grego da história como um processo cíclico trancava os homens num moi-

nho onde eles podiam lutar com todas as forças, mas nem deuses nem homens conseguiam avançar. O conceito cristão do julgamento indica que a história caminha rumo a um objeti-vo" (Leon Morris, A Doutrina do Julgamento na Bíblia: In: Russel P. Shedd; Alan Pieratt, eds. Imorta-lidade, São Paulo: Vida Nova, 1992, p. 62).

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1. PRESSUPOSTOS E PERCEPÇÕES Qual é a matriz de nosso pensamento? Queiramos ou não, gostemos ou não, te-mos matrizes que conferem determinado sentido à realidade por ela ser percebida como tal. No que acreditamos, de certa forma, determina a construção de nossa i-dentidade. Todos temos a nossa filosofia, adequada ou não, de vida.15 Esta filosofia é a nossa cosmovisão.16 É esta cosmovisão que nos permite ser como somos, for-necendo elementos de padronização para a nossa cultura. Schaeffer está correto ao declarar que “as ideias nunca são neutras ou abstratas. Têm consequências na maneira como vivemos e agimos em nossa vida pessoal e na cultura co-mo um todo”.17 A nossa forma de aproximação do objeto já indica onde estamos. Recentemente, vi parte de um filme no qual o criminoso foi fotografado enquanto assassinava sua vítima. Quando o fotógrafo o procurou com a foto, o assassino disse para ele em qual prédio e andar ele estava no momento do clique; isto apenas pelo ângulo da fo-to. Digamos assim: vemos o que vemos e como vemos pelo andar e janela na qual nos encontramos. A partir daí, podemos até dizer em que tipo de construção intelec-tual estamos abrigados.

Todo conhecimento parte de um pré-conhecimento que é-nos fornecido pela nos-

sa condição ontologicamente finita e pelas circunstâncias temporais, geográficas, in-telectuais e sociais dentro das quais construímos as nossas estruturas de conheci-mento. Só existe possibilidade de conhecimento porque, entre outras coisas, antes de nós percebermos, há um objeto referente que, por existir, possibilita o conhecer. Deste modo, o ser antecede ao conhecer. A essência precede à experiência.

Somos em muitos sentidos parte de um produto cultural, filhos de uma geração

com uma série de valores que determinam em grande parte as nossas pré-compreensões.

Valendo-se de uma figura de Aristóteles (384-322 a.C.), Mohler faz uma aplica-

ção interessante e elucidativa: “A última criatura a quem você deveria perguntar como é se sentir mo-lhado é a um peixe, porque ele não faz ideia de que esteja molhado. Uma vez que nunca esteve seco, ele não tem um ponto de referência. Assim somos nós, quando se trata de cultura. Somos como peixes no sentido de que não temos sequer a capacidade de reconhecer onde a nossa cultura nos influencia. Desde a época em que estávamos no berço, a cultura tem

15

Veja-se: J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 27-28. 16 “Uma cosmovisão é uma série de crenças, um sistema de pensamentos, sobre as ques-

tões mais importantes da vida. A cosmovisão de uma pessoa é sua filosofia” (W. Gary Cramp-ton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 13). 17

Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 258.

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formado nossas esperanças, perspectivas, sistemas de significado e inter-pretação, e até mesmo nossos instrumentos intelectuais”.18 Portanto, a realidade se mostra a nós com contornos próprios delineados não

simplesmente pelo que ela é, mas, também, pelos nossos olhos que a enxergam e pinçam fragmentos desta realidade conferindo-lhes novas configurações com cores mais ou menos vivas, atribuindo-lhes valores muitas vezes bastante distintos dos re-ais. As nossas ênfases revelam não simplesmente os nossos pensamentos e valores como também, aspectos da realidade como os percebemos. A concatenação de nossas ideias e a estruturação de prioridades, dentro da fluidez histórica, assumem aspectos relativos. Deste modo, por exemplo, quando lemos um autor devemos en-tender também o seu tempo, a sua forma de pensar e os pontos que visava destruir, consolidar ou mesmo transformar. Toda obra é, de certa forma, dialogal, explícita ou implicitamente.19 Cada época nos diz algo de seus atores e, cada ator histórico nos fala direta ou indiretamente do cenário que o inspira, dentro do qual ele foi criado e, de certa forma, delimita a sua própria percepção da realidade. Quando não percebemos estes aspectos, tendemos a ser extremamente rigoro-sos em nossos julgamentos ou facilmente somos conduzidos a cometer anacronis-mos injustificados. Isto se dá, especialmente, quando lemos autores de séculos an-teriores ao nosso que, além da distância temporal, viveram em outro continente, com valores próprios, percepções delimitadas pela sua época, tendo que se deparar com desafios gigantescos alguns dos quais são quase que imperceptíveis em nossa épo-ca. Aí surge o nosso problema; é impossível ter todas as visões; a nossa, além de vários condicionantes, é feita a partir de nossa época, sob o feitiço de nossos valo-res e concepções, os quais por si só já produzem um pré-conhecimento. O anacro-nismo condenatório é fácil de ser praticado e extremamente difícil de ser percebido por quem o exerce. Deste modo, a consciência destas questões deve produzir em nós um salutar sentido de limitação e, portanto, de maior prudência em nossos juí-zos, reconhecendo que a nossa época, dentro da qual estamos inseridos e mais ca-tivos do que imaginamos, tem as suas paixões e feitiços – plenamente justificados, diga-se de passagem, pelos seus cidadãos bem socializados ou seja; aculturados –, assim como a de nossos personagens analisados. O que torna a nossa visão melhor do que a deles? Talvez seja a própria história que constantemente nos fornece um leque mais amplo e ilustrativo de fracassos da humanidade... Nash (1936-2006) parece-nos correto em sua observação: “A obtenção de maior consciência de nossa cosmovisão pessoal é uma das coisas mais im-portantes que podemos fazer, e compreender a cosmovisão de outros é al-go essencial para o entendimento que os torna distintos”.20

18

R. Albert Mohler Jr., Pregar com a cultura em mente: In: Mark Dever, ed., A Pregação da Cruz, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 66. 19

Posteriormente li Mohler nos Agradecimentos de seu livro, afirmando: “Salvo raríssimas exce-ções, livros representam uma conversa” (R. Albert Mohler, O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 9). 20

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, p. 14.

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***

Como sabemos, todos trabalham com os seus pressupostos,21 explícitos ou não, consistentes ou não, plenamente conscientes deles ou apenas parcialmente.22 Os pressupostos se constituem na janela (quadro de referência) por meio da qual vejo a realidade; o difícil é identificar a nossa janela, ainda que sem ela nada enxergue-mos.23 Assim, falar sobre a nossa cosmovisão,24 além de ser difícil verbalizá-la, é paradoxalmente desnecessário. Parece que há um pacto involuntário de silêncio o qual aponta para um suposto conhecimento comum: todos sabemos a nossa cos-movisão. Deste modo, só falamos, se falamos e quando falamos de nossa cosmovi-são, é para os outros, os estranhos, não iniciados em nossa forma de pensar. Sire resume bem isso: “Uma cosmovisão é composta de um conjunto de pressu-posições básicas, mais ou menos consistentes umas com as outras, mais ou menos verdadeiras. Em geral, não costumam ser questionadas por nós mes-mos, raramente ou nunca são mencionadas por nossos amigos, e são ape-nas lembradas quando somos desafiados por um estrangeiro de outro univer-so ideológico”.25 O conhecimento, seja em que nível for, não ocorre num vácuo asséptico concei-tual quer seja religioso, quer filosófico, quer cultural.26 A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressupostos os quais sãos reforçados, transformados, lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fa-tos”. A questão epistemológica antecede à práxis. Contudo, como nos aprofundar no campo intelectual se abandonamos as questões epistemológicas? As palavras de 21

“Nenhum homem, seja ele um cientista ou não, consegue trabalhar sem pressuposições” (Henry H. Van Til, O Conceito Calvinista de Cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 23). 22 “Todas as pessoas têm seus pressupostos, e elas vão viver de modo mais coerente possível

com estes pressupostos, mas até do que elas mesmas possam se dar conta. Por pressupostos entendemos a estrutura básica de como a pessoa encara a vida, a sua cosmovisão básica, o filtro através do qual ela enxerga o mundo. Os pressupostos apóiam-se naquilo que a pes-soa considera verdade acerca do que existe. Os pressupostos das pessoas funcionam como um filtro, pelo qual passa tudo o que elas lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos fornecem ainda a base para seus valores e, em consequência disto, a base para suas deci-sões” (Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11). 23 “Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico importan-te. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam ou limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância” (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy Pearcey, A Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem-bléias de Deus, 2006, p. 11). 24“Em essência, é um conjunto de pressuposições (hipóteses que podem ser verdadeiras,

parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que sustentamos (consciente ou inconsci-entemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a formação básica do nosso mundo” (James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 21). 25

James W. Sire, O Universo ao Lado, p. 21-22. 26

Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A Alma da Ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 9-12; 294.

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J.G. Machen (1881-1937) no início do século XX não se tornam ainda mais eloquen-tes na atualidade?: “A igreja está hoje perecendo por falta de pensamento, não por excesso do mesmo”.27 Há sempre o perigo de nos tornarmos cativos de nossa perspectiva e, portanto, da nossa percepção. Como obviamente não conseguimos ter “todas as visões”, permanecemos, de certo modo, cativos de nossa perspectiva,28 em outros termos: prisioneiro de sua percepção. Nem sempre é fácil submeter os nossos valores ao ri-gor daquilo que cremos. Como o cientista tem dificuldade em revisitar os seus para-digmas, nós também temos dificuldade em rever a nossa cosmovisão. É muito difícil – talvez por ser doloroso demais –, aplicar e avaliar em nosso próprio sistema as im-plicações do que sustentamos. Podemos, sem nos darmos conta, nos ferir com as nossas próprias armas, que julgávamos serem bisturis. Aliás, o mal uso do bisturi pode ser fatal, assim como o “fogo amigo” nas guerras. O antidogmatismo pode se constituir num dogma. A nossa cosmovisão não deve servir apenas – aliás, um “apenas” injustificável em si mesmo –, para um exibicionismo pretensamente acadêmico, ufanismo ignorante ou mesmo como demarcação de terreno no qual nada se sucede, exceto a presun-ção compartilhada e demarcada por outras cosmovisões. A nossa cosmovisão cons-ciente deve estar comprometida com a busca de coerência perceptiva e existencial. Isto nós chamamos de integridade, o não esfacelamento condescendente e exclu-dente daquilo que cremos, falamos e fazemos. Ainda que não haja a ideia de orgu-lho meritório na fé,29 ela é responsável pelo nosso agir e pensar. “A fé não con-cerne a um setor particular da vida denominado religioso, ela se aplica à e-xistência em sua totalidade”.30 Contudo, a genuína fé não pode ser autorreferen-te. Ela parte da Palavra e para lá se direciona.

Por buscarmos a coerência do crê e viver ‒ daí a extrema importância de uma fé inquiridora ‒,31 há compromissos sérios entre o que cremos e como agimos. Um distanciamento consciente e docemente acalentado e justificado entre o crer e o fa-zer, produz uma esquizofrenia intelectual, emocional e espiritual, cuja solução defini-tiva envolverá um destes caminhos: ou mudar a nossa crença ou abandonar a nos-sa práxis. Para o cristão, cosmovisão é compromisso de fé e prática.

Como temos insistido, somos o que cremos; pelo menos, esta deve ser a nossa

atitude cotidiana; esforçar-nos por viver conforme aprendemos nas Escrituras. A 27

J.G. Machen, Cristianismo y Cultura, Barcelona: Asociación Cultural de Estudios de la Literatura Reformada, 1974, p. 19. 28

Li por meio de Peter Burke, que Fernand Braudel (1902-1985) gosta de afirmar que o historiador é prisioneiro de suas suposições e mentalidades (Peter Burke, O Renascimento Italiano: cultura e soci-edade na Itália, São Paulo: Nova Alexandria, 1999, p. 11). 29“Não existe orgulho na fé. Fé é simplesmente a crença de que nada podemos fazer para

nos salvar, mas que confiamos plenamente na graça de Deus” (Peter Jones, Verdades do E-vangelho x Mentiras pagãs, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 34). 30

Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 24. 31

“A fé cristã não é uma fé apática, uma fé de cérebros mortos, mas uma fé viva, inquirido-ra. Como Anselmo afirmou, a nossa fé é uma fé que busca entendimento” (William L. Craig, Apologética Cristã para Questões difíceis da vida, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 29).

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nossa fé tem implicações decisivas e fundamentais em nossa existência a começar aqui e agora. Fé cristã é crer de tal modo que buscamos transformar a nossa vida num reflexo daquilo que acreditamos. Nash parece-nos oportuno aqui: “Cosmovisões deveriam não apenas ser testadas em uma aula de filoso-fia, mas também no laboratório da vida. Uma coisa é uma cosmovisão passar no teste teórico (razão e experiência); outra é passar no teste práti-co. As pessoas que professam uma cosmovisão podem viver consistente-mente em harmonia com o sistema que professam? Ou descobriremos que elas foram forçadas a viver segundo crenças emprestadas de siste-mas concorrentes? Tal descoberta, eu acho, deveria, produzir mais do que embaraço”.32

A nossa chave epistemológica é a Escritura, portanto, a nossa cosmovisão partin-do de uma perspectiva assim, nos conduzirá naturalmente de volta a Deus.33 A Edu-cação Cristã, por exemplo, fundamentando-se nas Escrituras oferece-nos um esco-po do que Deus deseja de nós e, nos fala de qual o propósito de nossa existência em todas as suas esferas.34

32

Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida: uma introdução à Filosofia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 29. 33

“Numa cosmovisão cristã logicamente consistente, a primeira e absoluta pressuposição essencial é que a Bíblia somente é a Palavra de Deus, e ela tem um monopólio sistemático sobre a verdade” (W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 20). “O Cristianismo é um sistema filosófico completo que é fundamentado sobre o ponto de partida axiomático da Bíblia como a Palavra de Deus” (Ibi-dem., p. 77). 34

“A cosmovisão cristã tem coisas importantes a dizer sobre a totalidade da vida humana” (Ronald H. Nash, Questões Últimas da Vida, p. 19).

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2. TODOS OS HOMENS E UM DESEJO - A CONTRACULTURA CRISTÃ (MT 5.3)

“A visão não-cristã da vida faz de nós criaturas minúsculas, porque nos es-tima e nos julga segundo aquilo que possuímos, não considerando nada so-bre nossa alma, espírito e o que nos liga a Deus e às possibilidades da eternida-de. Ela nada sabe sobre essas coisas. É um insulto à natureza humana” ‒ David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 41.

"Se ser cristão significa obedecer o Sermão do Monte, ninguém pode ter esperanças de chegar a sê-lo" ‒ E.F. Scott, El Caracter de la Iglesia Primitiva, Buenos Aires: La Aurora, 1967, p. 28.

Um desejo comum a todos os seres humanos, ainda que disfarçado sob outros nomes, é o de auto-suficiência; de bastar-se a si mesmo. Este desejo está vinculado à busca pela felicidade, daí a associação natural entre auto-suficiência e felicidade. Queremos ser felizes não abstratamente, antes eu quero ser feliz individualmente, pessoalmente.35 O desejo pela minha felicidade é algo que marca profundamente a minha individualidade. Podemos ter dúvidas quanto ao caminho a seguir, no entanto, estamos convictos do que queremos. Este desejo revela aspectos essências da Cri-ação e da Queda. Fomos criados para a felicidade plena em comunhão com Deus e com o nosso semelhante. O pecado tirou-nos isto. Agora revelamos a nossa carên-cia, o desejo ansioso de termos o para quê fomos criados.36 Geralmente colocamos a nossa felicidade na concretização de determinados objetivos; no entanto, realizá-los, pode revelar os nossos equívocos: concretizamos nossos propósitos, no entan-to, nem por isso nos sentimos felizes.37 As nossas escolhas envolverão sempre as exclusões. Como dizer sim sem dizer não?. E, como contingentes que somos preci-samos acertar em nossas seleções. Isso nos causa angústia e dor. Queremos ser felizes e a felicidade envolve perpetuidade. Na mensuração temporal a cronologia da felicidade costuma ser tão rápida que, por vezes, temos a impressão de que nunca o fomos suficientemente. A intensidade parece se submeter ao tempo de sua duração. Contudo, fizemos e voltamos a fazer as escolhas certas? Parece-me correto Nicholi Jr, ao dizer que “Nenhum aspecto da vida é mais desejável, mais esquivo e mais espantoso do que a felicidade”.38

35

Veja-se: Julías Marías, A Felicidade Humana, São Paulo: Duas Cidades, 1989, p. 18-20. 36

Veja-se: R.C. Sproul, A Alma em Busca de Deus: Satisfazendo a fome espiritual pela comunhão com Deus, São Paulo: Eclesia, 1998, p. 170. 37 “Parte da cruel ironia da existência humana parece ser que as coisas que, em nossa opi-nião, iriam nos fazer felizes, deixam de fazê-lo” (Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Bus-ca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 9). 38

Armand M Nicholi Jr., Deus em questão: C.S. Lewis e Sigmund Freud debatem Deus, amor, sexo e

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Agostinho (354-430) discorreu sobre isso com humor e maestria falando de nosso desejo pela felicidade e, ao mesmo tempo, das respostas incoerentes e contradizen-tes.39 “Todas na verdade desejam a felicidade, mas a maioria desconhece a maneira de a obter (...). De fato, ser feliz é um bem tão grande que o dese-jam bons e maus. Não é de admirar que para serem felizes os bons sejam bons; mas é espantoso que por isso os maus sejam maus”.40 No entanto, Calvino (1509-1564), sem ignorar a importância da busca da felicida-de, com discernimento bíblico, afirma:

“Tudo quanto os filósofos têm inquirido sobre o summum bonum revela estupidez e tem sido infrutífero, visto que se limitam ao homem em seu ser intrínseco, quando é necessário que busquemos felicidade fora de nós mesmos. O supremo bem humano, portanto, se acha simplesmente na u-nião com Deus. Nós o alcançamos quando levamos em conta a confor-midade com sua semelhança”.41

As bem-aventuranças (Mt 5.3-12) fazem parte do chamado Sermão do Monte (Mt 5-7), conforme expressão empregada primeiramente por Agostinho (354-430) no seu comentário exegético, De Sermone Domini in monte (393-394)42 e depois inserida na Bíblia de Coverdale (1535).43 Neste sermão temos uma virada metafísica. En-quanto que os homens buscam intensamente a sua felicidade nas coisas materiais44 ou, se valem do transcendente materializando-o em suas conquistas, Jesus Cristo, por meio de paradoxos45 relativos à nossa percepção, nestes “oráculos de bênçãos”

o sentido da vida, Viçosa, MG.: Ultimato, 2005, p. 109. Marías que escreve uma obra de fôlego sobre a felicidade, depois de observar que não existe um verbo para este substantivo (tanto em espanhol quanto em português), diz a respeito de seu objeto: “uma investigação sobre essa estranha reali-dade, procurada e raramente encontrada, que chamamos felicidade” (Julías Marías, A Feli-cidade Humana, São Paulo: Duas Cidades, 1989, p. 13-14). À frente: “Veremos ao longo deste es-tudo que a felicidade é possível de modo parcial, deficiente, inseguro; mas a pretensão é inseparável da condição humana” (p. 38). 39

Veja-se: Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, XIII.3.6ss. 40

Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1998, Vol. 3, (Sl 118), p. 369,370. 41

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 4.10), p. 105. 42

Agostinho, O Sermão do Monte, São Paulo: Paulinas, 1992. Vejam-se: H.L. Drumwright Jr., Ser-mão do Monte: In: Merril C. Tenney, ed., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, Vol. 5, p. 569-570; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3ª ed. Paulo: ABU., 1985, p. 11. 43

A Bíblia traduzida por Miles Coverdale (1488-1569), foi a primeira edição completa das Escrituras impressa em inglês (04/10/1535). A sua impressão provavelmente ocorreu na Alemanha. Coverda-le não se baseou nos Originais Hebraicos e Gregos, mas, sim, na Vulgata e em outras traduções existentes, tais como, a de Lutero (AT 1522; NT 1534), de Leo Judas (Bíblia de Zurique, 1529); William Tyndale (NT. 1525; AT. 1535), etc. Os apócrifos foram impressos como um apêndice ao Antigo Testamento. 44

“Quando a alma se encontra envolta em desejos carnais, busca sua felicidade nas coisas desta terra” (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo, Novo Século, 2000, p. 60). 45

Vejam-se: F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. IV, p. 368; William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, Vol. 1, p. 368.

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46demonstra que a verdadeira felicidade está numa relação correta com Deus, con-sigo mesmo e com os homens. Portanto, tudo isso parte do restabelecimento de nossa comunhão com Deus. Agostinho, não sem razão, afirma que no Sermão da Montanha temos “um pro-grama perfeito de vida cristã destinado à direção dos costumes”.47

A. Tentação da Auto-Suficiência

“A autonomia humana pecaminosa, longe de ser o caminho para a auto-realização humana, é, em si mesma, uma distorção daquilo que é humano” ‒ Robert D. Knudsen, O Calvinismo Como uma Força Cultural: In: W. Stanford Reid, ed. Calvino e Sua Influência no Mundo Oci-dental, São Paulo: Casa Editora Presbiteri-ana, 1990, p. 20.

No Paraíso, Satanás tentou os nossos primeiros pais por meio do desejo, que certamente de alguma forma cultivavam, de serem iguais a Deus. Eles se esquece-ram de todo o histórico de sua relação com o Deus fiel, amoroso, justo e sábio;48 o seu desejo já em si mesmo, pecaminoso, falou mais alto aos seus corações. Paulo interpretando o acontecimento histórico registrado em Gênesis, diz: “Mas receio que, assim como a serpente enganou (e)capata/w = desviou, seduziu, desen-caminhou) a Eva com a sua astúcia (panourgi/a49

= “ardil”, “truque”, “maquinação”, “trapaça”), assim também sejam corrompidas as vossas mentes, e se apartem da simplicidade e pureza devidas a Cristo” (2Co 11.3). Novamente: “A mulher, sendo enganada, (e)capata/w) caiu em transgressão” (1Tm 2.14). O verbo grego50 tem o sentido de enganar completamente, conseguindo totalmen-te o seu objetivo; deste modo, Eva, segundo o texto nos diz, foi completamente en-ganada por Satanás; assim, quando ela cede à tentação, está plenamente conven-cida de que o que faz é certo dentro de seus objetivos duvidosos. Daqui podemos concluir que a certeza subjetiva não significa necessariamente a correta interpreta-ção dos fatos. Não devemos nos esquecer de dois aspectos fundamentais: a limita-ção de nossa compreensão. Somos seres finitos, ainda que com aspirações infinitas e, a realidade do pecado como elemento que permeia a nossa existência e, por isso

46

Conforme expressão de Sproul (R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 11). 47

Agostinho, O Sermão do Monte, São Paulo: Paulinas, 1992, I.1.1. p. 23. 48

“O pecado original foi o pecado de esquecer Deus. Adão e Eva deram as costas a Ele – daí os problemas” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 47). 49

Ocorre 5 vezes no NT.: Lc 20.23; 1Co 3.19; 2Co 4.2; 11.3; Ef 4.14. 50

e)capata/w (exapataõ)* Rm 7.11; 16.18; 1Co 3.18; 2Co 11.3; 2Ts 2.3; 1Tm 2.14.

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mesmo, a nossa perspectiva e, decorrentemente, a nossa epistemologia e lógica. Na realidade, Eva e Adão desejaram a autonomia; ter um conhecimento indepen-dentemente de Deus; queriam ser iguais a Deus, auto-suficientes. O pecado é enganoso, dando-nos a impressão, num primeiro momento, de plena e completa satisfação. Ele tende a satisfazer os nossos desejos mais imediatos, mui-tos dos quais até legítimos – ainda que nem sempre –; no entanto, fornece-nos ca-minhos que conflitam com a Palavra de Deus, que nos conduzem ao fracasso ou à perda da oportunidade de nosso amadurecimento, da lapidação do nosso caráter e vida espiritual. O pecado também nos indispõe contra a Palavra de Deus, tornando-nos insensí-veis aos seus ensinamentos, avessos às advertências divinas, fazendo-nos, com frequência, arrogantes, nos julgando auto-suficientes, contentando-nos com os pra-zeres passageiros desta vida, distanciando-nos de Deus e da Sua Lei. Daí o escritor de Hebreus orientar a Igreja: “.... Exortai-vos mutuamente cada dia, durante o tempo que se chama Hoje, a fim de que nenhum de vós seja endurecido pelo engano (a)pa/th = fascinação, sutileza, mistificação) do pecado” (Hb 3.13). O Humanismo renascentista que durou aproximadamente quatro séculos (XIII-XVI) vindo na esteira do pensamento grego cujos valores foram herdados pelo Ilumi-nismo (Sécs. XVII-XIX) teve o seu clímax nos humanistas seculares modernos.51 O trágico de todos estes movimentos, é que o homem longe de Deus tentou de todas as formas encontrar a sua autonomia, por isso mesmo, não alcançou a compreen-são de que toda a vida é relacional. Deste modo, se a Idade Média foi pretensamen-te o tempo de Deus, o Renascimento foi o tempo do homem, o Iluminismo o tempo da razão, o século XX da ciência e da técnica, hoje, não temos mais referências, o homem já não é o centro de todas as coisas, visto que já não há mais centro.52 Es-tamos “perdidos no espaço” ainda buscando a nossa satisfação. Sem absolutos não sabemos ao certo o valor do homem e o seu papel no universo. Sem princípios uni-versais não existem absolutos; sem estes, tudo é possível. Deste modo, sem concei-to de verdade, a felicidade ficou circunscrita ao conceito de prazer de cada um, in-dependentemente de princípios e valores divinos universais. Como escreve Ravi Za-charias, ele mesmo um ex-ateu: “A realidade é que o vazio resultante da perda do transcendente é absoluto e devastador, tanto no sentido filosófico quan-to existencial”.53 O problema da existência é uma questão basicamente metafísica. Aliás, o homem é um ser metafísico. A negação prática dessa realidade acarreta uma percepção er-rada e tristemente limitante da natureza humana. Por isso, o homem “pós-moderno” dispõe diante de si de todas as saídas possíveis, porém, nenhuma delas conduz ao “fim” necessário. Os seus pressupostos descartam o único caminho real do signifi-

51

Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 52

Cf. Gene Edward Veith, Jr., Tempos Pós-Modernos, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 68. 53

Ravi Zacharias, A Morte da Razão: uma resposta aos neoateus, São Paulo: Editora Vida, 2011, p. 13. “Nenhuma filosofia acerca de um mundo sem Deus traz esperança” (p. 14).

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cado da vida e do ser: O Deus transcendente e pessoal. O Deus que Se revela como tal conferindo sentido a todo o real e à nossa existência. Ao mesmo tempo, ele, em seu pretenso humanismo autônomo não consegue encontrar um ponto de integra-ção que confira sentido à realidade.54 Daí o sentimento constante de insatisfação e frustração, como escreveu McGrath: “Deixar de relacionar-se com Deus é deixar de ser completamente hu-mano. Ser realizado é ser plenificado por Deus. Nada transitório pode pre-encher esta necessidade. Nada que não seja o próprio Deus pode esperar tomar o lugar de Deus. Assim mesmo, por causa da decadência da natu-reza humana, há hoje a tendência natural de se tentar fazer com que ou-tras coisas preencham essa necessidade. O pecado nos afasta de Deus, e nos leva a pôr outras coisas em seu lugar. Essas vêm para substituir Deus. Elas, porém, não satisfazem. E, como a criança que experimenta e expres-sa insatisfação quando o pino quadrado não se encaixa no orifício redon-do, passamos a experimentar um sentimento de insatisfação. De alguma forma, permanece em nós a sensação de necessidade de algo indefinível de que a natureza humana nada sabe, só sabe que não o possui”.55

B. A Felicidade Humana e a Bem-Aventurança Divina Calvino comenta que “.... enquanto todos os homens naturalmente dese-jam e correm após a felicidade, vemos quão quanta determinação se en-tregam a seus pecados; sim, todos aqueles que se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas imundas concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos de seu coração”.56 A palavra traduzida por “bem-aventurado” (rv,a,)) ('esher) no Salmo 1 quer dizer: “quão feliz é”. Para os gregos a ideia de bem-aventurança (maka/rioj) estava ge-ralmente associada a algum bem terreno: saúde, bem-estar, filhos e riquezas, ainda que não exclusivamente, podendo se referir ao conhecimento e à paz interior.57 A palavra grega carrega consigo o sentido de beleza e harmonia.58 Era uma expressão

54“O humanismo, em seu sentido mais amplo, mais inclusivo, é o sistema pelo qual homens e

mulheres, partindo absolutamente de si mesmos, procuram racionalmente construir a partir de si mesmos, tendo exclusivamente o homem como ponto de integração para encontrar todo o conhecimento, significado e valor” (Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, 2ª ed., São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 27). 55

Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 68. 56

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1 (Sl 1.1), p. 51. 57

Cf. U. Becker, Bênção: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. 1, p. 297; F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Fri-edrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michi-gan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. IV, p. 362-363. 58

Veja-se: William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, Vol. 1, (Mt 5.3), p. 97-98.

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comum nos epitáfios para descrever a vida feliz.59 Em sua origem a palavra era em-pregada de forma preponderante (Homero) para se referir à bem-aventurança dos deuses.60 No entanto, nas bem-aventuranças, o aspecto preponderante, não é o material, antes referem-se à vida espiritual e à comunhão com Deus.61 O Antigo Testamento contém muitas advertências contra o julgamento puramente externo; de forma que a verdadeira bem-aventurança, de modo especial nos Sal-mos, está associada à confiança em Deus (Sl 40.4; 84.12);62 refugiar-se em Deus (Sl 2.12; 34.8);63 ser disciplinado e educado por Deus (Sl 94.12);64 andar na Lei do Se-nhor (Sl 119.1-2);65 ter a Deus por auxílio, esperança (Sl 146.5)66 e Senhor (Sl 33.12; 144.15);67 ser escolhido de Deus (Sl 65.4);68 ter os pecados perdoados (Sl 32.1);69 temer a Deus e andar nos Seus caminhos (Sl 128.1).70 Sproul resume: “Ser aben-çoado, na mentalidade hebraica, significa ter a alma cheia da capacidade de experimentar o encanto, a excelência e a doçura do próprio Deus”.71 Nas “Bem-aventuranças” (Mt 5.3-12), Jesus Cristo em suas “exclamações en-fáticas”72 começa por dizer: “Bem-aventurados os humildes (ptwxo/j) de espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5.3). A bem-aventurança não está na pobreza, mas, na consciência de sua pobreza espiritual, em sua total carência de Deus.

59

F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Tes-tament, Vol. IV, p. 363. 60

Cf. F. Hauck, Maka/rioj: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. IV, p. 362; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Vol. 1, (Mt 5.3), p. 97. 61

Cf. R.T. France, Mateus. In: D.A. Carson, et. al., eds. Comentário Bíblico Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 1369. 62“Bem-aventurado o homem que põe no SENHOR a sua confiança e não pende para os arrogantes, nem para os afeiçoados à mentira” (Sl 40.4). “Ó SENHOR dos Exércitos, feliz o homem que em ti confia” (Sl 84.12). 63 “.... Bem-aventurados todos os que nele se refugiam” (Sl 2.12). “Oh! Provai e vede que o SENHOR é bom; bem-aventurado o homem que nele se refugia” (Sl 34.8). 64

“Bem-aventurado o homem, SENHOR, a quem tu repreendes, a quem ensinas a tua lei” (Sl 94.12). 65“Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do SENHOR. Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o coração” (Sl 119.1-2). 66“Bem-aventurado aquele que tem o Deus de Jacó por seu auxílio, cuja esperança está no SE-NHOR, seu Deus” (Sl 146.5). 67 “Feliz a nação cujo Deus é o SENHOR, e o povo que ele escolheu para sua herança” (Sl 33.12); “Bem-aventurado o povo a quem assim sucede! Sim, bem-aventurado é o povo cujo Deus é o SE-NHOR” (Sl 144.15). 68“Bem-aventurado aquele a quem escolhes e aproximas de ti, para que assista nos teus átrios; fica-remos satisfeitos com a bondade de tua casa -- o teu santo templo” (Sl 65.4). 69

“Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é perdoada, cujo pecado é coberto” (Sl 32.1). 70

“Bem-aventurado aquele que teme ao SENHOR e anda nos seus caminhos!” (Sl 128.1). Seguir fi-elmente o caminho do Senhor nos torna irrepreensíveis (Sl 119.1). 71

R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei. In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p.12. 72

William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, Vol. 1, (Mt 5.3), p. 96. Compare com: R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament: The Interpretation of St. Matthew’s Gospel, [s. cidade]: Hendrickson Publishers, 1998, (Mt 5.3), p. 183.

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1) O Sentido da palavra “pobreza” Sem pretender supervalorizar a ênfase, devemos acentuar que a palavra empregada por Jesus Cristo para pobreza indica geralmente, não simplesmente a si-tuação de um “assalariado”, mas, de um homem em total indigência financeira; mais propriamente um mendigo73 que depende da boa vontade de terceiros para sobrevi-ver.74

2) A Nossa Pobreza: desconstrução e reconstrução

“A humildade é a primeira letra no al-fabeto do Cristianismo. Para se construir um edifício é necessário começar pelos alicerces” ‒ J.C. Ryle, Comentário Exposi-tivo do Evangelho Segundo Mateus, São Paulo: Imprensa Metodista, 1959, (Mt 5.1-12), p. 23.

Jesus Cristo apresenta um conceito totalmente oposto aos nossos valores que falam de poder, saber, status, cultura e dinheiro. Ele diz que bem-aventurado é o homem indigente espiritualmente, que sabe que nada tem para oferecer a Deus, antes, depende totalmente de Sua graça. Aqui nosso Senhor ataca frontalmente o desejo humano tão arraigado em seu coração de ter uma visão bastante otimista a seu respeito, considerando-se acima dos demais. Esta tentação é tão comum e, até mesmo, tão aceitável socialmente dentro de determinadas condições, que nem se-quer paramos para pensar nela. Costumeiramente há uma contradição entre a nossa compreensão intelectual deste assunto e o nosso comportamento, ainda que com alguns disfarces, ávido por evidenciar alguma forma de poder, mesmo que seja de uma humildade superlativa. É por isso que o nosso primeiro contato com Evangelho, com frequência, antes de trazer paz espiritual provoca uma espécie de guerra interior, uma “crise”. O Evange-lho desestabiliza a nossa estrutura de pensamento e, por vezes, a tão bem arruma-da concepção de vida e valores que sustentamos - ainda que nem sempre consci-entemente -, e divulgamos alguns de seus aspectos mais evidentes em nossa com-preensão. Este conflito, portanto, como é previsível, dói e, por vezes, dói muito. Con-tudo, o Evangelho nos desafia, transforma e concede, pelo novo nascimento espiri-

73“Havia também certo mendigo (ptwxo\j), chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele” (Lc 16.20). 74 Vejam-se, entre outros: Richard C. Trench, Synonyms of The New Testament, 7ª ed. (revised and enlarged.), London: Macmillan And Co., 1871, § xxxvi, p. 121-123; F. Hauck; E. Bammel, ptwxo/j: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. VI, p. 885-915; William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, Vol. 1, p. 375-377; p. 147-148; D.A. Carson, Comentario Bíblico del Expositor: Mateo, Miami, Florida: Editorial Vida, 2004, (Mt 5.3-10), p. 148; A.T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, Volume 1: The Ages Digital Library, [CD-ROM], (Rio, Wi: Ages Sofware, 2002, (Mt 5.3).

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tual, uma dimensão nova da vida; do tempo e da eternidade, mostrando-nos o quan-to estávamos equivocados em nossa forma de nos ver, interpretar e nos posicionar em relação à realidade. O Evangelho evidencia de forma contundente o quanto so-mos carentes de Deus e da Sua graça. Enquanto que os homens querem ter coisas para serem felizes, Jesus Cristo co-meça mostrando a necessidade que temos de nos esvaziar. A construção da verda-deira felicidade começa pela desconstrução de nosso eu, nossa pretensa riqueza, referência e escala de valores. Percebam o drama: Eu que durante toda a vida, des-de o nascimento, tenho como referência de valores o eu, agora sou redirecionado para uma esfera totalmente distinta, passando a ter Deus como referência e centro. Mudei de uma visão “ego-referente” para outra, oposta, “Teoreferente” Por isso é que a primeira bem-aventurança aponta para a nossa total incapacidade. Quando nos sentirmos assim, poderemos então ser reconstruídos, restaurados pelo Senhor Jesus. A graça como a verdade, sempre nos surpreende. Maravilhosa graça!

3) A Lei de Deus e a nossa miséria

“Pobreza de espírito é o resultado de apenas se ter tido um vislumbre daquilo que você realmente é, e ver que você não é nada e não tem nada e não po-de fazer nada, só isso pode recomen-dá-lo à graça e ao poder salvador de Deus” ‒ Albert N. Martin, As Implicações Práticas do Calvinismo, São Paulo: Os Pu-ritanos, 2001, p. 29).

A Lei de Deus é boa; foi-nos dada para o nosso bem. Ela tornou-se maldição para nós devido ao nosso pecado; a quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás, a lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o Evangelho. Sem a Lei, a impressão que fica, é que temos uma vida correta e satisfatória; de nada precisamos, muito menos de salvação. A Lei de Deus como que por um espelho reflete a nossa miséria espiritual resul-tante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O confronto com a Lei de Deus é algo profundamente angustiante e destruidor de alguma presunção orgulhosamente autônoma. A Lei de Deus não afaga as nossas pretensões entusi-asticamente egocêntricas, antes, revela as nossas imperfeições. Via-nos saciados e ricos, com trajes finos e elegantes. A Lei vem nos mostrar que estamos famintos, ca-rentes e nus. As nossas vestes autônomas – com todos seus valores agregados por marcas, etiquetas e nomes exóticos -, só servem para demonstrar de forma eloquen-te a nossa nudez; não passam de folhas arrancadas às pressas de um jardim já cor-rompido pelo pecado. Evidenciam, às vezes de modo abrupto, as nossas imperfei-ções. Como tratar consciente, consiste e eficazmente de um mal não percebido? A Lei coloca em destaque a nossa condição de pecador, revelando de forma contun-dente os nossos pecados. A pobreza de espírito em geral está associada a um confronto honesto com a Lei

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de Deus por meio do qual vemos como de fatos somos, não mais por meio da bene-volência criada por nós mesmos em nosso auto-exame bastante comprometido. A Lei de Deus, portanto, é boa; foi-nos dada para o nosso bem. Ela tornou-se maldição para nós devido ao nosso pecado; a quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás, a lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o Evangelho. Sem a Lei, a impressão que fica, é que temos uma vida correta e satisfatória. De nada precisamos; muito menos de salvação. Paulo diz que “Cristo nos resgatou da maldição da lei” (Gl 3.13). Ele satisfez per-feitamente todas as exigências da Lei; por isso Ele pode nos libertar definitivamente do seu aspecto condenatório, nos restaurado à comunhão com Deus por meio de Sua obra sacrificial, fazendo-se maldito em nosso lugar.

19 Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, 20 visto que nin-guém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. 21 Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22 justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que crêem; porque não há distinção, 23 pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, 24 sendo justificados gratuita-mente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteri-ormente cometidos; 26 tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. 27 Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não; pe-lo contrário, pela lei da fé. 28 Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei. 29 É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, 30 visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o circunciso e, mediante a fé, o incircunciso. 31 Anu-lamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei. (Rm 3.19-31).

A Lei, portanto, no seu aspecto moral, não foi abolida. “.... A lei moral de Deus é a verdadeira e perpétua regra de justiça, ordenada a todos os homens, de todo e qualquer país e de toda e qualquer época em que vivam, se é que pretendem reger a sua vida segundo a vontade de Deus. Porque esta é a vontade eterna e imutável de Deus: que Ele seja honrado por todos nós, e que todos nós nos amemos uns aos outros”.75 A Lei não nos salva; contudo, nos mostra a necessidade que temos do perdão e da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de Deus”.76 O anúncio do Evangelho envolve a Lei, a mesma que evidenciou o nosso pecado, apontou para a necessidade de salvação, se concretizando em Cristo Je-

75

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 4, (IV.16), p. 160. 76

J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2ª ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembléias de Deus, 2005, p. 155.

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sus: “O Evangelho e a Lei não devem ser separados, constituem uma única entidade no interior da qual o Evangelho é a coisa primordial e a Lei perma-nece contida na Boa Nova”.77 Sem Lei não há Evangelho.

Por intermédio de Cristo somos libertos da tentativa insana de tentar ser salvo pe-lo cumprimento da Lei, o que é impossível. Diante a Lei restam-nos hipoteticamente duas opções honestas: cumprir as suas exigências, o que nos é impossível, arcan-do, assim, com o reto juízo condenatório de Deus. Ou buscar refúgio na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo. “Na Lei de Deus nos é apresentado um pa-drão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de von-tade eterna do Senhor. Deus condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos ti-rar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela”.78

Contudo, o que a Lei exige, ela não nos capacita a cumprir, deixando-nos sozi-nhos.79 Esta capacitação é somente pela graça que, se envolve a Lei, não se res-tringe a ela. “Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder para cumpri-la. Entretanto, por meio do Evangelho os ho-mens são regenerados e reconciliados com Deus através da graciosa remis-são de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida”.80

Por isso, desprezar a Lei de Deus é um ato de insanidade pecaminosa. Na Lei de Deus temos o princípio de sabedoria que deve nortear a nossa vida. Devemos, por-tanto, nos aplicar no estudo da Lei,81 visto que “a Escritura outra coisa não é se-não a exposição da lei”.82

4) “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6.12)

“Os homens, pois, só serão bem-aventurados depois que forem gratui-

77

Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 22. 78

João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 21. 79

“A lei deixa o homem entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao má-ximo; o Evangelho, porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça deste dom inefável o verdadeiro fundamento de sua vida” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 57). 80

João Calvino, Exposição de Segundo Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.7), p. 70. 81

Calvino comenta: “.... só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais dese-jável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela....” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53). 82

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 1.2), p. 53.

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tamente reconciliados com Deus e re-putados por ele como justos” ‒ João Cal-vino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Para-cletos, 1999, Vol. 1, (Sl 32.1), p. 39.

Nesta petição, entre outras coisas, estamos confessando que não temos condições de pagar a nossa dívida (Lc 7.41-42; Mt 18.25-27).83 A Lei já nos ensinou isto. Estamos inadimplentes espiritualmente; temos consciência de que a nossa dívi-da cada vez aumenta mais, “porque ainda que vivendo como cristãos, vamos aumentando sem cessar nossa dívida e agravando a embrulhada da nossa situação. A dívida cresce de dia em dia. E imagino que à medida que enve-lhecemos, mais conta nos damos de que não temos possibilidade alguma de cancelar essa dívida. As coisas vão de mal a pior”.84 Por isso, só nos resta suplicar o perdão. “A súplica por perdão subentende que o suplicante reco-nhece que não existe outro método pelo qual sua dívida seja cancelada. Portanto, é uma súplica por graça”.85 Diria mais: é impossível uma autêntica vida cristã sem esta consciência: de sermos pecadores e da necessidade do perdão de Deus.86 Enquanto não admitirmos isso, estamos, na realidade, sustentando algum tipo de auto-suficiência. A misericórdia de Deus é o único caminho da remissão. E, todas as vezes que confessamos a Deus os nossos pecados, arrependidos de tê-los cometidos, desejo-sos de não mais praticá-los, podemos ter a certeza que Deus, por Sua graça, nos perdoa. Os humildes em espírito são bem-aventurados porque reconhecem a sua total fa-lência espiritual confessando diante de Deus a sua indignidade e absoluta depen-dência de Sua misericórdia.87 Somos totalmente dependentes da graça de Deus. Nesta consciência sincera, somos bem-aventurados. ALGUMAS APLICAÇÕES

1. À presunçosa igreja de Laodicéia, o Senhor Jesus indica a falácia de sua pre-

sumida riqueza, descrevendo a sua real situação: “Assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca; pois dizes:

83

“41 Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários, e o outro, cinqüenta. 42 Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Qual deles, portanto, o amará mais?” (Lc 7.41-42). “25 Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. 26 Então, o servo, prostran-do-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. 27 E o senhor daquele servo, compa-decendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida” (Mt 18.25-27). 84

K. Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 76. 85

William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, Vol. 1, p. 470. 86

Veja-se: David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 53. 87

“Humildes são aqueles que estão convencidos dos seus pecados e não procuram ocultá-los a Deus” (J.C. Ryle, Comentário Expositivo do Evangelho Segundo Mateus, São Paulo: Imprensa Metodista, 1959, (Mt 5.1-12), p. 23).

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Estou rico e abastado e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre (ptwxo/j), cego e nu” (Ap 3.16-17). A nossa sufi-ciência está em Deus, Aquele que provê todos os recursos necessários à nos-sa salvação e manutenção já nesta vida. Paulo fala neste sentido à também pretensiosa Igreja de Corinto: “Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?” (1Co 4.7).

2. Colson, após convertido ao Cristianismo, relata aspectos da existência que pô-de aprender após a sua prisão resultante de sua participação em atos crimino-sos: “Compreender os paradoxos da vida é a chave para encontrar e viver a boa vida. (...) Temos de aprender como a vitória pode surgir do sofrimento e da derrota, e como perdemos a vida a fim de ganhá-la. Temos de ser obedientes ao chamado a fim de sermos livres, e temos de reconhecer o mal que há em nós a fim de abraçar o bem. Essas verda-des inversas são contra-intuitivas, decididamente contraculturais. São também sabedoria além de nosso entendimento”.88

3. Devemos eliminar de nós todo e qualquer espírito de altivez que nos conduza a

pensar em nossa capacidade e autonomia. Somos sempre devedores à graça de Deus. É preciso manter a nossa constante atenção neste flanco. “Devemos notar que os resíduos desta doença chamada orgulho persistem mesmo nos santos, de modo que eles mui amiúde precisam ser reduzidos a ex-tremos, a fim de despir-se de toda a sua autoconfiança e aprender a humildade. As raízes deste mal são tão profundas no coração humano que ainda o mais perfeito dentre nós jamais se livra inteiramente delas, até que Deus o confronte com a morte. Podemos perceber o quanto a nossa autoconfiança desagrada a Deus, ao vermos como, a fim de cu-rá-la, temos de ser condenados à morte”.89

4. A nossa considerada pobreza perante os homens não passa despercebida a

Deus. Ela, em muitos sentidos pode representar, na realidade, riqueza diante de Deus. À atribulada igreja de Esmirna, prestes a passar por intensa prova-ção, Jesus Cristo diz: “Conheço a tua tribulação, a tua pobreza (ptwxei/a)(mas tu és rico) e a blasfêmia dos que a si mesmos se declaram judeus e não são, sendo, antes, sinagoga de Satanás” (Ap 2.9).

5. Os pobres em espírito são aqueles que encaram toda a realidade pelo prisma teológico, reconhecendo que todas as coisas só são relevantes a partir da im-portância conferida por Deus.

6. O caminho da verdadeira pobreza em espírito não começa por olhar para nós mesmos90 ou para o nosso próximo, antes, tem seu início quando nos fixamos

88

Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 43. 89

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.9), p. 23. 90

“Não se pode duvidar de que um dos mais tormentosos pecados e tentações que asse-diam o cristão mediano é a tendência de examinar-se de maneira errada. (...) Você é in-

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em Deus contemplando a Sua majestade e, partindo daí, voltamos para nós mesmos e, assim, percebemos o quanto somos carentes de Sua graça.

7. Cultivar o espírito de humildade: “Ninguém possui coisa alguma, em seus próprios recursos, que o faça superior; portanto, quem quer que se po-nha num nível mais elevado não passa de imbecil e impertinente. A ge-nuína base da humildade cristã consiste, de um lado, em não ser pre-sumido, porque sabemos que nada possuímos de bom em nós mesmos; e, de outro, se Deus implantou algum bem em nós, que o mesmo seja, por esta Razão, totalmente debitado à conta da divina graça”.91

8. O Reino de Deus (= Reino dos Céus),92 o governo soberano de Deus sobre to-das as coisas, envolve todas as bênçãos espirituais e materiais relativas à nos-sa salvação e ao nosso bem-estar. Os pobres em espírito são aqueles que têm o Reino porque estes sabem que tudo que são e têm pertence a Deus, o Se-nhor eterno. Portanto, recebem com alegria o seu reinado, participando, deste modo, da vida de Seu Reino.

9. Os pobres em espírito já participam das bênçãos do Reino (Mt 5.3). No entan-to, aguardam e oram pela sua plena manifestação. “Nós estamos no Reino e, mesmo assim, aguardamos sua manifestação completa; nós comparti-lhamos de suas bênçãos mas ainda aguardamos sua vitória total; nós agradecemos a Deus por ter-nos trazido para o Reino do Filho que Ele ama, e ainda assim continuamos a orar: ‘Venha o teu reino’.”93

10. A nossa eleição eterna em Cristo revela a riqueza da graça de Deus e a nossa total carência de misericórdia: “Ouvi, meus amados irmãos. Não esco-lheu (e)kle/gomai) Deus os que para o mundo são pobres (ptwxo/j), para se-rem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam?” (Tg 2.5). A nossa bem aventurada pobreza em espírito se revela em gratidão a Deus.

11. O Cristianismo apresenta respostas às mais inquietantes perguntas do ser humano. As suas propostas se forem levadas a sério se constituem em verda-des conflitantes com os valores hodiernos. No entanto, a seriedade das reivin-dicações bíblicas se constitui ‒ de modo bastante elucidativa no Sermão do Monte ‒ na alternativa divina para a “desordem do homem”. A genuína teologia cristã é compreensível, transformadora e operante. A Igreja como manifesta-

trospectivo quando passa o tempo todo olhando para si mesmo, olhando para dentro de si e preocupado única e supremamente consigo mesmo” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a E-ternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 86). 91

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.7), p. 134-135. 92

Sobre a similaridade das expressões “Reino de Deus” e “Reino dos Céus”, veja-se: A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 62. 93

A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 72. “A vinda do reino de Deus representa o estágio final da redenção cósmica no qual Deus e as suas criaturas habitam em harmonia, justiça e deleite. Na realidade, a ‘vinda do reino de Deus’ é apenas a forma neotestamentária de escrever shalom” (Cornelius Plantinga Jr., O Crente no Mundo de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 107).

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ção histórica do Reino é desafiada a apresentar em sua fé operante94 (práxis)95 a eficácia da ética de Jesus Cristo e, a demonstrar o quanto a Igreja leva a sé-rio o Seu Senhor.

Maringá, 24 de fevereiro de 2012.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa [email protected]

www.hermisten.blogspot.com

94

Paulo fala da operosidade da fé (1Ts 1.3). 95

Jeremias denomina isso de “fé vivencial” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 57).