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Intelectu no 8 - Maio de 2003 Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II (aspectos históricos) Sofia Miguens Resumo: A história esquemática da teoria da mente e do conhecimento que a seguir se apresenta - necessariamente parcial na escolha de marcos temporais fulcrais - é orientada pelas seguintes questões: 1. Que sentido(s) tem a ideia de mente e como é que esse(s) sentido(s) determinam a teoria do conhecimento? 2. Como pôde surgir historicamente a ideia de 'mente' como 'esfera interna de observação de ideias' por oposição a um mundo 'externo'? 3. Como pôde surgir a ideia de uma 'Teoria do Conhecimento' como disciplina separada e independente do próprio conhecimento (nomeadamente do conhecimento científico)?br> 4. Como pôde surgir a ideia segundo a qual o núcleo da filosofia seria a epistemologia (i.e. a teoria do conhecimento) (1) ? 5. Qual foi a importância de Kant na promoção da ideia de filosofia como teoria do conhecimento? Em que consiste o programa transcendental kantiano em teoria do conhecimento? 6. Qual foi o contexto histórico da separação entre filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia analítica e filosofia continental? Quais são as origens da filosofia analítica? 8. Sendo o empirismo clássico (dos séculos XVII/ XVIII) uma das origens da filosofia analítica, como veio a acontecer a crítica aos 'dogmas do empirismo' dentro da própria filosofia analítica? 9. Qual foi a importância de Quine na crítica ao empirismo? 10. O que justifica o programa quineano de naturalização da epistemologia? 11. Que importância tem o argumento wittgensteiniano da linguagem privada na teoria da mente? 12. Que argumentos apresentam respectivamente Quine e Wittgenstein a favor do holismo?

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Intelectu no 8 - Maio de 2003

Introduccedilatildeo agrave Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II (aspectos histoacutericos) Sofia Miguens

Resumo A histoacuteria esquemaacutetica da teoria da mente e do conhecimento que a seguir se apresenta -necessariamente parcial na escolha de marcos temporais fulcrais - eacute orientada pelas seguintes questotildees

1 Que sentido(s) tem a ideia de mente e como eacute que esse(s) sentido(s) determinam a teoria do conhecimento 2 Como pocircde surgir historicamente a ideia de mente como esfera interna de observaccedilatildeo de ideias por oposiccedilatildeo a um mundo externo 3 Como pocircde surgir a ideia de uma Teoria do Conhecimento como disciplina separada e independente do proacuteprio conhecimento (nomeadamente do conhecimento cientiacutefico)brgt 4 Como pocircde surgir a ideia segundo a qual o nuacutecleo da filosofia seria a epistemologia (ie a teoria do conhecimento) (1) 5 Qual foi a importacircncia de Kant na promoccedilatildeo da ideia de filosofia como teoria do conhecimento Em que consiste o programa transcendental kantiano em teoria do conhecimento 6 Qual foi o contexto histoacuterico da separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias 7 Como se deu o afastamento entre filosofia analiacutetica e filosofia continental Quais satildeo as origens da filosofia analiacutetica 8 Sendo o empirismo claacutessico (dos seacuteculos XVII XVIII) uma das origens da filosofia analiacutetica como veio a acontecer a criacutetica aos dogmas do empirismo dentro da proacutepria filosofia analiacutetica 9 Qual foi a importacircncia de Quine na criacutetica ao empirismo 10 O que justifica o programa quineano de naturalizaccedilatildeo da epistemologia 11 Que importacircncia tem o argumento wittgensteiniano da linguagem privada na teoria da mente 12 Que argumentos apresentam respectivamente Quine e Wittgenstein a favor do holismo

Introduccedilatildeo

Ao longo da histoacuteria do pensamento vaacuterias teorias da mente espiacuterito ou alma foram apresentadas como parte integrante de teorias do conhecimento Frequentemente na origem da procura do conhecimento pelo espiacuterito foi apontada uma motivaccedilatildeo eacutetica Falar-se-aacute nesses casos de motores eacuteticos do conhecimento Seratildeo apresentados neste texto apenas alguns exemplos de teorias da mente espiacuterito ou alma associadas a teorias do conhecimento

1 Os gregos e a theoria

De acordo com a teoria platoacutenica da reminiscecircncia a alma faz parte do Mundo Inteligiacutevel e o seu ser de outro mundo revela-se precisamente pela capacidade de conhecer O conhecimento eacute considerado como a via para a purificaccedilatildeo (catharsis) para a separaccedilatildeo da alma (psychecirc) em relaccedilatildeo ao corpo (soma) que eacute o tuacutemulo ou prisatildeo da alma neste mundo O motor eacutetico do conhecimento eacute portanto segundo Platatildeo (c 429 - 347 aC) a purificaccedilatildeo

Para Aristoacuteteles (384 - 322 aC) conhecer alguma coisa eacute conhecer a sua razatildeo ou causa e poder assim inseri-la na ordem da expressatildeo loacutegica (silogiacutestica) concebida como explicitaccedilatildeo das razotildees reais Todos os homens tecircm por natureza o desejo de conhecer - assim se inicia o Livro I da Metafiacutesica No entanto segundo Aristoacuteteles aqueles por entre os homens que procuram o conhecer pelo conhecer ie que procuram o conhecimento como um fim em si e natildeo como um meio para qualquer outra finalidade procuraratildeo a filosofia que eacute a ciecircncia das causas primeiras e dos princiacutepios das coisas Aristoacuteteles considera que o tipo de conhecimento a que chama episteme um saber teoacuterico que demonstra as coisas a partir dos seus princiacutepios ou causas eacute superior agrave empeiria (experiecircncia) e agrave technecirc (a arte o saber fazer) Esse tipo de saber o saber teoacuterico a que poderiacuteamos chamar ciecircncia soacute pocircde existir segundo Aristoacuteteles quando jaacute existia quase tudo o que eacute indispensaacutevel ao bem estar e agrave comodidade Para Aristoacuteteles eacute por isso evidente que o conhecimento teoacuterico natildeo eacute procurado por qualquer interesse extriacutenseco aquilo que leva os homens a procurar conhecimento teoacuterico natildeo pode ser da ordem das necessidades O que se passa eacute antes o seguinte

assim como chamamos homem livre ao que pertence a si mesmo e natildeo tem dono da mesma maneira este conhecimento eacute o uacutenico entre todos os conhecimentos que merece o nome de livre (Metafiacutesica Livro I) O conhecimento teoacuterico conhecimento das causas seria portanto um fim em si e nesse sentido livre manifestaccedilatildeo da liberdade de quem o procura A liberdade seria portanto o motor eacutetico do conhecimento (de tipo superior) segundo Aristoacuteteles

Considerando os esforccedilos que filoacutesofos gregos como Platatildeo e Aristoacuteteles fizeram no sentido de produzir uma teoria do conhecimento R Rorty defende no entanto em A Filosofia e o Espelho da Natureza que o problema do conhecimento que eles enfrentavam natildeo era uma forma universal e intemporal do problema do conhecimento mas sim um problema muito especiacutefico O problema do conhecimento para os gregos era o Problema da Razatildeo um problema gerado pelo facto de aparentemente soacute os humanos manterem relaccedilotildees com o invisiacutevel no sentido em que apenas os humanos parecem poder conceber o imutaacutevel para aleacutem da mudanccedila conhecer as causas das coisas e o universal para aleacutem do particular Ora segundo Rorty Nunca se teria pensado na existecircncia de um problema da natureza da razatildeo se a nossa raccedila se tivesse limitado a apontar estados particulares de coisas - prevenccedilotildees de abismos escarpados e da chuva celebraccedilatildeo dos nascimentos e mortes individuais Mas a poesia fala do Homem do nascimento e da morte como tais e a matemaacutetica orgulha-se de deixar passar os detalhes individuais Quando a poesia e a matemaacutetica alcanccedilaram a auto-consciecircncia () havia chegado a altura de dizer algo em geral acerca do conhecimento dos universais A filosofia empreendeu o exame da diferenccedila entre saber-se da existecircncia de fileiras paralelas de montanhas para ocidente e saber que linhas paralelas estendidas ateacute ao infinito nunca se encontram a diferenccedila entre saber-se que Soacutecrates era bom e saber-se o que era a bondade (Rorty 1988 40) Segundo Rorty teria sido para dar resposta a estas questotildees que nasceu a ideia de theoria como visatildeo do invisiacutevel sendo o invisiacutevel os objectos do intelecto Estes estariam para a theoria como os objectos visiacuteveis para os olhos fiacutesicos A palavra theoria eacute aliaacutes uma metaacutefora visual para conhecimento uma ideia surgida por analogia com a capacidade fiacutesica de ver A ideia de theoria justifica a capacidade humana de pensar o geral e o universal para aleacutem do particular de pensar o eterno para aleacutem da mudanccedila Esta capacidade seria por metaacutefora uma visatildeo do invisiacutevel com os olhos do

espiacuterito

A ideia filosoacutefica de theoria como visatildeo do invisiacutevel veio ligar-se a consideraccedilotildees acerca da imortalidade da alma que eram jaacute muito antes vulgares nas religiotildees Essas consideraccedilotildees religiosas respondiam segundo Rorty a um outro problema relativo agrave mente ou alma o Problema da Personalidade (e natildeo ao muito diferente e muito mais intelectual e restrito Problema da Razatildeo) O problema da personalidade consiste em questotildees como Seraacute que eu sou mais do que carne Seraacute que eu sou mais do que este corpo Seraacute por isso que os humanos satildeo mais dignos do que quaisquer outros seres Assim a alma enquanto imaterial-porque-capaz-de-contemplar-universais tornou-se a resposta do filoacutesofo ocidental agrave pergunta Porque eacute que o homem eacute uacutenico durante dois mil anos (Rorty 198843)

Eacute importante notar (nomeadamente para efeitos de comparaccedilatildeo com a ideia cartesiana de mente apresentada em seguida) que nas teorias do conhecimento de Platatildeo e de Aristoacuteteles a percepccedilatildeo sensorial fica do lado daquilo que eacute feito pelo corpo natildeo envolvendo qualquer visatildeo do invisiacutevel ao contraacuterio do conhecimento dos universais A junccedilatildeo das percepccedilotildees e das sensaccedilotildees ao conhecimento dos universais na mente considerada como esfera interior uacutenica dependeraacute da particular contribuiccedilatildeo de Descartes para aquilo a que Rorty chama A invenccedilatildeo da mente cujo primeiro passo grego teria sido a invenccedilatildeo da theoria O nuacutecleo da contribuiccedilatildeo cartesiana para a ideia de mente eacute a ideia segundo a qual nada eacute melhor conhecido pela mente do que ela proacutepria Para Rorty este seraacute o ponto de junccedilatildeo do Problema da Consciecircncia aos dois problemas anteriores A consciecircncia eacute qualquer coisa difiacutecil de inserir nas teorias antigas e medievais do conhecimento natildeo se identificando nem com a visatildeo dos universais nem com a alma imortal que perdura para aleacutem do corpo

2 Descartes a consciecircncia e as ideias O idealismo e a modernidade

A mente de que Descartes (1596-1650) fala eacute uma mente des-naturalizada Descartes definiu a mente como consciecircncia imediatidade do pensamento de si a si Pocircde assim incluir entre os objectos mentais desde a dor ateacute deus (que parentesco encontraria Descartes entre Deus uma sensaccedilatildeo visual uma dor e a ideia de nuacutemero a natildeo ser que todos satildeo seres para a consciecircncia subjectiva (2) )

Eacute a mente enquanto consciecircncia que constituiraacute a esfera das ideias Em Descartes uma Ideia eacute por definiccedilatildeo aquilo que estaacute em noacutes de tal modo que dele temos imediatamente consciecircncia A ideia moderna de ideia (por oposiccedilatildeo agrave ideia claacutessica por exemplo platoacutenica de Ideia como ser do Mundo Inteligiacutevel) estaacute assim dependente da definiccedilatildeo da mente como consciecircncia As ideias existem na consciecircncia

O problema da definiccedilatildeo cartesiana da mente como consciecircncia eacute que a consciecircncia aleacutem de ser uma maneira de pensar sobre o pensamento como imediatidade de si a si e como indubitabilidade parece ser uma caracteriacutestica bioloacutegica que aproxima os homens dos animais ao contraacuterio do que sucedia com a razatildeo dos gregos definida como capacidade de conhecer os universais e as causas das coisas exclusiva dos humanos Os animais natildeo satildeo capazes de razatildeo no sentido grego mas eles parecem ser dotados de consciecircncia Entatildeo eles teratildeo ou natildeo teratildeo mente Esta ambiguidade seraacute a fonte de muitos dos problemas herdados da noccedilatildeo cartesiana de mente

Uma vez definida a mente como arena interna e lugar das Ideias consideradas estas como seres subjectivos seres para a consciecircncia estaacute criado o espaccedilo para uma teoria do conhecimento centrada na procura da certeza O motor eacutetico da busca do conhecimento no quadro cartesiano eacute o ideal da certeza Esta traz a acepccedilatildeo de assentimento subjectivo para a noccedilatildeo de verdade Este assentimento subjectivo natildeo eacute um componente necessaacuterio de qualquer ideia de verdade A certeza eacute a verdade pensada como verdade para um sujeito a verdade pensada como indubitabilidade Esta presenccedila do sujeito que eacute a marca cartesiana moderna incipientemente idealista na teoria do conhecimento e da realidade natildeo tem anaacutelogo nas anaacutelises platoacutenicas e aristoteacutelicas do conhecimento A indubitabilidade cartesiana das Ideias jaacute natildeo eacute uma marca de eternidade como o tinham sido os universais para os filoacutesofos gregos mas sim a marca de algo para o qual os gregos natildeo tinham nome a consciecircncia a presenccedila da subjectividade naquilo que eacute pensado Esta presenccedila da subjectividade corresponde como se pode verificar na leitura das Meditaccedilotildees cartesianas agrave introduccedilatildeo no proacuteprio texto filosoacutefico de uma abordagem em primeira pessoa uma primeira pessoa generalizaacutevel (ie que cada um de noacutes pode assumir) Este movimento central nos textos metafiacutesicos baacutesicos como as Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira (1641) coloca

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 2: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

Introduccedilatildeo

Ao longo da histoacuteria do pensamento vaacuterias teorias da mente espiacuterito ou alma foram apresentadas como parte integrante de teorias do conhecimento Frequentemente na origem da procura do conhecimento pelo espiacuterito foi apontada uma motivaccedilatildeo eacutetica Falar-se-aacute nesses casos de motores eacuteticos do conhecimento Seratildeo apresentados neste texto apenas alguns exemplos de teorias da mente espiacuterito ou alma associadas a teorias do conhecimento

1 Os gregos e a theoria

De acordo com a teoria platoacutenica da reminiscecircncia a alma faz parte do Mundo Inteligiacutevel e o seu ser de outro mundo revela-se precisamente pela capacidade de conhecer O conhecimento eacute considerado como a via para a purificaccedilatildeo (catharsis) para a separaccedilatildeo da alma (psychecirc) em relaccedilatildeo ao corpo (soma) que eacute o tuacutemulo ou prisatildeo da alma neste mundo O motor eacutetico do conhecimento eacute portanto segundo Platatildeo (c 429 - 347 aC) a purificaccedilatildeo

Para Aristoacuteteles (384 - 322 aC) conhecer alguma coisa eacute conhecer a sua razatildeo ou causa e poder assim inseri-la na ordem da expressatildeo loacutegica (silogiacutestica) concebida como explicitaccedilatildeo das razotildees reais Todos os homens tecircm por natureza o desejo de conhecer - assim se inicia o Livro I da Metafiacutesica No entanto segundo Aristoacuteteles aqueles por entre os homens que procuram o conhecer pelo conhecer ie que procuram o conhecimento como um fim em si e natildeo como um meio para qualquer outra finalidade procuraratildeo a filosofia que eacute a ciecircncia das causas primeiras e dos princiacutepios das coisas Aristoacuteteles considera que o tipo de conhecimento a que chama episteme um saber teoacuterico que demonstra as coisas a partir dos seus princiacutepios ou causas eacute superior agrave empeiria (experiecircncia) e agrave technecirc (a arte o saber fazer) Esse tipo de saber o saber teoacuterico a que poderiacuteamos chamar ciecircncia soacute pocircde existir segundo Aristoacuteteles quando jaacute existia quase tudo o que eacute indispensaacutevel ao bem estar e agrave comodidade Para Aristoacuteteles eacute por isso evidente que o conhecimento teoacuterico natildeo eacute procurado por qualquer interesse extriacutenseco aquilo que leva os homens a procurar conhecimento teoacuterico natildeo pode ser da ordem das necessidades O que se passa eacute antes o seguinte

assim como chamamos homem livre ao que pertence a si mesmo e natildeo tem dono da mesma maneira este conhecimento eacute o uacutenico entre todos os conhecimentos que merece o nome de livre (Metafiacutesica Livro I) O conhecimento teoacuterico conhecimento das causas seria portanto um fim em si e nesse sentido livre manifestaccedilatildeo da liberdade de quem o procura A liberdade seria portanto o motor eacutetico do conhecimento (de tipo superior) segundo Aristoacuteteles

Considerando os esforccedilos que filoacutesofos gregos como Platatildeo e Aristoacuteteles fizeram no sentido de produzir uma teoria do conhecimento R Rorty defende no entanto em A Filosofia e o Espelho da Natureza que o problema do conhecimento que eles enfrentavam natildeo era uma forma universal e intemporal do problema do conhecimento mas sim um problema muito especiacutefico O problema do conhecimento para os gregos era o Problema da Razatildeo um problema gerado pelo facto de aparentemente soacute os humanos manterem relaccedilotildees com o invisiacutevel no sentido em que apenas os humanos parecem poder conceber o imutaacutevel para aleacutem da mudanccedila conhecer as causas das coisas e o universal para aleacutem do particular Ora segundo Rorty Nunca se teria pensado na existecircncia de um problema da natureza da razatildeo se a nossa raccedila se tivesse limitado a apontar estados particulares de coisas - prevenccedilotildees de abismos escarpados e da chuva celebraccedilatildeo dos nascimentos e mortes individuais Mas a poesia fala do Homem do nascimento e da morte como tais e a matemaacutetica orgulha-se de deixar passar os detalhes individuais Quando a poesia e a matemaacutetica alcanccedilaram a auto-consciecircncia () havia chegado a altura de dizer algo em geral acerca do conhecimento dos universais A filosofia empreendeu o exame da diferenccedila entre saber-se da existecircncia de fileiras paralelas de montanhas para ocidente e saber que linhas paralelas estendidas ateacute ao infinito nunca se encontram a diferenccedila entre saber-se que Soacutecrates era bom e saber-se o que era a bondade (Rorty 1988 40) Segundo Rorty teria sido para dar resposta a estas questotildees que nasceu a ideia de theoria como visatildeo do invisiacutevel sendo o invisiacutevel os objectos do intelecto Estes estariam para a theoria como os objectos visiacuteveis para os olhos fiacutesicos A palavra theoria eacute aliaacutes uma metaacutefora visual para conhecimento uma ideia surgida por analogia com a capacidade fiacutesica de ver A ideia de theoria justifica a capacidade humana de pensar o geral e o universal para aleacutem do particular de pensar o eterno para aleacutem da mudanccedila Esta capacidade seria por metaacutefora uma visatildeo do invisiacutevel com os olhos do

espiacuterito

A ideia filosoacutefica de theoria como visatildeo do invisiacutevel veio ligar-se a consideraccedilotildees acerca da imortalidade da alma que eram jaacute muito antes vulgares nas religiotildees Essas consideraccedilotildees religiosas respondiam segundo Rorty a um outro problema relativo agrave mente ou alma o Problema da Personalidade (e natildeo ao muito diferente e muito mais intelectual e restrito Problema da Razatildeo) O problema da personalidade consiste em questotildees como Seraacute que eu sou mais do que carne Seraacute que eu sou mais do que este corpo Seraacute por isso que os humanos satildeo mais dignos do que quaisquer outros seres Assim a alma enquanto imaterial-porque-capaz-de-contemplar-universais tornou-se a resposta do filoacutesofo ocidental agrave pergunta Porque eacute que o homem eacute uacutenico durante dois mil anos (Rorty 198843)

Eacute importante notar (nomeadamente para efeitos de comparaccedilatildeo com a ideia cartesiana de mente apresentada em seguida) que nas teorias do conhecimento de Platatildeo e de Aristoacuteteles a percepccedilatildeo sensorial fica do lado daquilo que eacute feito pelo corpo natildeo envolvendo qualquer visatildeo do invisiacutevel ao contraacuterio do conhecimento dos universais A junccedilatildeo das percepccedilotildees e das sensaccedilotildees ao conhecimento dos universais na mente considerada como esfera interior uacutenica dependeraacute da particular contribuiccedilatildeo de Descartes para aquilo a que Rorty chama A invenccedilatildeo da mente cujo primeiro passo grego teria sido a invenccedilatildeo da theoria O nuacutecleo da contribuiccedilatildeo cartesiana para a ideia de mente eacute a ideia segundo a qual nada eacute melhor conhecido pela mente do que ela proacutepria Para Rorty este seraacute o ponto de junccedilatildeo do Problema da Consciecircncia aos dois problemas anteriores A consciecircncia eacute qualquer coisa difiacutecil de inserir nas teorias antigas e medievais do conhecimento natildeo se identificando nem com a visatildeo dos universais nem com a alma imortal que perdura para aleacutem do corpo

2 Descartes a consciecircncia e as ideias O idealismo e a modernidade

A mente de que Descartes (1596-1650) fala eacute uma mente des-naturalizada Descartes definiu a mente como consciecircncia imediatidade do pensamento de si a si Pocircde assim incluir entre os objectos mentais desde a dor ateacute deus (que parentesco encontraria Descartes entre Deus uma sensaccedilatildeo visual uma dor e a ideia de nuacutemero a natildeo ser que todos satildeo seres para a consciecircncia subjectiva (2) )

Eacute a mente enquanto consciecircncia que constituiraacute a esfera das ideias Em Descartes uma Ideia eacute por definiccedilatildeo aquilo que estaacute em noacutes de tal modo que dele temos imediatamente consciecircncia A ideia moderna de ideia (por oposiccedilatildeo agrave ideia claacutessica por exemplo platoacutenica de Ideia como ser do Mundo Inteligiacutevel) estaacute assim dependente da definiccedilatildeo da mente como consciecircncia As ideias existem na consciecircncia

O problema da definiccedilatildeo cartesiana da mente como consciecircncia eacute que a consciecircncia aleacutem de ser uma maneira de pensar sobre o pensamento como imediatidade de si a si e como indubitabilidade parece ser uma caracteriacutestica bioloacutegica que aproxima os homens dos animais ao contraacuterio do que sucedia com a razatildeo dos gregos definida como capacidade de conhecer os universais e as causas das coisas exclusiva dos humanos Os animais natildeo satildeo capazes de razatildeo no sentido grego mas eles parecem ser dotados de consciecircncia Entatildeo eles teratildeo ou natildeo teratildeo mente Esta ambiguidade seraacute a fonte de muitos dos problemas herdados da noccedilatildeo cartesiana de mente

Uma vez definida a mente como arena interna e lugar das Ideias consideradas estas como seres subjectivos seres para a consciecircncia estaacute criado o espaccedilo para uma teoria do conhecimento centrada na procura da certeza O motor eacutetico da busca do conhecimento no quadro cartesiano eacute o ideal da certeza Esta traz a acepccedilatildeo de assentimento subjectivo para a noccedilatildeo de verdade Este assentimento subjectivo natildeo eacute um componente necessaacuterio de qualquer ideia de verdade A certeza eacute a verdade pensada como verdade para um sujeito a verdade pensada como indubitabilidade Esta presenccedila do sujeito que eacute a marca cartesiana moderna incipientemente idealista na teoria do conhecimento e da realidade natildeo tem anaacutelogo nas anaacutelises platoacutenicas e aristoteacutelicas do conhecimento A indubitabilidade cartesiana das Ideias jaacute natildeo eacute uma marca de eternidade como o tinham sido os universais para os filoacutesofos gregos mas sim a marca de algo para o qual os gregos natildeo tinham nome a consciecircncia a presenccedila da subjectividade naquilo que eacute pensado Esta presenccedila da subjectividade corresponde como se pode verificar na leitura das Meditaccedilotildees cartesianas agrave introduccedilatildeo no proacuteprio texto filosoacutefico de uma abordagem em primeira pessoa uma primeira pessoa generalizaacutevel (ie que cada um de noacutes pode assumir) Este movimento central nos textos metafiacutesicos baacutesicos como as Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira (1641) coloca

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 3: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

assim como chamamos homem livre ao que pertence a si mesmo e natildeo tem dono da mesma maneira este conhecimento eacute o uacutenico entre todos os conhecimentos que merece o nome de livre (Metafiacutesica Livro I) O conhecimento teoacuterico conhecimento das causas seria portanto um fim em si e nesse sentido livre manifestaccedilatildeo da liberdade de quem o procura A liberdade seria portanto o motor eacutetico do conhecimento (de tipo superior) segundo Aristoacuteteles

Considerando os esforccedilos que filoacutesofos gregos como Platatildeo e Aristoacuteteles fizeram no sentido de produzir uma teoria do conhecimento R Rorty defende no entanto em A Filosofia e o Espelho da Natureza que o problema do conhecimento que eles enfrentavam natildeo era uma forma universal e intemporal do problema do conhecimento mas sim um problema muito especiacutefico O problema do conhecimento para os gregos era o Problema da Razatildeo um problema gerado pelo facto de aparentemente soacute os humanos manterem relaccedilotildees com o invisiacutevel no sentido em que apenas os humanos parecem poder conceber o imutaacutevel para aleacutem da mudanccedila conhecer as causas das coisas e o universal para aleacutem do particular Ora segundo Rorty Nunca se teria pensado na existecircncia de um problema da natureza da razatildeo se a nossa raccedila se tivesse limitado a apontar estados particulares de coisas - prevenccedilotildees de abismos escarpados e da chuva celebraccedilatildeo dos nascimentos e mortes individuais Mas a poesia fala do Homem do nascimento e da morte como tais e a matemaacutetica orgulha-se de deixar passar os detalhes individuais Quando a poesia e a matemaacutetica alcanccedilaram a auto-consciecircncia () havia chegado a altura de dizer algo em geral acerca do conhecimento dos universais A filosofia empreendeu o exame da diferenccedila entre saber-se da existecircncia de fileiras paralelas de montanhas para ocidente e saber que linhas paralelas estendidas ateacute ao infinito nunca se encontram a diferenccedila entre saber-se que Soacutecrates era bom e saber-se o que era a bondade (Rorty 1988 40) Segundo Rorty teria sido para dar resposta a estas questotildees que nasceu a ideia de theoria como visatildeo do invisiacutevel sendo o invisiacutevel os objectos do intelecto Estes estariam para a theoria como os objectos visiacuteveis para os olhos fiacutesicos A palavra theoria eacute aliaacutes uma metaacutefora visual para conhecimento uma ideia surgida por analogia com a capacidade fiacutesica de ver A ideia de theoria justifica a capacidade humana de pensar o geral e o universal para aleacutem do particular de pensar o eterno para aleacutem da mudanccedila Esta capacidade seria por metaacutefora uma visatildeo do invisiacutevel com os olhos do

espiacuterito

A ideia filosoacutefica de theoria como visatildeo do invisiacutevel veio ligar-se a consideraccedilotildees acerca da imortalidade da alma que eram jaacute muito antes vulgares nas religiotildees Essas consideraccedilotildees religiosas respondiam segundo Rorty a um outro problema relativo agrave mente ou alma o Problema da Personalidade (e natildeo ao muito diferente e muito mais intelectual e restrito Problema da Razatildeo) O problema da personalidade consiste em questotildees como Seraacute que eu sou mais do que carne Seraacute que eu sou mais do que este corpo Seraacute por isso que os humanos satildeo mais dignos do que quaisquer outros seres Assim a alma enquanto imaterial-porque-capaz-de-contemplar-universais tornou-se a resposta do filoacutesofo ocidental agrave pergunta Porque eacute que o homem eacute uacutenico durante dois mil anos (Rorty 198843)

Eacute importante notar (nomeadamente para efeitos de comparaccedilatildeo com a ideia cartesiana de mente apresentada em seguida) que nas teorias do conhecimento de Platatildeo e de Aristoacuteteles a percepccedilatildeo sensorial fica do lado daquilo que eacute feito pelo corpo natildeo envolvendo qualquer visatildeo do invisiacutevel ao contraacuterio do conhecimento dos universais A junccedilatildeo das percepccedilotildees e das sensaccedilotildees ao conhecimento dos universais na mente considerada como esfera interior uacutenica dependeraacute da particular contribuiccedilatildeo de Descartes para aquilo a que Rorty chama A invenccedilatildeo da mente cujo primeiro passo grego teria sido a invenccedilatildeo da theoria O nuacutecleo da contribuiccedilatildeo cartesiana para a ideia de mente eacute a ideia segundo a qual nada eacute melhor conhecido pela mente do que ela proacutepria Para Rorty este seraacute o ponto de junccedilatildeo do Problema da Consciecircncia aos dois problemas anteriores A consciecircncia eacute qualquer coisa difiacutecil de inserir nas teorias antigas e medievais do conhecimento natildeo se identificando nem com a visatildeo dos universais nem com a alma imortal que perdura para aleacutem do corpo

2 Descartes a consciecircncia e as ideias O idealismo e a modernidade

A mente de que Descartes (1596-1650) fala eacute uma mente des-naturalizada Descartes definiu a mente como consciecircncia imediatidade do pensamento de si a si Pocircde assim incluir entre os objectos mentais desde a dor ateacute deus (que parentesco encontraria Descartes entre Deus uma sensaccedilatildeo visual uma dor e a ideia de nuacutemero a natildeo ser que todos satildeo seres para a consciecircncia subjectiva (2) )

Eacute a mente enquanto consciecircncia que constituiraacute a esfera das ideias Em Descartes uma Ideia eacute por definiccedilatildeo aquilo que estaacute em noacutes de tal modo que dele temos imediatamente consciecircncia A ideia moderna de ideia (por oposiccedilatildeo agrave ideia claacutessica por exemplo platoacutenica de Ideia como ser do Mundo Inteligiacutevel) estaacute assim dependente da definiccedilatildeo da mente como consciecircncia As ideias existem na consciecircncia

O problema da definiccedilatildeo cartesiana da mente como consciecircncia eacute que a consciecircncia aleacutem de ser uma maneira de pensar sobre o pensamento como imediatidade de si a si e como indubitabilidade parece ser uma caracteriacutestica bioloacutegica que aproxima os homens dos animais ao contraacuterio do que sucedia com a razatildeo dos gregos definida como capacidade de conhecer os universais e as causas das coisas exclusiva dos humanos Os animais natildeo satildeo capazes de razatildeo no sentido grego mas eles parecem ser dotados de consciecircncia Entatildeo eles teratildeo ou natildeo teratildeo mente Esta ambiguidade seraacute a fonte de muitos dos problemas herdados da noccedilatildeo cartesiana de mente

Uma vez definida a mente como arena interna e lugar das Ideias consideradas estas como seres subjectivos seres para a consciecircncia estaacute criado o espaccedilo para uma teoria do conhecimento centrada na procura da certeza O motor eacutetico da busca do conhecimento no quadro cartesiano eacute o ideal da certeza Esta traz a acepccedilatildeo de assentimento subjectivo para a noccedilatildeo de verdade Este assentimento subjectivo natildeo eacute um componente necessaacuterio de qualquer ideia de verdade A certeza eacute a verdade pensada como verdade para um sujeito a verdade pensada como indubitabilidade Esta presenccedila do sujeito que eacute a marca cartesiana moderna incipientemente idealista na teoria do conhecimento e da realidade natildeo tem anaacutelogo nas anaacutelises platoacutenicas e aristoteacutelicas do conhecimento A indubitabilidade cartesiana das Ideias jaacute natildeo eacute uma marca de eternidade como o tinham sido os universais para os filoacutesofos gregos mas sim a marca de algo para o qual os gregos natildeo tinham nome a consciecircncia a presenccedila da subjectividade naquilo que eacute pensado Esta presenccedila da subjectividade corresponde como se pode verificar na leitura das Meditaccedilotildees cartesianas agrave introduccedilatildeo no proacuteprio texto filosoacutefico de uma abordagem em primeira pessoa uma primeira pessoa generalizaacutevel (ie que cada um de noacutes pode assumir) Este movimento central nos textos metafiacutesicos baacutesicos como as Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira (1641) coloca

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 4: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

espiacuterito

A ideia filosoacutefica de theoria como visatildeo do invisiacutevel veio ligar-se a consideraccedilotildees acerca da imortalidade da alma que eram jaacute muito antes vulgares nas religiotildees Essas consideraccedilotildees religiosas respondiam segundo Rorty a um outro problema relativo agrave mente ou alma o Problema da Personalidade (e natildeo ao muito diferente e muito mais intelectual e restrito Problema da Razatildeo) O problema da personalidade consiste em questotildees como Seraacute que eu sou mais do que carne Seraacute que eu sou mais do que este corpo Seraacute por isso que os humanos satildeo mais dignos do que quaisquer outros seres Assim a alma enquanto imaterial-porque-capaz-de-contemplar-universais tornou-se a resposta do filoacutesofo ocidental agrave pergunta Porque eacute que o homem eacute uacutenico durante dois mil anos (Rorty 198843)

Eacute importante notar (nomeadamente para efeitos de comparaccedilatildeo com a ideia cartesiana de mente apresentada em seguida) que nas teorias do conhecimento de Platatildeo e de Aristoacuteteles a percepccedilatildeo sensorial fica do lado daquilo que eacute feito pelo corpo natildeo envolvendo qualquer visatildeo do invisiacutevel ao contraacuterio do conhecimento dos universais A junccedilatildeo das percepccedilotildees e das sensaccedilotildees ao conhecimento dos universais na mente considerada como esfera interior uacutenica dependeraacute da particular contribuiccedilatildeo de Descartes para aquilo a que Rorty chama A invenccedilatildeo da mente cujo primeiro passo grego teria sido a invenccedilatildeo da theoria O nuacutecleo da contribuiccedilatildeo cartesiana para a ideia de mente eacute a ideia segundo a qual nada eacute melhor conhecido pela mente do que ela proacutepria Para Rorty este seraacute o ponto de junccedilatildeo do Problema da Consciecircncia aos dois problemas anteriores A consciecircncia eacute qualquer coisa difiacutecil de inserir nas teorias antigas e medievais do conhecimento natildeo se identificando nem com a visatildeo dos universais nem com a alma imortal que perdura para aleacutem do corpo

2 Descartes a consciecircncia e as ideias O idealismo e a modernidade

A mente de que Descartes (1596-1650) fala eacute uma mente des-naturalizada Descartes definiu a mente como consciecircncia imediatidade do pensamento de si a si Pocircde assim incluir entre os objectos mentais desde a dor ateacute deus (que parentesco encontraria Descartes entre Deus uma sensaccedilatildeo visual uma dor e a ideia de nuacutemero a natildeo ser que todos satildeo seres para a consciecircncia subjectiva (2) )

Eacute a mente enquanto consciecircncia que constituiraacute a esfera das ideias Em Descartes uma Ideia eacute por definiccedilatildeo aquilo que estaacute em noacutes de tal modo que dele temos imediatamente consciecircncia A ideia moderna de ideia (por oposiccedilatildeo agrave ideia claacutessica por exemplo platoacutenica de Ideia como ser do Mundo Inteligiacutevel) estaacute assim dependente da definiccedilatildeo da mente como consciecircncia As ideias existem na consciecircncia

O problema da definiccedilatildeo cartesiana da mente como consciecircncia eacute que a consciecircncia aleacutem de ser uma maneira de pensar sobre o pensamento como imediatidade de si a si e como indubitabilidade parece ser uma caracteriacutestica bioloacutegica que aproxima os homens dos animais ao contraacuterio do que sucedia com a razatildeo dos gregos definida como capacidade de conhecer os universais e as causas das coisas exclusiva dos humanos Os animais natildeo satildeo capazes de razatildeo no sentido grego mas eles parecem ser dotados de consciecircncia Entatildeo eles teratildeo ou natildeo teratildeo mente Esta ambiguidade seraacute a fonte de muitos dos problemas herdados da noccedilatildeo cartesiana de mente

Uma vez definida a mente como arena interna e lugar das Ideias consideradas estas como seres subjectivos seres para a consciecircncia estaacute criado o espaccedilo para uma teoria do conhecimento centrada na procura da certeza O motor eacutetico da busca do conhecimento no quadro cartesiano eacute o ideal da certeza Esta traz a acepccedilatildeo de assentimento subjectivo para a noccedilatildeo de verdade Este assentimento subjectivo natildeo eacute um componente necessaacuterio de qualquer ideia de verdade A certeza eacute a verdade pensada como verdade para um sujeito a verdade pensada como indubitabilidade Esta presenccedila do sujeito que eacute a marca cartesiana moderna incipientemente idealista na teoria do conhecimento e da realidade natildeo tem anaacutelogo nas anaacutelises platoacutenicas e aristoteacutelicas do conhecimento A indubitabilidade cartesiana das Ideias jaacute natildeo eacute uma marca de eternidade como o tinham sido os universais para os filoacutesofos gregos mas sim a marca de algo para o qual os gregos natildeo tinham nome a consciecircncia a presenccedila da subjectividade naquilo que eacute pensado Esta presenccedila da subjectividade corresponde como se pode verificar na leitura das Meditaccedilotildees cartesianas agrave introduccedilatildeo no proacuteprio texto filosoacutefico de uma abordagem em primeira pessoa uma primeira pessoa generalizaacutevel (ie que cada um de noacutes pode assumir) Este movimento central nos textos metafiacutesicos baacutesicos como as Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira (1641) coloca

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 5: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

Eacute a mente enquanto consciecircncia que constituiraacute a esfera das ideias Em Descartes uma Ideia eacute por definiccedilatildeo aquilo que estaacute em noacutes de tal modo que dele temos imediatamente consciecircncia A ideia moderna de ideia (por oposiccedilatildeo agrave ideia claacutessica por exemplo platoacutenica de Ideia como ser do Mundo Inteligiacutevel) estaacute assim dependente da definiccedilatildeo da mente como consciecircncia As ideias existem na consciecircncia

O problema da definiccedilatildeo cartesiana da mente como consciecircncia eacute que a consciecircncia aleacutem de ser uma maneira de pensar sobre o pensamento como imediatidade de si a si e como indubitabilidade parece ser uma caracteriacutestica bioloacutegica que aproxima os homens dos animais ao contraacuterio do que sucedia com a razatildeo dos gregos definida como capacidade de conhecer os universais e as causas das coisas exclusiva dos humanos Os animais natildeo satildeo capazes de razatildeo no sentido grego mas eles parecem ser dotados de consciecircncia Entatildeo eles teratildeo ou natildeo teratildeo mente Esta ambiguidade seraacute a fonte de muitos dos problemas herdados da noccedilatildeo cartesiana de mente

Uma vez definida a mente como arena interna e lugar das Ideias consideradas estas como seres subjectivos seres para a consciecircncia estaacute criado o espaccedilo para uma teoria do conhecimento centrada na procura da certeza O motor eacutetico da busca do conhecimento no quadro cartesiano eacute o ideal da certeza Esta traz a acepccedilatildeo de assentimento subjectivo para a noccedilatildeo de verdade Este assentimento subjectivo natildeo eacute um componente necessaacuterio de qualquer ideia de verdade A certeza eacute a verdade pensada como verdade para um sujeito a verdade pensada como indubitabilidade Esta presenccedila do sujeito que eacute a marca cartesiana moderna incipientemente idealista na teoria do conhecimento e da realidade natildeo tem anaacutelogo nas anaacutelises platoacutenicas e aristoteacutelicas do conhecimento A indubitabilidade cartesiana das Ideias jaacute natildeo eacute uma marca de eternidade como o tinham sido os universais para os filoacutesofos gregos mas sim a marca de algo para o qual os gregos natildeo tinham nome a consciecircncia a presenccedila da subjectividade naquilo que eacute pensado Esta presenccedila da subjectividade corresponde como se pode verificar na leitura das Meditaccedilotildees cartesianas agrave introduccedilatildeo no proacuteprio texto filosoacutefico de uma abordagem em primeira pessoa uma primeira pessoa generalizaacutevel (ie que cada um de noacutes pode assumir) Este movimento central nos textos metafiacutesicos baacutesicos como as Meditaccedilotildees sobre a Filosofia Primeira (1641) coloca

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 6: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

a subjectividade no centro do pensamento do mundo Este eacute o geacutermen do que se chama historicamente idealismo (uma doutrina que afirma a natureza de alguma forma subjectiva mental ou espiritual da realidade) uma concepccedilatildeo que natildeo se encontra nem nos autores gregos nem nos medievais

Descartes decide portanto e eacute essa a marca que historicamente deixa na teoria da mente e do conhecimento que a consciecircncia ou indubitabilidade eacute a essecircncia da mente Do cogito ergo sum (penso logo existo) que daacute ao meditador (o eu qualquer) a sua primeira certeza Descartes infere res cogitans sum (eu sou uma essecircncia pensante) naquele que eacute para muitos o mais famoso non sequitur da histoacuteria do pensamento Desta situaccedilatildeo decorrem duas consequecircncias importantes Por um lado estabelece-se que a essecircncia pensante ou res cogitans natildeo eacute deste mundo (fiacutesico) Por outro lado cai a distinccedilatildeo entre aparecircnciarealidade ao niacutevel do mental uma vez que a consciecircncia eacute o seu proacuteprio aparecimento

Com estas bases metafiacutesicas Descartes propotildee um projecto epistemoloacutegico O cogito seraacute a fundaccedilatildeo segura para todo o edifiacutecio do conhecimento para todas as ciecircncias O cartesianismo eacute um exemplo claro de fundacionalismo (o fundacionalismo eacute a posiccedilatildeo em teoria do conhecimento que vecirc este como uma arquitectura que deve ter uma base totalmente segura) A consciecircncia colocada no centro do pensamento sobre o mundo proporciona assim aleacutem de uma arena interna que eacute o acircmbito das ideias um fundamento no mundo natildeo fiacutesico do conhecimento cientiacutefico do mundo fiacutesico Concebida como consciecircncia essecircncia natildeo fiacutesica a mente cartesiana comeccedila a possibilitar (na medida em que lhe oferece um campo) uma teoria do conhecimento concebida como procura apriorista de fundamentos A ideia de ideia propicia tambeacutem um novo domiacutenio para a teoria do conhecimento o estudo do veacuteu das ideias da zona de mediaccedilatildeo As ideias satildeo seres mediadores entre o sujeito e o mundo seres terceiros e a mente eacute um espaccedilo interno de quase-observaccedilatildeo dessas ideias trazidas perante o minds eye

3 Kant e o transcendentalismo A Teoria do Conhecimento como anaacutelise da forma a priori A filosofia poacutes-kantiana e a separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias A Razatildeo e o Romantismo

Eacute possiacutevel defender que apenas apoacutes o periacuteodo de

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 7: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

vida de Kant (1724-1804) uma separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias se instala mais definitivamente na vida intelectual Homens como Aristoacuteteles Descartes ou Leibniz eram indistintamente cientistas e filoacutesofos ocupados com toacutepicos que hoje considerariacuteamos claramente cientiacuteficos tais como a classificaccedilatildeo das espeacutecies de seres vivos a geometria analiacutetica e o caacutelculo infinitesimal Era precisamente o trabalho relativo a toacutepicos cientiacuteficos semelhantes que gerava a necessidade de elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica uma teoria geral da natureza da realidade

A separaccedilatildeo entre filosofia e ciecircncias que se pode constatar nos uacuteltimos duzentos anos mantem como vestiacutegio da anterior indistinccedilatildeo a ideia de que a filosofia eacute teoria do conhecimento diferente das ciecircncias mas relacionada com elas porque pensando sobre o seu fundamento sobre as suas condiccedilotildees de possibilidade A filosofia neste sentido eacute em geral concebida como Criacutetica exerciacutecio de um Tribunal da Razatildeo (ao qual se submete a razatildeo no seu uso natildeo apenas cientifico como tambeacutem moral e esteacutetico) Este eacute o estatuto kantiano da filosofia Aquilo que move o teoacuterico do conhecimento eacute a crenccedila na capacidade que a razatildeo tem de se analisar a si proacutepria encontrando-se aliaacutes a si mesma nos produtos do conhecimento agrave medida que procede a essa anaacutelise

Eacute neste quadro de anaacutelise da razatildeo pela razatildeo que se situa o programa kantiano em teoria do conhecimento Este eacute um programa transcendental Chama-se transcendental natildeo ao conhecimento em 1ordm grau (por exemplo matemaacutetico ou fiacutesico ou outro) mas agrave anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento jaacute possuiacutedo Essa anaacutelise faz-se segundo Kant investigando as condiccedilotildees a priori do sujeito A ideia de filosofia como anaacutelise das condiccedilotildees a priori substitui com Kant a ideia de filosofia como metafiacutesica transcendente Para Kant a metafiacutesica transcendente falhara ao procurar atingir de forma puramente conceptual e apriorista objectos que nunca poderiam ser dados na experiecircncia (objectos como Deus a Alma o Mundo)

A teoria das condiccedilotildees de possibilidade do conhecimento eacute entatildeo para Kant uma propedecircutica ou preparaccedilatildeo necessaacuteria agrave metafiacutesica se eacute que esta eacute possiacutevel Para Kant secirc-lo-aacute nomeadamente a partir da distinccedilatildeo estabelecida na teoria do conhecimento entre fenoacutemeno (o limite para o cognosciacutevel) e nuacutemeno Seraacute esta cisatildeo a deixar espaccedilo para teses essenciais agrave metafiacutesica kantiana

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 8: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

tais como existem acccedilotildees livres e existe um ser absolutamente necessaacuterio

Eacute importante sublinhar que o apriorismo defendido por Kant natildeo tem que ser um inatismo aquilo que existe a priori no sujeito a marca do sujeito naquilo que eacute conhecido natildeo eacute apanaacutegio de uma alma com ideias inatas (esta ideia eacute cartesiana e natildeo tem lugar na Criacutetica da Razatildeo Pura lida como teoria do conhecimento) Segundo Kant satildeo as estruturas a priori do espiacuterito que possibilitam a ciecircncia (considerada como conhecimento universal e necessaacuterio constituiacutedo por juiacutezos sinteacuteticos a priori) David Hume o empirista teve razatildeo segundo Kant ao considerar que a universalidade e a necessidade do conhecimento cientiacutefico natildeo poderiam provir da experiecircncia No entanto essas caracteriacutesticas estatildeo presentes no conhecimento E se elas estatildeo presentes soacute podem provir do sujeito Soacute as estruturas a priori do sujeito podem justificar o caraacutecter de ciecircncia dos enunciados da ciecircncia

De acordo com Rorty em A Filosofia e o Espelho da Natureza eacute com autores como Descartes e Kant que se configura a ideia de teoria do conhecimento e aquilo a que Rorty chama a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia Este acontecimento histoacuterico estaria assim ligado a Descartes que inventou a mente como uma esfera de interioridade imaterial desligada do mundo fiacutesico e a Kant que inventou o Tribunal da Razatildeo a filosofia definida como criacutetica por oposiccedilatildeo agrave produccedilatildeo directa de uma metafiacutesica

Esta tese de Rorty eacute contestaacutevel Em primeiro lugar a conjugaccedilatildeo dos projectos epistemoloacutegicos de Descartes e de Kant natildeo eacute simples (Kant eacute em inuacutemeros aspectos um anti-cartesiano por exemplo e centralmente Kant natildeo pensa que a alma seja uma substacircncia simples cognosciacutevel atraveacutes da auto-consciecircncia) Eacute contestaacutevel tambeacutem na medida em que a centraccedilatildeo epistemoloacutegica da filosofia a consideraccedilatildeo da ciecircncia como centro e a maior preocupaccedilatildeo para a filosofia centraccedilatildeo caracteriacutestica da eacutepoca moderna pode natildeo ser apenas um acontecimento da histoacuteria das ideias e como tal um efeito vulneraacutevel agrave luta das interpretaccedilotildees mas tambeacutem um resultado da atenccedilatildeo dos filoacutesofos ao mundo moderno De facto a modernidade como eacutepoca eacute marcada pelo advento da ciecircncia fiacutesico-matemaacutetica da natureza A ciecircncia eacute o modo de abordar o mundo que se tornou civilizacionalmente dominante a partir da eacutepoca moderna tanto que foi possiacutevel chamar agrave civilizaccedilatildeo ocidental a Civilizaccedilatildeo da Ciecircncia e da Teacutecnica O advento da ciecircncia foi

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 9: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

certamente um acontecimento histoacuterico contingente ie algo que poderia natildeo ter acontecido por mais que naturalmente atribuamos agrave ciecircncia hoje uma ligaccedilatildeo iacutentima com a verdade acerca do mundo Eacute de resto simples ver que fazer ciecircncia natildeo eacute o uacutenico modo de abordar o mundo e de o pensar (basta considerar por exemplo o quanto uma definiccedilatildeo religiosa de verdade propicia toda uma outra via de procura para o espiacuterito) A ideia de ciecircncia estaacute portanto ligada a uma particular noccedilatildeo de verdade por entre outras No entanto se a Modernidade eacute de algum modo definiacutevel conceptualmente como eacutepoca eacute porque ela representa a realizaccedilatildeo civilizacional dessa (nova) noccedilatildeo de verdade ligada ao progresso e agrave razatildeo atraveacutes da ciecircncia

O primeiro grande movimento de oposiccedilatildeo agrave centralidade da razatildeo na concepccedilatildeo de mundo centralidade defendida em termos ideoloacutegicos nomeadamente pelos iluministas foi o romantismo que esteve ligado ao idealismo em filosofia (3) O Romantismo foi um movimento cultural e artiacutestico contra-iluminista que representou uma fortiacutessima influecircncia na cultura europeia e americana nas uacuteltimas deacutecadas do seacuteculos XVIII e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX Mais do que exclusivamente um movimento artiacutestico o romantismo constituiu uma certa manifestaccedilatildeo global de rejeiccedilatildeo do pensamento racional cujo expoente seria o pensamento cientiacutefico considerado como abordagem por excelecircncia da realidade A racionalidade cientiacutefica eacute a partir desta perspectiva considerada como prosaica e des-espiritualizadora do mundo Curiosamente eacute em parte agrave filosofia kantiana que os romacircnticos vatildeo buscar a definiccedilatildeo de realidade como espiritualidade Daiacute passam no entanto para uma posiccedilatildeo de certa forma pouco kantiana a ideia segundo a qual a verdadeira realidade natildeo pode ser acedida de forma intelectualista mas apenas atraveacutes da intuiccedilatildeo da emoccedilatildeo do sentimento

A base dos traccedilos programaacuteticos do romantismo em arte - a exaltaccedilatildeo da natureza a expressatildeo dos sentimentos da emoccedilatildeo da intuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo o culto do exoacutetico - eacute uma determinada rejeiccedilatildeo da civilizaccedilatildeo enquanto relaccedilatildeo racional com o mundo Para os romacircnticos apenas acontecimentos de intuiccedilatildeo e de emoccedilatildeo e natildeo argumentos racionais nos daratildeo acesso ao eterno enigma do mundo Para fundamentar filosoficamente este programa os romacircnticos alematildees foram buscar a Kant a ideia de nuacutemeno ou realidade em si como liberdade Da ideia de liberdade ou vontade como realidade em si passaram agrave ideia de natureza como espiacuterito

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 10: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

aspirando agrave realizaccedilatildeo O caso mais extremo desta tendecircncia eacute a filosofia hegeliana do Espiacuterito Absoluto realizando-se na histoacuteria

4 Separaccedilatildeo definitiva O seacuteculo XIX e a vocaccedilatildeo histoacuterica e existencial da filosofia

A curta referecircncia ao romantismo teve como intenccedilatildeo sublinhar que a verdadeira cisatildeo histoacuterica entre a filosofia e as ciecircncias (quando considerada do lado da filosofia) se deu no periacuteodo posterior a Kant nomeadamente com o movimento contra-iluminista Essa separaccedilatildeo natildeo pode ser considerada consumada no proacuteprio Kant por mais que o transcendentalismo acentue a divisatildeo do trabalho entre os teoacutericos da forma e os teoacutericos do conteuacutedo do conhecimento (ie os filoacutesofos e os cientistas) A Criacutetica da Razatildeo Pura eacute uma obra de teoria da ciecircncia e de teoria do conhecimento mesmo se natildeo deve ser lida exclusivamente como tal

No entanto com um filoacutesofo como Hegel e com a sua ideia de filosofia (4) a separaccedilatildeo estaacute consumada Se olharmos para a histoacuteria da filosofia anterior ao seacuteculo XIX veremos inuacutemeros filoacutesofos-cientistas No seacuteculo XIX esse tipo intelectual comeccedilara a ser mais raro O desaparecimento da figura e uma certa ideia de filosofia como praacutetica mais ou menos poeacutetica e alusiva que entraraacute em cena estatildeo na origem da cisatildeo entre as duas grandes tradiccedilotildees filosoacuteficas contemporacircneas a filosofia analiacutetica tradiccedilatildeo dominante no mundo de liacutengua inglesa e a filosofia continental com origens sobretudo francesas e alematildes Sintomaacutetico da localizaccedilatildeo temporal dessa cisatildeo eacute o facto de Hegel ser considerado um grande filoacutesofo na tradiccedilatildeo continental enquanto os filoacutesofos analiacuteticos o consideram maioritariamente um autor obscuro e ilegiacutevel Kant pelo contraacuterio natildeo eacute objecto de um tal desdeacutem e consitui uma referecircncia para ambas as tradiccedilotildees

Apenas na filosofia anglo-saxoacutenica a teoria do conhecimento se manteve bastante viva no seacuteculo XIX (por exemplo com autores como John Stuart Mill e C S Peirce) Do lado da filosofia continental o seacuteculo XIX consumou o afastamento entre a filosofia e o pensamento cientiacutefico seu contemporacircneo Visto sob uma outra perspectiva nomeadamente eacutetica poliacutetica e existencial o seacuteculo XIX foi extremamente produtivo em filosofia foi a eacutepoca de Hegel e da sua filosofia do Espiacuterito que se manifesta dialeacutecticamente na histoacuteria de Marx o filoacutesofo da dialeacutectica invertida (ie materialista) criacutetico da alienaccedilatildeo e apoacutelogo da

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 11: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

revoluccedilatildeo de Nietzsche com a sua genealogia da moral e a sua criacutetica radical da nossa civilizaccedilatildeo de escravos de Kierkegaard e de Schopenhauer filoacutesofos do sentido da existecircncia Em suma foi a eacutepoca de uma filosofia mais eacutetica poliacutetica e existencial do que epistemoloacutegica nenhum destes homens foi (nem tinha que ter sido) um filoacutesofo-cientista Houve no entanto danos laterais do desvio existencial na praacutetica a filosofia nascida desta eacutepoca na tradiccedilatildeo franco-alematilde deu por si divorciada de um outro tipo de pensamento que continuava a decorrer ao seu lado e que se ia tornando social e civilizacionalmente cada vez mais omnipresente e incontornaacutevel o pensamento cientiacutefico

A filosofia hoje chamada continental (se por tal nome entendermos aquela que tem como figuras de referecircncia autores como Nietzsche Heidegger Foucault ou Derrida) estaacute longinquamente ligada agrave rejeiccedilatildeo da imagem racionalista do mundo que se observa neste periacuteodo

5 Filosofia analiacutetica e filosofia continental os herdeiros de Frege e Husserl

Apesar da reportaccedilatildeo ao movimento romacircntico de alguns dos factores que teriam estado na origem da cisatildeo entre filosofia analiacutetica e filosofia continental de facto a separaccedilatildeo de caminhos entre estas deu-se apoacutes o iniacutecio do seacuteculo XX com os herdeiros de G Frege (1848-1925) e E Husserl (1859-1938) O que eacute curioso eacute que estes dois autores cada um deles iniciador de linhagens metodoloacutegicas que se mantiveram ateacute hoje na filosofia continental e na filosofia analiacutetica nomeadamente a fenomenologia e a anaacutelise do pensamento feita atraveacutes da anaacutelise da linguagem e da loacutegica aleacutem de terem sido contemporacircneos ambos filoacutesofos e matemaacuteticos natildeo se interessavam por temas muito diferentes (5) Basicamente ambos se interessavam pelo estudo dos conteuacutedos do pensamento e ambos pensavam que esse estudo natildeo deveria reduzir-se agrave psicologia enquanto ciecircncia natural empiacuterica Mas com os seguidores imediatos de Frege e de Husserl nomeadamente Wittgenstein (pelo menos Wittgenstein enquanto autor do Tractatus (6) ) e Heidegger (7) o caso jaacute eacute outro Eacute difiacutecil ver neles uma ideia comum quanto ao que se entende por filosofia (embora seja possiacutevel ver um miacutenimo denominador comum no interesse de ambos pela linguagem)

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 12: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

Explicitando aquilo de que se fala quando se fala de filosofia analiacutetica e continental vamos considerar que os pais da filosofia analiacutetica contemporacircnea ie as figuras individuais mais influentes na sua constituiccedilatildeo satildeo aleacutem de G Frege B Russell (1872-1970) e L Wittgenstein (1889-1951) Para aleacutem das figuras individuais as origens desta praacutetica filosoacutefica podem ser encontradas no empirismo claacutessico nos meacutetodos da loacutegica formal e na ideia de tarefa filosoacutefica desenvolvida no Ciacuterculo de Viena (8) ie na filosofia considerada como anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem de modo a conseguir a depuraccedilatildeo da metafiacutesica e a unidade da ciecircncia Eacute no seio desta tradiccedilatildeo constituiacuteda nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX que vecircem a surgir filoacutesofos como WO Quine H Putnam N Goodman D Davidson M Dummett J Searle J Rawls R Rorty S Kripke e os filoacutesofos da mente que seratildeo estudados a seguir neste curso

Por seu lado a linhagem da filosofia continental poacutes-husserliana comporta o trabalho em filosofia contemporacircnea que se reconhece sob os tiacutetulos de fenomenologia hermenecircutica estruturalismo desconstruccedilatildeo abarcando assim filoacutesofos e teoacutericos tais como M Heidegger J-P Sartre M Merleau-Ponty E Leacutevinas H G Gadamer P Ricoeur MFoucault R Barthes J Lacan J Derrida etc

A relativa artificialidade desta separaccedilatildeo eacute provada pelo facto de ser muito difiacutecil classificar como analiacuteticos ou continentais filoacutesofos contemporacircneos como por exemplo J Habermas ou R Rorty na medida em que vecircem as vantagens (diferentes) das duas tradiccedilotildees e se servem delas

Mas tomando Wittgenstein e Heidegger dois grandes representantes dos dois campos considerados frequentemente os maiores filoacutesofos do seacuteculo XX os seus casos podem servir para exemplificar o quanto o problema das relaccedilotildees entre a filosofia e as ciecircncias estaacute em jogo na distinccedilatildeo entre a filosofia analiacutetica e a filosofia continental Heidegger afirmou e essa afirmaccedilatildeo ficou ceacutelebre que a ciecircncia natildeo pensa Embora a afirmaccedilatildeo tenha sido bastante ridicularizada (do lado da filosofia analiacutetica evidentemente) ela natildeo eacute imediatamente absurda O que eacute certo eacute que Heidegger natildeo era nem queria ser um epistemoacutelogo e por isso natildeo abordava a ciecircncia como epistemoacutelogo ie procurando compreender a ciecircncia como conjunto de afirmaccedilotildees sobre aquilo que a realidade eacute Se Heidegger se interessa pela ciecircncia eacute para a pensar como acontecimento civilizacional um acontecimento

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 13: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

civilizacional que ele considera ocultante Aquilo que interessa Heidegger enquanto filoacutesofo eacute o sentido do ser a histoacuteria do Ocidente a criacutetica da modernidade o destino da civilizaccedilatildeo Eacute a partir de este ponto de vista que visa compreender as maneiras humanas de existir e a sua contingecircncia que se torna mais clara por exemplo outra ceacutelebre (e na altura atacada com indignaccedilatildeo) afirmaccedilatildeo de Heidegger (da Introduccedilatildeo agrave Metafiacutesica 1953) De um ponto de vista metafiacutesico a Ruacutessia e a Ameacuterica satildeo iguais o mesmo triste frenesi tecnoloacutegico a mesma regulamentaccedilatildeo sem restriccedilotildees do homem comum

O que importa eacute que para Heidegger as ciecircncias satildeo apenas um modo de ser da existecircncia Embora Heidegger natildeo apreciasse o epiacuteteto existencialismo o que estaacute aqui em jogo eacute uma ideia central do existencialismo o mundo natildeo estaacute aiacute soacute para ou principalmente para ser conhecido mas para ser lidado (eacute claro que mesmo do ponto de vista da teoria do conhecimento e natildeo do ponto de vista da avaliaccedilatildeo das civilizaccedilotildees eacute possiacutevel dizer algo de semelhante eacute o que fazem todos os pragmatistas por exemplo (9) )

Ao contraacuterio de Heidegger que chega agrave filosofia atraveacutes da teologia (Heidegger chegou a pensar enveredar por uma vida religiosa e fez estudos nesse sentido) Wittgenstein comeccedilou por estudar engenharia e aeronaacuteutica e chegou agrave filosofia atraveacutes da loacutegica e da matemaacutetica O Tractatus Logico-Philosophicus resulta dos estudos de Wittgenstein feitos com B Russell sobre os fundamentos da loacutegica e da matemaacutetica e a linguagem eacute o seu tema essencial (o que natildeo impede que na obra se trate tambeacutem daquilo que eacute da ordem do miacutestico e do lugar das questotildees eacuteticas e esteacuteticas) No Wittgenstein I (10) a loacutegica eacute o denominador comum das linguagens e forma o quadro de estruturaccedilatildeo do conhecimento do mundo Por isso a anaacutelise das propriedades das proposiccedilotildees da loacutegica seraacute a via para a teoria acerca do mundo

Wittgenstein natildeo eacute um representante tiacutepico do naturalismo epistemoloacutegico assumido hoje por grande parte dos filoacutesofos analiacuteticos e o seu interesse em ciecircncia resume-se agrave loacutegica agrave matemaacutetica (e agrave psicologia embora entendida de maneira muito proacutepria) Mas eacute de qualquer modo muito grande a diferenccedila entre o interesse de Wittgenstein pela loacutegica enquanto quadro do mundo e o seu meacutetodo de anaacutelise em filosofia desenhado de forma pelo menos semelhante aos meacutetodos de investigaccedilatildeo em ciecircncia e o interesse de Heidegger

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 14: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

no ser e na civilizaccedilatildeo praticado atraveacutes de um meacutetodo de alusatildeo que se afasta radicalmente dos meacutetodos do inqueacuterito cientiacutefico

6 Empirismo e criacutetica ao empirismo dentro da filosofia analiacutetica

O empirismo claacutessico (de J Locke G Berkeley e D Hume) eacute uma das origens e uma origem sempre revisitada da tradiccedilatildeo filosoacutefica de liacutengua inglesa No entanto o empirismo que mais directamente marcou a filosofia analiacutetica contemporacircnea foi o empirismo (ou positivismo) loacutegico do Ciacuterculo de Viena

O Ciacuterculo de Viena foi um movimento intelectual dos anos 20-30 do seacuteculo XX protagonizado por um grupo de filoacutesofos cientistas e matemaacuteticos entre os quais se encontravam M Schlick R Carnap H Feigl e O Neurath As ideias associadas ao Ciacuterculo de Viena satildeo uma das raiacutezes da filosofia analiacutetica contemporacircnea e constituiacuteram uma influecircncia dominante nos paiacuteses angloacutefonos (11) ateacute aos anos 60 O positivismo loacutegico eacute positivista porque considera que as ciecircncias satildeo a uacutenica via para o conhecimento propriamente dito qualquer incursatildeo para aleacutem dos limites e dos meacutetodos da ciecircncia arrisca-se a ser cognitivamente vatilde sem sentido e o discurso produzido arrisca-se a ser insusceptiacutevel de verdade ou falsidade Para os positivistas loacutegicos seria esse o caso de grande parte da metafiacutesica tradicional (Metafiacutesica pode aqui ser definida como a tentativa que ocupou os filoacutesofos durante seacuteculos de falar directamente da natureza de deus da alma e do mundo) O positivismo loacutegico eacute loacutegico porque a definiccedilatildeo daquilo que segundo este grupo se deve fazer em filosofia dependeu de desenvolvimentos na loacutegica e na matemaacutetica e nomeadamente de criaccedilotildees e inovaccedilotildees do acircmbito da loacutegica formal Os instrumentos loacutegicos seriam utilizados de acordo com a ideia de filosofia dos positivistas loacutegicos com o fim de atingir o objectivo da empresa intelectual a unidade da ciecircncia e a depuraccedilatildeo da metafiacutesica Neste contexto a tarefa da filosofia eacute a anaacutelise da estrutura das teorias e da linguagem

Uma doutrina marcante do positivismo loacutegico foi a doutrina acerca daquilo que eacute cognitivamente significativo Interessa por isso compreender o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos (Assume-se que aquilo a que chamamos conhecimento toma a forma de frases asserccedilotildees declaraccedilotildees de que p eacute o caso)

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 15: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

Criteacuterio de significaccedilatildeo uma frase eacute cognitivamente significativa SSE eacute ou analiacutetica ou em princiacutepio empiricamente verificaacutevel ou falsificaacutevel

Este criteacuterio estaacute sujeito a contestaccedilotildees vaacuterias mas conveacutem notar antes de mais que ele estaacute moldado de modo a incluir como cognitivamente significativas frases aparentemente vazias de conteuacutedo empiacuterico mas que satildeo importantes para o conhecimento nomeadamente as frases loacutegicas Estas natildeo satildeo verificaacuteveis nem sequer em princiacutepio pois natildeo tecircm conteuacutedo empiacuterico No entanto natildeo eacute possiacutevel pensar conteuacutedos empiacutericos nomeadamente cientiacuteficos sem estruturas desse tipo Sob a influecircncia do Tractatus de Wittgenstein as verdades analiacuteticas necessaacuterias seratildeo consideradas tautologias Tautologias natildeo satildeo frases acerca do mundo natildeo satildeo acerca de relaccedilotildees que se sustentam independentemente do pensamento em qualquer domiacutenio de objectos A sua verdade eacute formal vazia elas satildeo verdadeiras em virtude da sua significaccedilatildeo e natildeo de qualquer conteuacutedo empiacuterico

Sob a influecircncia do positivismo loacutegico a filosofia torna-se sobretudo teoria do conhecimento e a teoria do conhecimento envolve a filosofia da ciecircncia e a filosofia da linguagem uma combinaccedilatildeo de princiacutepios empiristas com anaacutelise loacutegica

No entanto o criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos leva a crer que podemos separar nos enunciados da cogniccedilatildeo os momentos em que respondemos agrave linguagem (seria o caso das frases analiacuteticas) dos momentos em que respondemos agrave experiecircncia (seria o caso das frases sinteacuteticas com conteuacutedo empiacuterico verificaacuteveis) Eacute esta forma de conceber a relaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que Quine iraacute atacar num ceacutelebre artigo intitulado Two Dogmas of Empiricism (1953)

7 Quine a criacutetica agrave distinccedilatildeo analiacutetico sinteacutetico e a naturalizaccedilatildeo da epistemologia

WV Quine (1908-2000) foi um filoacutesofo e loacutegico americano e certamente pelo menos para quem se interessa por epistemologia um dos mais importantes filoacutesofos do seacuteculo vinte Foi aluno de Carnap (um dos membros do Ciacuterculo de Viena) e produziu trabalho importante em loacutegica e na fundamentaccedilatildeo da teoria dos conjuntos Os seus livros nomeadamente From a Logical Point of View (1953) que inclui o artigo Two Dogmas of Empiricism e Word and Object (1960) tiveram uma

enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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enorme influecircncia na teoria da mente e do conhecimento de tradiccedilatildeo analiacutetica

O artigo Two Dogmas of Empiricism eacute um texto incontornaacutevel na histoacuteria da teoria do conhecimento A ideia de separaccedilatildeo entre linguagem e experiecircncia que seraacute discutida em Two Dogmas e que estaacute presente no criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico eacute mais um tipo de separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo como jaacute tinha sido visto em Kant simplesmente agora reformulado em termos de linguagem A ideia de separaccedilatildeo forma conteuacutedo eacute portanto note-se comum agraves teorias do conhecimento de Kant e dos positivistas loacutegicos e ela eacute aliaacutes extremamente uacutetil quando se trata de enunciar a tarefa da teoria filosoacutefica do conhecimento De facto a separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo coloca a teoria do conhecimento como anaacutelise da forma seja definida como estruturas a priori do sujeito seja como linguagem A filosofia estaria assim para a ciecircncia como o estudo da forma para o estudo do conteuacutedo

A utilidade de uma ideia natildeo eacute no entanto suficiente para a justificar e eacute precisamente sobre a defesa da impossibilidade da separaccedilatildeo formaconteuacutedo no conhecimento que se ergue a ideia quineana de naturalizaccedilatildeo da epistemologia De acordo com a ideia de epistemologia naturalizada quando se trata de estudar o conhecimento a filosofia e a ciecircncia natildeo podem ser separadas elas soacute poderiam ser separadas se fosse possiacutevel estabelecer uma separaccedilatildeo clara entre a forma e o conteuacutedo Segundo Quine natildeo eacute possiacutevel estabelecer essa separaccedilatildeo e um passo importante para a justificaccedilatildeo desta tese foi a oposiccedilatildeo de Quine ao criteacuterio de significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos e a defesa da impossibilidade de uma distinccedilatildeo de natureza absoluta entre enunciados analiacuteticos (verdadeiros em virtude da sua significaccedilatildeo) e enunciados sinteacuteticos (verdadeiros com base nos factos) Esta distinccedilatildeo eacute o primeiro dogma identificado e rejeitado em Two Dogmas

A criacutetica de Quine em Two Dogmas pretende em grande medida mostrar que a teoria da significaccedilatildeo dos positivistas loacutegicos natildeo se sustenta pois supotildee uma visatildeo errada das relaccedilotildees linguagemexperiecircncia A argumentaccedilatildeo de Quine em Two Dogmas eacute muito resumidamente a seguinte

O empirismo (loacutegico e claacutessico) assenta sobre 2 dogmas (1) a separaccedilatildeo dos enunciados que

exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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exprimem conhecimento em analiacuteticos e sinteacuteticos e (2) o reducionismo (ie a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees atoacutemicas um a um entre frases e mundo e portanto a convicccedilatildeo de que toda a enunciaccedilatildeo significativa seria traduziacutevel numa enunciaccedilatildeo acerca da experiecircncia imediata) Quine afirma que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico - que vem de longe tendo sido defendida por Hume Leibniz e Kant por exemplo e natildeo apenas pelos positivistas loacutegicos - se sustenta se e soacute se o reducionismo radical se sustentar Quine pensa que ele natildeo se sustenta Grande parte do artigo eacute dedicado agrave proposta de uma visatildeo das relaccedilotildees entre crenccedilas e experiecircncia que se erga como alternativa ao reducionismo Essa visatildeo eacute uma visatildeo holista expressa pela seguinte imagem a totalidade do nosso conhecimento eacute como um tecido feito pelo homem que toca na experiecircncia apenas nos bordos por isso nenhuma crenccedila comparece sozinha ao tribunal da experiecircncia Assim haacute muita latitude de escolha quanto a qual crenccedila re-avaliar agrave luz de uma uacutenica experiecircncia contraditoacuteria (12) Quine pensa ateacute que qualquer asserccedilatildeo pode ser mantida como verdadeira aconteccedila o que acontecer se fizermos ajustes suficientemente draacutesticos noutra parte do sistema Deste modo nenhuma asserccedilatildeo eacute imune agrave revisatildeo (Quine 195343) Esta uacuteltima afirmaccedilatildeo abre a possibilidade de mesmo revisotildees em loacutegica serem possiacuteveis para manter a harmonia da relaccedilatildeo entre crenccedilas e experiecircncia Ora por mais que os empiristas anteriores acentuassem a revisibilidade das crenccedilas em virtude da experiecircncia a loacutegica sempre fora intocaacutevel

Recapitulando Quine pensa que os dois dogmas tecircm a mesma raiacutez a crenccedila na possibilidade de separaccedilatildeo do componente linguiacutestico (daiacute a ideia de anaacutelise de significados) e do componente factual (daiacute a ideia de verificaccedilatildeo) nas frases que expressam conhecimento Com esses dois dogmas tem-se uma teoria empirista do conhecimento e da racionalidade segundo a qual o que acontece quando pensamos eacute que ou nos movemos soacute em pensamento ou apelamos agrave experiecircncia Efectuamos revisotildees de crenccedilas quando a experiecircncia contradiz as crenccedilas anteriores enquanto que do lado do analiacutetico nada de novo pode provir Mas se os dogmas satildeo dogmas e como tal devem ser abandonados esta eacute uma maacute teoria da racionalidade e eacute isso que Quine defende A situaccedilatildeo segundo Quine eacute entatildeo a seguinte se no conhecimento natildeo eacute separaacutevel claramente o componente factual do componente linguiacutestico na medida em que as crenccedilas satildeo duplamente dependentes da linguagem e da experiecircncia a maneira correcta de conceber o conhecimento e a

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 18: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

racionalidade eacute holista e pragmatista Natildeo se trata de rejeitar o empirismo (Quine eacute um empirista) e nem sequer o verificacionismo mas sim de adaptar ao empirismo a ideia segundo a qual natildeo existe (1) imediatidade com significados nem (2) relaccedilatildeo directa entre frases isoladas e estados de coisas

Two Dogmas termina com a apresentaccedilatildeo de um quadro ainda empirista embora diferente do empirismo de Hume ou dos positivistas loacutegicos da maneira como as nossas crenccedilas se relacionam com a experiecircncia num quadro empirista holista e pragmatista nenhuma crenccedila eacute verificaacutevel isoladamente e nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo Esta posiccedilatildeo quanto ao conhecimento eacute holista porque daacute prioridade ao todo (a totalidade da ciecircncia) em relaccedilatildeo agraves partes (as crenccedilas isoladas) Em termos de conhecimento o holismo redunda na afirmaccedilatildeo segundo a qual a experiecircncia serve de teste a corpos de teoria e natildeo a crenccedilas isoladas Uma hipoacutetese h natildeo pode pois ser confirmada ou infirmada isolada do corpo da teoria A posiccedilatildeo que Quine defende eacute pragmatista porque supotildee que a crenccedila em verdades tem uma relaccedilatildeo inabdicaacutevel com o sucesso da acccedilatildeo de entidades no mundo o conhecimento eacute um instrumento para a previsatildeo praacutetica e natildeo um armazenamento numa interioridade mental protegida e desligada de interesses corpoacutereos mundanos

Abandonar os dogmas do empirismo teraacute ainda segundo Quine o efeito de esbater as supostas fronteiras entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural

8 Wittgenstein o interior e a linguagem privada

A posiccedilatildeo de Quine em Two Dogmas of Empiricism constitui um ataque agrave ideia de dado agrave ideia de imediatidade quer com com significados quer com factos isolados Aleacutem de Quine tambeacutem Wittgenstein desenvolveu ideias importantes para a oposiccedilatildeo ao Mito do Dado (a expressatildeo eacute de W Sellars) nomeadamente com os seus argumentos acerca da impossibilidade de uma linguagem privada nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas

O problema de Wittgenstein diz respeito agrave maneira como usamos linguagens para exprimir transportar partilhar publicar conhecimento e coisas mentais A ideia muito comum quanto ao que fazemos quando pensamos e falamos e que Wittgenstein pretende

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 19: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

rejeitar eacute a seguinte

Ideia Existe primeiro o meu mundo mental cujos eventos satildeo directamente conhecidos por mim Depois escolho voluntariamente as palavras para exprimir esses eventos mentais Depois transmito atraveacutes dessas palavras os eventos agraves outras pessoas

A concepccedilatildeo de linguagem descrita no exemplo assim natildeo se sustenta porque

1 Natildeo haacute significados intriacutensecos em coisas de linguagem 2 O significado eacute o uso 3 O uso eacute uma praacutetica puacuteblica 4 Assim sendo para explicar o significado de uma palavra temos que olhar para aleacutem do indiviacuteduo isolado 5 Em questotildees de significaccedilatildeo temos que olhar para a comunidade 6 Sem comunidade natildeo existiria linguagem 7 O solipsista natildeo poderia ter uma linguagem privada 8 O solipsista natildeo poderia descrever os acontecimentos da sua vida mental com uma linguagem privada

Daqui se segue para Wittgenstein que 9 Natildeo pode existir o solipsista 10 Todas as linguagens possiacuteveis satildeo puacuteblicas 11 Mesmo os acontecimentos das nossas vidas mentais (ex falar acerca de dores ou outras sensaccedilotildees) satildeo vertidos em linguagem puacuteblica

Wittgenstein critica portanto a ideia de que o fundamento da significaccedilatildeo do conhecimento reside na experiecircncia privada Isso natildeo eacute verdade porque natildeo haacute possibilidade de fazer sentido das noccedilotildees de dados puros da experiecircncia subjectiva anteriores agrave linguagem ou de linguagem privada Linguagem privada seria aquela que eu compreendo e mais ningueacutem compreende A ideia de linguagem privada corresponde agrave figura do solipsista O solipsista adquiriria a sua linguagem a partir do seu proacuteprio caso por exemplo apontaria interiormente para a sua sensaccedilatildeo de dor chamar-lhe-ia dor e a partir daiacute a dor seria chamada dor

Natildeo eacute assim no entanto que as palavras significam o facto de as palavras significarem envolve trabalho preparatoacuterio Este trabalho eacute da comunidade e natildeo eacute um trabalho intelectual eacute uma mistura de significaccedilotildees com acccedilotildees Ie o funcionamento de

uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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uma linguagem como linguagem com significados determinados natildeo eacute separaacutevel de formas de vida O solipsista nunca poderia por isso desenvolver uma linguagem privada Eacute isto que Wittgenstein procura mostrar nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (sect 243 - sect 315) que natildeo satildeo possiacuteveis linguagens privadas soacute conhecidas do falante e usadas para dar forma exterior a ideias previamente definidas na sua mente As coisas de linguagem satildeo primeiro puacuteblicas estatildeo primeiro fora Para percebermos a nossa compreensatildeo dos sentidos de palavras temos que perceber que as palavras e as coisas estatildeo misturadas quando conhecemos e agimos E isto eacute assim mesmo quando se trata da nossa experiecircncia interior Retomando o exemplo de dor dor eacute um nome para a minha dor a tua dor a dor de hoje a dor de ontem a dor de cabeccedila a dor de dentes Haacute muito pouco de privado e iacutentimo neste funcionamento de dor E sem uso de dor eu natildeo nomeio ou aponto a minha dor

O solipsista (se ele pudesse existir) pensaria que haacute um grande hiato entre o nosso comportamento incluindo o uso de linguagem e a vida mental interior privada Wittgenstein pensa que natildeo eacute assim a anaacutelise do funcionamento da linguagem mostra a razatildeo por que natildeo podemos ser cartesianos interioristas obcecados com a certeza subjectiva

Nota final

As ideias acerca da mente e do conhecimento analisadas neste texto especialmente as referentes agrave histoacuteria recente da filosofia analiacutetica constituem o pano de fundo para a emergecircncia da filosofia da mente que seraacute tratada em seguida A histoacuteria tal como pode ser contada do lado da filosofia natildeo eacute no entanto a uacutenica preparaccedilatildeo do campo da filosofia da mente No campo da filosofia da mente vatildeo convergir natildeo apenas desenvolvimentos filosoacuteficos mas tambeacutem ideias surgidas nos campos da loacutegica e da psicologia assim como nas ciecircncias cognitivas uma aacuterea multidisciplinar que comeccedila a tomar forma nos anos 70 e que congrega as neurociecircncias a Inteligecircncia Artificial a psicologia cognitiva e em geral todo o inqueacuterito racional sobre a cogniccedilatildeo

Notas

(1) Para traduzir esta ideia adoptar-se-aacute a expressatildeo filosofia epistemologicamente centrada Cf RORTY

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 21: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote 1988 Muitas das hipoacuteteses histoacutericas apresentadas no presente texto provecircm desta obra de Rorty na qual se procura mostrar que a epistemologia e os seus problemas natildeo tecircm uma forma perene antes resultam de uma constelaccedilatildeo especiacutefica e historicamente contingente de ideias Nomeadamente Rorty pensa que a intuiccedilatildeo dualista (a ideia de mente como espelho imaterial da natureza) que aparentemente todos temos resulta de propostas intelectuais histoacutericamente datadas tais como a Hipostasiaccedilatildeo dos Universais (movimento pelo qual estes satildeo pensados como particulares imateriais e natildeo como abstracccedilotildees de particularidades) e a proposta cartesiana da Indubitabilidade como marca do mental (2) Eacute Rorty quem coloca a questatildeo deste modo (3) Para as ligaccedilotildees entre o Romantismo e o Idealismo filosoacutefico cf por exemplo N HARTMANN A Filosofia do Idealismo Alematildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1983 (4) Para Hegel a filosofia eacute sistema da Razatildeo completude auto-consciecircncia alcanccedilada pelo Espiacuterito A filosofia como sistema da razatildeo opotildee-se precisamente agrave incompletude daquilo de que o entendimento (nomeadamente cientiacutefico) eacute capaz (5) Como por exemplo M Dummett fez notar Cf DUMMETT 1993 Origins of Analytical Philosophy (6) Seraacute referido como Wittgenstein I (7) Heidegger foi de facto disciacutepulo de Husserl Entre Wittgenstein e Frege a ligaccedilatildeo eacute menos directa (8) Wittgenstein natildeo era membro do Ciacuterculo de Viena mas foi inspirador do movimento (9) Esta semelhanccedila pode comeccedilar a explicar porque eacute que um autor como Rorty gosta de retratar Heidegger como um pragmatista anti-fundacionalista Cf RORTY ContingencyIrony Solidarity Cambridge CUP 1990 (10) O Wittgenstein do Tractatus (1921) por oposiccedilatildeo ao Wittgenstein das Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) a que se chamaraacute Wittgenstein II (11) O movimento inicia-se no mundo germacircnico mas devido agrave 2ordf Grande Guerra a maioria dos participantes emigrou para a Gratilde Bretanha e para os Estados Unidos Nos Estados Unidos a influecircncia de R Carnap foi particularmente importante (12) QUINE Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard UP 1953 pp 42-43

Referecircncias

DUMMETT Michael 1993 Origins of Analytical

Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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Philosophy Cambridge MA Harvard University Press KANT I 1989 Criacutetica da Razatildeo Pura Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad A Morujatildeo e M P Santos KIM Jaegwon 2000 What is naturalized epistemology in BERNECKER amp DRETSKE 2000 QUINE WO Epistemologia naturalizada in Carrilho MM1991 (org) Epistemologiaposiccedilotildees e criacuteticas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian QUINE W O 1953 Two Dogmas of Empiricism in From a Logical Point of View Cambridge MA Harvard University Press RORTY Richard 1988 A Filosofia e o Espelho da Natureza Lisboa Dom Quixote RORTY Richard 1990 Contingency Irony Solidarity Cambridge Cambridge University Press WITTGENSTEIN Ludwig 1987 Tractatus Logico-Philosophicus Investigaccedilotildees Filosoacuteficas Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian trad MS Lourenccedilo

Apecircndices (apoio ao estudo)

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - I

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - II

Histoacuteria dos sentidos de mente e conhecimento - III

Filosofia do SEacuteCULO XX

A fenomenologia e a filosofia analiacutetica satildeo as duas grandes linhagens metodologias da filosofia do seacuteculo xx e satildeo geradas por uma mesma intenccedilatildeo

A despsicologizaccedilatildeo do estudo do pensamento Sem desprestiacutegio para a psicologia o que isto significa eacute que a psicologia eacute uma ciecircncia empiacuterica uma ciecircncia natural entre as ciecircncias naturais e a filosofia natildeo o eacute nem quer secirc-lo Os problemas da filosofia natildeo satildeo problemas empiacutericos

Fenomenologia

O objecto da filosofia eacute a descriccedilatildeo dos conteuacutedos da consciecircncia suspendendo qualquer referecircncia ao mundo fiacutesico e ao estudo deste feito pelas ciecircncias naturais (em termos de causalidade) O mundo natural eacute o terreno adquirido e legiacutetimo das ciecircncias naturais O que cabe agrave filosofia eacute a descriccedilatildeo daquilo que eacute pensado por si soacute de acordo com as suas

regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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regras proacuteprias (eacute claro que se acaba assim por encontrar de novo o mundo todo e o proacuteprio conhecimento cientiacutefico desse mundo mas agora enquanto pensamento)

Filosofia Analiacutetica

O objecto da filosofia eacute o estudo (englobante geral) do pensamento Esse estudo deve ser feito (soacute pode ser feito) atraveacutes da anaacutelise (loacutegica) da linguagem

Porquecirc a anaacutelise da linguagem Porque o pensamento tal como a linguagem o coloca para ser analisado eacute puacuteblico e objectivo por oposiccedilatildeo agraves imagens e sentimentos que povoam as vidas mentais dos indiviacuteduos A linguagem pode ser um espelho distorcido do pensamento mas eacute o uacutenico espelho que temos a uacutenica moeda comum Os inqueacuteritos epistemoloacutegicos metafiacutesicos eacuteticos esteacuteticos etc da filosofia assumem assim a forma de investigaccedilotildees linguiacutesticas

WITTGENSTEIN I e o POSITIVISMO LOacuteGICO

1 Eacute a doutrina do Tractatus (Wittgenstein 1921) acerca de sentido e de sem-sentido que inspira o criteacuterio de significaccedilatildeo do positivismo loacutegico 2 Os filoacutesofos do Ciacuterculo de Viena pretendem o seguinte para a filosofia que ela consista (apenas) numa anaacutelise da linguagem e das teorias e que assim contribua para a unidade da ciecircncia e para a depuraccedilatildeo da metafiacutesica (esta seria em grande medida discurso sem sentido) 3 As ideias de Wittgenstein vecircm apoiar a referida intenccedilatildeo na medida em que permitem fazer uma cartografia daquilo que eacute pensaacutevel diziacutevel (Sagbar) 4 Tem-se entatildeo a seguinte classificaccedilatildeo do que podemos dizer pensar (i) Tautologias frases loacutegicas vazias o esqueleto do sentido que eacute ele proacuteprio sem sentido (Sinnlos) (ii) Frases com conteuacutedo empiacuterico nas quais algo com sentido eacute dito acerca do mundo (iii)Transgressotildees do sentido frases que natildeo satildeo propriamente falsas mas que natildeo tecircm significado formal ou factual (Unsinnig) 5 Para Wittgenstein de acordo com a doutrina do Tractatus tudo o que se deixa pensar deixa-se pensar claramente Wittgenstein acrescentava eacute certo (embora esse aspecto do Tractatus natildeo interessasse aos positivistas loacutegicos) que aquilo de que natildeo se pode falar pode ser mostrado e que atraveacutes das fronteiras do diziacutevel ou para laacute das

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

Page 24: Introdução à Teoria da Mente e do Conhecimento - Parte II ... · filosofia e ciências? 7. Como se deu o afastamento entre filosofia ... coisa difícil de inserir nas teorias antigas

fronteiras do diziacutevel aquilo que a filosofia interroga aparece Eacute certo tambeacutem que a intenccedilatildeo do proacuteprio Tractatus (mapear a fronteira do diziacutevel e do indiziacutevel) transgride essa fronteira corresponde aacutequilo que de acordo com a doutrina do proacuteprio Tractatus natildeo pode ser feito

QUINE e os 2 DOGMAS

1 Quine eacute um empirista 2 Quine eacute um empirista sofisticado que natildeo concorda com o aspecto fundacionalista do empirismo claacutessico e do positivismo loacutegico 3 Quine eacute um criacutetico do empirismo do positivismo loacutegico 4 O empirismo do positivismo loacutegico estaacute ligado ao criteacuterio da significaccedilatildeo 5 No criteacuterio da significaccedilatildeo estaacute incorporada uma distinccedilatildeo entre o analiacutetico e o sinteacutetico 6 De acordo com essa distinccedilatildeo haacute momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo apenas do proacuteprio pensamentodiscurso (= o analiacutetico) e momentospassos do nosso pensamentodiscurso em que nos movemos em funccedilatildeo da experiecircncia (= o sinteacutetico) 7 De um ponto de vista histoacuterico a separaccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute uma reafirmaccedilatildeo da separaccedilatildeo entre forma e conteuacutedo do pensamento expressa agora em termos de linguagem 8 Quine natildeo concorda com a distinccedilatildeo radical entre o analiacutetico e o sinteacutetico e escreve um ceacutelebre artigo (Two Dogmas of Empiricism 1953) a explicar por que razatildeo natildeo concorda 9 Antes de mais Quine considera que a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute um dogma (Dogma-1) 10 Esse Dogma-1 estaacute dependente de um Dogma-2 a que Quine chama reducionismo O reducionismo eacute a ideia segundo a qual existem relaccedilotildees um-a-um entre frases e experiecircncia e todas as enunciaccedilotildees significativas satildeo traduziacuteveis em enunciaccedilotildees acerca da experiecircncia imediata 11 Para falar como Quine de acordo com o Dogma-2 cada frase significativa compareceria sozinha ao tribunal da experiecircncia Ora Quine pensa que isso natildeo eacute o caso 12 A oposiccedilatildeo de Quine ao reducionismo baseia-se no seguinte Conceba-se a totalidade do conhecimento humano como uma teia de crenccedilas Essa teia de crenccedilas toca na experiecircncia apenas nos bordos 13 Um efeito desta situaccedilatildeo eacute o facto de a actividade cognitiva natildeo ser uma constante e

sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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sistemaacutetica re-avaliaccedilatildeo de cada crenccedila agrave luz da experiecircncia 14 Pelo contraacuterio para Quine haacute bastante espaccedilo de manobra quando se decide que crenccedilas se vai deixar cair e que crenccedilas se vai manter de cada vez que acontece (nos bordos) uma experiecircncia que entra em conflito com as crenccedilas do agente 15 Quine considera que nenhuma crenccedila eacute imune agrave revisatildeo (nem as crenccedilas melhor entrincheiradas na teia das crenccedilas correspondentes nomeadamente agrave loacutegica) 16 Mas essa revisatildeo natildeo eacute nunca feita com apoio num veredicto incontestaacutevel do tribunal da experiecircncia 17 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute defender um tipo de empirismo holista Noacutes natildeo temos relaccedilotildees directas nem com factos isolados nem com significados isolados 18 Em conclusatildeo criticar a distinccedilatildeo analiacuteticosinteacutetico eacute em uacuteltima anaacutelise criticar a legitimidade da separaccedilatildeo entre a tarefa da filosofia e a tarefa das ciecircncias no inqueacuterito racional 19 Em conclusatildeo para Quine a filosofia e as ciecircncias satildeo contribuiccedilotildees para um mesmo inqueacuterito racional natildeo existe uma fronteira entre metafiacutesica especulativa e ciecircncia natural 20 Em conclusatildeo em termos de teoria do conhecimento isso significa que natildeo pode existir uma pura anaacutelise apriorista ou formal do conhecimento e que toda a epistemologia seraacute naturalizada

WITTGENSTEIN II

1 Nas Investigaccedilotildees Filosoacuteficas (1953) e especificamente no acircmbito do argumento da linguagem privada tambeacutem Wittgenstein desenvolveu um ataque ao Mito do Dado 2 O ataque de Wittgenstein visa a forma como utilizamos linguagem para exteriorizar dar corpo aos acontecimentos mentais (a todos os processos do pensamento e conhecimento portanto) 3 Segundo Wittgenstein tendemos a pensar nesse assunto de forma expressivista ie pensando que os pensamentos satildeo formulados numa espeacutecie de interior mental e depois postos em linguagem 4 Para Wittgenstein essa eacute uma concepccedilatildeo errada daquilo que se passa quando pensamos na medida em que o significado dos elementos de linguagem lhes adveacutem do uso natildeo eacute intriacutenseco 5 Ora o uso eacute uma praacutetica puacuteblica que acontece caacute fora entre pessoas numa comunidade 6 Natildeo existe por isso linguagem privada 7 Natildeo faz sentido pensar num solipsista que

pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos

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pensasse para si proacuteprio os seus pensamentos numa linguagem que apenas ele compreenderia 8 O expressivismo e o solipsismo satildeo formas erradas de pensar na forma como pensamos