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Estudo de Avaliação da Situação Ambiental e Proposta de Medidas de Salvaguarda para a Faixa Costeira Portuguesa (Geologia Costeira) J. M. Alveirinho Dias (1993) 87 X O CASO DO ALVOR X.1. - Introdução A impropriamente designada "Ria de Alvôr" é uma pequena laguna costeira, do tipo laguna estuarina complexa, situada a meio da baía de Lagos. A área húmida é de apenas 3,3 Km 2 . A laguna divide-se em 2 braços onde desaguam 4 linhas de água. Comunica com o mar por uma barra instável, que é utilizada por uma pequena comunidade de pescadores locais. X.2. Historial A análise dos mapas históricos revela que o sistema é muito dinâmico, tendo a sua configuração variado bastante ao longo do tempo (Marques & Romariz, 1989). De acordo com a representação do sistema nos mapas do séc. XVI ao séc. XIX, a barra tem-se localizado quer a ocidente, quer a oriente, quer numa posição mediana do cordão arenoso frontal ao sistema. É possível que tal reflicta migração sistemática da barra, provavelmente de Este para Oeste. No entanto, essa evolução pressupõe um sentido da resultante da deriva litoral para Ocidente, o que é, aparentemente, contraditório com a existência de uma restinga arenosa dirigida para Oriente (como aparece, por exemplo, num mapa de 1794). No entanto, segundo a análise de Pereira de Sousa (1919), o crescimento da restinga seria para ocidente, referindo este autor que "... este rio desvia-se em ângulo recto para Oeste, indo juntar-se à ribeira de Arão na sua foz, desaguando depois juntos no mar. Este desvio foi devido à acumulação das areias na antiga foz do rio Alvôr, formando uma ponta ou flecha que se prolongou para Oeste, devido aos ventos de Levante ou de Sudeste tão intensos no Algarve e que, barrando-lhes a saída, promoveram a formação de lagunas no seu interior ...".

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X

O CASO DO ALVOR

X.1. - Introdução

A impropriamente designada "Ria de Alvôr" é uma pequena laguna costeira, do tipo laguna estuarina complexa, situada a meio da baía de Lagos. A área

húmida é de apenas 3,3 Km2. A laguna divide-se em 2 braços onde desaguam 4 linhas de água. Comunica com o mar por uma barra instável, que é utilizada por uma pequena comunidade de pescadores locais.

X.2. Historial

A análise dos mapas históricos revela que o sistema é muito dinâmico, tendo a sua configuração variado bastante ao longo do tempo (Marques & Romariz, 1989). De acordo com a representação do sistema nos mapas do séc. XVI ao séc. XIX, a barra tem-se localizado quer a ocidente, quer a oriente, quer numa posição mediana do cordão arenoso frontal ao sistema. É possível que tal reflicta migração sistemática da barra, provavelmente de Este para Oeste. No entanto, essa evolução pressupõe um sentido da resultante da deriva litoral para Ocidente, o que é, aparentemente, contraditório com a existência de uma restinga arenosa dirigida para Oriente (como aparece, por exemplo, num mapa de 1794).

No entanto, segundo a análise de Pereira de Sousa (1919), o crescimento da restinga seria para ocidente, referindo este autor que "... este rio desvia-se em ângulo recto para Oeste, indo juntar-se à ribeira de Arão na sua foz, desaguando depois juntos no mar. Este desvio foi devido à acumulação das areias na antiga foz do rio Alvôr, formando uma ponta ou flecha que se prolongou para Oeste, devido aos ventos de Levante ou de Sudeste tão intensos no Algarve e que, barrando-lhes a saída, promoveram a formação de lagunas no seu interior ...".

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Nos mapas mais recentes (deste século) verifica-se a existência de uma única barra, localizada aproximadamente na parte mediana do sistema. O delta de enchente é bastante desenvolvido, indicando claramente a predominância dos processos de maré sobre os processos fluvio-estuarinos. A análise das fotografias aéreas verticais permite seguir o progressivo assoreamento da laguna, bem como deduzir que a actuação da agitação marítima é bastante eficaz no desmantelamento (ou na inibição do crescimento) do delta de vazante.

Ao assoreamento verificado neste corpo lagunar não é certamente estranha a construção da barragem da Bravura, na ribeira de Odeáxere, e do dique da Penina, na ribeira da Torre, que contribuiram significativamente para a perda de competência daqueles cursos de água. De igual modo, a intensa construção verificada nas bacias hidrográficas que drenam para a laguna, contribui de forma significativa, para o assoreamento (nomeadamente devido ao arraste de materiais de construção na época pluviosa).

Todavia, o assoreamento em areias verificado na dependência da barra é indubitavelmente de origem marinha, sendo devido ao transporte de sedimentos, a partir do exterior (principalmente do litoral), pelas correntes de enchente. As origens da intensificação deste assoreamento (verificada nas últimas décadas) não estão ainda bem determinadas. Por um lado, a elevação progressiva, embora pequena, do nível de base (isto é, a elevação do nível médio relativo do mar) contribui certamente para essa intensificação do assoreamento. Por outro lado, a construção de barragens e de diques teve como consequência a diminuição dos caudais de cheia e, por conseguinte, da competência transportadora dos caudais de vazante no período invernal (que tinham uma função importante no desassoreamento).

O assoreamento aludido reflectiu-se, como é normal, em atrasos na propagação da maré, principalmente da maré vazia, o que se traduziu numa diminuição da capacidade de transporte das correntes de vazante (que transportam as areias para o exterior, tendo, portanto, função desassoreante). Trata-se de um fenómeno do tipo "feedback": o assoreamento diminui a capacidade de transporte das correntes, o que induz maior assoreamento.

A comparação dos levantamentos de 1962 e 1974 efectuada, por Oliveira & Gamito (1990), revela bem o intenso assoreamento verificado nesta laguna: neste período, o assoreamento foi da ordem de 350 000 m3, 80% do qual incidiu na zona central (isto é, no delta de enchente).

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Face aos problemas existentes, a D.G.P. promoveu um estudo que decorreu entre 1973 e 1977, o qual tinha como objectivo o disciplinamento da ocupação e utilização do litoral, a fixação e melhoramento da embocadura e o estabelecimento de boas condições hidráulicas que assegurassem a sobrevivência da laguna. Em Março de 1985, a Comissão de Apreciação do "Plano Geral Director do Aproveitamento e Valorização da Ria do Alvôr", elaborado na sequência do estudo aludido, emitiu um parecer em que se destacam as intervenções de melhoramento e valorização do corpo lagunar, as quais deviam ser executadas por fases, com prioridade para a designada por "1ª fase reduzida" que respeita apenas às obras marítimas e de correcção lagunar inerentes ao funcionamento hidráulico e à sobrevivência da ria. Esta "1ª fase reduzida" incluia: a) molhes de fixação da embocadura afastados de 160m e com cerca de 600m de comprimento; b) dragagem do canal da embocadura entre molhes à cota mínima - 3m (ZH); c) dragagem de um canal de ligação da embocadura à vila de Alvôr, com 100m de largura à cota - 1m (ZH); e d) dragagem de uma bacia de manobra e estacionamento junto à vila de Alvôr, para servir os núcleos de pesca e de recreio.

Cerca de 500 000 m3 das areias dragadas deverão ser aplicadas no reforço do cordão dunar e das praias contíguas.

As obras iniciaram-se nos finais de 1989. As informações disponíveis indicam que, dada a inexistência de um levantamento topo-hidrográfico actualizado, foi utilizado como base o levantamento de 1974. No que diz respeito à desembocadura, optou-se por implantá-lo na posição que melhor se enquadrava com a morfologia de 1974. Com efeito, caso se tivesse optado por uma localização mais adaptada à morfologia actual, a barra estabilizada ficaria situada bastante mais para ocidente, isto é, em posição excêntrica em relação ao sistema. Por outro lado, essa opção implicaria o alongamento do canal de acesso ao pequeno núcleo portuário do Alvôr (com os consequentes inconvenientes para a execução da obra, visto que aumentaria consideravelmente o volume de sedimentos a dragar, e para a sua utilização, pois que aumentaria a distância a ser percorrida pelas embarcações).

Entretanto, após o início da obra, começou-se a verificar intensa erosão costeira, a qual, aliás, já se vinha a sentir desde há alguns anos. Em 1991, na sequência de vários episódios de agitação marítima mais energética proveniente de Sueste, a situação agravou-se (fig. X.2), impondo uma operação de emergência de realimentação da praia (a qual, aliás, estava prevista originalmente).

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Fig. X.1. - Vista aérea do sistema do Alvôr em Dezembro de 1991.

Fig. X.2. - Aspecto da erosão na praia do Alvôr em Fevereiro de 1992.

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Segundo dados colhidos junto do Director da Junta Autónoma de Portos do Barlavento Algarvio, cerca de 300.000 m3 de dragados foram repulsados para a zona entre a praia em frente ao campo de futebol e a praia da Torralta. Outros 300.000 m3 foram transportados por camiões para realimentação desde a praia da Torralta até à praia dos Três Irmãos (é de referir que os números obtidos junto da empresa que executou a obra são um pouco diferentes: 200.000m3 repulsados e entre 150.000 m3 e 200.000 m3 transportados em camiões). Em ambos os casos a areia foi posteriormente espalhada com meios mecânicos.

Apesar desta operação de emergência, a situação continua grave. No início de 1993 era nítida, ao longo da praia entre o campo de futebol e a Torralta, uma escarpa de erosão (fig. X.3 e X.4), frequentemente com mais de 1m de altura na qual eram perfeitamente visíveis estruturas sedimentares antigas, nomeadamente paleocanais, cuja idade está presentemente a ser determinada (pelo radiocarbono).

X.3. Análise

Os dados históricos e recentes convergem na indicação nítida de que o sistema do Alvôr é muito dinâmico. Todavia, o intenso assoreamento que se estava a verificar no sistema impunha intervenção urgente.

No entanto, a intervenção efectuada pode não ter sido a mais adequada, porquanto foi efectivada sem um conhecimento suficientemente aprofundado do sistema. Com efeito, ainda actualmente se não conhecem com rigôr suficiente os volumes interessados na deriva litoral, assim como não existe concordância, entre os diferentes investigadores, sobre o sentido da resultante anual dessa deriva. É, mesmo, possível que o sentido da resultante anual (ao contrário do que se verifica na generalidade do litoral português) seja variável consoante as características do "ano oceanográfico", dirigindo-se para Ocidente umas vezes e outras para Oriente.

Os mecanismos forçadores do assoreamento também não são suficientemente conhecidos. De facto, embora se saiba que a elevação do nível médio do mar é, seguramente, responsável por parte do assoreamento, não se conhece minimamente, em termos quantitativos, o resultado deste factor. Também se sabe que as actividades antrópicas na bacia drenante foram, e são, factor de assoreamento, mas não existe qualquer tipo de quantificação (nem absoluta, nem relativa). De igual modo, desconhecem-se (pelo menos do ponto de vista quantitativo) as amplitudes de actuação no sistema de muitos dos processos costeiros aí actuantes, bem como as relações de dependência (ou interdependência) com os sistemas litorais adjacentes.

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Nestas condições, qualquer intervenção irreversível (como é o caso da estabilização da barra com esporões) é extremamente arriscada, podendo mesmo vir a revelar-se profundamente nefasta para o sistema e/ou para os sistemas costeiros adjacentes. Aparentemente, não teria havido inconveniente em efectuar apenas pequenas intervenções ligeiras (dragagens limitadas na barra e nos canais), protelando para mais tarde eventuais intervenções mais pesadas (e irreversíveis), aplicando parte das verbas assim libertadas no estudo mais aprofundado do sistema.

No entanto, quando se tem em linha de conta, como foi amplamente divulgado, que o objectivo final das intervenções era a criação de condições para o desenvolvimento turístico desta zona, com implantação de marinas, complexos hoteleiros, áreas de jogo, etc., parece ser lícito questionar sobre a urgência das intervenções e das razões aduzidas (salubridade da laguna e sobrevivência do pequeno núcleo piscatório).

É discutível se a intensificação da erosão costeira que se está a verificar neste litoral está ou não de alguma forma relacionada com as intervenções efectuadas no sistema lagunar (nomeadamente com a estabilização da barra e com os respectivos esporões). Será necessário aguardar mais algum tempo para se poderem caracterizar melhor as tendências actuais e concluir com maior fiabilidade quais foram as consequências positivas e negativas das intervenções efectuadas.