Jair Pinheiro Classes e Movimentos Sociais LSociais

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    Jair Pinheiro**

    Resumo:

    Apresenta uma anlise crtica de alguns aportes tericos j consolidados sobre os movimentos sociais e, ao mesmo tempo, alguns apontamentos para analis-los luz do conceito de classes.

    I

    A abundante literatura sobre movimentos sociais prdiga em destacar suas caractersticas mais evidentes, quais sejam, a fragmentao e a diversidade; derivando da um conjunto de premissas terico-metodolgicas que, sem prejuzo das particularidades empiricamente observadas, levam a duas concluses polticas bsicas: a presena deles na cena poltica como ndice de democratizao poltica e social (Touraine, 1989) e a irrelevncia, secundarizao ou inconvenincia conforme a perspectiva de cada analista do conceito de classe (Melucci, 1989) tanto para a teoria quanto para o debate poltico.

    Dentro de limites bem determinados, possvel concordar com a primeira concluso sem perder a perspectiva crtica j que um dos critrios de avaliao da democracia burguesa a liberdade de organizao; bem entendida, claro, como liberdade dos indivduos de se organizarem para apresentar suas reivindicaes s autoridades ou, no limite, constiturem eles mesmos a autoridade, isto , o governo; sempre respeitando as regras do jogo, maneira de Bobbio (1986), regras-atores-comportamentos.

    Assinale-se que, para este autor, as regras constituem os atores. Talvez preocupado em colocar sua teoria poltica em sintonia com a boa antropologia, Bobbio acaba por reconhecer implicitamente uma noo cara queles (os marxistas) que ele tanto criticou ao longo de sua vida produtiva, a de que as regras no so indiferentes aos conflitos; ao contrrio, parte deles. Com a diferena de que os

    Este artigo uma redefinio consideravelmente ampliada do que foi publicado, sob o mesmo ttulo, na revista

    Margem Esquerda, n. 9. ** Professor do Depto. de Cincias Polticas e Econmicas da Unesp/Marlia e membro do NEILS.

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    conflitos so protagonizados por indivduos racionais-interessados (conceito cujos limites critico em outro lugar: Pinheiro, 2006), para o primeiro, e pelas classes para os segundos.

    Claro est, tambm, que dessa perspectiva os indivduos formulam suas reivindicaes a partir da percepo imediata que tm dos problemas que os afligem. Alis, j no sculo XVIII Os Federalistas perceberam que em lugar de ser um problema para o que, poca, eles chamavam de repblica popular hoje, a preciso conceitual exige denominar como democracia burguesa poderia tornar-se uma soluo na medida em que disso resultaria um conjunto fragmentado e diversificado de faces que impediria a formao de maiorias estveis que pudessem mudar as regras do jogo; naturalmente ocultando que tais regras so definidas pelas minorias em condies polticas e econmicas de imp-las maioria.

    No nos deixemos enganar pela linguagem quase matemtica to ao gosto tocquevilliano, quanto aos supostos riscos da tirania da maioria pois embora sejam muitos os critrios a partir dos quais se pode constituir maioria poltica, a preocupao era, j no sculo XVIII, assim como hoje, com o critrio de classe. Por outras palavras, fragmentao e diversidade (esta ltima, aqui, no sentido restrito de autocentramento, j que a diversidade em si mesma no incompatvel com projetos alternativos ao burgus) condio sine qua non para a dominao poltica da minoria, termo andino preferido pelos analistas liberais para designar os indivduos membros das classes e fraes de classes que integram o bloco no poder.

    Afinal, de qualquer janela que se olhe para qualquer rua, o que se v passando celeremente so indivduos em busca da satisfao dos seus interesses, nunca classes. Contudo, um olhar mais apurado permite perceber que esses indivduos envergam (garbosos ou contrariados) as marcas das classes a que pertencem, como um pressuposto necessrio, independentemente de outras marcas com as quais se cubram e das representaes que tenham dessas condies.

    neste ponto que a segunda concluso si sustentar-se num grande esforo ideolgico de tentar reconstituir o real a partir da aparncia, ignorando, ou mesmo recusando peremptoriamente, o reconhecimento de um fundamento social (as relaes sociais de produo) que escapa percepo imediata dos agentes e opera com racionalidade objetiva prpria e que pode ser o ponto de partida daqueles movimentos sociais que adotam uma perspectiva classista.

    Do ponto de vista sociolgico, muitos so os critrios que podem ser adotados para classificar os movimentos; adoo, via de regra, orientada por opes terico-metodolgicas fortemente influenciadas pelo posicionamento poltico do analista e pelas caractersticas proeminentes do campo durante o trabalho de pesquisa. Na perspectiva aqui adotada, aquele fundamento social o critrio tomado para a reflexo sobre os movimentos ou, mais precisamente, os movimentos que tomam o lugar ocupado por sua base social nas relaes sociais de produo e na estrutura de classes que dela resulta em cada formao social determinada.

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    Todavia, no se deve ignorar que h movimentos cuja demanda se localiza na estrutura scio-cultural e, por isso, no est ligada s relaes sociais de produo. Convm, entretanto, no se apressar em se fixar nessa constatao para dela extrair concluses que neguem a importncia terica e poltica das classes, pois muitos problemas que do origem a tais movimentos tm razes em relaes sociais de produo pr-capitalistas (patriarcalismo e escravismo, por exemplo), o que torna as interpelaes ideolgicas sobre eles completamente autnomas quanto s relaes sociais de produo capitalistas; quando consideradas abstratamente, j que no nvel concreto o capital sempre as articula poltica, ideolgica e economicamente.

    Alm disso, mesmo quando os movimentos tm demandas (direito livre orientao sexual, por exemplo) que no esto ligadas a quaisquer relaes sociais de produo, eles se articulam s lutas de classes pela via poltico-ideolgica, que se desdobra em comportamento eleitoral e/ou base de sustentao partidria e parlamentar, na medida em que fazem opes polticas no contexto em que atuam, desenvolvendo identidades autocentradas ou de solidariedade com outros grupos sociais, oprimidos ou no; pois a luta de classes o campo no qual todos os agentes polticos atuam e, por conseguinte, tm de estabelecer alinhamentos com vistas consecuo dos seus fins e/ou fortalecimento da sua posio.

    II

    A onda neoliberal que assolou a Amrica Latina a partir da dcada de 1980 representou, no plano poltico, a derrota das classes trabalhadoras e, conseqentemente, dos movimentos sociais classistas. A par disso, tambm foi o perodo de uma enorme proliferao das ONGs2, o que foi interpretado por muitos analistas como sendo o fim dos movimentos de mobilizao, coisa do sculo XX, agora substitudos por movimentos propositivos quase sempre apadrinhados por uma ONG responsvel por transformar suas propostas em projeto de desenvolvimento social, a forma da cidadania no sculo XXI.

    O fracasso da onda neoliberal na Amrica Latina e por toda parte, como era lgico esperar ensejou o ressurgimento de uma grande variedade de movimentos sociais que pem em xeque o lugar-comum daquela onda, de que os movimentos do sculo XXI substituiriam as bandeiras de classes, supostamente anacrnicas, pelas da cidadania; termo utilizado aqui no sentido jurdico-poltico, pois alm de polissmico, ele apropriado pelos prprios movimentos com sentidos diversos, como veremos mais adiante.

    Esses movimentos alguns deles anteriores onda neoliberal, assinale-se posicionam-se a partir do lugar ocupado por sua base social na estrutura de classes das suas respectivas formaes sociais e fazem a crtica aberta do carter de classe do Estado capitalista, com perdo da redundncia.

    2 Para um balano crtico, veja Coutinho (2005).

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    Eles se espalham por toda a Amrica Latina e formulam suas demandas a partir da grande diversidade de condies sociais engendradas pelo capital na regio, desde aquelas diretamente ligadas ao conflito capital/trabalho na produo quelas relacionadas diversidade tnica da regio, passando pelas da espoliao urbana3. Apesar disso, eles tm em comum a crtica s polticas neoliberais e uma perspectiva difusa de ruptura com o capitalismo, pois no tm um programa para isso e a variedade de opinio sobre a questo muito grande.

    Todavia, essa variedade de opinio sobre a ruptura com o capitalismo no sinal de fragilidade, mas de fecundidade na medida em que repousa num trabalho poltico paciente de construo da base para a unidade, na valorizao dos mecanismos democrticos de participao e deciso e num processo de construo do conhecimento que enfatiza o trabalho de formao do prprio movimento, sem desprezar a contribuio dos intelectuais de esquerda.

    Assim, a fragmentao e a diversidade no desapareceram, mas foram ressignificadas, mesmo por que um dado da realidade constatado pelos prprios movimentos, que tais caractersticas so antes a condio de existncia dos membros das classes trabalhadoras segundo a estrutura da diviso social do trabalho, assim como das diferentes inseres scio-culturais dos indivduos. Desse modo, essa condio vista no como um dado natural do processo de modernizao das sociedades, identificado por uma certa sociologia com o capitalismo e superada apenas pela comunidade de interesses de indivduos abstratos, registre-se posta pelo Estado; mas como uma condio a ser superada pela construo do poder popular (expresso utilizada pelos prprios movimentos) a partir da organizao da produo social em bases coletivas.

    Neste ponto, os termos da ao poltica se invertem: no mais a comunidade de interesses abstrata posta pelo Estado, representante de indivduos abstratamente iguais e estruturalmente desiguais agindo em competio uns contra os outros para a realizao dos seus fins privados; mas uma efetiva comunidade de interesses expressa pela situao comum de todos em face dos meios de produo, o que d suporte para que as clivagens de carter scio-cultural no se transformem em antagonismos em que grandes grupos de indivduos se neguem mutuamente (Cf. Callinicos, 1992).

    Pode-se afirmar, em termos gramscianos, que tais movimentos tomam o estgio econmico-corporativo como um dado inescapvel do trabalho de mobilizao e projetam, como um fim para sua ao poltica, a construo da hegemonia das classes trabalhadoras; por isso, so elas mesmas em movimento, segundo o conhecimento sobre sua posio na estrutura de classes e o estgio de organizao alcanados.

    No por acaso, os governos neoliberais adotaram uma poltica para os movimentos sociais aparentemente contraditria, mas funcional do ponto de vista da

    3 Um balao desses movimentos encontra-se em Seoane, Taddei e Algranati (2006).

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    dominao das classes trabalhadoras. Na medida em que neutralizaram o potencial contestador da bandeira da participao, do final dos anos 1980, tornando-a poltica de Estado executada por agncias estatais responsveis pelas polticas sociais, e pelas ONGs a elas ligadas, com isso controlando os movimentos cuja base social cliente dessas polticas e; por outro lado, queles movimentos acima referidos, os governos reservaram uma forte represso policial e a criminalizao jurdica, alm de fazerem ouvidos de mercadores s denncias contra a ao de foras paramilitares4.

    Assim, a histria das ltimas trs dcadas de democracia na Amrica Latina tm sido a do paradoxo ou do mal-estar da democracia, na feliz expresso de Machado (2006) entre democratizao e neoliberalismo ou, em termos mais precisos, entre a consolidao das formalidades democrticas (aquelas necessrias legitimidade do rito eleitoral), por um lado, e, por outro, a restrio das manifestaes polticas autnomas das camadas populares. O Brasil apresenta a particularidade de ter adotado canais de participao popular no texto constitucional. Contudo, esse avano foi contido em limites bastante estreitos na medida em que a regulamentao desses canais logrou xito em restringir as manifestaes dos interesses populares nos termos do processo de abstrao social tpico da democracia burguesa.

    III

    Os ritos democrticos da sociedade capitalista so processos de abstrao social, das eleies s pendengas parlamentares, passando pela atuao da imprensa e do judicirio no que se refere matria poltica. Atravs desses processos, todas as diferenas sociais so diludas na forma jurdica igualitria na qual o que subsiste como referncia objetiva comum na aparncia a nica, como veremos mais adiante aos indivduos so regras procedimentais, de modo que, respeitadas essas regras, no interessa aos indivduos as motivaes de cada um nem mesmo a questo de se h uma necessidade subjacente a tais motivaes.

    Reside nessa caracterstica da democracia burguesa as duas preocupaes bsicas da cincia poltica liberal: 1) o aperfeioamento institucional e 2) como tratar as diferenciaes persistentes. A primeira preocupao dessa forma democrtica est relacionada ao que podemos designar como imperativo negativo: a indiferena quanto s diferenas de cada um e, como positivo: a possibilidade cada vez mais aberta de que cada um possa agir apenas movido por suas motivaes subjetivas.

    Dessa forma, as instituies devem ser capazes de prover a si mesmas regras que permitam o mximo de impessoalidade nas suas operaes regulares, de modo que

    4 As prises de militantes do MST, conforme dados disponveis no stio www.mst.org.br, atingiram o nmero de 2.016 no perodo de 1989 a 2003. Aton Fon Filho, em artigo intitulado Aumenta represso do Estado contra movimentos sociais urbanos, observa que O processo de criminalizao dos movimentos sociais no se limita, portanto, a sua expresso rural, no combate ao MST. Tem, ao contrrio, encontrado cada vez mais uma face urbana (...) e os dados do relatrio Derechos Humanos en el Campo Latino-Americano: Brasil, Guatemala, Honduras y Paraguay demonstra o mesmo problema nesses pases. Ambos disponveis no stio www.social.org.br.

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    sejam satisfeitos os dois imperativos mencionados no pargrafo anterior, ou seja, que o respeito aos direitos individuais sejam a mais valorizada mxima institucional. Na ocioso advertir que a crtica no dirigida idia de direitos individuais, mas ao fato de que nesse processo de abstrao essa idia acaba reduzida possibilidade de manipulao do trabalho abstrato, como se ver mais adiante.

    No que se refere segunda preocupao, a observao emprica demonstra que certas diferenas ameaam solapar a legitimidade do sistema poltico na medida em que o seu funcionamento percebido como incapaz de diluir tais diferenas ou, o que quase a mesma coisa, que o sistema econmico produz, tolera e/ou instrumentaliza diferenas que so consideradas inaceitveis pelo ideal liberal de igualdade consubstanciado no sistema poltico, resultando da uma vertente crtica no interior do pensamento liberal que toma o conceito de reconhecimento como o caminho apontado pelos movimentos (Fraser, 2001 e Honneth, 2001).

    Nessa perspectiva, os movimentos so tomados como interlocutores numa ampla e complexa rede de atores diversos que buscam obter reconhecimento para suas demandas, identidades e diferenas, tendo como referncia um quadro normativo e os procedimentos legtimos nele contidos (Habermas, 2003). A conquista mxima dos movimentos de acordo com essa viso de democracia uma espcie de resignao orgulhosa, pois apesar de as ltimas trs dcadas de polticas neoliberais terem desencadeado um ataque implacvel aos direitos sociais e restringido a um mnimo os polticos, nunca a retrica de reconhecimento dos movimentos como interlocutores legtimos foi to utilizada.

    A explicao dessa contradio est no processo de abstrao social, acima mencionado, e que retomo agora para fins de crtica. A abstrao dos ritos democrticos pressupe a abstrao econmica e, esta, aquela. essa dialtica que as fazem reforar-se mutuamente, compondo um quadro de deslocamento em espiral (Melluci, 2001) ao qual voltarei mais adiante dos significados que os agentes atribuem s suas aes.

    Marx apresenta um conceito de abstrao real, segundo o qual: Para medir os valores de troca das mercadorias pelo tempo de trabalho que contm, necessrio que os diferentes trabalhos sejam eles prprios reduzidos a um trabalho no diferenciado, uniforme, simples; em suma, a um trabalho que seja qualitativamente o mesmo e apenas se diferencie, portanto, quantitativamente. E complementa: Essa reduo aparece como uma abstraco, mas uma abstraco que se faz diariamente no processo da produo social. A resoluo de todas as mercadorias a tempo de trabalho no uma abstraco maior nem menos real do que a resoluo a ar de todos os corpos orgnicos(1974: 38).

    Essa abstrao, na estrutura econmica ou na infra-estrutura, se se preferir a terminologia consagrada na tradio marxista se realiza em duas esferas, a da produo e a da circulao. Na esfera da produo, a reduo dos diferentes trabalhos a um trabalho indiferenciado, uniforme e simples resulta da cooperao

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    consubstanciada na grande indstria (Marx, 1988), onde cada trabalhador individual no passa de um apndice da maquinaria e, portanto, as marcas do trabalho de cada um foram apagadas no produto final. Todavia, essa abstrao percebida como meramente tcnica na medida em que uma exigncia do processo produtivo.

    Por outro lado, o trabalhador entra nesse processo de abstrao na esfera produtiva atravs do que ocorre na da circulao na medida em que as mercadorias referem-se umas s outras como valor de troca, indiferentes s suas propriedades particulares, incluindo-se a a fora de trabalho, cujo nico critrio objetivo de mensurao o tempo de trabalho empregado na produo das demais mercadorias. nesse ponto que a abstrao econmica pressupe a jurdico-poltica, pois a constituio de cada indivduo trabalhador como sujeito de direito condio necessria para a circulao da fora de trabalho como mercadoria venda, tanto para que o trabalho deixe de ser compulsrio e passe a ser objeto de contrato como para que se complete o ciclo de monetarizao da economia com a procura no mercado por parte dos trabalhadores dos bens necessrios sua reproduo.

    Essa abstrao, que nesse plano apenas jurdica, torna-se tambm poltica na medida em que, no plano lgico, a categoria sujeito de direito inclui tanto os direitos civis como os polticos, apesar de empiricamente a burguesia ter oferecido resistncia poltica por toda parte em reconhecer os direitos polticos aos produtores diretos. Essa abstrao poltica culmina com a representao pelo Estado de indivduos abstratos, apoiados na funo poltica de representar o povo-nao (Poulantzas, 1977), o que torna necessrio que os ritos democrticos sejam tambm processos de abstrao. Marshall (1967) entende os direitos polticos como participao no exerccio do poder poltico, que tm como ncleo os direitos civis, entendidos como direito de ir e vir, propriedade (sobretudo este, j que os demais o pressupem) e de concluir contratos. O direito como resultante do processo de abstrao social acima descrito escapa a Marshall, que o concebe como deontologia imanente cidadania e, esta, como um status social que abrange o comportamento social esperado do indivduo e, reciprocamente, para com ele.

    Essa concepo implica, conforme crtica de Saes (2000) a Marshall, conceder primazia explicativa ao desenvolvimento institucional em detrimento das lutas populares que o impulsionaram, alm de ter uma perspectiva `idlica do processo de evoluo da cidadania, isto , extremamente otimista quanto agregao de novos direitos, o que est em franca contradio com a retirada de garantias jurdicas a direitos trabalhistas e sociais a partir da dcada de 70 do sculo XX, tanto nos pases centrais do capitalismo, onde se instalou um welfare state no ps-guerra resultante de amplas negociaes polticas entre os partidos social-democratas (os partidos operrios da poca) e os partidos burgueses, quanto na periferia do sistema, caso do Brasil, onde vige um Estado de Mal-Estar desde a primeira repblica.

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    Domingues, apropriando-se criticamente da Marshall, na linha do que denominei aqui vertente crtica do pensamento liberal5 , considera os diversos processos de abstrao social, porm colocando-os lado a lado, sem tomar como objeto da reflexo o enraizamento dialtico de um no outro, o que lhe permite detect-los e, ao mesmo tempo, concluir que A revoluo total e a recusa completa dos mecanismos de desencaixe e suas conseqncias da parte de Marx so patentemente inaceitveis (...). (2001: 238).

    Com isso, tanto em Marshall como em Domingues, a relao dialtica de determinao econmica da poltica e a sobredeterminao poltica da economia (Althusser, 1967 e Poulantzas, 1977) so substitudas pela idia de uma esfera poltica regida por princpios deontolgicos. Essa viso de poltica, quando associada recusa de totalizao e noo de mutabilidade e variabilidade do ambiente de tomada de decises polticas (Melucci, op. cit.), leva ao que denominei acima deslocamento em espiral dos sentidos atribudos poltica devido mutabilidade e variabilidade de referncias dos agentes e, por conseguinte, a uma inflao de demandas por normatizao dirigida ao Estado, sem soluo vista, j que todos que assim se colocam diante dos problemas sociais pensam regular a vida social a partir das exigncias prticas do grupo no qual esto inseridos.

    Ironicamente, muitos autores e movimentos que adotam idias como: recusa de uma viso totalizante da poltica, mutabilidade e variabilidade do ambiente de tomada de decises polticas, ausncia de um centro principal de poder, entre outras, porque so idias apoiadas nos elementos fornecidos pelo processo de abstrao social 6 , ainda que eles faam crticas retricas s polticas neoliberais, acabam por apoi-las indiretamente na medida em que apiam propostas como polticas sociais focalizadas (em parceria ou no com ONGs), desregulamentao, valorizao das polticas empresariais de responsabilidade social, etc.; todas compatveis com aquelas idias, o DNA da ideologia do mercado.

    IV

    A democratizao operada pelos movimentos sociais classistas e no interior deles portadora de uma potencialidade explosiva talvez seja mais precisa a adjetivao implosiva para a democracia liberal burguesa, pois, no limite, ela aponta para a substituio do indivduo abstrato pelo concreto. Ou seja, sai de cena o indivduo que se conta em nmero porque a isso que ele reduzido no principal rito poltico da democracia liberal burguesa, pressuposto das demais abstraes polticas, entra o indivduo real partcipe da produo da vida social.

    5 Assinale-se que, por comodidade, utilizo o termo liberal para designar um conjunto de autores diversos entre si e que tm em comum apenas a tomada da igualdade jurdica como ponto de partida, mas que no se reconhecem necessariamente nesse rtulo. 6 Essas idias so apresentadas como caractersticas das sociedades complexas, expresso preferidas pelos autores que tenho chamado genericamente de liberais, supem a categoria sujeito de direito como mediadora dos processos interativos entre os atores sociais.

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    No apenas em movimentos de base territorial, como o MST e o MTST, como tambm em outros, as assemblias de base para deliberao coletiva um rito democrtico bsico, no por que tudo se decida a, das questes operacionais tomada de posio frente s grandes questes nacionais e internacionais, o que evidentemente impossvel. O carter central das assemblias de base est no fato de que nelas todos so produtores das condies gerais da vida social, ou seja, o ncleo bsico da idia de cidadania presente em vrios movimentos.

    Assim, cidado deixa de ser um indivduo abstrato portador de prerrogativas subjetivas, definidas apenas formalmente, para ganhar um contedo concreto (o de produtor direto), premissa das prerrogativas subjetivas que cada um tem em face dos demais e da coletividade e que podem ser definidas em termos precisos de necessidades individuais e coletivas e de ser membro ativo no debate pblico sobre os modos de satisfao dessas necessidades. Embora de forma extremamente sinttica, essa a perspectiva presente na afirmao de que

    para ns um importante desafio construir espaos de discusso e definio coletiva nas comunidades e nos acampamentos. Precisamos nos acostumar com a experincia de que discutir juntos e fazer ns mesmos, sabemos que isto no fcil, nem de uma hora para outra mas, precisamos construir assemblias, conselhos, ncleos e tudo o mais que, junto com a formao poltica constante, prepare cada companheiro para assumir a direo do navio da luta por uma vida mais digna7.

    Certamente o desafio ainda maior do que este colocado pelas tarefas imediatas do movimento 8 , pois o objetivo poltico de transformao social impe a necessidade de conceber formas institucionais que estenda esse princpio de poder popular do local e do setorial para o nacional e o geral. Esses novos movimentos sociais classistas no pretendem reinventar a roda, ao contrrio, dialoga com toda a histria anterior de lutas das classes trabalhadoras e com o legado terico dos clssicos do marxismo.

    Os rumos que esses movimentos tomaro uma questo aberta, por duas razes bsicas: a diversidade entre eles muito grande e, embora se coloquem genericamente no campo das classes trabalhadoras, nem todos se definem como socialistas e, os que assim se definem, o fazem sua maneira, indicando que h um longo caminho a percorrer at a unidade de programa de luta e de objetivos estratgicos; e tambm porque em ambos os casos eles se movimentam no terreno das possibilidades histricas.

    7 Definio de construo do poder popular, na cartilha do MTST, disponvel no stio www.mtst.info. Definies semelhantes aparecem no caderno de debates, intitulado Periferia do Capital e Poder Popular, nas contribuies de diversos movimentos que participaram da Conferncia Poltica, realizada em Ribeiro Preto/SP, nos dias 26, 27 e 28 de outubro de 2006. 8 A percepo desse desafio mais amplo tem sido objeto de debates nos vrios fruns desses novos movimentos sociais classistas.

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    Assim, as formas de democracia praticadas por esses movimentos esto longe de ser um modelo acabado, o que nem eles mesmos afirmam. Ainda assim, essas experincias e as reflexes que as embasam deixam claro duas coisas: os limites da democracia burguesa, mesmo nas suas concepes mais recentes, baseada na recuperao do conceito de sociedade civil (Costa, 1996) e no de esfera pblica; e a necessidade terica e poltica tanto lgica quanto material de uma anlise propositiva sobre um conceito socialista de democracia.

    Tome-se as contribuies de Habermas, pela influncia no pensamento poltico liberal contemporneo. Para ele, A esfera pblica pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicao de contedos, tomadas de posio e opinies; nela os fluxos comunicacionais so filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opinies pblicas enfeixadas em temas especficos. (op. cit.: v. II, p.92)

    Em sintonia com esse conceito, ele afirma que Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pblica tem que reforar a presso exercida pelos problemas, ou seja, ela no pode limitar-se a perceb-los e identific-los, devendo, alm disso, tematiz-los, problematiz-los e dramatiz-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar. (p. 91)

    Uma crtica contribuio de Habermas sobre o tema exigiria um trabalho dedicado apenas a essa tarefa, dada a magnitude da sua obra. Todavia, essas formulaes bastam para sustentar a afirmao de que o conceito de democracia permanece ligado ao de processo de abstrao social, na medida em que tem como protagonista um ator racional-interessado e a categoria sujeito de direito como mediador dos processos interativos, capturando o potencial de crtica dos movimentos aos termos do capital.

    No que se refere a um conceito socialista de democracia, por limite de espao e por coerncia temtica, deixo de examinar a enorme contribuio da tradio marxista sobre o tema, para me concentrar na apresentao de alguns apontamentos relativos vinculao das prerrogativas dos indivduos sua condio de produtores diretos, implcita nas formulaes desses vrios movimentos, fio condutor do meu argumento at aqui e negao do fundamento da democracia burguesa, o indivduo abstrato.

    Na medida em que alguns movimentos sociais classistas estabelecem essa vinculao, potencialmente eles colocam a possibilidade de desvendar o mistrio do direito burgus atravs da prpria experincia, qual seja, o de que tal como nas formaes sociais pr-capitalistas trata-se da prerrogativa que uma classe arroga para si de expropriar o produto do trabalho alheio. Com a diferena de que nas formaes sociais capitalistas essa expropriao feita principalmente atravs do poder de manipulao do dinheiro, expresso mxima da abstrao social; revelando com isso os limites da luta poltica de classes no interior de uma formao social burguesa.

    Essa idia geral est longe de ser uma novidade na literatura marxista (Naves, 2000; Poulantzas, 1969; Psukanis, 1989; Edelman, 1976, para ficar em poucos

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    exemplos). A importncia desse apontamento est em incluir esse postulado 1) nos estudos sobre movimentos, 2) na reflexo sobre a democracia e, 3) last by no least, na reflexo sobre a tese de Marx de que o direito igual continua sendo aqui, em princpio o direito burgus, ainda que agora o princpio e a prtica j no estejam mais em conflito, enquanto que no regime de intercmbio de mercadorias, o intercmbio de equivalentes no se verifica seno como termo mdio, e no nos casos individuais. (grifos no original) (1983: 214), que sustenta o lema do socialismo, a cada um segundo o seu trabalho.

    No caso dos estudos sobre movimentos, o postulado da vinculao das prerrogativas individuais condio de produtor direto torna-se um critrio para distinguir entre os movimentos sociais que se colocam no campo das classes trabalhadoras, aqueles cuja prtica coloca em perspectiva a conquista do socialismo ou tem potencial para se desenvolver nessa direo.

    Com relao democracia, a importncia desse postulado dupla. Oferece um critrio de crtica da democracia burguesa ligado ao fundamento da produo social, o que permite ultrapassar o debate sobre as formas institucionais, posto que o princpio que as anima a questo fundamental, por um lado e, por outro, um critrio de avaliao das prticas democrticas, no interior dos movimentos socialistas, tendentes a tornarem-se instituies numa forma social superior.

    Por fim, no que diz respeito tese de Marx, embora concorde com Naves (2006) que a adoo de categorias jurdicas por parte dos movimentos bloqueia o conhecimento dos fundamentos da produo e reproduo da sociedade e o acesso a toda ao revolucionria; a experincia dos movimentos tem demonstrado a inevitabilidade da instrumentalizao das categorias jurdicas, seja para se defender seja para avanar em suas conquistas.

    Inevitabilidade que devida tanto legitimidade de que goza a ideologia jurdica9 quanto importncia do Estado para a reproduo de todas as classes no capitalismo tardio. Assim sendo, a adoo de outra forma jurdica desbloqueia o caminho para o debate sobre a necessidade e os limites dessa instrumentalizao e sobre as condies em que o direito burgus permanece existindo no socialismo.

    Em outro lugar afirmei que

    O fato histrico de que a idia de igualdade tenha surgido no campo da religio antes de se difundir para outras esferas da vida social em nada altera o fato, tambm histrico, de que ela se universalizou como princpio jurdico abstrato no sentido subjetivo apenas quando o desenvolvimento econmico encontrou um parmetro trabalho abstrato,

    9 No momento em que escrevo a imprensa (Folha de So Paulo e O Estado de So Paulo de 14/04/07) noticia uma operao da Poltica Federal, por ela mesma denominada Furaco, com alguns magistrados presos por envolvimento com o crime organizado. Todavia, importante ter em vista que uma ideologia consolidada como prtica discursiva na vida cotidiana adquire uma legitimidade moral que, em larga medida, independe dos profissionais que a produz em aparelhos ideolgicos especficos.

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    no sentido marxiano de abstrao real de igualao entre os homens, que serve de suporte material forma igualitria subjetiva. (Pinheiro, 2006: 152).

    Isto revela uma contradio entre forma e contedo, que obscurecida pelo processo de abstrao social. Diferentemente disso, o postulado das prerrogativas individuais ligadas condio de produtor direto tem como pressuposto evidente o trabalho concreto, resultando na conciliao entre forma e contedo, alm de tornar as relaes sociais transparentes, ainda que no integralmente, e deslocar o trabalho abstrato do campo das relaes sociais, ou seja, da condio de mediador das relaes entre os indivduos, para o da tecnologia, exigncia do grau de desenvolvimento atingido pelas foras produtivas; locus onde a necessidade social de administrao da produo impe adotar um critrio contbil objetivo.

    Bibliografia

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