Jorge Henrique Costa Junior - 2011 - Artigo - CONSTITUIÇÃO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E CAPITALISMO
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CONSTITUIÇÃO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E CAPITALISMO
Jorge Henrique Costa Júnior1
RESUMO
Através de um estudo da Constituição federal de 1988 e da construção do Estado brasileiro, de forma materialista, intenta-se responder o problema da inefetividade dos direitos fundamentais por meio desse instrumento jurídico. Faz-se um mínimo resgate da história brasileira como elemento para o entendimento da atualidade e o reconhecimento do Estado disputado por classes antagônicas, mas hegemonizado e controlado pela burguesia no atual momento histórico, agindo o Estado portanto com o intuito de preservar os interesses de classe desta. Estabelece-se uma discussão acerca da contradição entre a propriedade privada como um direito fundamental elencado no artigo 5º da referida Constituição, e suas implicações no âmbito da efetividade dos demais direitos. Bem como busca-se explicitar o caráter ideológico da referida carta no sentido de pretender esconder o posicionamento de classe que todo Estado encerra.
Palavras-chave: Constituição. Efetividade. Materialismo.
ABSTRACT
Através de um estudo da Constituição federal de 1988 e da construção do Estado brasileiro, de forma materialista, intenta-se responder o problema da inefetividade dos direitos fundamentais por meio desse instrumento jurídico. Faz-se um mínimo resgate da história brasileira como elemento para o entendimento da atualidade e o reconhecimento do Estado disputado por classes antagônicas, mas hegemonizado e controlado pela burguesia no atual momento histórico, agindo o Estado portanto com o intuito de preservar os interesses de classe desta. Estabelece-se uma discussão acerca da contradição entre a propriedade privada como um direito fundamental elencado no artigo 5º da referida Constituição, e suas implicações no âmbito da efetividade dos demais direitos. Bem como busca-se explicitar o caráter ideológico da referida carta no sentido de pretender esconder o posicionamento de classe que todo Estado encerra.
Keywords: Constituição. Efetividade. Materialismo.
1 Formando em Direito.
1 INTRODUÇÃO
O presente Artigo tem por tema a Constituição Federal de 1988 e sua inefetividade
enquanto garantidora dos direitos que a própria elenca como fundamentais do Ser humano.
Objetiva-se, com este trabalho, dessa forma, encaminhar uma linha de raciocínio lógica,
materialista e racional, no sentido de apontar, mesmo que embrionariamente, a razão por
detrás da inefetividade das normas fundamentais da referida Constituição Federal.
Em primeiro lugar, em uma brevíssima análise superficial da gênese e
desenvolvimento do Estado brasileiro, buscar-se-á identificar seu conteúdo de classe. Quanto
à Constituição de 1988, especificamente, será discutido o sistema sócio-econômico
estabelecido, e suas consequências em relação aos direitos fundamentais pretensamente
previstos na Carta, mais precisamente em seu artigo 5º. Por fim, concluir-se-á criticamente
dentro da temática proposta.
2 O ESTADO
O Estado é uma criação histórica, surgiu com o aparecimento da propriedade privada
e em virtude desta. Sem o Estado não há propriedade privada, e sem propriedade privada não
há necessidade do Estado. É do Estado que emana a legitimidade do possuidor e a
subserviência do despossuído. É a partir dele que se organiza a sociedade para que
determinadas relações sejam postas e protegidas. Para funcionar com maior eficiência, o
Estado deve aparentar neutralidade, imparcialidade. Deve estar como que pairando sobre a
sociedade, agindo nos excessos individuais, e não em sua efetiva atividade de classe
(ENGELS, 2010). Mas a própria existência do Estado indica que não é neutro, indica sim que
tal sociedade “se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por
antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar” (ENGELS, 2002, p. 191). Tais
antagonismos são aqueles impostos pela luta de classes: de um lado a classe possuidora, de
outra a despossuída2.
A atuação estatal na manutenção do status quo depende da intensidade com que
ocorre o atrito entre as classes3. Em épocas em que a luta de classes é aberta, o Estado precisa
2 “Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado”. (ENGELS, 2002, p. 193).3 “[…] essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa
intervir com maior intensidade; quando, em épocas em que a luta de classes encontra-se mais
amena ou dissimulada, o Estado tende a ser mais manso e preservar sua imagem de
neutralidade. Porém, de forma alguma a luta de classes deixa de existir, como dito, a própria
existência do Estado depõe nesse sentido.
O caráter do Estado varia de acordo com as relações de produção estabelecidas. É
possível, pois, distinguir diferentes Estados para diferentes relações de produção: escravista,
feudal, capitalista, etc. (HARNECKER, 1983). Nos limites desses tipos de Estados, por sua
vez, “podem ocorrer diferentes formas de governo; por exemplo, dentro do tipo de Estado
capitalista ou burguês podem existir formas de governos que vão desde a república
‘democrática’ até a ditadura militar”. (HARNECKER, 1983, p. 122).
Como superestrutura jurídico-política que é, o Estado é criado para manter
determinadas relações de produção ao mesmo tempo que é mantido por tais relações. Assim
como a ideológica, a superestrutura jurídico-política mantém com a estrutura econômica
(relações de produção) um relação dialética de existência, o Estado mantém essas relações e é
mantido pelas mesmas.
2.1 O ESTADO BRASILEIRO
O Estado brasileiro surgiu, primeiramente como delegação de poderes do Estado
feudal português, e depois como mantenedor das relações de produção escravistas.
Muito embora o Brasil fizesse parte da consolidação capitalista na Europa, o modo
de produção que predominou, com a colonização, na formação social brasileira, foi o
escravista. A formação de um Estado escravista no Brasil é compreendida pela conjuntura
sócio-econômica encontrada aqui. Não havia a propriedade privada das terras, o que não
impedia que a natureza fosse utilizada para a obtenção dos meios de subsistência, ferindo o
pressuposto essencial do capitalismo. Com amplas terras desabitadas e acesso livre à natureza,
uma mão de obra lucrativa só se pode impor sob violência e rígido sistema de vigilância.
Não estavam, pois, dadas as condições históricas para que a força de trabalho se
tornasse uma mercadoria, e assim surgisse o modo de produção capitalista, quais sejam: que
os trabalhadores disponham do próprio corpo livremente, e que ao mesmo tempo estejam
despossuídos dos meios de produzir sua própria vida. No caso brasileiro, a produção
luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado”. (ENGELS, 2002, p. 191).
monocultora não funcionaria com trabalhadores livres, a partir do momento que se sentissem
explorados, bastaria que criassem uma sociedade própria, semelhante à dos povos nativos, nas
abundantes terras desabitadas e ricas4.
A questão da imigração europeia encontra-se diretamente ligada à escravidão, ambas,
nesse período, são elementos da transformação do regime de trabalho de que a infraestrutura
necessitava (PRADO JÚNIOR, 1986). A segunda metade do século XIX apresenta a mais
significativa transformação econômica, a qual foi resultado, em última instância, da
emancipação política e econômica do Brasil, embora a primeira metade desse século tenha se
caracterizado por uma crítica transição que remonta à 1808. A partir de meados de 1850, as
forças produtivas expandem-se largamente (PRADO JÚNIOR, 1986).
Com o fim das relações de produção escravistas – o que não quer dizer que tenham
deixado de existir completamente –, as superestruturas precisavam ser rearranjadas para dar
conta da nova dinâmica social. A superestrutura ideológica precisaria se desenvolver sem
precedentes, vertente de dominação não tão exigida sob o escravismo; e o Estado ser
necessariamente reestruturado.
O capitalismo não foi advento do golpe burguês de 1889, mas a remodelação
superestrutural efetuada foi de suma importância para que o novo modo de produção se
consolidasse e se desenvolvesse sem entraves na formação social brasileira (SAES, 1985). Os
acontecimentos que culminaram, com o 15 de Novembro, portanto, “não foram mais do que o
coroamento de longo processo. A República não teve nada de acidental; muito ao contrário,
resultou de desenvolvimento progressivo de condições que, no penúltimo decênio do século,
tinham se agravado consideravelmente”. (SODRÉ, 1979, p. 161).
Desde seu início fundado na desigualdade e exploração desvelada, o país produziu a
acumulação necessária ao desenvolvimento do modo de produção capitalista sobre as bases
escravistas, tirando proveito dela mesmo após o rompimento com as relações de produção
anteriores. A classe possuidora de então, proprietária dos meios de produção, os senhores de
engenho, mineradores, cafeicultores, puderam se inserir com facilidade no novo modo de
produção que se desenvolvia. O mesmo não se pode falar dos pobres, escravos libertos,
4 “havendo abundância de terras apropriáveis, os colonos contariam com a possibilidade de produzir a própria subsistência, transformando-se em pequenos proprietários e, especialmente, em posseiros. Em tais condições, obter produção mercantil em larga escala significava assalariar a sua força de trabalho, o que exigiria que os salários oferecidos fossem suficientemente elevados para compensar aos olhos dos colonos, a alternativa da auto-subsistência. Assim sendo, o trabalho compulsório era mais rentável que o emprego de trabalho assalariado. Além disso, o tráfico negreiro abriu um setor do comércio colonial altamente rentável e representou poderosa alavanca à acumulação de capitais”. (CATANI, 1999, p. 64-65).
proletários imigrantes, e tantos outros que embarcaram na mesma “viagem econômica” sem
qualquer patrimônio, apenas com a força de trabalho a ser vendida em troca do salário.
Sempre aliada e severamente subordinada à grande burguesia imperialista, a
burguesia nacional nasceu numa posição menor daquela dos países europeus e norte-
americanos, devido ao atraso com que o Brasil se inseriu no contexto capitalista e os
resquícios coloniais da relação com a Europa.
O Brasil que se segue com os acontecimentos de 1964 e sua história contemporânea
é fruto direto dessa formação histórica típica e de certa forma semelhante à de seus vizinhos
latino americanos. O golpe de 1964 foi apenas um dos episódios em que a classe dominante se
viu acoada frente à mínima organização popular, e abertamente, utilizando os instrumentos
mais nitidamente repressivos do Estado, agiu energicamente para a manutenção de sua ordem
classista.
O modo de produção capitalista já posto e cristalizado encarna o conservadorismo da
preservação de privilégios, antirrevolucionário. Em outras palavras, a revolução burguesa no
contexto do capitalismo dependente, como o caso brasileiro, decorre da necessidade inerente
às leis da acumulação, assim, dada a revolução burguesa nos países da vanguarda industrial,
as revoluções burguesas nas periferias são induzidas e não gestadas por elas próprias; fazem
parte das necessidades do capital hegemônico, não da sociedade periférica (FERNANDES,
1987).
3 CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Pode-se dizer que a Constituição brasileira de 1988 tem muito dos seus preceitos
inspirados pela revolução francesa, cravados em sua “Declaração dos Direitos do Homem e
do cidadão”, de 1789. Em tal período histórico – séculos XVIII e XIX – as declarações de
direitos visavam à consolidação da liberdade burguesa frente ao Estado e a tomada deste (DA
SILVA, 2007). A burguesia “que desencadeara a revolução liberal, estava oprimida apenas
politicamente, não economicamente. Daí por que as liberdades da burguesia liberal se
caracterizam como liberdades-resistência ou como meio de limitar o poder, que, então, era
absoluto”. (DA SILVA, 2007, p. 159).
Ao conquistar o Estado, a burguesia só consegue dar conta das suas conquistas em
face da monarquia absolutista, da sua classe e não do povo. O Estado liberal e a liberalização
da economia são os únicos avanços de que podem proporcionar sem que se extingam como
classe. Todos os problemas decorrentes e posteriores a estes não encontram solução no
interior da ordem burguesa.
A propriedade privada existia antes da revolução francesa, e a classe burguesa, que
efetivamente dava direção à revolução, por ser especialmente detentora do poder econômico e
da propriedade privada, não desejava ser revolucionária quanto a isso. Pode-se dizer que a
burguesia revolucionou a superestrutura jurídico-política para o domínio de sua classe e
hegemonizou o modo de produção capitalista que já tomava espaço antes da ruptura com o
feudalismo.
A mera igualdade formal trazida como inovação pelas declarações e constituições
burguesas é a de decorrência direta da liberdade frente ao Estado, ou seja, todos são
igualmente desatados e desvinculados deste. Os direitos de primeira geração, aqueles que, em
tese, limitam as liberdades do Estado, basicamente garantindo as liberdades individuais, são
parcialmente verdadeiros. O Estado não interfere nas liberdades dos seus cidadãos, os que as
têm, obviamente. Como se o seres humanos fossem livres, bons, perfeitos e acabados em sua
individualidade. O Estado deveria intervir apenas para que os homens não estraguem a
perfeição da existência individual dos outros. O fundamento do direito individualista que não
enxerga o homem como parte do todo, e sim como seres atomizados que se organizam em
sociedade apenas por desejo de socializar aos fins de semana. O Estado aparece, portanto,
com seu caráter mais puro, de polícia.
A segunda geração de direitos é concebida com o intuito de remediar essa primeira
condição para aqueles cuja liberdade não emancipa, oprime. Estar livre, sem propriedades,
numa sociedade capitalista, pode ser mais degradante do que estar cativo de um Senhor de
escravos. Essa segunda geração propõe igualdade. Porém, tais direitos, sociais, contradizem a
primeira geração, ou seja, precisam negá-la para que se efetivem. Precisam agir de forma a
limitar a liberdade de alguns de seus cidadãos para que a liberdade dos outros seja menos
opressora. Igualdade pressupõe não igualdade teórica de direitos, mas igualdade material de
vida numa sociedade.
O simples fato de o Estado colocar a liberdade econômica como seu principal
fundamento já caracteriza sua posição de classe. Um Estado, para garantir a liberdade – aqui
se fala eminentemente de liberdade econômica obviamente, a única liberdade de que precisa o
Estado garantir – deve agir objetivamente, e não deixar de agir, como parece. O Estado liberal
é um Estado extremamente ativo a fim de fazer valer suas postulações. É, sobretudo, um
Estado policial. Um Estado que age em prol da classe possuidora, garantindo-lhes a liberdade
e a legitimidade da sua dominação. Uma ditadura de classe, portanto.
Ideologicamente se coloca como pai de todos, provedor dos direitos da coletividade,
imparcial, justo. O que, de fato, não passam de argumentos ideológicos para encobrir sua
essência classista5. O Estado burguês, “que exerce a ditadura da burguesia por meio da
república democrática, não pode reconhecer perante o povo que serve à burguesia, não pode
dizer a verdade, é obrigado a ser hipócrita”. (LENIN, 2005. p. 195).
Não é por motivos desconhecidos, paranormais, ou cármicos, que os direitos de
segunda geração – sociais, promovedores da igualdade e justiça social – não são postos em
prática com a importância que merecem. Não o são por sua impossibilidade, por ser a
efetivação destes a dilapidação do reino das “liberdades” desiguais de classe6.
É de se destacar, dessa forma, que os direitos que visam a uma atuação estatal, no
sentido de garantir a igualdade, de proporcionar a todos uma existência digna, possuem uma
contradição essencial com o caráter de classe do próprio Estado burguês.
3.1 CAPITAL, CAPITALISMO E TRABALHO
Os Constituintes, ratificaram o sistema sócio-econômico capitalista, defendido com
unhas e dentes pelos governos militares, como principal motivação deste para a deflagração
do golpe de 19647. De fato, o capitalismo foi endossado e levado a um nível superior, tanto de
eficiência quanto de dominação ideológica, com a nova carta magna. Além de aprimorar o
sistema econômico, dando ao Estado prerrogativas para garantir a eficiência do sistema, e de
internalizar e acoitar a repressão passada – até o ano de 2011 não houve a criação de uma
5 “a democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a idade média, continua a ser sempre – e não pode deixar de continuar a ser sob o capitalismo – estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres”. (LENIN, 2005. p. 140).6 “no mais democrático Estado burguês, as massas oprimidas deparam a cada passo com a contradição flagrante entre a igualdade formal, que a “democracia” dos capitalistas proclama, e os milhares de limitações e subterfúgios reais que fazem dos proletários escravos assalariados. É precisamente essa contradição que abre os olhos às massas para a podridão, a falsidade e a hipocrisia do capitalismo”. (LENIN, 2005. p. 143).7 “aqui, como no mundo ocidental em geral, a ordem econômica consubstanciada na Constituição não é senão uma forma econômica capitalista, porque ela se apoia inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170). Isso caracteriza o modo de produção capitalista, que não deixa de ser tal por eventual ingerência do Estado na economia nem por circunstancial exploração direta de atividade econômica pelo Estado e possível monopolização de alguma área econômica, porque essa atuação estatal ainda se insere no princípio básico do capitalismo que é a apropriação exclusiva por uma classe dos meios de produção, e, como é essa mesma classe que domina o aparelho estatal, a participação deste na economia atende a interesses da classe dominante”. (DA SILVA, 2007. p. 786).
comissão para apurar, processar e julgar os crimes de tortura durante o recente regime militar
–, a nova Constituição trouxe uma sensação de novidade no país, um clima de recomeço, de
partida de um novo Brasil. Habilidosos foram todas as estruturas ideológicas envolvidas nesse
teatro, pois nada mudou essencialmente, nem em aparência. Enfim, a ordem burguesa
continua posta e sua dominação vigente.
O modo capitalista de produção traz em seu modus operandi a mais avançada forma
de dominação de classe, e as mais avançadas relações do produção exploratórias que a
humanidade engendrou8.
Duas são as condições que devem estar historicamente colocadas para a força de
trabalho se tornar uma mercadoria: primeiramente a existência do trabalhador livre,
desvinculado de senhores e do Estado, que disponha livremente do seu corpo e de suas
propriedades físicas; e em segundo lugar que esse trabalhador esteja despojado dos meios de
produção, precisando, para a manutenção da sua vida, vender sua força de trabalho a quem
possui os meios de produção, aos capitalistas (HARNECKER, 1983). A Constituição prevê
ambos fatores em seu texto, precisamente no caput do artigo 5º, figurando como direitos
fundamentais do homem: a liberdade, e a propriedade.
3.2 ARTIGO 5º
A todos os que vivem neste país é garantido, pelo artigo 5º da Constituição9, o direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, sem, de nenhuma forma
questionar a possibilidade histórica e econômica de se garantir tais direitos aos seus cidadãos.
Todos os seus 78 incisos (em 2011) são perpassados pela mesma contraditoriedade
irreconciliável do caput, ideal versus real. Essas contradições específicas fundem-se numa
única contradição essencial, entre a Humanidade e a propriedade privada, esta atualmente em
sua forma mais aguda e nociva: o Capital.
O Ser humano é um animal. Muitos não se reconhecem assim, mas o são. Essa
afirmação nos leva a concluir que, como animais, regidos pela dialética da vida, temos
8 “a força de trabalho não é uma mercadoria em qualquer sociedade. Nem da escravidão, nem do modo de produção servil, nem na produção mercantil simples os trabalhadores vendiam livremente sua força de trabalho. No primeiro caso, o seu ser pertencia ao amo; no segundo, existia um determinado tipo de relação de dependência que obrigava o servo a realizar uma determinada quantidade de trabalho para o senhor; no último caso, trata-se de produtores independentes que trabalham por conta própria”. (HARNECKER, 1983. p. 232).9 “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, […]”. (BRASIL, 2011).
necessidades naturais, como qualquer outro animal, além das necessidades sociais que nos são
específicas na natureza. Destarte, o Ser humano, para simplesmente continuar vivo, como
animal (natural) ou como humano (social), precisa satisfazer suas necessidades, fazendo-o
através do consumo de seus meios de subsistência, que são valores de uso que satisfazem
“necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou
da fantasia”. (MARX, 1994. p. 41).
Na medida em que a propriedade, no período histórico em que se consolida, que se
confunde com o surgimento do modo de produção escravista mais primitivo, privatiza os
meios de produção, consequentemente priva os demais seres humanos de seus meios de
subsistência, sendo estes os valores de uso que satisfazem as necessidades humanas. A partir
daí, os que não se incluem entre os proprietários, são excluídos da partilha da vida.
Precisando recorrer ao mercado para adquirir as mercadorias (meios de subsistência,
valores de uso) de que necessita, o ser humano só poderá adquiri-los trocando por algo que o
equivale. Deverá, então, levar ao mercado um valor que seja suficiente para se trocar pelos
seus meios de subsistência. Portanto, se o cidadão em foco não é proprietário de meios de
produção dos quais retire alguma renda, só terá sua vida para vender, isto é: sua energia, seu
tempo, sua capacidade intelectual, sua força de trabalho. Só alienando sua força de trabalho
poderá, o humano sem propriedades, adquirir o valor necessário para trocá-lo por sua
existência no mercado.
Sem que aliene sua vida a outro, ao Capital genericamente, não há direito à vida
àquele que não é proprietário de meios de produção. A dinâmica de manutenção da vida dos
não proprietários, assim, consiste em alienar uma parcela diária, maior ou menor, da sua vida
a um proprietário de meios de produção para que este lhe retribua com o mínimo de valores
de uso para que sobreviva e volte ao trabalho no dia posterior.
Traduzindo-se o direito à vida, inscrito no caput do artigo 5º, chega-se a conclusão
que este nada mais é do que o direito do Capital consumir a vida para se valorizar
incessantemente. Não é o povo que tem o direito de dispor da sua vida, mas o Capital. Eis a
vida no capitalismo.
Num sistema capitalista – cujas características principais são a propriedade privada
dos meios de produção e a plena liberdade do trabalhador dispor do próprio corpo – a
liberdade consiste aí uma verdade, mas uma verdade absolutamente dolorosa, pois o
despossuído que se encontra nessa sociedade, por ser livre, e ninguém se responsabilizar por
sua vida, perece livremente. O cidadão que quiser exercer sua liberdade e não vender uma
considerável parcela da sua vida a um capitalista, não se perpetuará no mundo. Se, exercendo
a mesma liberdade, desejar vender uma parcela da sua vida por um preço que considera
adequado e não conseguir, por conta da competição de outros despossuídos no mercado,
também perecerá. Ainda, mesmo que deseje com toda sua vontade, mas por inúmeros
motivos, não consiga vender sua força de trabalho, também não sobreviverá. Enfim, de muitas
formas possíveis a liberdade, quando dissociada à propriedade, torna-se um flagelo à maioria.
Não é, obviamente, esta a liberdade apregoada pelo discurso da constituição. Na
Carta magna a liberdade aparece no sentido mais idealista de dispor do próprio corpo e gozar
de suas faculdades, o que, porém, só é de fato proporcionado à classe proprietária.
Por sua vez, o simples fato da existência da propriedade privada já anula qualquer
esperança de igualdade. O próprio termo já se explica, “Propriedade Privada”, que priva os
que não a possuem. Se o mundo material é finito, não há como todos serem proprietários, por
mais que realmente se deseje isso. Não só, com o capitalismo da nossa época, monopolista, a
propriedade tem se acumulado em poucas mãos.
tomemos as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomemos a sua administração, tomemos a liberdade de reunião ou de imprensa, tomemos a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, e veremos a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra etc., “em caso de violação da ordem”, de fato em caso de “violação” pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. (LENIN, 2005. p. 141).
A hipocrisia a que Lenin chama atenção, diz respeito justamente a impossibilidade de
que tal igualdade se faça valer, mesmo que minimamente, sob a ordem capitalista. Decorrente
da privação da propriedade, e a consequente privação da partilha da produção social, a
desigualdade é material, já que a igualdade é formal. Se a igualdade apenas formal, não
garante de forma alguma, a efetiva igualdade, sua postulação como elemento constitutivo da
sociedade brasileira não passa de uma falácia. A existência da propriedade privada divide a
sociedade em classes, possuidores e despossuídos. Não há como existir qualquer igualdade
diante desse fato.
Num contexto social desigual, que dissemina a pobreza e miséria, e que faz do
homem um ser a cada dia mais animalesco, a segurança é um mito. Aliás, a segurança existe
para a parcela que dela pode dispor, para o resto: a “lei da selva”.
Grande parte dos crimes cometidos no Brasil são empreendidos por motivação
econômica, direta ou indiretamente. O que se justifica em relação a impossibilidade de se
prover uma vida digna com o salário mínimo instituído por lei. Além disso a taxa de
desemprego que oscila, mas está sempre presente, por característica inerente ao capitalismo,
ajudam a compor um alto número de pessoas dispostas a engrossar as estatísticas da
criminalidade. Além, é óbvio, das motivações colaterais que tornam o Ser humano perverso
sob uma sociedade construída sobre a perversidade.
O pensamento burguês, com esse tipo de incongruência fatal, como a do artigo 5º
acima exposto, e o seu idealismo pueril, ao negar as condições materiais em que vive e as
relações postas, “[...] prefere condenar a humanidade ao absurdo, ao nada, do que pôr-se a si
mesmo em discussão.” (BEAUVOIR, 1972. p. 14). Para manter seus privilégios, busca
“inventar uma justiça superior em nome da qual a injustiça seja justificada.” (BEAUVOIR,
1972. p. 10). Destarte, “[...] mesmo mantendo a pretensão universalizadora do seu
pensamento [...] não desiste da vontade particularista de sua classe.” (BEAUVOIR, 1972. p.
13). Nesse contexto, “[...] todo burguês está praticamente interessado em dissimular a luta de
classes; o pensador burguês é obrigado a fazê-lo, se quiser aderir ao seu próprio pensamento.”
(BEAUVOIR, 1972. p. 13).
6 CONCLUSÃO
Procurou-se demonstrar cientificamente que o problema da efetivação da atual
Constituição não é simplesmente pontual, de ineficiência deste ou daquele governo. O
discurso corrente é de que a constituição é boa, o povo brasileiro que não ajuda, os políticos, a
sociedade civil e a economia não ajudam; resumindo, a constituição é boa, a realidade que não
ajuda. Se uma Constituição serve para reger a realidade, a brasileira de 1988 de pouco serve,
pois dissociada da realidade. O problema é estrutural, que coloca o sistema em constante
colapso social.
Em um primeiro momento, aparentemente, a CF/88 arremessa uma infinidade de
normas e espera que alguma vingue, como sementes no fértil solo “em que se plantando tudo
dá”; espera que a realidade material coincida com alguma de suas normas, numa perspectiva
pós-moderna de que “o mundo é o que queremos que ele seja”. Mas uma análise um pouco
mais aprofundada delata as reais intenções, menos ingênuas, da Carta constitucional. Não se
trata de simples idealismo, pois, para alguns privilegiados, a Constituição não tem nada de
programática. Trata-se, em grande parcela, de ideologicamente legitimar a dominação da
classe oprimida pela superestrutura jurídico-política. Passa-se a imagem de que o Estado
brasileiro não é mau, mas neutro. Ou melhor, não apenas neutro, mas “cidadão”, defensor dos
“pobres e oprimidos”. A classe burguesa cumpriu seu papel muitíssimo bem ao forjar, em
todos os sentidos, tal instrumento jurídico com tamanha destreza – e rios de dinheiro.
A constituição se tornou, em 1988, o alicerce não apenas da superestrutura jurídico-
política mas também da ideológica. Com seus direitos e garantias, princípios e fábulas, a carta
introduz ao povo um sentimento de amparo da norma constitucional. O povo – não todo, mas
aquela pequena parcela que sabe ler e interpretar – lê o deslumbrante título II da constituição
e não vê nada de errado; vê, aliás, um mundo que não o dele. Os direitos individuais e sociais
lá elencados são lindos, muitos se emocionam com a “conquista democrática da constituição
cidadã”. Acontece que, porém, tais direitos são postos em prática apenas na medida em que
não conflitem com outros “mais importantes”, ou com mais intensidade os que, não
conflitando, ainda potencializem aqueles direitos.
A Constituição trabalha na perspectiva de aprofundamento das relações de produção
capitalistas e, pela sua própria forma e discurso, cristaliza na sociedade a ideologia burguesa.
Por meio de um discurso pós-moderno virulento de fim de anos 80, com o qual se apregoa o
fim da luta de classes como motor da história, a constituição irracionaliza o sistema jurídico-
político brasileiro.
Além disso, a Constituição se propõe como simples “remendadora” da realidade,
aquela que “ajuda” sem, todavia, “poder mudar o mundo”. Porém, não é a Constituição o
instrumento jurídico que institui e edifica um Estado? Não é a Constituição o instrumento
jurídico que estabelece a atuação estatal e o complexo social que existirá sob a sua figura?
Não é o Estado que estabelece os ditames da produção, reprodução e distribuição da riqueza
numa sociedade? Qual então a impossibilidade de uma Constituição frente a criação do novo?
Pois bem, o ponto crítico está no fato de que a Assembleia Constituinte que promulgou a
CF/88 não foi plena em sua liberdade, ou no mínimo não foi fiel ao que propagava como
intenção. A construção do “novo” foi a simples remodelação do velho. A Constituição de
1988 foi um passo para a sedimentação da ordem conquistada e reafirmada pelo golpe de
1964. Carregada do conteúdo ideológico da classe dominante, impondo-se quase como uma
revolução, a Carta maior de 88 tem precipuamente esse papel ideológico de “recomeço”.
Muito embora, evidentemente, após mais de 20 anos de existência, seu simbolismo e
romantismo venham sendo postos em xeque, em virtude da medíocre aplicação de direitos
ditos fundamentais, mas pouco usuais desde sua promulgação.
Em outras palavras: a ordem capitalista é essencialmente o oposto do que prega
ideologicamente a Constituição em seus principais artigos e princípios. Como abraçou a
classe burguesa, ao invés da classe trabalhadora, o Estado brasileiro não pode, e não poderá,
cumprir nem de perto o que promete em seus avançados postulados. Ainda, a Constituição de
1988 propõe que, garantido a burguesia o direito de continuar como tal e acumular Capital a
uma taxa que seja – supondo que exista – suficientemente aprazível, os trabalhadores podem
enriquecer, e os marginalizados podem se integrar. Pouco importando, nessa equação, as
consequências econômicas conflitantes daquelas afirmações.
O Estado, como em todos os sistemas sociais em que é protagonista, age em prol da
classe dominante, em nossa democracia: a burguesia. O Direito, como aparelho coercitivo do
Estado, viabiliza o jugo. No caso brasileiro arrancaram, pois, os dois olhos da deusa Têmis.
Decretaram-na cega, incapaz, para serem seus curadores e agirem em seu nome da forma
como bem entendem. Então dizem que a justiça é cega, mas não esclarecem que outros,
“menos imparciais”, fazem as vezes dos seus olhos.
A constituição não é aplicada, e não será, porque seu próprio texto possui severos
conflitos. A ordem econômica e social existente, e reiterada pela CF/88, não pode recepcionar
e comportar medidas sociais ao mesmo tempo em que se funda na propriedade privada. O
texto constitucional fabrica fantasias, e as mesmas se repetem nos períodos eleitorais
periodicamente, como estabelece a própria constituição.
Para que pudessem se tornar realidade os direitos fundamentais inscritos na CF/88,
dever-se-ia, junto a eles, ter-se edificado uma nova estrutura social e econômica, socialista,
como isso não ocorreu, temos lido, desde 1988, o conto de fadas com o maior número de
autores da história: 559 escritores/deputados.
REFERÊNCIAS
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