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JORGE MIRANDA Professor Catedrático das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO Rio de Janeiro 2005

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JORGE MIRANDA

Professor Catedrático das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa

TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

Rio de Janeiro

2005

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DO AUTOR

I - Livros e monografias- Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968;

- Poder paternal e assistência social, Lisboa, 1969;

- Notas para uma introdução ao Direito Constitucional Comparado, Lisboa, 1970;

- Chefe do Estado, Coimbra, 1970;

- Conselho de Estado, Coimbra, 1970;

- Decreto, Coimbra, 1974;

- Deputado, Coimbra, 1974;

- A Revolução de 25 de Abril e o Direito Constitucional, Lisboa, 1975;

- A Constituição de 1976 - Formação, estrutura, princípios fundamentais, Lisboa, 1978;

- Manual de Direito Constitucional, 1º tomo, 6 edições, Coimbra, 1981, 1982, 1985, 1990, 1996 e 1997; 2º tomo, 4 edições, Coimbra, 1981, 1983, 1991 e 2000; 3º tomo, 4 edições, Coimbra, 1983, 1987, 1994 e 1998; 4º tomo, 3 edições, Coimbra, 1988, 1993 e 2000; 5º tomo, 2 edições, Coimbra, 1997 e 2000; 6º tomo, Coimbra, 2001;

- As associações públicas no Direito português, Lisboa, 1985;

- Relatório com o programa, o conteúdo e os métodos do ensino de Direitos Fundamentais, Lisboa, 1986;

- Estudos de Direito Eleitoral, Lisboa, 1995;

- Escritos vários sobre a Universidade, Lisboa, 1995;

- O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001.

II - Lições policopiadas- Ciência Política - Formas de Governo, 4 edições, Lisboa, 1981, 1983-1984, 1992 e 1996;

- Direito da Economia, Lisboa, 1983;

- Funções, Órgãos e Actos do Estado, 3 edições, Lisboa, 1984, 1986 e 1990;

- Direito Internacional Público - I, 2 edições, Lisboa, 1991 e 1995;

- Direito Constitucional-III - Integração europeia, Direito eleitoral, Direito parlamentar, Lisboa, 2001.

III - Principais artigos- Relevância da agricultura no Direito Constitucional Português, in Rivista di Diritto Agrario, 1965, e in Scientia Iuridica, 1966;

- Notas para um conceito de assistência social, in Informação Social, 1968;

- Colégio eleitoral, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, II, 1969;

- A igualdade de sufrágio político da mulher, in Scientia Iuridica, 1970;

- Liberdade de reunião, in Scientia Iuridica, 1971;

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- Sobre a noção de povo em Direito Constitucional, in Estudos de Direito Público em honra do Professor Marcello Caetano, Lisboa, 1973;

- Inviolabilidade do domicílio, in Revista de Direito e Estudos Sociais, 1974;

- Inconstitucionalidade por omissão, in Estudos sobre a Constituição, I, Lisboa, 1977;

- O Direito eleitoral na Constituição, in Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, 1978;

- Aspects institutionnels de l'adhésion du Portugal à la Communauté Économique Européenne, in Une Communauté à Douze? L'Impact du Nouvel Élargissement sur les Communautés Européennes, Bruges, 1978;

- O regime dos direitos, liberdades e garantias, in Estudos sobre a Constituição, III, Lisboa, 1979;

- A ratificação no Direito Constitucional Português, in Estudos sobre a Constituição, III, Lisboa, 1979;

- Os Ministros da República para as Regiões Autónomas, in Direito e Justiça, 1980;

- A posição constitucional do Primeiro-Ministro, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 334;

- Églises et État au Portugal, in Conscience et liberté, 1986;

- Propriedade e Constituição (a propósito da lei da propriedade da farmácia), in O Direito, 1974-1987;

- A Administração Pública nas Constituições Portuguesas, in O Direito, 1988;

- Tratados de delimitação de fronteiras e Constituição de 1933, in Estado e Direito, 1989;

- O programa do Governo, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, VI, 1994;

- Resolução, ibidem, VII, 1996;

- O Património Cultural e a Constituição - Tópicos, in Direito do Património Cultural, obra colectiva, 1996;

- Les candidatures, in Annuaire International de Justice Constitutionnelle, 1996;

- L'esperienza portoghese di sistema semipresidenziale, in Democrazia e forme di governo - Modelli stranieri e riforma costituzionale, obra colectiva, 1997;

- Sobre a reserva constitucional da função legislativa, in Perspectivas Constitucionais

- Nos 20 anos da Constituição de 1976, obra colectiva, 1997;

- Timor e o Direito Constitucional, in Timor e o Direito, obra colectiva, Lisboa, 2000.

IV - Colectâneas de textos- Anteriores Constituições Portuguesas, Lisboa, 1975;

- Constituições de Diversos Países, 3 edições, Lisboa, 1975, 1979 e 1986-1987;

- As Constituições Portuguesas, 4 edições, Lisboa, 1976, 1984, 1991 e 1997;

- A Declaração Universal e os Pactos Internacionais de Direitos do Homem, Lisboa, 1977;

- Fontes e trabalhos preparatórios da Constituição, Lisboa, 1978;

- Direitos do Homem, 2 edições, Lisboa, 1979 e 1989;

- Textos Históricos do Direito Constitucional, 2 edições, Lisboa, 1980 e 1990;

- Jurisprudência constitucional escolhida, 3 volumes, 1996 e 1997.

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V - Obras políticas- Um projecto de Constituição, Braga, 1975;

- Constituição e Democracia, Lisboa, 1976;

- Um projecto de revisão constitucional, Coimbra, 1980;

- Revisão Constitucional e Democracia, Lisboa, 1983;

- Anteprojecto de Constituição da República de São Tomé e Príncipe, 1990;

- Um anteprojecto de proposta de lei do regime do referendo, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1991;

- Ideias para uma revisão constitucional em 1996, Lisboa, 1996;

- Estudo em vista a uma nova lei de partidos políticos, Lisboa, 1999;

Uma Constituição para Timor, Lisboa, 2001.

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PRELIMINARES

1. O fenómeno político e o EstadoComo qualquer outra manifestação de socialidade humana, o fenómeno político apresenta uma dupla face: a de facto que acontece na vida dos homens em relação ou aspecto desta, e a de realidade impregnada de valores.

O que seja ele exactamente vem a ser, contudo, desde há muito, ponto de discussão em diferentes disciplinas. Parece ligar-se ao poder, ao poder político ou, na tradição clássica, à Civitas, à realização do Homem na Cidade e ao bem comum temporal. Há quem afirme a sua especificidade irredutível e há quem, pelo contrário, o reconduza a fenómenos de distinta natureza.

Uns acentuam elementos espirituais, v. g., as condições de legitimidade dos governantes; outros concentram-se em elementos materiais, v. g., a subordinação dos mais fracos aos mais fortes ou o domínio exercido por uma classe social e baseado na diferenciação económica. Uns recorrem a explicações contratualistas, outros a explicações institucionalistas, outros ainda, por exemplo, a explicações funcionalistas.

Nos nossos dias, toda esta problemática surge posta, directa ou indirectamente, a respeito do Estado. É no Estado - organização de governantes e de governados ou comunidade dos cidadãos - que se patenteia a mais clara luz, pois o Estado constitui a sociedade política característica dos últimos séculos e, decerto, a mais complexa, a mais sólida e a mais expansiva da história.

Conhecem-se também as duas perspectivas primárias das quais o Estado pode ser encarado: como Estado-comunidade e como Estado-poder; como sociedade, de que fazemos parte e em que se exerce um poder para a realização de fins comuns, e como poder político manifestado através de órgãos, serviços e relações de autoridade.1 Mas estas perspectivas não devem cindir-se, sob pena de se perder a unidade de que depende a subsistência do político; e essa unidade é, para o que aqui interessa, uma unidade jurídica, resulta de normas jurídicas.

2. Sujeição do Estado e das demais instituições públicas ao Direito

Não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas. Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao Direito (incluindo ao Direito que criam).

Se pode ter-se por exagerada a posição dos autores que assimilam o fenómeno estadual ao fenómeno normativo, pelo menos é claro que o Estado não pode ser compreendido sem Direito - que transforma os homens em cidadãos, que estabelece as condições de acesso aos cargos públicos, que confere segurança às relações entre os cidadãos e entre eles e o poder.

Para lá dos elementos histórico, geográfico, económico, político, moral e afectivo, encontra-se sempre um elemento jurídico traduzido na criação de direitos e deveres, de faculdades e vinculações. Os governantes têm de ter o direito de mandar e os governados o dever de obedecer. Não bastam a força ou a conveniência: não há uma ideia de Poder sem uma ideia de Direito e a autoridade dos governantes em concreto tem de ser uma autoridade constituída - constituída por um conjunto de normas fundamentais, pela Constituição, como quer que esta se apresente.

Do mesmo modo, o povo e o território não são o povo e o território do Estado senão em termos de Direito - Direito interno desse Estado e Direito internacional. A pertença de alguém ao povo depende das leis da nacionalidade ou cidadania e envolve determinado estatuto dentro da ordem jurídica estadual; a pertença de alguma porção de território ao Estado depende do Direito internacional; e o poder de cada Estado somente atinge o seu povo e o seu território, e não os de

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outros Estados, porque povo e território vêm a ser condições de existência (ou limites) do seu ordenamento jurídico.

E isto que é muito não abarca tudo. Há ainda que observar que, no desenvolvimento de toda a sua actividade, o Estado e as demais entidades públicas (regiões autónomas, autarquias locais, institutos públicos, associações públicas, etc.) têm de se mover segundo regras jurídicas - sejam quais forem as fontes donde essas regras provenham (nomeadamente de natureza legal ou consuetudinária), o conteúdo e o sentido que possuam, as concepções que lhes presidam e os processos de agir que instituam.

São extremamente variados e tantas vezes antagónicos os regimes, as formas de governo, os sistemas políticos: a mais elementar comparação, por exemplo, mostra as diferenças que existem entre um regime como o britânico e um regime como o soviético de 1917 a 1991, entre um regime como o português no domínio da Constituição de 1933 e um regime como o português no domínio da Constituição de 1976. Sem embargo, em todos os regimes e sistemas políticos, actuais ou passados, encontram-se ideias e regras jurídicas a defini-los, a legitimá-los (ou a procurar legitimá-los), a conformá- los, a orientá-los.

A sujeição do Estado ao Direito, inclusive ao seu próprio Direito positivo - eis a base do Direito público e, antes de mais, do Direito constitucional.

3. O Direito constitucional

I - O Direito constitucional é a parcela da ordem jurídica que rege o próprio Estado enquanto comunidade e enquanto poder. É o conjunto de normas (disposições e princípios) que recortam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de formação e manifestação da vontade política, os órgãos de que esta carece e os actos em que se concretiza.

Chama-se também Direito político, por essas serem normas que se reportam directa e imediatamente ao Estado, que constituem o estatuto jurídico do Estado ou do político, que exprimem um particular enlace da instância política e da instância jurídica das relações entre os homens.

Qualquer Estado, em qualquer época e lugar, postula sempre normas com tal função. O que não podem deixar de variar são a intensidade, a extensão e o alcance dessas normas e as funções conexas ou complementares que se lhes prendam. E variam não apenas em virtude das condições gerais de conservação ou de modificação do ordenamento mas sobretudo em virtude dos fins e dos modos de exercício do poder e das posições recíprocas de governantes e governados (em que consistem os regimes, as formas de governo, os sistemas políticos).

II - Falando em Direito constitucional, pensa-se mais na regulamentação jurídica, no estatuto, na forma de Direito que é a Constituição. Falando em Direito político pensa-se mais no objecto da regulamentação.

Como Constituição nesta acepção se afigura inerente ao conceito ou indissociável da existência do Estado, dir-se-ia de todo em todo indiferente empregar o primeiro ou o segundo qualificativo. Mas não é tanto assim, porque cabe proceder a uma delimitação - resultante da experiência histórica e exigida pelas necessidades de estudo.

Na verdade, ninguém ignora o marco representado na história do Estado e do Direito público pelas revoluções dos séculos XVIII e XIX e suas sequelas, as quais puseram termo ao Estado absoluto e abriram caminho a um novo modelo ou tipo de organização política, o Estado constitucional,

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representativo ou de Direito. E, doravante, do que se trata é, justamente, do Direito constitucional do Estado constitucional, do Direito que aparece ligado a uma Constituição (escrita, salvo na Grã-Bretanha), do Direito que se encontra numa Constituição com um conteúdo determinado e com uma força jurídica diversa da dos outros corpos de normas do ordenamento.

O Direito constitucional moderno provém do constitucionalismo; e mesmo quando, como sucede em numerosos países no nosso século, se distancia muitíssimo das linhas ideológicas iniciais deste, está associado a noções de Constituição material, formal e instrumental antes desconhecidas. É o Direito constitucional assim balizado que se torna, por seu turno, alvo de um tratamento científico e didáctico especializado - aquele que leva a cabo a ciência do Direito constitucional e a que não pode comparar-se o rudimentar e vago tratamento do precedente Direito público.2-3

Por outro lado, não raro, ao adoptar-se a expressão Direito político segue-se uma visão restritiva do seu âmbito, circunscrevendo- o à organização e à limitação jurídica do poder político. Ou seja: reduz-se o Direito político ao Direito do Estado-poder e relega-se para fora ou para diferentes zonas tudo quanto concerne ao Estado-comunidade. Porém, esta maneira de entender deve ter-se por insatisfatória, pois não pode haver estatuto de poder sem estatuto da comunidade política a que se reporta, nem limitação da autoridade dos governantes sem consideração da liberdade dos governados.

A Constituição é tanto Constituição política como Constituição social,4 não se cinge à ordenação da vida estatal (em sentido estrito).5 Nem sequer o Direito constitucional do século XIX se confinou aos órgãos e agentes do poder político; ele foi, além disso (ou através disso), um Direito dos cidadãos diante do poder - ao garantir os direitos e liberdades individuais e ao incluir neles a propriedade, intervinha, pelo menos negativamente, na sociedade. E, como se reconhece à vista desarmada, as Constituições actuais contemplam larguíssimos aspectos e áreas da dinâmica económica, social e cultural em interacção com o Estado.

Por estes motivos, na presente obra preferir-se-á o termo Direito constitucional ao termo Direito político.

4. O Direito constitucional e a ordem jurídica do Estado

I - O político é o global, o que respeita a todos, o que abrange, coordena e sintetiza a pluralidade de grupos, interesses e situações. E terá assim de ser também o Direito constitucional, enquanto se lhe refere constantemente para o fundamentar, reflectir e conter nas suas normas.

Mais do que um ramo a par de outros, o Direito constitucional deve ser apercebido como o tronco da ordem jurídica estatal (mas só desta), o tronco donde arrancam os ramos da grande árvore que corresponde a essa ordem jurídica.6 Integrando e organizando a comunidade e o poder, ele enuncia (na célebre expressão de PELLEGRINO ROSSI) as têtes de chapitre dos vários ramos do Direito, os princípios fundamentais que os enformam; e enuncia-os, porque tais princípios revestem um significado político, identificam-se com as concepções dominantes acerca da vida colectiva, consubstanciam uma ideia de Direito.

Ou, doutra perspectiva, na medida em que a Constituição estabelece pressupostos de criação, vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente o seu conteúdo, converte-se em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade no seu conjunto, no seio do qual impede tanto o isolamento do Direito constitucional como a existência isolada das demais parcelas de Direito umas em relação às outras.7

Este fenómeno torna-se muito patente nas últimas décadas com a maior eficácia adquirida pelas normas constitucionais e com o cumulativo incremento dos mecanismos jurisdicionais ou

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parajurisdicionais de fiscalização da constitucionalidade.8

II - Constituições com as Constituições actuais do Brasil e dos demais países de língua portuguesa estão longe de se esgotar no tratamento dos órgãos do poder. Aí se divisam, com não menor importância, princípios de Direito penal, de Direito processual penal, de Direito da família, de Direito do trabalho, de Direito tributário, de Direito financeiro, de Direito judiciário, de Direito administrativo etc.9

E estes princípios não são apenas constitucionais por se inserirem na Constituição formal e se imporem ao legislador ordinário. São, do mesmo passo, princípios constitucionais substantivos ou materiais, pela sua relevância no plano dos valores da comunidade política que se ancoram na Constituição; participam de pleno da Constituição material.10

III - Através dos princípios (ainda que, por natureza, susceptíveis de sucessivas refracções e densificações), a Constituição irradia para todos os ramos do ordenamento.

Nem por isso, porém, cada um desses ramos deixa de se desenvolver num conglomerado de preceitos e até de princípios próprios - necessariamente, para subsistirem, não discrepantes daqueles - formulados em atenção à sua problemática particular e às exigências científico-culturais a que cabe responder.

No Direito constitucional só entra o que contende com a estruturação da comunidade e do poder político (aquilo que é constitutivo ou constitucional do Estado) e possui significado político (ou significado político imediato). Não aquilo que toca aos particulares, aos grupos e aos poderes sociais não políticos enquanto tais. Entra a sociedade "enquanto ser político", não entra a sociedade na múltipla teia de relações que se desenvolvem à margem da actividade política. Outra coisa redundaria quer na desvitalização dos vários ramos quer na absorção da sociedade pelo Estado.

IV - Justifica-se, por isso, inteiramente (pelo menos no Ocidente), a clássica dicotomia Direito público-Direito privado. Não há Direito constitucional, Direito público e Direito privado;11 há somente Direito público e Direito privado, e no primeiro enquadra-se o Direito constitucional.12

Nem se compreenderia como sendo o Direito constitucional o Direito do político, o regime institucional da vida pública, ele pudesse não ser Direito público - pois "Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectact. Privatum, quod ad singulorum utilitatem" (ULPIANO, D. 1.1.1.2.).

5. Os grandes capítulos do Direito constitucional

I - Na linha do que se dá com a própria distribuição da ordem jurídica e do que ocorre noutros sectores (no Direito civil, no Direito penal, no Direito administrativo), podem no Direito constitucional ser demarcados capítulos algo diferentes, tendo em conta as matérias que recobrem.

Alguns destes grandes capítulos vêm desde o início do constitucionalismo. Assim, o Direito parlamentar, conjunto das regras respeitantes à organização, ao funcionamento e ao processo do Parlamento; ou o Direito eleitoral, conjunto das normas reguladoras das eleições políticas, desde a capacidade eleitoral e o recenseamento ao sufrágio, ao apuramento e ao contencioso.

Outros, sobretudo alguns dos que se dirigem predominantemente ao Estado-comunidade, são mais recentes. Um dos mais importantes é o Direito constitucional da economia ou Constituição económica, conjunto das normas que definem a organização e o funcionamento da economia como uma das dimensões da comunidade política. E também se fala em Constituição financeira, em Constituição social ou em Constituição cultural.13

Outros somente existem em sistemas constitucionais determinados. Assim, o Direito processual

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constitucional, que não aparece senão onde se dê uma fiscalização jurisdicional ou jurisdicionalizada da constitucionalidade das leis através de um órgão de competência concentrada (nomeadamente, um tribunal constitucional), com o seu processo próprio sujeito a regras específicas; ou o Direito regional, isto é, o Direito respeitante às regiões autónomas (nos Estados que se organizem com regiões autónomas).

E, de certa maneira, poderia contrapor-se um Direito constitucional interno ou central (abrangendo as liberdades fundamentais, a organização do poder político, a garantia e a revisão da Constituição) a um Direito constitucional externo ou periférico (compreendendo os princípios basilares dos grandes ramos do Direito).

II - Todos estes grandes capítulos, ramos ou partes especiais do Direito constitucional são preenchidos, primeiro, por normas formalmente tidas por constitucionais e assentes no documento ou texto chamado Constituição e, depois, por normas de outras categorias que àquelas dão imediato complemento e delas se tornam indissociáveis. O Direito parlamentar português, por exemplo, abrange as normas contidas na Constituição, várias leis e, obviamente, o regimento da Assembleia da República e os das assembleias legislativas regionais dos Açores e da Madeira.

Se as normas formalmente constitucionais - quer dizer, dotadas de uma forma e de uma força jurídica específicas - não se desprendem nunca de uma referência material ou substantiva, também elas não esgotam as normas materialmente constitucionais - quer dizer, as normas que têm por objecto o estatuto do Estado. Uma Constituição nunca é um Código no mesmo sentido de um Código Civil.

6. Direito constitucional e Direito administrativo

Nem sempre hoje se consegue traçar com nitidez as fronteiras do Direito constitucional e do Direito administrativo.

O Direito administrativo compreende não só as normas reguladoras da estrutura e disciplina interna da Administração mas também as da actuação dos elementos desta como sujeitos de direitos no exercício dos seus poderes e no cumprimento dos seus deveres legais para com os administrados.14 Surgido, tal como o Direito constitucional, com o constitucionalismo, nele perpassa a tensão entre o poder de decisão e de execução dos órgãos administrativos e a necessidade de defesa dos direitos e dos interesses dos administrados. O princípio da legalidade da administração pressupõe o da constitucionalidade da lei.

Ora, o alargamento da intervenção do poder público na vida económica, social e cultural e as mutações sofridas pela lei têm levado a alguma indefinição acerca das matérias que devem receber a qualidade de constitucionais e daqueloutras que devem ter-se por administrativas. Quando o Estado do século XX se apresenta como um Estado administrativo, em vez de legislativo (CARL SCHMITT), muito do que é administrativo eleva-se a constitucional; inversamente, quando a lei se traduz em medidas concretas ou emana do Poder Executivo, é esse acto de Direito constitucional que parece convolar-se em acto de Direito administrativo.

Haverá então que apelar, de novo, para os critérios decorrentes do significado dos preceitos à luz dos valores e concepções que presidem à legitimação e ao exercício do poder político: será de Direito constitucional tudo quanto estiver em relação imediata com esses valores, será de Direito administrativo tudo quanto contender com a sua concretização ou efectivação, por meio das formas próprias de agir da Administração. Mais aprofundada reflexão não pode ser feita nesta altura.15

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7. A ciência do Direito constitucional

I - Ao Direito constitucional em sentido objectivo (conjunto de normas jurídicas) corresponde o Direito constitucional em sentido subjectivo (conhecimento dessas normas). Ao Direito constitucional corresponde a Ciência do Direito constitucional.

A Ciência do Direito constitucional não é, portanto, senão a Ciência Jurídica ou Jurisprudência aplicada ao Direito constitucional; a disciplina científica que, seguindo o método jurídico ou dogmático, visa reconstruir o Direito constitucional como sistema normativo; a ciência social normativa que procura apreender o sentido de certos factos sociais, os políticos, através das normas que os regem.

Por outras palavras: a Ciência do Direito constitucional é a ciência jurídica do Estado, aquela disciplina que tem por objecto o Estado, mas o Estado mediatizado pela Constituição - seja o que for que, em rigoroso plano doutrinal ou teórico, se entenda ser a Constituição.

II - Sem embargo das especialidades que resultam do objecto material, a natureza e a função da Ciência do Direito constitucional em nada diferem da natureza e da função das demais disciplinas jurídicas. Tal um ponto de partida muito firme.

Não se trata só da unidade essencial de todo o Direito e de toda a Ciência jurídica. Trata-se também, porque o Direito constitucional é o tronco do ordenamento estatal, da interdependência de seu estudo e do estudo dessas outras disciplinas. Hoje, não se afigura possível a elaboração dogmática, pelo menos, de grandes princípios de diversos ramos de Direito sem uma referência ou compreensão sistemática a partir do Direito constitucional.

III - Da mesma maneira que, por exemplo, a Ciência do Direito civil ostenta a marca dos factores de estabilidade ou instabilidade familiar, profissional, técnica e económica, a Ciência do Direito constitucional acompanha e reflecte a experiência constitucional (ou político-constitucional), com as suas vicissitudes de evolução e ruptura.

As grandes orientações de tratamento do Direito constitucional, além de espelharem diferentes posições gerais sobre o jurídico, recebem o influxo de toda a gama de fenómenos políticos e sociais que se vão sucedendo. E, a par de uma progressiva sedimentação, revelam-se bem diversas as preocupações e as formulações do século XIX, do constitucionalismo liberal, e as dos séculos XX e XXI, em que se defrontam correntes de pensamento e acção ora complementares, ora antagónicas.

Não é tão pouco por acaso que a Ciência do Direito constitucional emergia em Portugal, no Brasil até há pouco tão embrionária. Se ela não era muito cultivada, isso devia-se também a o constitucionalismo ter andado, em ambos os países, aos saltos, ter passado por largos túneis e ter havido até momentos de involução, com a consequente falta de instituições consolidadas.

8. Ciência do Direito constitucional, Teoria Geral do Direito público e Teoria Geral do Estado

Utilizam ainda o método jurídico, embora em moldes de pura elaboração conceitual e em contraponto da especialização crescente das ciências juspublicísticas, a Teoria Geral do Direito público e a Teoria Geral do Estado.16

A Teoria Geral ou Doutrina Geral do Direito público procura, da mesma forma que a Teoria Geral do Direito civil e, de certo modo, em reacção contra tendências demasiado privatísticas da Teoria Geral do Direito, encontrar esquemas e categorias comuns às várias disciplinas de Direito público - assim, v. g., os conceitos de pessoa colectiva pública, atribuições, órgão, deliberação, função, competência, poder funcional, acto, procedimento, processo.

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A Teoria Geral do Estado, por seu turno, pode ser tomada ou como construção jurídica do Estado, das suas condições de existência e das suas manifestações vitais, ou (menos frequentemente) como enquadramento do Estado na dupla perspectiva de realidade jurídica e realidade social.17 Em qualquer dos casos, visa o Estado em si ou, melhor, certo tipo de Estado, não este ou aquele Estado localizado.

Ambas estas disciplinas distinguem-se bem da Ciência do Direito constitucional, pois que não intentam reconstruir sistematicamente nenhum Direito constitucional positivo, nem perscrutar o sentido das suas normas para a aplicação aos casos concretos ou para que delas tomem consciência os destinatários. Todavia, são com ela comunicáveis: por um lado, a Ciência do Direito constitucional - assim como a História do Direito constitucional e o Direito constitucional comparado - fornecem os dados com que trabalham as Teorias Gerais; em compensação, estas põem à disposição do intérprete e do legislador instrumentos mais apurados de análise e de formulação dos comandos normativos.

9. Direito constitucional, História do Direito constitucional e Direito constitucional comparado

I - A Ciência do Direito constitucional é completada ou auxiliada pela História do Direito constitucional e pelo Direito constitucional comparado (à semelhança do que se passa com outras disciplinas da ordem jurídica estadual, mas ainda com mais forte razão).

A História do Direito situa-se no cruzamento de duas disciplinas - a História e a Ciência Jurídica - e, conforme as correntes ou os autores, o pendor é, umas vezes, para reduzir a História do Direito a uma pura História, no mesmo nível da História política ou de qualquer outro domínio da Ciência Histórica, e, outras vezes, para reduzir a História do Direito à Ciência Jurídica, empregando o mais possível o método dogmático. A originalidade e o interesse da História do Direito e da história de qualquer instituição de Direito público em particular estarão, contudo, na capacidade dos seus estudiosos de fazerem um trabalho em que se conjuguem todas as virtualidades de ambos os métodos, o histórico e o jurídico.

A História constitucional está, pois, para o Direito constitucional como, em geral, a História do Direito para a Ciência do Direito. E afasta-se da História das instituições políticas (um dos aspectos da História política) na medida em que a História das instituições apenas toma em conta as instituições como realidades existentes na vida social, ao passo que a História constitucional pretende chegar às instituições através do estudo da sucessão de normas constitucionais e das correspondentes vicissitudes. A História das instituições dá preferência ao modo efectivo como se vão conformando, ao longo do tempo, as instituições políticas; a História constitucional parte da Constituição para chegar ao conhecimento das instituições.18-19

Se a História equivale à rememoração explicativa do passado, o Direito comparado visa surpreender semelhanças e diferenças, interacções e reacções entre institutos jurídicos de mais de um país ou de um mesmo país em diferentes épocas. Em vez de se fixar num único sistema jurídico ou num sistema jurídico vigente, alarga o seu olhar para além-fronteiras ou projecta-se para trás indagando dos institutos encontrados noutros momentos da evolução de certo sistema. Com efeito, porque questões idênticas ou similares se põem em múltiplos países ou se puseram no passado no mesmo país, é mister conhecer não só como o Direito positivo as considera aqui e agora mas também como são consideradas noutros sistemas ou como o foram noutras épocas no mesmo país.20

O Direito constitucional comparado - se se quiser, a comparação de Direitos constitucionais - assenta em sistemas jurídicos positivos, mas não necessariamente vigentes. Ou se trata de sistemas que coexistem em determinada época (comparação simultânea) ou de sistemas que pertencem a momentos diferentes em um ou mais de um país (comparação sucessiva).21

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Quando a comparação incida sobre um número relativamente grande de ordenamentos jurídicos, tendo em vista uma crescente generalização com base em elementos comuns, o Direito constitucional comparado tende a passar a Direito constitucional geral (em contraste com o Direito constitucional particular de cada Estado). E o Direito constitucional geral não pretende ser senão um esforço de formação de conceitos, esquemas, tipos ideais reveladores da unidade fundamental de instituições dentro de cada continente ou de cada região ideológica, dentro do mesmo país em diversas épocas e até dentro do mundo.22 No limite, pode chegar a identificar-se com a Teoria Geral do Estado.

II - Não levanta nenhum problema a distinção entre Direito comparado e História do Direito a propósito da comparação simultânea no presente. Pelo contrário, algumas dificuldades podem suscitar-se acerca da comparação simultânea no passado e da comparação sucessiva.

Em princípio, a comparação no passado não deixa de valer como verdadeira comparação. Porém, ela tende a ser subsidiária da História, pois se destina em geral a permitir melhor apreender certas situações histórico-jurídicas ou os condicionalismos históricos de certo sistema. Pode fazer-se o confronto de duas Constituições, devido às suas interinfluências ou por a primeira a ser decretada ter vindo a ser fonte da segunda.

Quanto à comparação sucessiva, as dúvidas põem-se sobretudo quando tenha por objecto Constituições, institutos ou preceitos em conexão temporal imediata ou contiguidade. Como distinguir um estudo comparativo sobre as Constituições de 1946, 1967 e 1988 de um estudo histórico sobre as mesmas Constituições?

A diferença consiste no seguinte: o Direito comparado tem por fim o estabelecimento de relações de semelhança ou diferença, de afinidade ou repulsa entre institutos e sistemas; a História tem por fim o estabelecimento de relações de causa e efeito entre institutos e sistemas que se sucedam cronologicamente;23 o primeiro acarreta uma visão de predominância estática, mesmo se reportada a realidades sucessivas; a segunda uma visão dinâmica e genética mesmo se localizada em dada época; aquele envolve abstracção; esta requer inserção num vasto panorama institucional e social.

O exame paralelo das três Constituições republicanas portuguesas (e das suas revisões) cabe ao Direito comparado, sempre que procure atentar nos elementos individualizadores e os procure interpretar como idênticos ou opostos. Por exemplo: conhecidas as normas que regem a competência legislativa do Parlamento e do Governo promover-se-á comparação se, independentemente de considerações de outra ordem, se focar tão-somente o seu conteúdo preceptivo.

Mas a História do Direito não se reduz àquilo por que se aproximam ou separam as duas Constituições. Revela-nos a medida em que a conformação de um instituto num momento anterior terá contribuído para a sua conformação num momento posterior e, principalmente, a medida em que a justificação de um novo instituto se encontra na concepção e na prática de um instituto que o precedeu. Estaremos indubitavelmente em História do Direito constitucional ao indagarmos até que ponto a prática do sistema do governo em certo momento terá determinado a adoção de um sistema de governo diferente (ou radicalmente oposto) num momento posterior.

Enlace entre a História e o Direito constitucional comparado vem a dar-se na História constitucional comparada (assim, confronto entre o regime da liberdade de imprensa em Portugal e no Brasil desde 1900 ou entre o Parlamento britânico e o francês nos últimos cem anos). Conceito complexo, o que a distingue não é tanto o debruçar-se sobre as instituições jurídicas ao longo dos tempos quanto o procurar captar as respectivas linhas de conservação e de transformação.24

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10. Ciência do Direito constitucional e ciências sociais não normativas

I - Além da Ciência do Direito constitucional, outras disciplinas têm por objecto material, dos seus ângulos próprios, o fenómeno político. São a Ciência Política, a Sociologia Política, a Sociologia do Direito constitucional, a Ciência Política Comparada, a História Política Comparada.

A Ciência do Direito constitucional considera a sociedade (política) através das normas que se lhe dirigem; debruça-se sobre a ordem da sociedade, e não sobre a sociedade enquanto tal; desvenda a imagem do Estado que são as normas, e não (ou não tanto) a que dá a sua prática. As outras disciplinas - cada uma das quais, aliás, oferecendo certa variedade de orientações de base e de metodologia - voltam-se para os factos, no seu desenrolar empírico e funcional; apresentam-se como disciplinas sociais não normativas.

II - Assim, enquanto que a Ciência do Direito constitucional configura o Estado na veste de instituição jurídica, a Ciência Política toma-o como sistema de relações, forças e comportamentos, tendo como fundo o poder ou a interferência no poder. Enquanto que a Ciência do Direito constitucional se ocupa, antes de mais, da regularidade ou da validade da acção do poder, a Ciência Política ocupa-se (ou ocupa-se principalmente) da sua efectividade.25

A distinção entre a Ciência do Direito constitucional e a Sociologia Política não oferece hoje grande melindre, passada a voga do sociologismo de início do século.26 Outra coisa vem a ser a separação da Ciência Política da Sociologia Política e desta da Sociologia do Direito Constitucional.

Aproximativamente, dir-se-á que a Ciência Política estuda o fenómeno político em si, as estruturas governativas e as estruturas de participação política, estuda e tenta reconstituir os sistemas de poder; a Sociologia Política estuda o fenómeno político situado no domínio mais vasto dos fenómenos sociais e pretende conhecer as acções recíprocas entre o Estado e outras manifestações da vida social, pretende conhecer a acção e reacção que existe entre o fenómeno político e os demais fenómenos sociais; a Ciência Política descreve e analisa os sistemas políticos; a Sociologia Política procura explicá-los através de métodos sociológicos adequados.27

A Sociologia do Direito Constitucional é a sociologia jurídica especial cujo fito consiste em dar a conhecer o modo como surgem, perduram e se aplicam as regras constitucionais; ou, doutra perspectiva, é a sociologia jurídica especial que se volta para as instituições constitucionais tomando-as como instituições sociais.28 Mas poderá acabar por haver larga zona de sobreposição.

Quanto à Ciência Política Comparada, ela está para a Ciência Política como o Direito Constitucional Comparado para o Direito Constitucional.29

E também disciplina de charneira é a História Política Comparada, paralela da História Constitucional Comparada.30

III - Em plano diferente, situa-se a Ciência da Legislação ou estudo sistemático da produção legislativa. Conexa tanto com a Ciência do Direito Constitucional como com a Ciência Política, é estruturalmente uma ciência prática.31

11. Perspectiva metodológica

Sobre o método no tratamento do Direito constitucional sublinhar-se-ão apenas os pontos principais que, desde sempre, têm servido de perspectiva e de programa aos nossos estudos.32

O primeiro ponto concerne a necessidade de um aprofundamento sistemático do Direito constitucional. São vários os obstáculos a este aprofundamento, obstáculos criados pelos elementos exógenos (não jurídicos e não só políticos) e obstáculos criados pela "primariedade" (no dizer de

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um autor) das situações e relações, prestando- se menos ao emprego dos instrumentos da técnica e da hermenêutica jurídicas.33 Não obstante, eles são superáveis, a Ciência jurídica é capaz de explicar à sua maneira o Estado e os seus fenómenos e tudo reside numa exacta (se bem que não rígida) definição do objecto.

Com efeito, o método próprio da Ciência jurídica é o método dogmático, insistimos: interpretação e construção, análise e síntese, induzir para deduzir mais tarde, andar do particular (da norma ou do preceito) para o geral (a unidade do sistema) e deste, outra vez, para o particular (a subsunção das situações e relações da vida); em suma, uma elucidação racionalizante e totalizante. Se foi o positivismo que lhe deu o impulso decisivo, mercê da aplicação devotada à norma jurídica positiva, ele deve libertar-se da marca e da sorte do positivismo. E, se durante muito tempo foi orientado pelo formalismo, nem por isso equivale a método formalista.

O maior vício do positivismo consiste na rendição do jurista perante o legislador, conjuntural ou não. O maior vício do formalismo reside em pedir à lógica mais do que aquilo que pode dar. Pelo contrário, o Direito está acima e para além da lei; há valores suprapositivos a atender, únicos que lhe podem imprimir razão e permanência; a elaboração científica implica o apuramento de conceitos, mas não se esgota na sua concatenação; o sistema é confrontado com a mediação do problema;34 a lógica fornece processos de raciocínio, não fornece soluções.

De resto, o Direito é uma realidade cultural, indesligável das demais experiências humanas,35 e existe uma comunicação constante e dialéctica entre normas e factos. Os valores jurídicos incidem sobre os factos e estes, por seu turno, por vias múltiplas, projectam- se nas normas e no entendimento dos valores. Não quer isto dizer que as normas sejam determinadas ou condicionadas mecanicamente pelos factos, mas não pode aperceber-se esta ou aquela norma desinserida da situação para a qual está formulada ou das consequências da sua efectivação, nem aperceberem-se os factos sociais à margem da sua modelação pelas normas.36

No que à nossa disciplina em especial importa, haverá que contar com a directa relação entre a Constituição e aquilo que se tem chamado realidade constitucional, ou realidade política, económica, social e cultural que lhe subjaz, a que pretende aplicar-se e de que depende, em maior ou menor medida, o seu modo de vigorar.37 E haverá, por conseguinte, com espírito aberto - embora sem sincretismo - de saber apreender os contributos da Ciência Política e das outras disciplinas há pouco indicadas.38

Outra dificuldade (e também um aliciante) decorre do carácter interdisciplinar que, de certa sorte, assume o estudo do Direito constitucional da comunidade política, ao versar os princípios fundamentais dos diversos ramos de Direito, público e privado, e ao estabelecer a conexão entre eles. Isso obriga a ter em conta os conceitos e as intenções particulares desses ramos e, do mesmo passo, a procurar subir à síntese explicativa imposta pela ideia de Direito em que consiste a Constituição material. Por último, sendo da função do Direito ajudar a resolver os problemas sociais (socioculturais, económicos, políticos), a Ciência jurídica torna-se uma ciência antecedente da acção. Com equilíbrio impende-lhe o dever de uma atitude crítica sobre o jus conditum em nome da justiça e da consciência jurídica colectiva, das situações concretas do país, da coerência do sistema e da técnica legislativa. Em Direito constitucional, cujas normas são e têm de ser tão aplicáveis à vida como quaisquer outras, algo haverá a dizer, alguns caminhos haverá a rasgar.39

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PARTE I - ESTADO E CONSTITUIÇÃO NA HISTÓRIA

TÍTULO I - O Estado Na História

CAPÍTULO I - Localização Histórica Do Estado

§ 1º O Estado, Realidade Histórica

12. O Estado, espécie de sociedade políticaSeja qual for a essência do político e, portanto, do Estado, há três maneiras principais de encarar as relações entre um e outro conceito. O Estado é político, mas todo o político é estadual?

Para alguns, a resposta é positiva: Estado e sociedade política identificam-se e aquele é tomado como fenómeno humano permanente e universal. Para outros, o Estado é uma espécie (a mais importante, mas uma entre várias espécies) de sociedade política. Ainda doutro prisma, o problema não se põe, ou por não se lidar com o conceito de Estado1 ou por se reduzir o Estado ao nome convencionalmente dado a qualquer sociedade política.

Prefere-se a segunda postura. As sociedades políticas ou sociedades de fins gerais apresentam-se em tal variedade que é cientificamente imprescindível proceder a distinções e classificações. Não se justifica confundir as formas primitivas de sociedades políticas com as formas desenvolvidas e complexas que tardiamente surgem. E o Estado tem tanto de peculiar que tudo aconselha a separar o seu tratamento do estudo de outras figuras, embora afins.

Todavia, o Estado, que conhecemos hoje, comummente definido através de três elementos ou condições de existência - povo, território e poder político - é apenas um dos tipos possíveis de Estado: o Estado nacional soberano que, nascido na Europa, se espalhou recentemente por todo o mundo.2

13. O aparecimento histórico do EstadoReveste carácter interdisciplinar (de História geral, História política, História do Direito, Antropologia cultural, Ciência política comparada) a pesquisa respeitante à origem do Estado.3

As conclusões principais dessa indagação parecem ser:

a) Necessidade, em toda a sociedade humana, de um mínimo de organização política;

b) Necessidade de situar, no tempo e no espaço, o Estado entre as organizações políticas historicamente conhecidas;

c) Constante transformação das organizações políticas em geral e das formas ou tipos de Estado em particular;

d) Conexão entre heterogeneidade e complexidade da sociedade e crescente diferenciação política;

e) Possibilidade de, em qualquer sociedade humana, emergir o Estado, desde que verificados certos pressupostos;

f) Correspondência entre formas de organização política, formas de civilização e formas jurídicas;

g) Tradução no âmbito das ideias de Direito e das regras jurídicas do processo de formação de cada Estado em concreto.

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14. Sociedades políticas pré-estataisEncontram-se sociedades historicamente antecedentes da formação do Estado, ainda que não inelutavelmente conducentes à passagem a Estado: são, entre outras, a família patriarcal, o clã e a tribo, a gens romana, a fratria grega, a gentilidade ibérica,4 o senhorio feudal.

Mas importa distinguir entre as sociedades mais simples e as que já contêm instituições ou elementos precursores ou idênticos dos elementos ou instituições estaduais (por exemplo, os esquimós, os bosquimanos, os pigmeus entre os povos que pertencem ao primeiro grupo);5 ou, doutro ângulo, entre as sociedades com poder anónimo ou difuso (as primitivas) e as sociedades com poder individualizado (exercido por um chefe em nome próprio).6

Quanto mais uma sociedade global é heterogénea, quanto mais integra grupos ou estratos diferentes pela cultura, pela posição social e pelo papel na divisão de trabalho tanto mais o seu sistema político tende a organizar-se em funções diferenciadas, especializadas, ligadas umas às outras por uma rede complicada de relações hierárquicas.7

E cabe, depois, contrapor as sociedades pré-estaduais às infra e supra-estaduais.8 Aquelas, podendo embora levar ao Estado, em si nada têm com o Estado; estas, não atingindo ainda ou, pelo contrário, ultrapassando o nível do Estado, assentam todas no poder e na actividade do Estado, com o qual necessariamente coexistem. Sociedade infra-estaduais vêm a ser, entre outras, as regiões ou províncias autónomas. Sociedades supra-estaduais são as confederações, outros agrupamentos de Estados, a própria comunidade internacional.9

15. Processos de formação do EstadoNão surpreende, naturalmente, a variedade histórica das formas por que o Estado aparece, em correlação com as causas locais do acontecimento.10

Conhecem-se formas pacíficas e violentas; formação de acordo com as leis vigentes no Estado ou na sociedade a que a nova comunidade até então pertence e formação contra essas leis; formação por desenvolvimento interno e por influência externa.

No plano da Antropologia histórica, revelam-se processos mais importantes a conquista, a migração, a aglutinação por laços de sangue ou por laços económicos, a evolução social pura e simplesmente para organizações cada vez mais complexas. No plano do Direito constitucional comparado e do Direito internacional dos últimos duzentos anos, é também possível tipificar processos como a elevação a Estado de comunidade dependente, a secessão ou o desmembramento de Estado pré-existente.

16. Características gerais do EstadoI - Apesar de evidentes dificuldades, pode tentar-se reconduzir a um quadro comum as notas características dos diferentes Estados ou tipos de Estado oferecidos pela história. Trata-se da complexidade de organização e actuação, da institucionalização, da coercibilidade e da autonomização do poder político, bem como, em plano algo diferente, da sedentariedade.

Estas características têm de ser vistas em conjunto e não isoladamente (até porque algumas delas se encontram noutras sociedades, políticas e até não políticas).

II - A complexidade de organização e actuação consiste em centralização do poder, multiplicação e articulação de funções, diferenciação de órgãos e serviços, enquadramento dos indivíduos em termos de faculdades, prestações e imposições.

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O Estado é uma sociedade política com indefinida continuidade no tempo e institucionalização do poder significa dissociação entre a chefia, a autoridade política, o poder, e a pessoa que em cada momento tem o seu exercício; fundamentação do poder, não nas qualidades pessoais do governante, mas no Direito que o investe como tal; permanência do poder (como ofício, e não como domínio) para além da mudança de titulares; e sua subordinação à satisfação de fins não egoísticos, à realização do bem comum.11

A institucionalização é ainda a criação de instrumentos jurídicos de mediação e de formação da vontade colectiva - os órgãos e figuras afins.12

A coercibilidade não é uma característica geral do Direito, nem sequer, porventura, do Direito estatal; mas é, em certa medida, uma característica da organização política estatal. Ao Estado cabe a administração da justiça entre as pessoas e os grupos e, por isso, tem de lhe caber também o monopólio da força física.13

O Estado promove a integração, a direcção e a defesa da sociedade, e por arrastamento, a própria sobrevivência como um fim em si; essa preservação - a segurança interna e externa, em particular - torna-se um fim específico; surge o fenómeno burocrático;14 mesmo sem ser absoluto ou totalitário, o Estado possui a sua mística de poder e justifica as suas acções em nome de objectivos próprios; as instituições políticas, instituições especializadas, adquirem autonomia.15

Finalmente, o Estado requer continuidade não só no tempo mas também no espaço,16 no duplo sentido de ligação do poder e da comunidade a um território e de necessária fixação nesse território. Está aí a sedentariedade.III - Em suma, o Estado é a resultante da existência de uma sociedade complexa e, por sua vez, um dos factores de criação de uma sociedade cada vez mais complexa.

17. A inserção territorial do EstadoO território revela-se indispensável para o Estado como referência da comunidade, como sede material do poder, como domínio de acção indiscutida, como área de segurança dos indivíduos e das sociedades menores e como instrumento ao serviço dos fins do poder.17

Imenso é o papel histórico do território: 1) local de fixação de um povo (os povos nómadas desconhecem a existência do Estado); 2) local de agregação ou integração de elementos diversos num mesmo povo; 3) uma das bases do sentido de identidade de um povo ao longo dos tempos, em relação (por vezes em oposição) aos outros povos; 4) uma das bases da permanência do poder político. Ele chega a dar o nome ao Estado.

Outra coisa vem a ser, porém, o problema teórico da definição do território como elemento do Estado, conforme alguns escritores pretendem.

Por outro lado, não poucas diferenças derivam da maior ou menor fixidez dos limites do território e da sua maior ou menor importância, da variação da extensão média do território de época para época ou de zona para zona, dos efeitos jurídicos maiores ou menores da residência no território do Estado (quanto a cidadania ou nacionalidade, direitos e deveres, etc.) e da divergência de sentidos do princípio do exclusivismo do poder territorial.

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§ 2º Tipos Históricos De Estado

18. O desenvolvimento histórico do EstadoI - O Estado deve ser encarado como processo histórico a par de outros.

Quer como ideia ou concepção jurídica ou política18 quer como sistema institucional, o Estado não se cristaliza nunca numa fórmula acabada; está em contínua mutação, através de várias fases de desenvolvimento progressivo (às vezes regressivo); os fins que se propõe impelem-no para novos modos de estruturação e eles próprios vão-se modificando e, o mais das vezes, ampliando.

II - Em consequência da geografia e das vicissitudes dos povos e das culturas, esse desenvolvimento pode ser isolado, oposto ou interdependente. Mas a experiência dominante vem a ser de interacção (com ou sem convergência) de instituições a partir do contacto de civilizações.

Desenvolvimento isolado (com formas ora contrastantes, ora paralelas) é a dos Estados e civilizações do Mediterrâneo, da Índia, do Extremo Oriente, da América precolombiana, da África subsariana. Não isolado, mas oposto, aparece, no cotejo da Antiguidade oriental e da Antiguidade clássica, mais tarde, o da Europa cristã e do Islão. Desenvolvimento interdependente é o que se dá na Europa desde o Império Romano e no resto do mundo desde a colonização e a descolonização.

Hoje, sem qualquer eurocentrismo, determinante é a influência das formas europeias de Estado, a qual se prende com a estrutura da comunidade internacional. A comunidade internacional de Estados radica no sistema europeu de Estados, que (como se vai ver) se formou a partir do século XVII, e pertencem-lhe Estados com as características do moderno Estado europeu.

19. Redução das formas históricas de Estado a tiposÉ possível (e necessário) tomar cada fase, forma histórica ou manifestação do Estado com os seus elementos específicos definidores (que acrescem aos elementos definidores do Estado em geral), em confronto com as outras fases, formas ou manifestações de Estado, para se chegar ao conceito de tipo de Estado.

E há duas perspectivas de encarar os tipos: como equivalentes no plano da história jurídico-política comparada às civilizações (Estado grego e civilização grega, Estado chinês e civilização chinesa, etc.); e como momentos de um processo histórico mais ou menos linear (o Estado grego, o Estado romano, a organização política medieval como fases do processo que desemboca no Estado moderno europeu).

A Jellinek se deve a consideração dos "tipos fundamentais de Estado", apontando-os como tipos de Estado com relação histórica com o Estado actual - ou porque os unam uma imediata continuidade histórica, ou porque o conhecimento de uns tenha influído sobre os outros. E tais são o Estado oriental, o grego, o romano, o medieval e o moderno.19

Entre outras tipologias, avulta a marxista (ou as marxistas), segundo o pensamento de que os diversos tipos de Estado hão-de corresponder a outros tantos modos de produção. Donde, o Estado despótico, o esclavagista, o feudal, o capitalista e, bem assim, o socialista.20

Acolhe-se aqui uma distinção na linha de Jellinek - a mais usualmente adoptada21 e a que permite atender a todos os aspectos da evolução do conceito de Estado, sem esquecer os aspectos económicos para que chama a atenção a análise marxista. Só cabe frisar, desde já, que na Idade Média verdadeiramente não houve Estado e que na Idade Moderna é necessário subdistinguir períodos bem caracterizados.

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20. O Estado orientalI - Como traços mais marcantes do Estado do Médio Oriente apontem-se:

- Teocracia, ou seja, poder político reconduzido ao poder religioso;

- Forma monárquica (combinada com a teocracia, porquanto o monarca é adorado como um deus);

- Ordem desigualitária, hierárquica e hierática da sociedade;

- Reduzidas garantias jurídicas dos indivíduos (o que, todavia, não significa necessariamente que eles ou que todos eles sejam degradados a meros objectos sem quaisquer direitos);

- Larga extensão territorial e aspiração a constituir um império universal.22-23

II - Lugar à parte ocupa apenas Israel, firmado na crença monoteísta, na recusa da natureza divina dos reis e no princípio da submissão da vontade destes à lei ditada por Deus.24

21. O Estado gregoI - Traços essenciais da polis, do Estado, na Grécia são:

- Prevalência do factor pessoal (o Estado é a comunidade dos cidadãos, embora não sejam estes os seus únicos habitantes - também há os metecos e os escravos);

- Fundamento da comunidade dos cidadãos: a comunidade religiosa, unida no culto de antepassados25 (apesar de a autoridade não ter natureza divina e não predominar a casta sacerdotal);

- Relativa pouca importância do factor territorial, o que está a par da pequena extensão do território (o Estado tem carácter municipal ou cantonal, é a Cidade-Estado, e não conseguem estruturar-se ou perdurar formas de associação ou união;26

- Deficiência ou inexistência da liberdade fora do Estado ou redução da liberdade individual à participação no governo da Cidade, não sendo a pessoa um valor em si, livre do poder público;

- Diversidade de formas de governo, sucessivamente ou com oscilações de Cidade para Cidade, e consoante as filosofias e as vicissitudes políticas, internas e externas.27

II - O contributo mais original da Grécia para o pensamento político-constitucional acha-se no período áureo da democracia ateniense - mas democracia distinta da actual, não só por ser outra a concepção de liberdade como por apenas terem direitos políticos os cidadãos de certo estrato da população, e apenas os homens, e eles os exercerem em governo directo;28 e, do mesmo modo, a isonomia ou igualdade perante a lei, apesar de fundamento da ordem social, também só dizia respeito aos cidadãos.29

À democracia tal como é concebida pode aplicar-se (sem esquecer outros aspectos) a célebre distinção de Benjamin Constant entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos,30 próxima da distinção entre liberdade-participação e liberdade-autonomia de alguma teorização constitucional dos séculos XIX e XX.

Vale a pena transcrever Constant:

"A liberdade dos antigos consistia cm exercer colectiva, mas directamente, várias partes da soberania, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar sentenças, em examinar as contas, os actos e a gestão dos magistrados, em fazê-los comparecer perante o povo, em submetê-los a acusações, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que se dava isso que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam como compatível com tal liberdade colectiva a sujeição completa do indivíduo à autoridade do conjunto. - Todas as acções privadas estavam sob uma vigilância severa. Nada era concedido à independência individual, nem no tocante à religião. A faculdade de escolher

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o seu culto, faculdade que nós olhamos como um direito dos mais preciosos, teria parecido aos antigos um crime e um sacrilégio. Nas coisas que nos parecem mais úteis, interpõe-se a autoridade do corpo social e afecta a vontade dos indivíduos. - Nas relações mais domésticas, intervém ainda a autoridade.

"Assim, entre os antigos, o indivíduo, soberano quase habitualmente nos assuntos públicos, é escravo nos assuntos privados. Como cidadão, decide da paz e da guerra; como particular, aparece circunscrito, observado, reprimido em todos os seus movimentos; enquanto porção do corpo colectivo, ele interroga, destitui, condena, despoja, exila, fere de morte os seus magistrados ou seus superiores; enquanto submetido ao corpo colectivo, pode, por sua vez, ser privado do seu estado, despojado das suas dignidades, banido, condenado à morte pela vontade discricionária do conjunto de que faz parte. Entre os modernos, pelo contrário, o indivíduo, independente na sua vida privada, não é soberano, mesmo nos Estados mais livres, senão na aparência…".31-32

Ou, como dizem Autores mais recentes:

"A política era um assunto de todos os cidadãos, mas, entretanto, todos os assuntos dos cidadãos eram assuntos políticos" (Christian Meier).

"Os cidadãos antigos não usufruem de direitos do homem e do cidadão e nem sequer de liberdade no plural ou no singular, mas só de deveres… Os Atenienses apenas gozam da liberdade que o Estado lhes deixa; um Estado moderno não cuida da moralidade dos cidadãos salvo nos casos expressamente definidos, enquanto que o direito de um cidadão antigo de perscrutar a vida dos seus concidadãos era ilimitado, mesmo se não exercido na prática."33

Todavia, apesar de a polis ser algo de essencial, superior e insubstituível, não deixa a cultura helénica de, no limite, prefigurar um direito de desobediência a leis injustas (Antígona).34

III - Entretanto, é na Grécia que o poder político é, pela primeira vez, questionado e objecto de especulação intelectual. Nela se encontram as matrizes do pensamento político ocidental, tanto filosófico como científico. Nela surgem os primeiros quadros classificatórios de sistemas políticos.

Como bem se sabe, à visão idealista de Platão (A República, As Leis) contrapõe-se a visão realista de Aristóteles, com o seu estudo de dezenas de Constituições (Política). E da mesma maneira, são diferentes as classificações de formas de governo de um e de outro: em Platão, formas reais - timocracia, oligarquia, democracia, tirania - e ideais - monarquia e aristocracia; em Aristóteles, formas puras - monarquia, aristocracia, politeia (democracia) - e degeneradas - tirania, oligarquia, demagogia.35

22. O Estado romanoI - Não são poucas, nem menores as semelhanças de Roma com as cidades da Grécia. Roma constitui-se pelo agrupamento das famílias e das gentes; e continua a ser um Estado de base municipal, ainda quando organiza um vastíssimo império em três continentes.

Conforme escreve um Autor, no mundo antigo não domina uma concepção cosmopolito-igualitária, mas antes aristocrática. O homem como tal possui direitos na medida em que faz parte de uma comunidade política (em sentido lato). O direito não é qualquer coisa de inato, mas, pelo contrário, de adquirido, conquistado e mantido: os membros de uma comunidade vencida na guerra não têm direitos a não ser por concessão especial. O sistema político antigo aparece como um sistema de desigualdade e de exclusão recíproca. Da perspectiva de cada Estado, o direito político subjectivo dispõe-se em círculos concêntricos e escalonados, tanto mais largos e mais fixos quanto a quantidade de direitos políticos é menor até ao não-direito; e a igualdade só existe no interior de um mesmo círculo.

Em Roma, quem se encontra fora do círculo do Estado é hostis; o que se encontra no raio menor do império, mas fora da res publica é hostis submetido - servus, dediticius, súbdito ou cliente; o que se

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encontra no raio menor, mais próximo da res publica, embora, ainda assim, fora dela, é o aliado - socius, amicus; o que se acha na sociedade de res publica, mas fora do governo, é o civis, o qual toma parte na assembleia do populus; o que se encontra no interior da esfera do governo, visto que tem a pretensão de governar, é o nobilis da aristocracia; e este, na medida em que tem o poder executivo, é o magistratus e, na medida em que tem o direito de o controlar, é o pater, membro do Senado.36

À res publica corresponde a libertas, quer a libertas que o civis plebeu considera aequa, quer a que o patrício reclama como liberdade de governar e de ser governado e que, em face do plebeu, representa a dignitas. E é assim que a res publica se contrapõe ao regnum, domínio de um só, porque no regnum a igualdade é só no estado de sujeição (todos iguais, porque todos igualmente subordinados à vontade de um só).37

II - Peculiaridades do Estado romano são:

- O desenvolvimento da noção de poder político, como poder supremo e uno, cuja plenitude - imperium, potestas, majestas -38 pode ou deve ser reservada a uma única origem e a um único detentor;39

- A consciência da separação entre o poder público (do Estado) e o poder privado (do pater familias) e a distinção entre Direito público e Direito privado;

- A consideração como direitos básicos do cidadão romano não apenas do jus suffragii (direito de eleger) e do jus honorum (direito de acesso às magistraturas) mas também do jus connubii (direito de casamento legítimo) e do jus commercii (direito de celebração de actos jurídicos);

- A progressiva atribuição de direitos aos estrangeiros e a formação do jus gentium como conjunto de normas reguladoras das relações em que eles intervêm;40

- A expansão da cidadania num largo espaço territorial (culminando com Caracala, em 212), em contraste com o carácter meramente territorial das monarquias orientais e o carácter pessoal restrito das Cidades-Estados gregas.41

A razão do grande interesse do estudo do Direito público romano está no longo período de tempo a observar, com uma rica evolução política (realeza, república, principado) e social (do Estado patrício ao Estado plebeu), e no incremento que nele tiveram algumas das noções e das instituições jurídicas (como as magistraturas colegiais da época republicana).42

III - Finalmente, seria durante o domínio romano da Palestina que surgiria o Cristianismo e seria para o Império que ele, primeiro, se difundiria; e o Cristianismo viria a abalar as principais concepções sociais romanas e os próprios alicerces de Cidade antiga, ao reconhecer à pessoa uma nova posição dentro da comunidade política e ao contestar o carácter sagrado do Imperador.

A pessoa torna-se agora um valor em si, por criada à imagem e à semelhança de Deus; todos os homens são pessoas com igual dignidade ("Não há judeu, nem grego, não há escravo, nem homem livre…"), chamados à "liberdade dos filhos de Deus"; e o espiritual é distinto do temporal ("Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus").43

Conforme salienta Eric Voegelin, a crença cristã introduz a imediatividade na relação do homem com Deus: o rei só está ligado a Deus, os magistrados a Deus e ao rei e os súbditos a Deus, ao rei e aos magistrados; pelo contrário, na hierarquia de Akhenaton (do Egipto), o soberano era o exclusivo mediador entre Deus e os homens.44

23. O pretenso Estado medievalI - A Idade Média, a Idade Média europeia,45 divide-se em duas grandes fases: a das invasões e a da reconstrução. A sua história resume-se grosso modo na passagem da insegurança geral à pequena

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segurança local, lentamente alargada, e na passagem da decomposição ou da ausência de poder a uma situação complexa, com o poder real estreitado entre a autoridade universal da Igreja e o poder parcelar (coexistente ou não) dos barões e dos senhorios corporativos.

Num e noutro período, não há Estado com as características que geralmente se lhe apontam, na quase totalidade do Continente. Por certo, não são de esquecer o Império Romano do Oriente, que irá sobreviver até 1453,46 os reinos das invasões bárbaras (como o dos Francos, o dos Suevos, com capital em Braga, ou o dos Visigodos); o Império Carolíngio e os inícios do Sacro Império Romano-Germânico. Estes foram Estados, mas, de modo algum, identificadores das concepções e das formas políticas medievais, fosse pelo seu progressivo afastamento do Ocidente (caso de Bizâncio), fosse pela sua precariedade ou duração efémera (os reinos bárbaros e os dois Impérios).

II - As concepções jurídico-políticas romanas apagam-se diante das concepções cristãs e germânicas, embora, quanto a estas, mais nuns sítios do que noutros (mais na Europa central do que na Península Ibérica, por exemplo).47

O Cristianismo ou, talvez melhor, a Cristandade envolve toda a vida medieval e projecta-se no plano político sobretudo como exigência de limitação do poder - do poder que vem de Deus ("Non est potestas nisi a Deo"), que deve ser aferido por critérios de legitimidade e que deve ser usado para o bem comum (Regnum non est propter regem, sed rex propter regnum). É nesse elemento de ordem objectiva que reside a principal garantia das pessoas.

Insistindo na distinção entre lei divina e lei humana ou entre lei eterna, lei natural e lei humana e analisando a contradição entre lei humana e lei natural, a Escolástica com S. Tomás de Aquino (Summa Teologica), sobretudo viria, mais tarde, a enfrentar o problema da lei injusta e a admitir o direito de resistência em certas condições.48

Por seu lado, as concepções germânicas colocam o príncipe (e as relações directas e pessoais dos súbditos com ele), não a Cidade, como centro da vida política (e daí que, em contraste com a maior parte da Antiguidade clássica, os senhorios e depois os novos Estados europeus venham quase todos a adoptar a forma monárquica). Afirmam também o dualismo da posição príncipe (ou rei)-povo, mais tarde rei-reino.

Finalmente, na Baixa Idade Média, alguns sectores intelectuais viriam a sustentar que o poder vinha de Deus per populum (S. Tomás) ou até que o pactum subjectionis não punha em causa o poder de raiz do povo (Marsílio de Pádua).

III - Com o feudalismo dissolve-se, todavia, a ideia de Estado.49 A ordem hierárquica da sociedade traduz-se numa hierarquia de titularidade e exercício do poder político, numa cadeia de soberanos e vassalos, ligados por vínculos contratuais. A realeza, muito longínqua, fica reduzida a uma dignidade ou prerrogativa no cimo da ordem feudal, tendo a seu favor apenas o título ou a extensão do domínio.

Nestas circunstâncias, o poder privatiza-se. Em vez do conceito de imperium vem o de dominium,50 em conexão com os princípios da família e da propriedade: investidura hereditária, direito de primogenitura, inalienabilidade do domínio territorial.51 Mais que em "forma de Estado" patrimonial deve falar-se em ordenamento jurídico sob regime patrimonial.52 É a concepção patrimonial do poder, a qual, transformada, acabaria por subsistir quase até ao constitucionalismo.

Além das grandes abadias monacais, as estruturas urbanas autónomas que vão surgindo - comunas ou concelhos, corporações de mesteres, universidades, etc. - cada qual com a sua função, desenvolvem-se (ou formam-se e desenvolvem-se) à margem de qualquer estrutura administrativa centralizada.

E porque não há uma relação geral e imediata entre o poder do Rei e os súbditos, os direitos são a estes conferidos não enquanto tais, individualmente considerados, mas sim enquanto membros dos grupos em que se integram; são direitos em concreto e em particular, como expressão da situação de cada pessoa; direitos que se apresentam como privilégios, regalias, imunidades que uns têm e outros

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não, ou direitos institucionais, em vez de direitos atribuídos genericamente a todas as pessoas.53

IV - Naturalmente, o papel da Igreja avulta nesta época, tal como já avultara a quando da queda do Império do Ocidente, se bem que em circunstâncias e em moldes diversos.

Como escreve Alfredo Von Martin, à Igreja Universal, muito centralizada, contrapõe-se uma multiplicidade de grupos, de irradiação local, entre os quais o vínculo de coesão é muito ténue. Na sociedade medieval, o factor decisivo de organização tanto política quanto cultural vem a ser uma instituição em rigor "não medieval", de base jurídica-política, e estruturada segundo um princípio racional-finalista, ou seja, uma instituição estranha, no mais íntimo do seu ser, à tendência feudal e corporativa.54

Era a Igreja, e não o Estado (que não existia ainda, ou já não existia) que se contrapunha à sociedade e com ela mantinha relações,55 e o menor valor do Estado comparado com o da Igreja era um dos princípios fundamentais da concepção medieval do mundo, que nem sequer o poder temporal punha em questão.56

24. O Estado moderno ou europeuI - Depois da organização política medieval - uma série de poderes ou autoridades, cada qual com ampla jurisdição, verticalmente dispostos - vai ressurgir a noção de Estado, na plena acepção. Pois o poder concentra-se no Rei e toda a autoridade pública passa e emanar dele; ele atinge todos os indivíduos - por serem súbditos do mesmo Rei; o território adquire limites precisos e a todas as parcelas o governo central faz chegar a sua lei.

Também, mais do que em qualquer outra época ou civilização, essa concentração acompanha-se de uma crescente institucionalização,57 determinada pelo próprio alargamento, da comunidade política e pelo reforço do aparelho de poder, bem como pelas transformações intelectuais que, entretanto, ocorrem. E com o constitucionalismo todo o Estado ficará envolvido por regras e processos jurídicos estritos.

II - O Estado moderno de tipo europeu, para lá das características globais de qualquer Estado, apresenta, porém, ainda características muito próprias:

- Estado nacional: o Estado tende a corresponder a uma nação ou comunidade histórica de cultura; o factor de unificação política deixa, assim, de ser a religião, a raça, a ocupação bélica ou a vizinhança para passar a ser uma afinidade de índole nova;

- Secularização ou laicidade: porque - por influxo do Cristianismo e ao contrário do que sucede com o Estado islâmico - 58 o temporal e o espiritual se afirmam esferas distintas e a comunidade já não tem por base a religião, o poder político não prossegue fins religiosos e os sacerdotes deixam de ser agentes do seu exercício;59

- Soberania; ou poder supremo e aparentemente ilimitado, dando ao Estado não só capacidade para vencer as resistências internas à sua acção como para afirmar a sua independência em relação aos outros Estados (pois trata-se agora de Estado que, ao invés dos anteriores, tem de coexistir com outros Estados).60

Em suma, a ordem estatal revela-se, doravante, como um projecto racional de humanidade em volta do próprio destino terreno.61

III - Como tem sido observado, no mundo antigo, os Estados dividiam-se em duas categorias: os impérios - grandes, mas deficientemente integrados; e unidades pequenas, mas com elevado grau de coesão - as Cidades-Estados. Os Estados europeus combinariam, em certa medida, as virtudes dos impérios e das Cidades-Estados. Seriam suficientemente vastos, mas conseguiriam envolver no

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processo político uma boa parte dos seus habitantes e criar um certo sentimento de identidade comum.62

25. O nome de EstadoA evolução da terminologia para designar a sociedade política reflecte, como não podia deixar de ser, a evolução dos seus tipos e dos respectivos conceitos.63

Assim, à polis grega e à civitas ou res publica (ou, mais completamente, Senatus Populusque Romanus), seguem-se, na Idade Média, a adopção de regnum, como entidade política juridicamente construída e diferenciada da pessoa do Rei;64 corona torna-se, mais tarde, sua expressão simbólica;65 terra é locução corrente; e civitas (ou Burg) não possui sentido político. É só com o aparecimento do moderno Estado europeu que se impõe uma nova denominação.

Vem a ser na Itália renascentista, com grande variedade de organizações e formas políticas, que se consagra uma designação genérica, neutra e, sobretudo, mais abstracta: o vocábulo Estado (stato), certamente proveniente do latim status (que equivale a constituição ou ordem66 e já empregado, de resto, no sentido de condição social desde o século XII). E o primeiro autor que introduz o termo na linguagem científica é Maquiavel em Il Principe: "Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens são Estados e são ou repúblicas ou principados."

Do italiano a palavra passa para as restantes línguas europeias nos séculos XVI e seguintes, com maior ou menor êxito e precisão.67 E os nomes dos Estados em concreto adquirem valor jurídico e simbólico, enquanto exprimem momentos históricos determinados ou determinadas feições de individualizar os Estados, a sua forma ou o seu sistema político, uns em relação aos outros (assim, o Reino de Portugal e dos Algarves).68

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CAPÍTULO II - O Direito Público Moderno E O Estado Europeu

§ 1º Formação

26. O sistema político medievalA organização política da Idade Média européia tem de se compreender na perspectiva mais ampla do Ocidente cristão. Com efeito, a ausência de Estado neste período deve-se tanto à força dos vínculos feudais, senhoriais e corporativos que no interior de cada reino limitam e repartem o poder central1 quanto à força dos vínculos de subordinação (de algum modo análogos aqueles) do Rei ao Papa e ao Imperador.

O Ocidente aparece como uma unidade - de civilização e de fé, e também política e social (apesar de muita diversificação): é o que se chama a Respublica Christiana2 Tal unidade remonta à recordação do Império Romano e fica reforçada, objectiva e subjectivamente, pela ameaça do Islão a sul e a leste da Europa.

Mas não eram pequenas as fraquezas deste sistema: o localismo da vida social, a precariedade das estruturas económicas, a grosseira tutela dos direitos dos indivíduos; sobretudo, a deficiência interna resultante da contraposição entre o Papa e o Imperador, entre o Sacerdotium e o Imperium, entre o poder espiritual e o poder temporal, levando a frequentes lutas que não deixam de ainda mais debilitar um e outro.3

A teoria canónica manteve a ideia de um império universal, mas a Cúria agiu sempre de modo a contrariar as pretensões do Imperador a um domínio efectivo para além da Itália e da Alemanha.4

27. A substituição do sistema político medievalDesde os séculos XIII-XIV ocorre a crise do sistema, até por reflexo da crise geral da mentalidade e da vida medievais (as Cruzadas e o rompimento das barreiras do Mediterrâneo, melhores comunicações internas e alargamento das áreas de segurança, novas tendências literárias e artísticas que hão-de conduzir ao Renascimento, as cidades e as manifestações de espírito burguês e de economia mercantil e capitalista).

Papel importantíssimo têm então dois factos: o despontar das nações europeias e a recepção do Direito romano. As nações, comunidades de laços novos e especiais assentes em afinidades de espírito e de interesses e no sentimento comum,5 transformam a geografia da Europa. O Direito romano, estudado e divulgado pelos legistas preparados nas Universidades, irá pôr em causa as concepções jurídico-políticas de origem germânica.

As nações vão-se formando durante séculos. O primeiro sinal da tomada de consciência de uma comunidade de si mesma é dar-se um nome, separando os que a ela pertencem dos que lhe são estranhos ou estrangeiros. Os nomes dos países são agora nomes de povos, e não de terras. E outros elementos acrescem ou se acentuam: a língua, a procura de origem comum, a idêntica vivência da religião, os santos e os heróis, o hábito de viver juntos, interesses comuns não puramente locais, a própria ideia de sujeição ao rei. Sentimento nacional existe já, em alguns países, nos séculos XIV-XV.6

As sociedades políticas estaduais, que vão surgir em consequência das causas gerais apontadas ficarão, pois, sob a influência das nações. A comunidade nacional dará o espaço e o apoio necessários para a acção do rei e cada Estado será talhado à medida de uma nação. Ou ainda, segundo um autor, a nação é a ideologia do Estado burocrático centralizado.7

O renascimento do Direito romano, a partir de fins do século XI e sobretudo do século XIII, é um dos mais importantes eventos da história cultural europeia. Direito do Sacro Império, os reges vão

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também favorecer a sua recepção na medida em que se afirmam nos seus reinos iguais ao imperator e constroem o seu poder à semelhança do Imperador8 e as categorias jurídicas romanas vão largamente enformar todas as novas construções políticas.

28. O processo de criação dos Estados europeusEm virtude da situação política existente, o processo de criação dos Estados modernos europeus consiste na realização concomitante de esforços dos reis para se libertarem dos vínculos internos e externos ao desenvolvimento da plenitude do seu poder:

a) Internamente, no sentido da centralização do poder, ou seja, da reintegração das faculdades jurisdicionais (e outras) dispersas pelos senhores feudais e da extinção das imunidades e dos privilégios atribuídos a estratos sociais ou a comunidades locais;

b) Externamente, no sentido da emancipação política (mais tarde, com a Reforma numa grande zona da Europa, separação político-religiosa) em relação ao Papa e ao Imperador.9-10

Este processo possui natureza jurídica. Os princípios jurídicos fornecem razões, indicam meios e facilitam a sua realização.11 Exemplifica-se aqui como o Direito não se reduz a um quadro condicionado, é sobretudo um elemento condicionador da evolução social e política.

29. A soberania e a organização do EstadoI - A moderna ideia de Estado tem o seu expoente na ideia de soberania. Talvez não fosse este um conceito inteiramente novo, mas Jean Bodin (Les six livres de la République, 1576) pô-lo a claro, purificou-o e fortaleceu-o, fazendo dele um conceito jurídico12 unitário.13

Se bem que Bodin defina a soberania - souveraineté, puissance souveraine absolute et perpétuelle - em relação a qualquer Estado, a sua obra revela-se (como, afinal, quase todas as grandes obras do pensamento político-constitucional) um estudo situado, com que fundamenta juridicamente o poder do Rei em França no momento da libertação dos vínculos feudais e da centralização.14-15

II - A soberania implica ainda imediatividade ou ligação directa entre o Estado e o indivíduo, ao contrário do que sucedia no sistema feudal. Doravante, tanto o nobre como o plebeu são igualmente súbditos do Rei, porque igual e imediatamente sujeitos ao seu poder.16

Para isso o poder - por definição não apenas concentrado no Rei mas também centralizado - dota-se dos necessários órgãos e serviços. São os tribunais do Rei e o correspondente processo que aparecem; é uma administração burocrática em sentido moderno (profissionalizada e hierarquizada) que progressivamente se substitui à administração feudal (entregue a titulares por direito próprio); e são novas funções que ela se vai propor.

30. Variedade dos momentos de aparecimento do EstadoNão é fácil divisar, com rigor, quando surge o Estado, quando se passa da organização política medieval para a nova forma de organização política - até porque as instituições e a vida têm uma continuidade que escapa à pura análise conceitual.17 O que pode afirmar-se é que ele surge, em momentos diversos, nas várias partes da Europa, consoante as suas circunstâncias específicas.

O Estado encontra-se relativamente cedo na Península Ibérica, onde as lutas da Reconquista cristã favorecem a unidade de comando político no interior dos diversos reinos que se vão formando (até se chegar, ao fim do século XV, ao dualismo Portugal-Espanha) e onde os reis nunca deixam de se

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afirmar independentes do Sacro Império.

Bastante cedo também, e em moldes mais modernizados, aparece na Sicília e em Inglaterra, devido ao regime burocrático-militar imposto pelos normandos (o que não terá sido estranho à precoce experiência constitucional inglesa).

Já na França emerge lentamente, ao longo dos séculos XIV e XV, pela reunião à Coroa de terras e direitos de grandes feudatários Uma importância decisiva tem a guerra dos 100 anos, acentuando a consciência da nacionalidade francesa e soltando os laços feudais entre a Inglaterra e a França.18

Nos países nórdicos, define-se nos séculos XVI e XVII em grande parte em ligação com a Reforma protestante, aproveitada pelos monarcas para, com a formação de Igrejas nacionais, afirmarem e aumentarem o seu poder. E quase ao mesmo tempo na Rússia, na Polónia e na Hungria, embora a centralização tenha chegado a resultados muito mais profundos no primeiro país (de Ivan, o Terrível, a Pedro, o Grande) do que nos outros dois.

Diferente se depara a prolongada situação transitória da Alemanha e da Itália, dispersas por numerosíssimos principados e repúblicas e sem conseguirem fugir à pressão das potências estrangeiras; o Império nominalmente subsistirá até 1806; e será a partir de novas entidades políticas vindas dos séculos XVII e XVIII - a Prússia e o Piemonte - que, em 1870, se constituirão Estados nacionais.

O processo de criação dos Estados europeus culmina nos tratados de Vestefália (1648) que põem termo à guerra dos Trinta Anos e, simultaneamente, selam a ruptura religiosa da Europa, o fim da supremacia política do Papa (mesmo nos países católicos) e a divisão da Europa em diversos Estados independentes, cada qual compreendido dentro de fronteiras precisas.19 À Respublica Christiana sucede, assim, um sistema de Estados soberanos e iguais.

§ 2º Evolução

31. Condições gerais de desenvolvimento do Estado europeuI - O Estado europeu move-se, do século XVI aos nossos dias, num mundo em transformação e ele próprio é um poderoso agente de transformação do mundo. Sofre o influxo das condições espirituais, socioeconómicas e internacionais, mas também vai tentar pô-las ao seu serviço. Daí toda uma série de inter-relações que não podem ser esquecidas.

Conhecem-se as condições espirituais: o Renascimento, a Reforma e a Contra-Reforma, com as crises psicológicas e morais conexas; do humanismo ao racionalismo e do racionalismo ao romantismo; o espírito científico e a rebeldia contra o espírito religioso; o progresso técnico e o aproveitamento (tantas vezes, a degradação) da natureza; a difusão da cultura e a passagem da cultura de corte e de claustros à cultura de massas.

Conhecem-se as condições socioeconómicas: a decadência da nobreza e da aristocracia rural e a ascensão da burguesia até chegar, no século XIX, a praticamente monopolizar a vida política; o desenvolvimento do capitalismo sob várias formas económicas e jurídicas;20 a revolução industrial, o aparecimento da classe operária, o sindicalismo e a amplitude dos conflitos sociais.

Há dois fins públicos que, doravante, se vão propor - o de cultura e o de progresso material - 21 e a ordem estatal apresenta-se como um projecto racional de humanidade em volta do próprio destino terreno.22

No plano exterior avultam os descobrimentos marítimos e a expansão colonial, por um lado, e o sistema de Estados, por outro. Um e outro factores (nuns casos mais o primeiro, noutros mais o segundo) afectam profundamente a estrutura dos Estados europeus. A expansão marítima e colonial

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há-de conduzir à planetarização das concepções e das formas jurídico-políticas. O sistema de Estados vive num processo dialéctico de solidariedade e antagonismo, de isolamento e associação, de neutralidade e coligação, de luta pela hegemonia e de equilíbrio;23 e o seu modelo acaba por ser transposto, após a guerra de 1939-1945, para o plano mundial.

II - Antes e noutras civilizações não se punha em causa a organização da sociedade; ela era um dado. Agora na época moderna, tudo é repensado, o homem coloca-se no seu centro e pretende ser agente da sua reformulação.

Surgem assim a Utopia de Tomás Morus (1534) e as outras utopias que se lhes seguem;24 as novas doutrinas do contrato social dos séculos XVII e XVIII (bem diferentes das medievais); o iluminismo; em suma aquilo em que, genericamente, se tem chamado a modernidade.

32. Períodos de evoluçãoSão diferentes as perspectivas por que pode ser tomada a evolução do moderno Estado europeu, a reflectirem as preocupações de estudo dominantes.

Uma primeira perspectiva, de natureza cultural, toma o Estado em cada época como expressão da civilização (europeia) dessa época. Atende, por conseguinte, sobretudo, às concepções filosóficas, sociais e jurídicas que legitimam o poder e pelas quais são avaliados o carácter e os móbeis de acção dos governantes. Os períodos que distingue são os correspondentes ao Estado do Renascimento (séculos XV e XVI),25 ao Estado da Ilustração (séculos XVII e XVIII) e ao Estado do Romantismo (séculos XIX e, talvez, XX).26

Uma segunda perspectiva, de natureza mais estritamente política e jurídico-positiva, reconduz o Estado a um processo político e jurídico de agir. Logo, volta-se, para a legitimidade política, a organização e a técnica de limitação do poder dos governantes e para os direitos e deveres atribuídos aos governados. Grandes períodos que demarca são os do Estado estamental ou da monarquia limitada pelas ordens, do Estado absoluto e do Estado constitucional, representativo ou de Direito, este com grande complexidade e, no século XX, até com contradição de opções e valores.27-28

Uma terceira perspectiva, muito complexa, liga Direito, política, economia, e vê o Estado na intersecção desses elementos fundamentais. Na evolução do Estado moderno surgem quatro tipos distintos, mas complementares: o Estado de poder soberano dentro do sistema europeu de Estados, o Estado comercial relativamente fechado com sociedade e economia capitalista burguesa, o Estado liberal e constitucional e o Estado nacional que simultaneamente abrange todas estas tendências e se lhes acrescenta, com orientação para a democracia.29

Adoptar-se-á aqui a segunda perspectiva, por melhor se coadunar com a índole própria desta disciplina; mas não deixará de se aproveitar alguma contribuição da primeira e da terceira.

33. O Estado estamentalI - O Estado estamental (Ständenstaat) ou monarquia limitada pelas ordens é forma política de transição. Já situado no domínio do Estado, não desenvolve, porém, ainda (porque não pode) todas as potencialidades deste e traz consigo algumas sequelas da era feudal. Não existe em toda a parte (por exemplo, em Itália) e não existe da mesma maneira e ao mesmo tempo em Inglaterra ou em França, em Espanha ou nos Estados alemães.

A ideia básica que nele se encontra é a dualidade política rei-estamentos, sucessora do dualismo rei-reino medieval. O rei e as ordens ou estamentos criam a comunidade política. O rei tem não só a

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legitimidade como a efectividade do poder central; mas tem de contar com os estamentos, corpos organizados ou ordens vindos da Idade Média.

Rei e estamentos exprimem, de certa maneira, um enlace entre Estado e sociedade. E fala-se também em Estado corporativo,30 por causa do factor político presente nessa sociedade complexa de unidades sociais e territoriais. Tal como na Idade Média, os direitos das pessoas estão aí fragmentados e estratificados.

A principal forma de participação dos estamentos encontra-se nas assembleias estamentais (Parlamentos, Estados Gerais, Dietas, Cortes) com particulares formas de representação, divididas ou não em mais de uma câmara e com faculdades ora deliberativas ora consultivas.31

II - Como se trata de um momento de equilíbrio, o Estado estamental não dura senão até o Rei ganhar força para levar a unificação do poder às suas últimas consequências. De resto, a Coroa, que representa o todo, é mais progressiva que as ordens, as quais acabam por ficar confinadas à defesa dos seus interesses de classe .32 A monarquia vai converter-se em absoluta.

Só em Inglaterra os estamentos, mais evoluídos que no Continente, sobrevivem como grupos políticos, e não como meros estratos sociais. Mas, para tanto, têm de ligar a sua sorte na luta contra o rei a uma causa muito moderna, a das garantias individuais e da representação nacional: são as revoluções inglesas do século XVII que impedem Carlos I e Jaime II de seguir o exemplo dos reis de França.

34. O Estado absoluto. O Estado de políciaI - O termo pode reputar-se menos preciso. Rigorosamente, não pode falar-se em "Estado absoluto" ou em "Princeps legibus solutus". Nenhum Estado existe à margem do Direito (insista-se) e nenhum governante deixa de estar vinculado às normas jurídicas que o titulam como tal - às "Leis Fundamentais" de que se fala nessa época e, enquanto as não mudar, às próprias leis que faça. O poder é um ofício.33 E se, na concepção patrimonial ainda dominante, se declara absoluto o poder do Rei (tal como a propriedade é um direito absoluto) isso tão pouco significa ilimitação, já que a propriedade se enquadra sempre na lei.

O sentido próprio só pode ser o de Estado absoluto como aquele em que se opera a máxima concentração do poder no rei (sozinho ou com os seus ministros) e em que, portanto: 1º) a vontade do rei (mas sob formas determinadas) é lei; 2º) as regras jurídicas definidoras do poder são exíguas, vagas, parcelares e quase todas não reduzidas a escrito.34 Assim se explicam tanto os exageros dos teóricos do absolutismo (que sustentam que os únicos deveres do príncipe para com os súbditos ou para com o Estado são deveres morais, embora gravíssimos) como os dos monarcómacos (que chegam a defender o tiranicídio).

Expediente técnico-jurídico muito característico deste ambiente vem a ser o desdobramento do Estado em Estado propriamente dito, dotado de soberania, e em Fisco, entidade de Direito privado e sem soberania. Apenas o Fisco entra em relações jurídicas com os particulares, contrata, se obriga, comparece em juízo, só contra ele podem os particulares reivindicar direitos subjectivos.

II - É usual distinguir dois subperíodos na evolução do absolutismo.

Num primeiro, que se estende até princípios do século XVIII, a monarquia afirma-se de "direito divino". O Rei pretende-se escolhido por Deus, governa pela graça de Deus, exerce uma autoridade que se reveste de fundamento ou de sentido religioso.35

Numa fase subsequente, embora essa referência básica se mantenha em nível de consciência jurídica da comunidade, vai procurar-se atribuir ao poder uma fundamentação racionalista dentro do ambiente de iluminismo dominante.36 É o "despotismo esclarecido" ou, noutra perspectiva, em alguns países, o "Estado de polícia" (tomando-se então o Estado como uma associação para a

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consecução do interesse público e devendo o príncipe, seu órgão ou seu primeiro funcionário, ter plena liberdade nos meios para o alcançar).37

Não se pense, que, ao longo destes séculos, só há monarquias. Também se encontram algumas repúblicas, desde a Holanda e as cidades hanseáticas à Suíça e ao norte da Itália - todavia, repúblicas aristocráticas (com raras excepções), mais próximas das da Antiguidade do que das repúblicas democráticas que surgiriam com as Revoluções americana e francesa.38

III - O critério principal de acção política torna-se a razão de Estado, a conveniência, o bem público, e não a justiça ou a legalidade, apesar de a religião cristã oficialmente professada necessariamente contrariar o maquiavelismo.39 E enaltece-se o poder pelo poder, posto ao serviço do Estado soberano.40

A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres).41

Sobretudo no século XVIII, a lei prevalece sobre o costume como fonte do Direito e esboça-se o movimento de codificação, reforma-se a justiça, consolida-se a função pública, criam-se exércitos nacionais e o Estado intervém em alguns sectores até aí ignorados da cultura, da economia e da assistência social.

Incrementa-se, entretanto, o capitalismo, primeiro comercial, depois industrial, e a burguesia revela-se o sector mais dinâmico da sociedade. O contraste crescente entre o poder económico da burguesia e a sua falta de poder político42 hão-de levá-la depois a fazer ou a apoiar a revolução.

35. O Estado constitucional, representativo ou de DireitoI - As correntes filosóficas do contratualismo, do individualismo e do iluminismo - de que são expoentes doutrinais Locke (Segundo Tratado sobre o Governo), Montesquieu (Espírito das leis), Rousseau (Contrato Social), Kant (além de obras filosóficas fundamentais, Paz Perpétua) - e importantíssimos movimentos económicos, sociais e políticos conduzem ao Estado constitucional, representativo ou de Direito.

Ponto culminante de viragem é a Revolução Francesa (1789 - 1799),43 mas não pouca importância assumem nessa mudança a Inglaterra (onde a evolução se desencadeia um século antes e onde se inicia a "Revolução industrial"), e os Estados Unidos (com a primeira ou, olhando às colónias de que se formou, com as primeiras Constituições escritas em sentido moderno).

A expressão "Estado constitucional" parece ser de origem francesa, a expressão "governo representativo" de origem anglo-saxónica e a expressão "Estado de Direito" de origem alemã. A variedade de qualificativos inculca, de per si, a diversidade de contribuições, bem como de acentos tónicos.

II - Em larga medida, a máquina (política e administrativa) do Estado constitucional é a mesma do Estado de polícia. E, por outra banda, dir-se-ia que algumas das suas características aparentemente correspondem ao desenvolvimento de características vindas de trás: as Constituições escritas reforçam a institucionalização jurídica do poder político; a soberania nacional, una e indivisível, a sua unidade; o povo como conjunto de cidadãos iguais em direitos e deveres a sua imediatividade.

Nem por isso, menos nítida é a divergência no plano das ideias e das regras jurídicas positivas.44 Em vez da tradição, o contrato social; em vez da soberania do príncipe, a soberania nacional e a lei como expressão da vontade geral; em vez do exercício do poder por um só ou seus delegados, o exercício por muitos, eleitos pela colectividade; em vez da razão do Estado, o Estado como executor de normas jurídicas; em vez de súbditos, cidadãos, e atribuição a todos os homens, apenas por serem homens, de direitos consagrados nas leis. E instrumentos técnico-jurídicos principais

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tornam-se, doravante, a Constituição, o princípio da legalidade, as declarações de direitos, a separação de poderes, a representação política.

A atitude espiritual correspondente a este novo estado de coisas é bem descrita por Kant:

"Ninguém me pode constranger a ser feliz à sua maneira (como ele concebe o bem-estar dos outros homens), mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe parece boa, contanto que não causa dano à liberdade de os outros aspirarem a um fim semelhante e que pode coexistir como a liberdade de cada um, segundo uma lei universal possível.

Um governo que se erigisse sobre o princípio da benevolência para com o povo, à maneira de um pai relativamente aos seus filhos, isto é, um governo paternal (imperium paternale), onde, por conseguinte, os súbditos, como crianças menores que ainda não podem distinguir o que lhes é verdadeiramente útil ou prejudicial, são obrigados a comportar-se de modo passivo, a fim de esperarem somente do juízo do chefe do Estado a maneira como devem ser felizes e apenas da sua bondade que ele também o queiram - um tal governo é o maior despotismo que pensar se pode.45

O iluminismo é a saída do homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado. E menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a orientação de outrem."46

III - No sentido que assim se recorta, a Constituição traduz algo de diverso e original. Traz consigo uma limitação nova e envolve todo um modo de ser concebido o poder. Na Constituição se plasma um determinado sistema de valores da vida pública, dos quais é depois indissociável. Um conjunto de princípios filosófico-jurídicos e filosófico-políticos (embora de inspirações algo diversas) vêm-na justificar e vêm-na criar.47

Os mais significativos textos desta nova concepção são americanos e franceses - a Declaração de Direitos de Virgínia e a Declaração de Independência dos Estados Unidos, ambas de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aquelas mais próximas do pensamento cristão, esta de um racionalismo laico.

Lê-se no art. 1º da Declaração de Direitos do Estado de Virgínia: "Todos os homens são, por natureza, livres e têm certos direitos inatos, de que, quando entram no estado de sociedade, não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o direito à vida e à liberdade, tal como os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar obter a felicidade e a segurança."

Na Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma-se: "Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: todos os homens são criaturas iguais, são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis e, entre estes, acham-se a vida, a liberdade e a ânsia de felicidade; os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando a forma de governo se torna ofensiva destes fins é direito do povo alterá-la, ou aboli-la e instituir novo governo… ."

Por sua vez, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (votada pela Assembleia Nacional francesa), proclama-se no art. 1º: "Os homens nascem e são livres e iguais em direitos, as instituições políticas só podem fundar-se na utilidade comum."

No art. 2º: "O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão."

No art. 6º: "A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação… ."

No art. 16º: "Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição."

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IV - Numa primeira noção, Estado constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadãos e tendente à limitação do poder.

Governo representativo significa a forma de governo em que se opera uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder - aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos da colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental). E é uma forma de governo nova em confronto com a monarquia, com a república aristocrática e com a democracia directa, em que inexiste tal dissociação.

Estado de Direito é o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (seja a mera legalidade formal, seja - mais tarde - a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de acção dos governantes.48

36. O Estado constitucional no século XIX como Estado liberal burguêsI - O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder político tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade).

É isso que sustentam, de seus pressupostos doutrinais e prismas próprios, os autores que o teorizam e propugnam: além de Kant e Adam Smith, Thomas Paine (Direitos do Homem), Madison (O Federalista), Wilhelm von Humboldt (Sobre os limites da acção do Estado), Bentham (Obras), Benjamin Constant (Princípios de Política), Alexis de Tocqueville (Da Democracia na América), Stuart Mill (Sobre a Liberdade, Sobre o Governo Representativo) e tantos outros (como, em Portugal, Silvestre Pinheiro Ferreira e Alexandre Herculano).

Mas, apesar de concebido em termos racionais e até desejavelmente universais, na sua realização histórica não pode desprender-se de certa situação socioeconómica e sociopolítica. Exibe-se também como Estado burguês, imbricado ou identificado com os valores e interesses da burguesia, que então conquista, no todo ou em grande parte, o poder político e económico.

II - As transformações registadas não se confinam ao campo da política, não nascem e também não se esgotam todas nesse domínio. As revoluções liberais são ainda de cunho social e, com os velhos governos, derrubam-se os velhos hábitos, atingem-se as classes, os estratos de classes e as respectivas zonas de influência ou de comunicação, há valores que se perdem e outros há que se adquirem. Uma organização do poder arrasta e é arrastada por uma nova organização da sociedade.49

Daí, o realce das liberdades jurídicas do indivíduo, como a liberdade contratual; a absolutização da propriedade privada a par das liberdades; a recusa, durante muito tempo, da liberdade de associação (por se entender, no plano dos princípios, que a associação reduz a liberdade e por se recear, no plano prático, a força da associação dos mais fracos economicamente); e desvios aos princípios democráticos (apesar da sua proclamação formal), nomeadamente, através da restrição do direito de voto aos possuidores de certos bens ou rendimentos, únicos que, tendo responsabilidades sociais, deveriam ter responsabilidades políticas (sufrágio censitário).50

As Constituições da época - entre as quais as portuguesas de 1822, 1826, 1838 e 1911 - reflectem isso mesmo e também a evolução que irá decorrendo segundo esses parâmetros.

III - Por osmose ou por imitação, por meios revolucionários ou por cedência régia, os regimes liberais vão-se implantar ao longo da primeira metade do século XIX. Ao mesmo tempo, com base no "princípio das nacionalidades" (aliás, nem sempre tomado em espírito romântico liberal), avança-se para a unificação da Itália e da Alemanha e dá-se a independência da Grécia e dos demais

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países balcânicos. Também os países da América Latina se separam da Espanha e de Portugal.

Num primeiro momento, os grandes conflitos políticos e sociais opõem liberais e conservadores (ou legitimistas em alguns países, após a queda da monarquia absoluta). Num segundo momento, opõem liberais e radicais (democratas, republicanos, socialistas, anarquistas).51

Por outro lado, o liberalismo vai enfrentar críticas doutrinais provenientes de vários quadrantes: do pensamento reaccionário (Joseph de Maistre, De Bonald e outros), do pensamento católico (do Syllabus à Rerum Novarum e às outras grandes encíclicas sociais), do pensamento socialista (Saint-Simon, Owen, Fourier, Proudhon, Marx, Engels).

Como quer que se entendam tais críticas, decisivas devem ter-se, apesar de tudo, algumas das aquisições trazidas pelo liberalismo, quer directa e imediatamente, quer indirecta ou mediatamente. Directamente: a abolição da escravatura, a transformação do Direito e do processo penais, a progressiva supressão de privilégios de nascimento, a liberdade de imprensa.52 Indirectamente: a prescrição de princípios que, ainda quando não postos logo em prática, viriam, pela sua própria lógica, numa espécie de auto-regência do Direito,53 a servir a todas as classes, e não apenas à classe burguesa que começara por os defender em proveito próprio (assim, a partir da liberdade de associação a conquista da liberdade sindical e a partir do princípio da soberania do povo a do sufrágio universal).

Mais ainda: independentemente das fundamentações (discutíveis ou não) dos movimentos políticos dos séculos XVIII e XIX, foram as Constituições que deles saíram e os regimes que depois se objectivaram que, pela primeira vez na história, introduziram a liberdade política, simultaneamente como liberdade-autonomia e liberdade-participação, a acrescer à liberdade civil.

37. A situação do Estado no século XXI - Século marcado por convulsões bélicas, crises económicas, mudanças sociais e culturais e progresso técnico sem precedentes (mas não sem contradições), o século XX é, muito mais que o século anterior, a era das ideologias e das revoluções. Desembocam nele todas as grandes correntes filosóficas54 e acelera-se o ritmo dos eventos políticos.55

É, portanto, um século em que o Direito público sofre poderosíssimos embates e em que à fase liberal do Estado constitucional vai seguir-se uma fase social.II - São quatro as linhas de força dominantes, na sequência imediata das duas guerras mundiais:

- As transformações do Estado num sentido democrático, intervencionista, social, bem contraposto ao laissez faire liberal;56-57

- O aparecimento e, depois, o desaparecimento de regimes autoritários e totalitários de diversas inspirações;

- A emancipação dos povos coloniais, com a distribuição agora de toda a Humanidade por Estados - por Estados moldados pelo tipo europeu, embora com sistemas político-constitucionais bem diferentes;

- A organização da comunidade internacional e a protecção internacional dos direitos do homem.

Assim, revelam-se de alcance quase universal a promessa de direitos económicos, sociais e culturais a par das liberdades e garantias individuais (por vezes, em contraposição a estas), o sufrágio universal, os partidos de massas, a tendencial substituição das formas monárquicas por formas republicanas, a generalização das Constituições e o enriquecimento do seu conteúdo (nem sempre da sua garantia), o alargamento dos fins do Estado, a multiplicação dos grupos sociais e de interesses e o papel político que procuram desempenhar, o crescimento da função administrativa, o realçar do Poder Executivo em detrimento do Parlamento. Necessário é, contudo, captar, ao lado e

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para além dos textos jurídicos, as realidades políticas.

Com ou sem formas aparentemente similares às dos regimes liberais, surgem no século XX diversos regimes, não por acaso chamados totalitários, produto da "rebelião das massas (Ortega), do impacto sobre estas de determinadas ideologias e de ocorrências políticas internas ou externas de maior vulto. Tal como no Estado absoluto, há neles uma concentração do poder político, mas muito mais do que isso: o Estado absoluto não intervinha na vida privada das pessoas, não pretendia absorver a sociedade civil (nem tinha meios para isso);58 ao passo que o Estado totalitário assume todo o poder na sociedade e identifica a liberdade humana com a prossecução dos seus fins.59

A emancipação dos povos ultramarinos é, simultaneamente, uma consequência das modificações operadas nas relações internacionais e na economia mundial e um corolário dos princípios de liberdade declarados na Europa. E não é de surpreender que, libertando-se do domínio colonial europeu, do mesmo passo os povos de vários continentes adoptem a forma europeia de Estado como única estrutura jurídico-política apta a permitir-lhes o rápido acesso à vida moderna. Mas, naturalmente, são aí imensos os problemas de construção do Estado e várias as formas de governo e até os modelos constitucionais experimentados.

Ao mesmo tempo que o Estado atinge a sua máxima expansão, desenvolve-se a estruturação da comunidade internacional, através de agrupamentos de Estados com funções específicas que adquirem autonomia relativamente a eles - as organizações internacionais.60 Muito diversas pelos fins (políticos, económicos, técnicos, culturais, etc.), pelo âmbito (mundial e continental ou regional), pelo acesso (relativamente aberto ou restrito) e pelos poderes (da cooperação ou de integração), elas assinalam uma nova fase do Direito das Gentes. A Carta das Nações Unidas não só estabelece o princípio da solução pacífica de conflitos internacionais (art. 2º, nº 3) e apenas admite a legítima defesa (art. 51º) como se pretende superior a quaisquer tratados (art. 103º) e se impõe mesmo a Estados não membros (art. 2º, nº 6).

Ligada à organização da comunidade internacional - porque sem ela não ganha efectividade - nasce a protecção internacional dos direitos do homem, ou seja, a promoção, por meios jurídico-internacionais, da garantia dos direitos fundamentais relativamente ao próprio Estado de que cada um é cidadão. Tem por causas a tendência para a humanização do Direito internacional e o alargamento da noção de sujeito de Direito internacional, mas sobretudo o repúdio da opressão feita por regimes políticos de vários sinais ideológicos e a consciência universal da dignidade da pessoa humana que se vai formando. E devem ser conhecidos os principais instrumentos em que se tem traduzido: a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, "como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações", os Pactos Internacionais de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e de Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950, e a Convenção Interamericana dos Direitos do Homem, de 1969.61

38. A diversidade de tipos constitucionaisI - Considerando mais de perto o fenómeno constitucional avultam três aspectos. Consiste um na perda da crença liberal individualista na Constituição; o outro, e em contrapartida, na generalização das Constituições escritas por todos os Estados; outro ainda, na rápida sucessão das Constituições e das suas vicissitudes.

Fica ultrapassado um modo de encarar a Constituição, extingue-se a fé que fora apanágio do constitucionalismo liberal e lhe fizera atribuir o nome. Não se espera mais que os problemas sejam resolvidos pela simples acção das suas normas, uma postura crítica ou de pessimismo substitui com veemência o anterior optimismo. E existem razões para ser assim: as deficiências internas das próprias Constituições positivas; a sua dificuldade de conformar o poder e a vida em tempos de

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aceleração e de impaciência; os contrastes de concepções sobre a interpretação, a concretização e a aplicação de suas normas; os reflexos da chamada crise da lei ou do Direito;62 externamente a tensão dialéctica de liberalismo, democracia e socialismo.

Quanto à propagação das Constituições escritas, tanto pode ter-se como uma aquisição positiva quanto como uma aquisição negativa. Aquisição positiva seria, pelo menos, ficarem os cidadãos e a doutrina habilitados a reconhecer com recurso a elas as linhas primordiais do ordenamento de cada um dos Estados. Facto negativo seria, ainda assim, a generalização, visto que, para as Constituições se enxertarem em quaisquer Estados, teriam de esvaziar, em proporção insofismável, o valor dos seus preceitos.63

Durante o século XIX fácil fora olhar à ideia de Constituição para definir o sistema político, pois que, sendo ela constante no que regulava e respeitada, Estado que tivesse Constituição qualificava-se de Estado constitucional. No século XX tudo se modifica, admitem-se as formas sem se admitirem os princípios, votam-se compromissos entre forças que não se podem neutralizar, os mesmos princípios adquirem significados diferentes e, quando se inscrevem nos textos, nem sempre conseguem concitar o acordo dos intérpretes.

Triunfa a unanimidade formal, perde-se a unanimidade material. Ao contrário do período monárquico absoluto, agora todos os Estados se preocupam com dotar-se de Constituições em perfeito sentido formal.64 E, ao contrário do período liberal, nessa forma solene única inserem-se matérias e intuitos divergentes. Por outras palavras e em síntese: devemos supor vários, e não um, tipos constitucionais. Ao mesmo tipo histórico de Estado - o europeu - vão corresponder diferentes tipos constitucionais de Estado.65

Por isso, não admira que as Constituições acusem hoje uma instabilidade antes desconhecida. Do século XVIII resta em vigor apenas uma, do século XIX quatro ou cinco e até são poucas as que remontam a antes da Segunda Guerra Mundial.66 Entretanto, não se mostram menos frequentes as alterações ou vicissitudes de vária natureza que vão sofrendo. E torna-se aí ainda mais patente o confronto entre as Constituições que valem como fundamento do poder e aqueloutras que não passam de instrumento ao seu serviço.

II - O primeiro desses tipos vem a ser o Estado social de Direito ou modelo de organização constitucional que sucede ao Estado liberal (ou que com ele parcialmente coexiste) sem solução de continuidade e que, muito em resumo, pode reconduzir-se a um esforço de aprofundamento e de alargamento concomitantes da liberdade e da igualdade em sentido social, com integração política de todas as classes sociais.67

O Estado social de Direito não é senão uma segunda fase do Estado constitucional, representativo ou de Direito. Por dois motivos: 1º) porque, para lá das fundamentações que se mantêm ou se superam (iluminismo, jusracionalismo, liberalismo filosófico) e do individualismo que se afasta, a liberdade - pública e privada - das pessoas continua a ser o valor básico da vida colectiva e a limitação do poder político um objectivo permanente; 2º) porque continua a ser (ou vem a ser) o povo como unidade e totalidade dos cidadãos, conforme proclamara a Revolução francesa, o titular do poder político.

Do que se trata é de articular direitos, liberdades e garantias (direitos cuja função imediata é a protecção da autonomia da pessoa) com direitos sociais (direitos cuja função imediata é o refazer das condições materiais e culturais em que vivem as pessoas); de articular igualdade jurídica (à partida) com igualdade social (à chegada) e segurança jurídica com segurança social; e ainda de estabelecer a recíproca implicação entre liberalismo político (e não já, ou não já necessariamente, económico) e democracia, retirando-se do princípio da soberania nacional todos os seus corolários (com a passagem do governo representativo clássico à democracia representativa).

Do que se trata é ainda, para tornar efectiva a tutela dos direitos fundamentais, de reforçar os mecanismos de garantia da Constituição; e daí a afirmação de um princípio da constitucionalidade a acrescer ao princípio da legalidade da actividade administrativa e a instituição de tribunais

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constitucionais ou de órgãos análogos.68

Para já, diga-se apenas que as Constituições donde arranca esta linha directriz são a mexicana de 1917 e, sobretudo, a alemã de 1919 (dita Constituição de Weimar) e que, entre as Constituições vigentes que a seguem, se contam a italiana de 1947, a alemã de 1949, a venezuelana de 1961, a portuguesa de 1976, a espanhola de 1978 e a brasileira de 1988.

III - Em oposição ao tipo assim sumariamente descrito, assiste-se no século XX à emergência de dois outros modelos constitucionais, o soviético ou marxista-leninista e o fascista. Resultam de agravados conflitos políticos e sociais, de irradiantes ideologias antiliberais e de partidos ou movimentos vitoriosos que se identificam, depois, com o próprio Estado.

Mas, como adiante se referirá, são tão significativas as semelhanças quanto as diferenças entre um e outro regime.

O Estado soviético ou marxista-leninista recebe esse nome por assentar e se inspirar nas ideias da Revolução russa de 7 de novembro de 1917: revolução soviética, feita em nome de "todo o poder aos sovietes" (ou seja, aos conselhos de operários, soldados e camponeses); revolução marxista-leninista, feita em nome da ideologia marxista-leninista.

O Estado fascista, por seu turno, tem esse nome por causa do regime instaurado na Itália de 1922 a 1943 pelo partido fascista e que, com feições, ora extremas, ora moderadas, foi transplantado ou seguido, na dependência de condicionalismos internos e externos, em vários países. Se não há uma ideologia fascista definida única, não custa descobrir elementos próximos comuns aos diversos regimes que, com maior ou menor rigor, ali são habitualmente enquadrados.

39. Os problemas do início do século XXII - Neste início de século e de milénio, o panorama político-constitucional é, de novo, de grandes transformações e instabilidade.

Em primeiro lugar, desapareceram ou entraram em queda irreversível quase todos os regimes totalitários e autoritários. Desapareceram não só os regimes matrizes ou mais característicos (o fascismo italiano em 1943; o nacional-socialismo alemão em 1945; o marxismo-leninismo soviético em 1985-1991) como os regimes aparentados (regimes fascizantes e regimes comunistas da Europa centro-oriental em 1945 e em 1989-1990, respectivamente; os regimes autoritários português, grego e espanhol nos anos 70; as ditaduras militares latino-americanas nos anos 80; e os regimes africanos de partido único nos anos 90).

Em segundo lugar, em contrapartida, irrompeu desde 1979 um regime de novo tipo, correspondente, no fundo, a um modelo de Estado diverso do Estado europeu: o Estado de fundamentalismo islâmico, em que se unem (tal como noutras eras e noutros tempos históricos) lei religiosa e lei civil, poder espiritual e poder temporal.

Em terceiro lugar, observam-se no Estado social de Direito fundos sintomas de crise - a chamada crise do Estado-providência, derivada não tanto de causas ideológicas (o refluxo das ideias socialistas ou socializantes perante ideias neoliberais) quanto de causas financeiras (os insuportáveis custos de serviços cada vez mais extensos para populações activas cada vez menos vastas), de causas administrativas (o peso de uma burocracia, não raro acompanhada de corrupção) e de causas comerciais (a quebra de competitividade, numa economia globalizante, com países sem o mesmo grau de protecção social).69

Em quarto lugar, e mais importante do que todas estas vicissitudes e estes problemas, deparam-se, porém, a degradação da natureza e do ambiente, as desigualdades económicas entre países industrializados e países não-industrializados, as situações de exclusão social mesmo nos países

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mais ricos, a manipulação comunicacional, a cultura consumista de massas, a erosão de certos valores éticos familiares e políticos.

De que modo e em que medida tudo isto irá repercutir-se nas Constituições? E em que medida cabem no âmbito do Estado e não exigem, antes, por um lado, um novo papel da sociedade civil e, por outro lado, uma reforçada cooperação internacional? Como tornar a globalização o caminho para uma comunidade de homens e mulheres livres e iguais à escala planetária, em vez de ser um instrumento ao serviço de mais ricos e de mais poderosos? Como conjugar o Direito constitucional como um Direito internacional assente em princípios supra-estatais de jus cogens?

II - A democracia representativa e pluralista, a democracia politicamente liberal (mas não necessariamente como mera economia liberal) impôs-se como princípio de legitimidade contra a falta de racionalidade dos demais regimes.

Não significa isto, porém, que se tenha chegado ao "fim da história", até porque a história comporta avanços e recuos, saltos e sobressaltos, e porque se mostram bem evidentes as imperfeições e os sinais de perturbação e perplexidade de muitas das actuais democracias, tais como a quebra do sentido de participação cívica e o afastamento em relação aos governantes, a sujeição do contraditório parlamentar ao imediatismo da comunicação audiovisual, as tendências oligárquicas e os défices de democracia no interior dos partidos, ou os excessos de corporativismo. Dir-se-ia que a "democracia sem inimigo" não tem mais problemas externos, mas que se abriu a caixa de Pandora dos seus problemas internos.70-71

III - Não sem relação com a situação no interior dos Estados, verifica-se o fenómeno, de intensidade e amplitude iniludíveis, da integração em espaços continentais ou regionais.

Sem ignorar outras experiências em curso (como o Mercosul, que abrange o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai), é a integração europeia a que mais avulta. E sem esquecer o Conselho da Europa (criado em 1948 e com relevantíssima acção no domínio dos direitos do homem e da cooperação jurídica) é o processo desencadeado pela Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1952) e pelos tratados subsequentes, e pelas Comunidades Económica Europeia e Europeia de Energia Atómica (1957) que a tem levado mais longe.

Tendo começado por uma via fundamentalmente prática e funcional e por abranger apenas seis países, este processo viria a alcançar, pela sua própria dinâmica, pelo "Acto Único Europeu" (1986), pelo Tratado de Maastricht, dito de "União Europeia" (1992) e pelos tratados subsequentes, círculos crescentes de atribuições, a ponto de se tornar necessário proclamar um princípio de subsidiariedade (art. 3º-B do Tratado da Comunidade Económica Europeia, aditado pelo Tratado de Maastricht).

E também estas formas de integração, começando embora no Direito internacional, não deixam de se repercutir no Direito Constitucional.

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TÍTULO II - Sistemas E Famílias Constitucionais

CAPÍTULO I - Sistemas E Famílias Constitucionais Em Geral

40. A complexidade constitucional actual e as perspectivas por que pode ser encaradaI - Com perto de 200 Estados formalmente soberanos na actualidade, todos com os seus ordenamentos particulares e quase todos revestidos de Constituições escritas, não é fácil surpreender um quadro suficientemente largo e preciso não só das múltiplas formas e instituições como das grandes coordenadas do Direito constitucional, das tendências comuns e das aproximações possíveis para lá das dissemelhanças inevitáveis.

E, não obstante, é necessário levar a cabo tal tarefa quer se trate de trabalhos comparativos ex professo, quer (como aqui) de exposição perfunctória antecedente do estudo da formação do Direito constitucional português e dos grandes temas da teoria da Constituição.

II - São diversas as vias ou perspectivas que se oferecem para essa finalidade: o recurso à Teoria Geral do Estado, a tipologia das formas políticas, a observação de experiências constitucionais, a formação de sistemas e famílias de Direito constitucional.1 Seguir-se-á este último caminho.

A primeira perspectiva repousa no enlace com a Teoria Geral do Estado, a qual fornece os temas e problemas a considerar, sendo depois as respectivas soluções procuradas pela investigação comparativa. As matérias de Direito constitucional comparado correspondem aos conceitos mais ou menos gerais e abstractos elaborados pela Teoria do Estado; e, por seu turno, esta vai colhendo os resultados da comparação, de modo a actualizar ou substituir conceitos ultrapassados pelas mutações políticas e sociais.

Tal vem a ser a grande vantagem desta via ou perspectiva, mas também o seu maior inconveniente. É que tão estreita relação entre as duas disciplinas ou entre as duas intenções pode levar à diluição ou à subalternização do trabalho comparativo ou então a grave diminuição do seu interesse por acabar por não mostrar ao vivo as semelhanças, as diferenças e as interacções de institutos e preceitos.

Pelo que tange à tipologia das formas políticas, ela consiste em distribuir os diferentes sistemas constitucionais em razão dos sistemas políticos que instituam, em inserir as Constituições em esquemas classificatórios de formas de governo (governo representativo clássico, governo jacobino, monarquia limitada, democracia representativa, etc.) ou de sistemas de governo (parlamentar, presidencial, directorial, etc.) e em proceder à respectiva descrição.

Oferece, no entanto, o óbice de as formas políticas não esgotarem, de modo algum, os sistemas constitucionais. As Constituições não se reduzem à sua regulamentação; ocupam-se de outras matérias, desde a estrutura do Estado, os direitos fundamentais e a economia à sua própria garantia e revisão.

Com o estudo das experiências constitucionais, assenta-se no sistema constitucional de cada país como um todo e procura-se conhecer a sua origem, quais os elementos políticos, económicos, culturais e religiosos que o têm condicionado, quais os seus traços dominantes actuais e quais as suas linhas de projecção provável para o futuro. É a experiência da organização jurídico-política de cada povo, produto de uma mentalidade e de um ambiente peculiares, que se cuida de recortar ao longo das várias vicissitudes históricas por que tenha passado.

Sem embargo, não são poucos os riscos que tal estudo particularizado de experiências constitucionais comporta: ou o risco de fazer justificação, e não comparação; ou o risco de

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deslocação para pleno campo histórico, com numerosíssimos factos e instituições, onde se torna penoso avançar; ou o risco de penetrar ou de se deixar envolver tanto pelo ordenamento constitucional deste ou daquele país que depois dir-se-ia quase descabido comparar, por tudo se mostrar original ou irredutível.

Quanto ao método de formação de famílias constitucionais consiste, por um lado, em examinar o Direito constitucional de um país tal como se apresenta na sua realidade de sistema dotado de vida própria e, por outro lado, em tentar agrupar sistemas semelhantes ou afins num pequeno número de famílias ou tipos constitucionais.

Este método - mais concreto que o primeiro, mais compreensivo que o segundo e mais estritamente jurídico de que o terceiro apontado - oferece uma tríplice vantagem. Baseia-se no Direito constitucional como um todo, embora tenha de escolher os elementos sobre que vai incidir a comparação; toma-o integrado no sistema jurídico a que pertence; visa descobrir a continuidade institucional, mas, ainda mais, a coerência actual de valores, conceitos e normas.

É um método que abre tanto para uma dimensão temporal quanto para uma dimensão espacial (de tendência universalizante) como nenhum outro e que, assim, se situa bem entre as tentativas de agrupamento de ordens jurídicas a que procede o Direito comparado.2 Contudo, tem de ser usado como prudência, por se terem tornado menos firmes os contornos de sistemas e famílias num mundo em mudança

41. A formação de famílias constitucionaisI - A formação de famílias é via percorrida por numerosos autores. René David, trabalhando voltado para o Direito privado, contribuiu muito para a difusão; dele se aproxima dalgum modo Konrad Zweigert. E, debruçados já sobre os sistemas de Direito constitucional, devem referir-se os nomes de, entre outros, Karl Loewenstein e Sanchez Agesta.3

Para René David, o Direito não vem a ser unicamente um conjunto de regras jurídicas, variável de época para época e de país para país. Em cada país pode mesmo dizer-se que - para além dessa inevitável transformação - ele permanece idêntico a si mesmo nos conceitos, nos métodos de trabalho, nas ideias sobre a sociedade e a justiça, nas estruturas em que se insere. Por conseguinte, quando se determinam as famílias jurídicas, parece indicado tomar em conta estes elementos constantes do Direito, de preferência às disposições sempre menos estáveis.

São os seguintes os meios ou os requisitos a atender no agrupamento. Refere-se um à técnica jurídica: um Direito pertence à mesma família de outro, desde que o jurista seja capaz de lidar sem dificuldade com os conceitos, institutos e construções dogmáticas de qualquer deles. Refere-se o segundo requisito à comunidade de princípios filosóficos, políticos e económicos. Os dois critérios devem ser usados cumulativamente, não isoladamente, e com visão larga suficiente para que se distingam as características essenciais de outras de acessória importância.

David estuda então, com base nesses critérios, a família romano-germânica, os Direitos socialistas, o sistema de Common Law e os Direitos religiosos e tradicionais (muçulmano, da Índia, do Extremo Oriente e da África e de Madagáscar).4-5

Por seu turno, Konrad Zweigert toma como critério os "estilos" dos sistemas jurídicos e considera factores determinantes de certo estilo a origem histórica e a evolução do ordenamento, os modos de pensar dos juristas, os institutos jurídicos caracterizantes, as fontes de Direito e a sua interpretação e os factores ideológicos.6

Como sistemas jurídicos enuncia o romanístico, o germânico, o anglo-americano, o escandinavo, o dos países socialistas, os do Extremo Oriente, o islâmico e o indiano.7

Bastante conhecida é a contraposição formulada por Loewenstein entre Constituições originárias e

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derivadas, sendo "originária" uma Constituição que contém um princípio funcional novo, verdadeiramente criador e, portanto, original para o processo do poder político e para a formação da vontade estadual e "derivada" aquela que segue fundamentalmente um modelo nacional ou estrangeiro.

Como tipos originários de Constituição considera Loewenstein o parlamentarismo britânico, o sistema constitucional americano, o constitucionalismo francês de 1793 (que produziu o tipo de governo de assembleia), as Constituições napoleónicas (que introduziram o cesarismo plebiscitário), a Constituição francesa de 1814 (de monarquia constitucional de base legitimista), a Constituição belga de 1831 (que reconciliou o princípio monárquico com a soberania popular) e as Constituições russas soviéticas de 1918 e 1924.

As famílias de Constituições englobam todos os documentos constitucionais que provêm de uma comum Constituição originária ou, eventualmente, de uma Constituição que, embora derivada ela própria de outra, tenha exercido influência exterior.8

Sanchez Agesta, finalmente, entende que a Constituição surge como realização de um quadro de possibilidades típicas num meio histórico determinado, de tal sorte que a consideração histórica concreta das ordens constitucionais, com as suas relações de influxo e repulsa, de propagação de ideias, de imitação de instituições, de evolução e transmissão de princípios e fórmulas jurídicas, propicia a verdadeira base de uma ciência do Direito constitucional.

Postulada a índole específica e autónoma de cada ordem constitucional, há que admitir a existência de causas históricas que determinam formas análogas e paralelas em países distintos. As razões de homogeneidade reduzem-se a duas: a imitação e a força expansiva de certas ideias. A difusão de uma ideologia e o mimetismo técnico operam como elementos unificadores; as razões históricas e o substrato social como elementos individualizadores de cada ordem jurídico-política.

Subsiste o problema de salientar Constituições-tipo que sirvam de pontos de referência. Um critério mais marcadamente teórico repousaria na análise de tipos de organização constitucional e aconselharia a olhar, à laia de exemplos históricos, para as Constituições em que melhor se concretizassem os conceitos de classificação. Outro critério, de carácter empírico, poria em foco, segundo as linhas da sua difusão histórica, as ordens-mães de grupos ou famílias de Constituições. Sanchez Agesta opta por um critério intermédio, estudando aquelas Constituições cujos princípios definem um tipo que tenha sido gerador de instituições similares noutros povos.9

II - Parece-nos de reunir as lições de René David e as de Loewenstein e Sanchez Agesta. Na necessária indagação prévia, seguimos o mestre francês na tentativa de aglutinação da massa de ordens constitucionais existentes em torno de algumas poucas famílias ou tipos. Na exposição (e em parte na investigação) aproximamo-nos, porém, dos dois constitucionalistas: em vez de imediatamente contemplarmos os elementos comuns aos Direitos constitucionais dos diversos países na sua transplantação ideal para cada família, começamos por os contemplar através dos sistemas jurídico-constitucionais onde nasceram e se desenvolveram e cuja evolução, por isso, convém não ignorar.

Quer dizer: o resultado a que chegaremos será o mesmo a que chegaria René David - a apresentação de grandes sistemas de Direito constitucional,10 susceptíveis de serem captados na sua filosofia e na sua dogmática; mas ele não será prejudicado por nos servirmos, juntamente com a geografia constitucional, da alusão particular a determinados países e Constituições.

A pertença a uma família de sistemas constitucionais não acarreta a imperiosa coincidência de todos os sistemas acerca de todos os critérios de comparação de que nos sirvamos.11 Se assim fosse, seria quase impossível realizar qualquer agrupamento de sistemas, porquanto nem cada família envolve uma configuração de cada critério desconhecida da das outras famílias, nem tão pouco poderia ser perfeita a coincidência abstracta dos elementos, através dos critérios; a Inglaterra, em vez de presidir a uma imponente família, mostrar-se-ia tão isolada como a Suíça.

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Por mais que variem, os critérios de comparação conjugam-se, não se separam ou afastam. Tal como os elementos - que permitem captar para efeito de confronto - têm de ser objecto de compreensão sistemática. Para lá deles, importa encarar o sistema constitucional de cada país nas suas linhas directrizes e no seu espírito - que lhe conferem originalidade e, ao mesmo tempo, integração, em plano mais amplo, num tipo constitucional.12

III - As fases pelas quais se desdobra o processo intelectual de agrupamento dos sistemas em famílias de Direito constitucional são as seguintes:

1º) Observação dos sistemas constitucionais (não de todos necessariamente, mas de uma maior parte e mais significativa, na sua realidade e diversidade);

2º) Recolha de caracteres comuns e destrinça de caracteres diferenciadores;

3º) Procura ou confirmação de sistemas com caracteres semelhantes;

4º) Sempre que essenciais os pontos de contacto, inclusão dos sistemas nas mesmas famílias - sendo, porém, imprescindível proceder a análise histórica e sistemática;

5º) Averiguação da possível existência de um sistema donde derivem historicamente os outros sistemas, por comunidade de origem, imitação, influência ideológica ou imposição;

6º) Com os elementos comuns aos vários sistemas integrados em cada família, construção da unidade dogmática ideal correspondente a esta e sua consideração como sistema abstracto coerente.

O caminho a percorrer fica, pois, situado entre duas balizas: o sistema ou os sistemas constitucionais concretos e palpáveis na vida e o sistema ideal e típico de que participam e que os influencia. Este sistema-tipo não é senão aquilo que existe de paradigmaticamente comum aos vários sistemas positivos. Por exemplo: o Direito constitucional canadiano e o neozelandês são expressões de um Direito constitucional de matriz inglesa e pertencem à família inglesa de Direito constitucional; o Direito constitucional chinês e o cubano são concretizações históricas do tipo soviético de organização política.

De acordo com tal enquadramento, torna-se fácil afirmar que os resultados essenciais da comparação vêm a ser, por um lado, o recortar de um determinado número de famílias constitucionais e, por outro lado, a descrição dos elementos que, revelando-nos a estrutura interna de cada uma (outro tanto é dizer: a estrutura de cada um dos sistemas jurídico-constitucionais em especial, em que ela grosso modo se repete), lhe imprimem as suas feições identificadoras.13

A dimensão mais completa deste ou daquele sistema constitucional particular obter-se-á tomando-o integrado na família de que vier a participar. Uma perfeita localização sistemática de uma norma da Constituição em sentido formal não se esgota no paralelo com as outras normas da mesma Constituição em sentido formal, nem no plano da Constituição em sentido material do país de que se trate, nem através do sistema jurídico total desse país; pode ser ainda encarada no plano do sistema ideal que assinala a família de Constituições em que se mova o sistema constitucional.14

42. Os sistemas e famílias constitucionais da actualidadeI - Não custa reconhecer a existência de quatro grandes famílias de Direito constitucional no século XX a inglesa, a norte-americana, a francesa e a soviética.

Os principais institutos de Direito constitucional vigentes no mundo remontam ou remontaram aos sistemas jurídicos de Inglaterra, Estados Unidos, França e União Soviética. Daqui se difundiram com amplitude e fidelidade variáveis, segundo fenómenos históricos conhecidos, para numerosos outros países. E, ainda hoje, é às matrizes britânica, norte-americana e francesa que se reconduzem os sistemas constitucionais da maior parte dos países, e mesmo depois de 1989-1991 a influência do

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constitucionalismo soviético persiste em alguns países.

Um breve conspecto da evolução, do século XVIII para cá, primeiro na Europa e na América e mais tarde também noutros continentes, permite apreender o bem fundado da discriminação.

II - O sistema britânico é o mais antigo e o mais sólido dos sistemas constitucionais. A Inglaterra não teve rigorosamente monarquia absoluta e passou, embora não sem convulsões como as de 1648 e 1688, do Estado estamental para o Estado constitucional representativo. Mostesquieu inspirou-se nela para formular a sua concepção de separação dos poderes. O governo parlamentar e, de certa sorte, a instituição parlamentar tiveram lá a sua origem. A influência do Direito constitucional inglês revelar-se-ia, naturalmente, mais forte e directa nos povos que, alguma vez, estiveram sujeitos ao seu domínio (muitos dos quais ainda se encontram ligados entre si e com Grã-Bretanha dentro do Commonwealth).

As primeiras Constituições escritas em pleno sentido moderno15 e que incorporam já a filosofia jusracionalista aparecem, porém, no continente americano. São as Constituições das treze colónias que dão origem aos Estados Unidos e a Constituição federal de 1787. E, conquanto a imagem da Inglaterra e a influência doutrinal francesa aí estejam presentes, algumas contribuições próprias importantíssimas marcam o constitucionalismo norte-americano, maxime o federalismo, o governo presidencial e a fiscalização da constitucionalidade das leis pelos tribunais. Vêm a ser estes institutos que melhor caracterizam um modelo imitado pela América Latina no século XIX e que, em parte, são também transplantados para alguns outros países.

O constitucionalismo como movimento revolucionário de vocação universal é em França, em 1789, que triunfa e é de lá que irradia (mesmo para países que não ficarão na família de matriz francesa). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão não se dirige apenas aos franceses, dirige-se a todos os homens, e no seu artigo 16º contém uma noção de Constituição em sentido material (e, implicitamente, em sentido formal). A experiência inglesa, apesar de lhe levar um século de antecedência, não teve o mesmo efeito, quer pelos reflexos da insularidade quer pela especificidade da estrutura jurídica, social e administrativa do Reino Unido.

O sistema constitucional soviético provém da revolução russa de outubro-novembro de 1917 e instaurar-se-ia em numerosos países, nas décadas seguintes, com o acesso do partido comunista ao poder. Subordinação de toda a organização política, económica e social aos objectivos de realização do socialismo e do comunismo definidos pelo partido, eis o seu primeiro traço distintivo.

III - Com ideias e instituições oriundas de Inglaterra, Estados Unidos e França, mas com difusão e correspondente destruição das instituições da monarquia absoluta a partir da Revolução francesa, o Estado constitucional, representativo ou de Direito desenvolve-se desde então em sucessivas vagas de Constituições, cujo conteúdo revela progressivo alargamento.

A este respeito, um autor, Biscaretti Di Ruffia, distingue oito ciclos entre 1789 e a época contemporânea na linha do Estado de Direito, pertencendo os seis primeiros àquilo que designa por "constitucionalismo clássico": 1º) as Constituições revolucionárias (1789-1799); 2º) as Constituições napoleónicas (1799-1815); 3º) as Constituições da Restauração (1815-1830); 4º) as Constituições liberais (1830-1848); 5º) as Constituições democráticas (1848-1918); 6º) as Constituições federais (1848-1871); 7º) as Constituições de democracia racionalizada (1919-1937); 8º) as Constituições de democracia social (2º após-guerra).16 E poderia acrescentar um novo ciclo: o das Constituições das duas últimas décadas, subsequente à queda dos regimes autoritários e totalitários da Europa meridional, da America Latina e da Europa central e oriental.

Verificam-se, entretanto, interacções e aproximações de sistemas pertencentes a famílias diversas e, em alguns casos, dir-se-ia formarem-se sistemas mistos ou híbridos.

IV - Na Europa continental, à margem das Constituições de matriz francesa somente ficam no século XIX, por um lado, a Rússia e a Turquia e, por outro lado, os países de língua alemã. Ali os regimes permanecem imobilizados. Aqui, não ocorrem ou não triunfam revoluções liberais e é

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possível aos monarcas conduzir o processo político, através das chamadas monarquias constitucionais propriamente ditas ou limitadas, com prevalência do princípio monárquico sobre o princípio democrático. E quer tal circunstância, quer a adopção de fórmulas organizativas próprias, quer ainda o esforço de elaboração de conceitos por parte dos juristas permitem considerar os sistemas constitucionais alemão e austríaco com autonomia em face do sistema constitucional francês.

O que se diz acerca da Alemanha e da Áustria deve dizer-se, ainda com mais razão (e, em parte, razão inversa) acerca da Suíça. A história constitucional helvética, aliás, pode remontar-se à Idade Média e é largamente (embora não exclusivamente) assinalada pelo cunho democrático. Nos séculos XVIII e XIX a Suíça sofre o influxo do Direito revolucionário francês e em 1848 passa de confederação a federação, mas os institutos e prática de democracia directa, o federalismo cantonal e plurilinguístico e o sistema de governo directorial tornam o seu sistema constitucional irredutível a qualquer outro.

Não é (ou não foi) o Estado de tipo soviético o único que se apresenta (ou apresentou) em divergência radical perante o Estado constitucional representativo. Invocam também princípios contrapostos aos do liberalismo político os regimes fascistas e fascizantes que se exibem em força entre as duas guerras mundiais; e após 1945, subsistiriam ainda, ou instaurar-se-iam de novo, regimes aparentados. Todavia, por assumirem configurações concretas muito particulares e por, com algumas excepções, não terem logrado definir formas constitucionais consistentes, não chegaram nunca a dar origem a uma verdadeira e própria família de Direito constitucional.

Por último, depois da descolonização, em alguns Estados da Ásia e da África ensaiaram-se vias novas ou diferentes, em nome das suas tradições e das suas necessidades de desenvolvimento. Mas debalde se procuraria um modelo único e, muito menos, uma específica família de Direito constitucional, tão divergentes foram essas vias e tão incipientes (ou falhadas) se revelariam.

Situação mais clara vem a ser a criada pelo fundamentalismo islâmico, cuja expansão, a partir do Irão, poderá, eventualmente, conduzir à formação de uma família sui generis.

43. Dualidade ou pluralidade de famílias constitucionaisI - As influências recíprocas, sob muitos aspectos, entre os sistemas constitucionais do Ocidente e, por outro lado, a oposição entre eles e os sistemas constitucionais de matriz soviética poderiam levar a advogar a redução a duas famílias constitucionais, no período de 1945 a 1989-1990: a ocidental, correspondente sucessivamente ao Estado liberal e social de Direito, e a soviética, correspondente ao Estado marxista-leninista. E a essas famílias reconduzir-se-iam dois tipos fundamentais e antagónicos de Constituições que se encontrariam, segundo alguns, na nossa época: o capitalista e o socialista.17

O confronto entre os sistemas constitucionais do Ocidente e os de Leste era, na verdade, impressionante, como poderia comprovar-se, em rápido relance comparativo, por algumas das características fundamentais duns e doutros.

Assim, no Ocidente, a Constituição destina-se essencialmente a garantir direitos fundamentais dos cidadãos e a limitar o poder do Estado; nos países de Leste, pelo contrário, destinava-se a salvaguardar e promover as conquistas do regime político e económico socialista. No Ocidente, fala-se em Estado de Direito, e estão muito aperfeiçoados os meios jurisdicionais de garantia ou remédios contra os abusos do poder; no Leste, em legalidade socialista, com meios ainda embrionários de garantia.

Os regimes políticos britânico, americano e francês assentam na atribuição do poder ao povo, recortado juridicamente como conjunto de cidadãos, e no exercício das liberdades públicas. O regime político soviético assentava na atribuição do poder à classe operária e na sujeição das

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liberdades aos interesses dos trabalhadores e aos objectivos de realização do comunismo. O Direito constitucional ocidental admite a liberdade e a concorrência dos partidos como peças do dinamismo da vida política e expressão de uma sociedade pluralista, ao passo que todo o Estado soviético se configura como Estado construído e mantido por um partido único ou hegemónico, considerado vanguarda da classe operária.

O século XVIII - inglês, norte-americano e francês - inventou o governo representativo (convertido, no século XX, em democracia representativa, como já se notou). E esta forma de governo - ligue-se a sistemas parlamentares, presidenciais, directoriais ou a quaisquer outros - realiza, de maneira mais ou menos imperfeita e variável, um objectivo de divisão ou desconcentração de poder. Mas o Direito constitucional marxista-leninista (na esteira de Rousseau) rejeita o princípio da representação política e torna-se indissocial de sistemas de unidade e concentração de poder.

Biscaretti Di Ruffia explica do seguinte modo o contraste entre o Direito constitucional ocidental e o soviético:

"Enquanto que as Constituições da democracia clássica, com a sua rigidez bem protegida, visam oferecer as mais amplas garantias às numerosas e distintas formações sociais que operam na sua esfera de aplicação (e, em particular, tendem a proteger os grupos minoritários face às maiorias contingentes), as Constituições socialistas intentam, antes de mais, transformar de forma cada vez mais integral a velha sociedade não homogénea… numa sociedade verdadeiramente homogénea, sem oposição de classes, e onde a propriedade de todos os meios de produção das riquezas acabe por se tornar colectiva. E, como esta imensa obra de transformação social só se pode realizar por sucessivas fases, as Constituições sofrem frequentes mutações, correspondentes aos diversos estádios de evolução progressivamente atingidos. É somente nos estádios mais avançados que as instituições constitucionais podem começar a aspirar a uma certa estabilidade de estruturas, determinando então a entrada em vigor do princípio da legalidade socialista (isto é, do respeito escrupuloso das normas legislativas), realizado com a colaboração da autoridade judiciária".18

E Georges Burdeau sublinha:

"Enquanto que no Ocidente a vontade popular é o suporte e a justificação de um poder aberto a todas as aspirações presentes do povo e a todas as renovações que, no futuro, possam transformar a sua vontade, no Leste o poder fecha-se sobre uma vontade popular cuja preponderância justifica a exclusão de qualquer contradição e cuja ortodoxia se opõe, no futuro, a qualquer alteração.

"De um lado, Poder aberto, porque, se a vontade popular lhe dita os imperativos que comandam a sua acção, pelo menos esta vontade é aceite na sua complexidade real. Existe nela o "pró" e o "contra". Sem dúvida, o "pró" prevalecerá pelo jogo da força do número, mas o "contra" ter-se-á feito ouvir. Ou melhor: o Poder não lhe está definitivamente fechado, porque lhe cabe a esperança de ganhar o Povo para esse "contra" que não tem, decerto, o direito de mandar, mas que tem o direito de existir…

"De outro lado, Poder fechado ou Poder servidor de uma vontade popular cuja substância está definitivamente fixada. Poder fechado ainda como Poder cuja inspiração, cujo programa e cujos planos, formados segundo as exigências dessa vontade preponderante, escapam, doravante, a qualquer revisão, porque a organização do exercício do poder está combinada de modo a esse poder ser monopolizado pela força política que é erigida em senhora do Estado. Poder fechado, enfim, como Poder partidário, Poder dogmático, porque o serviço exclusivo da ideologia que encarna lhe impede de considerar as concepções divergentes a não ser como heresias que é preciso destruir".19

II - Apesar de tudo, entendemos indispensável destrinçar no Estado constitucional ocidental três grandes famílias, três grandes sistemas-tipos, não como tipos ideais, insista-se, mas como tipos históricos bem situados. Em vez de dualismo ou polarização, a pluralidade em razão da complexidade de factores a atender.

O Direito tem de ser visto numa dimensão muito mais ampla que a da ideologia e a da afinidade de

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sistemas políticos e económicos. O Direito faz parte da vida dos povos e o Direito constitucional ostenta, positiva ou negativamente, as particularidades da sua convivência política, da sua cultura, do seu ambiente humano. Nem é a Constituição económica a região nuclear ou determinante do Direito constitucional.20

Por mais fortes que sejam os vínculos de unidade no Ocidente, subsistem irrecusáveis sinais e causas de diferenciação. Basta pensar no papel do costume e das convenções constitucionais em Inglaterra, em contraposição ao culto da lei nos países latinos (e também, sob outra perspectiva, nos países com Constituições marxistas-leninistas); na pujante função desempenhada pelos tribunais americanos na vida política e social, ao lado da estrita função judicativa dos tribunais franceses; noutro plano, nas diferenças entre o governo local de Inglaterra e as autonomias comunais ou municipais do Continente Europeu; e, em geral, entre o sistema administrativo de raiz francesa e os sistemas administrativos dos países anglo-saxónicos.

Logo, como ignorar as condições em que emergiram e se desenvolveram as Constituições em Inglaterra, nos Estados Unidos e nos demais países anglo-saxónicos, em França e nos demais países do Continente europeu?21 Como ignorar, por exemplo, a veneração prestada à Constituição na América e os saltos e as rupturas institucionais de países como a França e Portugal? E como ignorar a poderosíssima carga de tradições, sentimentos, conceitos e técnicas de trabalho dos juristas, iniludivelmente variável de sistema para sistema?

O fim dos regimes autoritários e totalitários, em primeiro lugar, e, em segundo lugar, os progressos da integração comunitária levaram a que por toda a Europa triunfasse uma concepção comum sobre o Estado e os direitos das pessoas.22 No entanto, ultrapassados os afrontamentos ideológicos, tornaram-se também mais patentes os contrastes de organização jurídica e política entre os diversos países, de modo a recortarem-se, com mais serenidade e clareza, os traços identificadores dos sistemas constitucionais.

44. As famílias do Direito constitucional, os sistemas de Direito privado e os sistemas administrativosI - Existe um relativamente estreito nexo entre os sistemas de Direito civil e os de Direito constitucional e entre a comparação em Direito privado e em Direito público. Nem poderia deixar de assim suceder, tendo em conta (insistimos) a função da Constituição.23

Essa ligação entremostra-se mais fortemente no respeitante aos países com regimes marxistas-leninistas: têm Direito privado socialista soviético os países com Direito constitucional socialista soviético; ou melhor, a adopção de um regime de tipo soviético acarreta a modificação completa do sistema jurídico privado. Mas encontra-se conexão igualmente noutros países: o Direito constitucional de índole britânica quase só abrange países de common law e não terá sido obstáculo desprezível à plena recepção dele em numerosos países (caso das monarquias constitucionais europeias) o possuírem estes um sistema de Direito privado estranho ao Common Law.Há, porém, evidentemente, pontos de discrepância.24 É muito maior a extensão da adesão ao Direito privado romanista que a adesão a qualquer sistema constitucional do Ocidente: a América Latina, área romanista, tem vivido sob influência do sistema constitucional de cariz norte-americano; na Europa ocidental, toda ela imbuída do Direito romano, há o sistema francês de Direito constitucional e países com sistemas próprios. Além disso, os sistemas constitucionais propagaram-se a países de Direito privado religioso ou tradicional: países muçulmanos, Índia, Extremo Oriente e, de algum modo, África e Oceânia.

II - Relação ainda mais estreita se depara entre sistemas de Direito constitucional e sistemas de Direito administrativo,25 como é óbvio.

O contraste histórico (embora hoje algo atenuado) entre o sistema administrativo inglês e o sistema

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administrativo francês arranca, em linha recta, de diferentes concepções constitucionais. Embora seja comum a ideia de subordinação do poder político ao Direito, a chamada administração judiciária de tipo britânico radica no rule of law, ao passo que que a administração executiva de tipo francês assenta no modo como a separação de poderes aí foi (e continua sendo) entendida.26

De igual sorte, se particularidades existem no sistema administrativo dos Estados Unidos, elas derivam das exigências do federalismo, de uma estrutura muito descentralizada de toda a administração com múltiplas autarquias institucionais (ou agências) e do sentido dos tribunais como órgãos de garantia dos direitos individuais. E alguma destas características passariam para o Brasil e para outros países de influência constitucional norte-americana.

Não menos nítida se mostra a dependência do sistema administrativo dos países com regime marxista-leninista dos respectivos sistemas constitucionais. Os fins prosseguidos pela Administração identificam-se com os fins ideológicos assumidos pela Constituição e sobrepõem-se a quaisquer direitos e interesses subjectivos (sem efectiva tutela jurisdicional). E o "centralismo democrático" do partido reflecte-se numa extrema centralização e concentração da vida administrativa.

Enfim, também os traços peculiares de países não integrados em famílias, como a Suiça e a Alemanha, se espelham nos sistemas administrativos. O princípio da legalidade tem aí recolhido um tratamento diverso do obtido em França.

III - As disparidades dos sistemas de Direito privado, tal como as disparidades dos sistemas de Direito constitucional e de Direito administrativo vêm da história. O acolhimento de determinados princípios filosófico-jurídicos, que não de outros, ou o uso de determinadas técnicas de hermenêutica, que não de outras, dependem das circunstâncias que presidiram à criação e à evolução dos Direitos. E algo de semelhante se diga da difusão: por exemplo, o Common Law expandiu-se nas antigas colónias britânicas, ao mesmo tempo que as instituições constitucionais de base inglesa, e os sistemas civilístico, administrativo e, pelo menos em parte, o sistema constitucional francês nas antigas colónias francesas.

Contudo, na evolução do Direito e na sua recepção e adaptação é essencial olhar, em cada caso, às estruturas e instituições sociais e mentais dos vários países. Não há Direito público ou privado que possa subsistir sem ser apreendido pelos juristas27 e sem estar radicado no subsolo institucional da comunidade e este reage sempre com mais ou menos força sobre ele, incorporando-o ou tentando repeli-lo. O Direito de base ocidental não é o mesmo praticado na Europa, no Pacífico ou na África.

45. Direito constitucional e estruturas sociaisNinguém contestará presentemente que o Direito não pode compreender-se desligado da realidade social - ou seja, cultural, religiosa, política, económica - em que se deve aplicar. Um idêntico conjunto de normas posto em diferentes países exibe neles, irrefutavelmente, diferentes modos de ser interpretado e de ser cumprido, porque tais normas levam consigo valores e conceitos susceptíveis de refracção e não se reduzem a esquemas formais.

Um dos méritos das correntes doutrinais modernas, entre as quais as institucionalistas e as estruturalistas, está em terem contribuído para se conceber o ordenamento jurídico, não em abstracto, mas em concreto, referido a certa sociedade. O célebre brocardo ubi societas, ibi jus, completa-se hoje com a afirmação ubi jus, ibi societas.Entretanto, há sectores do jurídico mais sensíveis do que outros à influência dos factores sociais e, mais do que todos, o Direito constitucional. Exactamente por ser o tronco da ordem jurídica do Estado, muito mais directamente que qualquer dos ramos sofre os efeitos dos condicionamentos culturais, religiosos, políticos, económicos presentes ou latentes no país - assim como, em contrapartida, é o sector estratégico fundamental de conformação jurídica e de transformação desses

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condicionamentos.

Muitos esquemas constitucionais, perfeitos em certo Estado, ao serem transplantados para outro Estado revelam-se profundamente inadequados, por o novo meio social e cultural não estar preparado para os recebe28 e exigir soluções bastante diversas. Mas, mesmo quando a recepção é possível ou conveniente, nem sempre se faz sem quebra de elementos essenciais e pode haver elementos de formas políticas e constitucionais preexistentes que venham afectar os elementos novos e implicar formas compósitas ou híbridas.

Em instância algo diferente, não devem também esquecer-se os limites que resultam para os governantes e, em geral, de maneira mais ou menos imediata, para os mecanismos constitucionais, das estruturas económicas, sociais e culturais dos respectivos países. A situação político-constitucional há-de ser variável consoante se viva em país com certa tradição cultural ou com outra, com certa concepção das relações entre o Estado e a sociedade ou com outra, em economia de mercado ou de direcção central, num país agrícola ou num país industrializado, com certa composição de classes sociais ou com composição completamente diversa.29 E tão pouco podem obliterar-se factores derivados das relações internacionais.

Quando, por conseguinte, se procura converter a multiplicidade dos processos constitucionais dos vários países em alguns poucos sistemas típicos ou, quando, vencida esta fase, se procura enquadrar em qualquer das famílias ou dos sistemas típicos o sistema particular de um dado país é mister ter uma visão da realidade social subjacente à Constituição. Ela há-de penetrar na análise (como, nas preliminares, quisemos logo salientar).30

Não é por fortuitas razões que a continuidade histórica triunfa no século XVIII, em Inglaterra, e não em França; ou que a Constituição dos Estados Unidos tem sido defendida e desenvolvida pelos tribunais; ou que, após décadas de regime soviético, se procurou substituir o princípio da legalidade socialista pelos princípios do Estado de Direito. E não é por fortuitas razões que, na Ásia e na África, se tem dado uma dialéctica dos sistemas políticos, económicos e constitucionais em face das condições locais e a aplicação concreta tem conduzido a vivências muito diferentes daquelas que os esquemas jurídicos pareceriam postular.

Qualquer estudo comparativo, em suma, tem de contemplar a pluralidade de instituições e estruturas sociais para fugir ao diletantismo intelectual. Deve realizar-se na consciência das relações mútuas entre o Direito constitucional com a sua vitalidade própria - porque, importa sublinhar de novo, o Direito nunca consiste em mero produto segregado pela sociedade, sem autonomia - e as instituições e estruturas no seu movimento constante.

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CAPÍTULO II - As Famílias Constitucionais

§ 1º Os Sistemas Constitucionais De Matriz Inglesa Ou Britânica

46. Formação e evolução do Direito constitucional inglês ou britânicoI - Na formação e na evolução do Direito constitucional inglês ou britânico distinguem-se três grandes fases:

a) A fase dos primórdios, iniciada em 1215 com a concessão da Magna Carta (pela primeira vez, porque diversas outras vezes viria posteriormente a ser dada e retirada consoante os fluxos e refluxos de supremacia do poder real);

b) A fase de transição, aberta em princípios do século XVII pela luta entre o Rei e o Parlamento e de que são momentos culminantes a Petição de Direito (Petition of Right) de 1628, as revoluções de 1648 e 1688 e a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689;

c) A fase contemporânea, desencadeada a partir de 1832 pelas reformas eleitorais tendentes ao alargamento do direito de sufrágio.1

Embora se fale, o mais das vezes, em Inglaterra, em rigor deve aludir-se a Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte, resultante da união, feita em 1707, entre a Inglaterra (integrando o País de Gales e ocupando então toda a Irlanda) e a Escócia - uma união real subsequente à união pessoal formada em 1602.

Todavia, em contrapartida, justifica-se dizer disjuntivamente Direito constitucional inglês ou britânico, porque o Direito constitucional de toda a Grã-Bretanha2 assenta e vem na continuidade imediata do da Inglaterra.

II - Pouco há de específico na limitação sofrida pela monarquia inglesa na Idade Média - monarquia coeva de outras monarquias temperadas pelas ordens e de sentido pluralista e paternalista - a não ser a antecipada centralização do poder real, mercê da conquista normanda; e pouco há talvez de específico na Magna Carta, solene documento reconhecendo foros ou privilégios à semelhança de outros que nessa época eram outorgados também no Continente. No entanto, toda a singularidade da história jurídico-política inglesa remonta à concepção que desde a Idade Média se fez e se consolidou acerca do poder dos Reis e dos direitos dos súbditos. A esta luz, a Magna Carta assume um significado que transcende o de um simples texto em que se combinam aquisições bem particularizadas com um Direito natural de inspiração cristã.3

A segunda fase abre com um agitado período de lutas políticas e político-religiosas. Houve duas Revoluções inglesas como viria a haver uma Revolução francesa, também com oscilações várias e com a experiência de diferentes sistemas políticos, entre os quais o interlúdio da República Britânica sob o protectorado de Cromwell (ditadura precursora da de Bonaparte). E o Instrument of government (de 1653) foi um arremedo de Constituição escrita.

O que distingue, sobretudo, a Revolução inglesa de 1688 (Glorious Revolution) da que um século mais tarde ensanguentaria a França está em que aquela se insere numa linha de continuidade, ao passo que a francesa tenta reconstruir a arquitectura toda do Estado desde o começo. A Revolução inglesa, na linha das primeiras cartas de direitos, não pretende senão confirmar, consagrar, reforçar direitos, garantias, privilégios. A Revolução francesa destrói os que vem encontrar para estabelecer outros, de novo. Em Inglaterra, é a Realeza que ataca e o Parlamento que, em nome da tradição, defende e se defende;4 em França, o Rei remete-se ao papel de quem, sem forças nem convicção para resistir, tenta obter um adiamento numa liquidação inevitável. O Direito constitucional inglês não nasce em 1689 com o Bill of Rights, o Direito constitucional francês nasce em 1789 com a

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Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.5

A terceira fase é a da democratização. Até 1832 (Reform Act) o Direito político britânico tinha uma índole liberal, mas pouco democrática. É essa índole democrática que entre 1832 e 1929 ele vai adquirir, com a passagem de um sistema eleitoral não muito afastado do de séculos passados (com a sua complexidade e a sua concentração oligárquica) a um sistema assente no sufrágio universal de adultos de ambos os sexos. Este processo coincide com o apagamento da Câmara dos Lordes (de pares hereditários e vitalícios) em benefício da Câmara dos Comuns (com membros electivos e renováveis) e, quase de imediato, com o papel propulsor dos partidos na vida política.6

Nas últimas décadas, as consequências sociais, económicas e culturais da 2ª Guerra Mundial e da descolonização, a inserção na Europa, o problema da Irlanda do Norte e certa quebra de consenso acerca da monarquia têm suscitada sinais de mudança, que o futuro elucidará.7

47. Sobreposição institucional e Constituição históricaI - Por sobreposição institucional designamos o fenómeno que consiste em instituições de natureza completamente diversa coexistirem e interpenetrarem-se através dos tempos e, mesmo em épocas de colisão, em não tenderem a destruir-se ou a substituir-se umas às outras (como aconteceria no Continente europeu), mas apenas a definir novas funções e um novo equilíbrio.

Essas instituições, protagonistas da história constitucional britânica, são o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns - que, no seu conjunto, formam o Parlamento.8 Elas encontram-se presentes nas três épocas a que aludimos, embora em cada uma venham a assumir diferente projecção. O tom peculiar de cada período histórico resulta da instituição, do órgão, que aí domina. Até ao século XVII prevalece a autoridade do Rei e, por isso, o período diz-se monárquico; entre o século XVII e meados do século XIX prevalece a Câmara dos Lordes, e por isso, chama-se ao período aristocrático; desde o século XIX transfere-se para a Câmara dos Comuns (para si ou para o Gabinete) a sede principal do poder e, assim, chega-se a um período democrático.

Os órgãos ou as instituições que se colocam no plano mais vivo da cena política, ganhando ascendente sobre os demais, levam consigo a ideia de um tipo de governo que se pratica agora, em contraste com outro que se praticava outrora. Mas não se trata, pelo menos até há cerca de um século, de um tipo de governo puro; trata-se de um tipo de governo misto, porque, se existe sempre um órgão de determinada estrutura que exerce mais larga soma de atribuições efectivas, deve ele também sempre contar com a interferência dos outros que o limitam e o impedem de pôr em causa os fundamentos da Constituição.

A imagem de um governo misto (mixed government) afigura-se sobretudo sugestiva no século XVIII. Não surpreende, pois, que alguns autores de então - como Bolingbroke ou Burke - tenham visto no Direito inglês como que realizada a união ideal das três formas de governo - monarquia, aristocracia e democracia: o Rei traduzindo o elemento monárquico, a Câmara dos Lordes o elemento aristocrático e a Câmara dos Comuns o elemento democrático. E a doutrina da separação dos poderes de Montesquieu já tem sido explicada como dirigindo-se ao enaltecimento desse governo misto (considerado a melhor forma de governo), em vez de se reduzir a mera tentativa de decomposição de poderes políticos em abstracto.9

Hoje, a situação é de um absoluto ou quase absoluto predomínio da Câmara dos Comuns, órgão de representação popular em época marcadamente democrática. Ou seja: ao fim de quase oito séculos a Inglaterra pode dizer-se possuir hoje um governo puro. No entanto, nem por isso deixa de ter interesse falar em sobreposição institucional, por mais de um motivo: porque as outras instituições - Rei e Câmara dos Lordes - 10 guardam poderes formais; porque a sua simples existência impede que surjam difíceis problemas de equilíbrio político; e porque continuam a desempenhar uma

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função social e pública, interna e externa, insubstituível (o Monarca é a expressão da unidade do Commonwealth).

II - Por que um tão rigoroso repúdio das rupturas e dos saltos bruscos, sem embargo de uma real e profunda evolução enriquecedora? Decerto, por causa de factores de diversa ordem que se puderam produzir em Inglaterra e não ocorreram noutros países da Europa; e ainda por causa de um arreigado espírito de tradição.

Escreve Edward Freeman:

"Em todas as nossas lutas políticas, a voz dos ingleses nunca se ergueu para pedir a afirmação de novos princípios, o estabelecimento de leis novas; o grito público foi sempre para reclamar uma melhor obediência às leis em vigor e para se repararem os males nascidos da sua corrupção ou do seu esquecimento. Até à Magna Carta ter sido arrancada ao Rei João, reclamaram-se as leis do bom Rei Eduardo; e, quando o tirano, contra a sua vontade, apôs o selo nesta obra capital, fundamento de todas as nossas leis posteriores, limitamo-nos a exigir o estrito acatamento de uma Carta que passava por não ser senão a Constituição de Eduardo sob uma forma nova. Fizemos mudanças de tempo a tempos. Mas estas mudanças foram simultaneamente um acto de conservação e de progresso: um acto de conservação, porque eram um progresso; um progresso, porque conservavam".11

Por seu lado, um autor português, António José Brandão, estabelece assim o confronto entre a experiência francesa e a britânica:

"A França e todos os povos que a seguiram adoptaram para Constituição política a ideologia demoliberal e a estrutura do Estado que ela impunha. A Inglaterra, porém, em vez de dotar o Estado com um documento constitucional rigoroso, modelar, coerente, limitou-se a viver dentro do respeito da Constituição histórica da Nação e do seu Estado. Sem querer saber de teorias, confiando no tacto existencial e no bom-senso do escol político, vagarosamente, ao longo de quinhentos anos, do século XII ao século XVII, vai-se `constituindo' como Nação. A `Magna Charta', a `Petition of right', o `Bill of rights', o `Instrument of Government', o `Act of Settlement' marcam as fases do processo gradual que deu uma estrutura determinada ao Estado, de harmonia com as diversas modificações estruturais da Nação. A história do regime constitucional inglês confunde-se, como muitas vezes se afirmou, com a história do Parlamento. Mas este, no seu início, é o simples órgão consultivo e judiciário de um Rei feudal detentor da plenitude do Poder político; só mais tarde, devido a circunstâncias históricas, passou a ser instrumento de luta política entre os barões normandos, o alto clero e o Rei; por último, foi o método achado para limitar o Poder real e o associar normalmente ao trabalho governativo das duas Câmaras, a dos Comuns e a dos Lordes.

Desta sorte, às diferentes combinações das forças políticas, acarretando modificações estruturais da Nação inglesa, corresponderam sucessivas modificações do Estado inglês. Este, em vez de uma Constituição escrita, tem uma nação politicamente constituída de certo modo. As suas leis fundamentais dizem respeito a essas modificações de estrutura política, que ele respeita e serve. Por isso, o Estado inglês não pauta a sua actividade governativa por uma ideologia constitucional - mas pelo instinto de conservação e de desenvolvimento da estrutura histórica da Nação inglesa… ."12

48. Constituição consuetudinária e flexívelI - No Direito constitucional de qualquer país aparecem sempre normas provindas de lei, de costume e de jurisprudência. O que varia é a predominância de uns e de outros elementos e o modo como se articulam entre si. No Direito constitucional da Grã-Bretanha, essa predominância cabe ao costume, o que constitui, nos tempos actuais, um caso único, sem paralelo em qualquer outro país.

Diz-se muitas vezes que a Constituição inglesa é uma Constituição não escrita (unwritten

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Constitution). Só em certo sentido este asserto se afigura verdadeiro: no sentido de que uma grande parte das regras sobre organização do poder político é consuetudinária; e, sobretudo, no sentido de que a unidade fundamental da Constituição não repousa em nenhum texto ou documento, mas em princípios não escritos, assentes na organização social e política dos Britânicos.13

Além das regras consuetudinárias, existem ainda as Conventions of the Constitution - versando sobre o funcionamento do Parlamento, as relações entre as Câmaras e entre Governo e Oposição ou o exercício dos poderes do Rei; e que parecem ser mais do que meros usos.14

II - Numerosas são as leis constitucionais escritas: desde a Magna Charta (1215), a Petição de Direito (1628), a Lei de Habeas Corpus de 1679 e a Declaração de Direitos (1689) ao Acto de Estabelecimento (1701), ao Acto de União com a Escócia (1707), às leis eleitorais dos séculos XIX e XX, às leis sobre o Parlamento de 1911 e 1949, ao Estatuto de Westminster (1931), à lei sobre os Ministros da Coroa (1937), às leis sobre o pariato de 1958 e 1963, etc.

Tais leis não se ligam, contudo, sistematicamente, não se qualificam formalmente como constitucionais e não possuem, enquanto tais, uma força jurídica específica, como sucede nos países com Constituição escrita ou formal. A supremacia da Constituição em Inglaterra resulta da sua função, e não de outros postulados.

A explicação deste fenómeno encontra-se não apenas em razões políticas - derivadas do processo de formação do sistema político britânico, sem quebras comparáveis às de qualquer outro país - mas também em razões estritamente jurídicas - derivadas do sistema das fontes - no Direito anglo-saxónico muito distinto do sistema de fontes dos Direitos romanísticos. Nestes, prevalece a lei sobre o costume; em Inglaterra, o Common Law sobre o Statute Law.15

E não se diga que em Inglaterra é também apenas nos limites da lei que o costume pode funcionar - 16 porque a prática não o corrobora; nem se invoque o princípio da "soberania do Parlamento" (ou de que o Parlamento pode dispor sobre quaisquer matérias, embora sem vincular o legislador futuro), porque este princípio ainda se funda no costume.

III - Constituição predominantemente consuetudinária, a Constituição britânica apresenta-se ainda, pela natureza das coisas, como Constituição cuja modificação se faz, a todo o tempo, pelo Parlamento, sem necessidade de um processo diferenciado do processo de exercício da função legislativa.

É o que os juristas ingleses chamam uma Constituição flexível - em contraste com as restantes Constituições, ditas rígidas.17

49. O "rule of law", os direitos fundamentais e os tribunaisI - Com a expressão rule of law designam-se os princípios, as instituições e os processos que a tradição e a experiência dos juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais para a salvaguarda da dignidade das pessoas frente ao Estado, à luz da ideia de que o Direito deve dar aos indivíduos a necessária protecção contra qualquer exercício arbitrário de poder.18

O quadro jurídico assim definido não é hoje especificamente inglês, nem sequer anglo-saxónico - muitos desses princípios foram aclamados pelas revoluções liberais - mas não há dúvida de que ele nasceu em Inglaterra, é lá que, durante muito tempo, foi vivido mais autenticamente e (aspecto de mais alta importância) é lá que menos interrupções ou suspensões tem sofrido.

II - As principais liberdades e garantias dos Ingleses encontram-se consagrados em três documentos já acima citados - Magna Charta, Petition of Rights, Bill of Rights - e ainda em outros que foram sendo publicados ao longo dos tempos.

Vale a pena, apontar algumas dessas liberdades e garantias:

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- Ninguém pode ser detido ou sujeito a prisão ou privado dos seus bens ou colocado fora da lei ou exilado ou, de qualquer modo, molestado senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país (Magna Carta, 39);

- Seja qual for a sua categoria ou condição, ninguém pode ser expulso das suas terras ou da sua morada, nem detido, preso, deserdado ou morto sem que lhe seja dada a possibilidade de se defender em processo jurídico regular (Petição de Direito, IV);

- Ninguém pode ser obrigado a contribuir com qualquer dádiva ou a pagar qualquer taxa ou imposto sem consentimento do Parlamento (ibidem, VIII);

- Os súbditos têm direito de petição perante o Rei e são ilegais todas as prisões ou processos por causa do exercício deste direito (Declaração de Direitos, nº 5);

- A liberdade de palavra e os debates ou processos parlamentares não devem ser sujeitos a acusação ou a apreciação em nenhum tribunal ou em qualquer lugar que não seja o Parlamento (ibidem, nº 9);

- Não devem ser exigidas cauções demasiado elevadas, nem aplicadas multas excessivas, nem infligidas penas cruéis e aberrantes (ibidem, nº 10);

- São ilegais todas as dádivas e promessas de multas e de confiscos antes de ser proferida sentença condenatória (ibidem, nº 12).

O quadro é completado pela acção dos tribunais, preenchendo o conteúdo destas e doutras liberdades e garantias e consagrando novos direitos, através da solução de casos e de indução e generalização a partir deles. E tem-no sido também por força da vinculação a tratados internacionais, designadamente à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.19

III - Sobre o lugar do juiz em Inglaterra e nos países anglo-saxónicos dificilmente poderia dizer-se melhor do que escreveu Maurice Hauriou:20

"Os Anglo-Saxões permaneceram fiéis à autêntica tradição clássica para a qual o juiz é o órgão essencial do Direito. Na verdade, definem o Direito através do juiz: é Direito o que é aplicável pelo juiz. Os Continentais definem-no pela coacção social: é o conjunto de regras susceptíveis de ser sancionadas por uma coacção social.

"As duas definições seriam equivalentes, se o juiz fosse o único meio de sanção; mas há também o polícia e a sua coercitio. Ora, a definição continental faz passar a coercitio disciplinar antes da arbitragem judiciária e o polícia antes do juiz. Pelo contrário, os Anglo-Saxões fazem passar o juiz antes do polícia…

1º - O juiz anglo-saxão não é um poder político.

2º - O juiz anglo-saxão é o grande poder social e jurídico, por si só capaz de contrabalançar os poderes políticos. Em primeiro lugar, o juiz anglo-saxónico é um grande poder social, pois que é ele que faz justiça a todo o povo…

… A segurança da vida privada repousa tanto sobre a justiça criminal como sobre a justiça civil…

No desempenho da sua missão o juiz anglo-saxónico é senhor de Direito; o que ele não aplica não é Direito. E, na verdade, ele é senhor da common law, por ser ele que a faz e continua a fazer mediante a sua jurisprudência. Também perante o statute law o domínio é quase igual. Nos Estados Unidos da América a fiscalização da constitucionalidade fornece-lhe o meio de manter constantemente as leis votadas pelas assembleias legislativas nos quadros dos velhos princípios individualistas. Em Inglaterra, o juiz não pode recorrer à fiscalização da constitucionalidade, mas serve igualmente os princípios de common law, mediante a interpretação de leis novas que repõe no curso da tradição".21

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50. O governo parlamentar britânicoI - O princípio fundamental da organização política britânica é o princípio da soberania ou supremacia do Parlamento.22-23

A ele se liga há cerca de 200 anos um sistema de governo parlamentar, na medida em que o Parlamento (reportado agora apenas, no sentido corrente do termo, às duas Câmaras) é o centro da vida política, os Ministros respondem perante ele e as orientações políticas do País correspondem às da maioria (na Câmara dos Lordes, durante o século XVIII, e na Câmara dos Comuns, desde o século XIX).

A revolução de 1688 não se traduziria, necessariamente, nem se traduziu logo na formação de um sistema com essas características essenciais. Para que isso acontecesse tiveram de ocorrer ainda três eventos decisivos: em primeiro lugar, o relevo assumido na primeira metade do século XVIII pelo Gabinete (que remontava a cerca de 100 anos antes, como grupo de individualidades mais influentes do Conselho Privado, reunidas à margem deste para se ocuparem de questões políticas de maior vulto), tornado órgão autónomo de colaboração entre o Rei e o Parlamento; em segundo lugar, o subsequente aparecimento da figura do Primeiro-Ministro, para, por seu turno, estabelecer a ligação do Rei com o Gabinete; e em terceiro lugar, mais tarde, a transformação da responsabilidade dos Ministros perante o Parlamento de criminal em política por, para evitar o impeachment, os Ministros preferirem demitir-se, quando objecto de votos desfavoráveis.

Hoje, governo parlamentar na Grã-Bretanha significa sistema em que o Gabinete, o Governo, é emanação da Câmara dos Comuns, responde perante ela e depende da sua confiança para exercer o poder.

II - Esta dependência institucional do Gabinete da Câmara dos Comuns não envolve instabilidade. Pelo contrário, trata-se, de um sistema em que o Gabinete disfruta, por virtude de tradições jurídicas firmes e de determinados factores políticos, não só de garantias de subsistência mas também de um ascendente de facto (embora não absoluto) sobre os Deputados da maioria.

A correspondência entre Gabinete (de certo partido) e duração da legislatura (ou período entre duas eleições gerais) é um princípio político-constitucional básico. Reforçam-na (ou tornam-na possível) a conjugação de um sistema de dois partidos dominantes, em alternância no poder,24 e um sistema eleitoral maioritário em círculos eleitorais uninominais a uma só volta ou turno (o chamado sistema the first-past-the-post).25

Dentro do gabinete prevalece o Primeiro-Ministro beneficiário na prática dos poderes do Rei (v. g., de dissolução dos Comuns) compreendidos formalmente na de "prerrogativa" e, sobretudo, chefe do partido maioritário. Apesar da regra da colegialidade, ele é muito mais do que um primus inter pares.Não quer isto dizer, no entanto, que (ao contrário do que, por vezes, se lê), em vez de um sistema de separação de poderes, estejamos diante de um sistema de concentração. Se a distinção entre Legislativo e Executivo se apresenta somente jurídica (dado o domínio pelo Governo da iniciativa da lei), politicamente sobressai a separação entre maioria e minoria, entre Governo e Oposição (que constitui o chamado "Gabinete-sombra"). Além disso, a vitalidade da instituição parlamentar manifesta-se quer na circunstância de os dirigentes políticos serem Deputados (e Lordes) quer na de as grandes opções governativas serem assumidas através de debate parlamentar, com a presença de Ministros, quer nas perguntas orais ao Governo.26

III - A fórmula "sistema de governo parlamentar de gabinete" sintetiza bem o que acaba de se afirmar e pode resumir-se nos seguintes aspectos actuais:

a) Duração máxima da legislatura de cinco anos e possibilidade de dissolução da Câmara dos Comuns antes, a qualquer tempo, por iniciativa do Primeiro-Ministro;

b) Formação do Governo logo após as eleições, a cargo do chefe do partido maioritário;

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c) Escolha dos Ministros entre os membros do Parlamento e sua presença nas reuniões das Câmaras;

d) Dependência dos Ministros do Primeiro-Ministro;

e) Responsabilidade solidária do Governo;

f) Existência de meios de acção do Governo sobre o Parlamento (fixação da ordem do dia, iniciativa legislativa, dissolução) e do Parlamento sobre o Governo (perguntas escritas e orais, moções, debates orçamentais, etc.);

g) Institucionalização da Oposição;

h) Disciplina partidária;

i) Responsabilidade política efectivada não tanto pela demissão do Governo quanto pelos resultados das eleições parlamentares gerais;

j) Alternância de dois partidos no poder, em períodos mais ou menos longos (ao fim de uma, duas ou, mais raramente, três legislaturas).27

51. Projecção histórica e geográfica do Direito constitucional britânicoI - O confronto entre Roma e a Inglaterra tem sido estabelecido a vários títulos. Cabeças de dois impérios - um que deixou de existir há 1500 anos, o outro cujo rápido desaparecimento há pouco se produziu - a sua influência no mundo seria muito maior do que tudo quanto permitiriam prever as suas modestas origens e perdura para além da perda do poder político e militar.

Mas em poucos campos se poderá dizer que tenha sido e que continue a ser mais forte e duradoura a influência quer de Roma quer da Inglaterra do que no campo do Direito. Sem contestação, deve mesmo acrescentar-se que a primeira no Direito privado, a segunda no Direito público criaram paradigmas que os outros povos depois quiseram imitar.28

No respeitante à Inglaterra, desde os séculos XVII-XVIII ela tem fornecido aos observadores estrangeiros um modelo de harmonia política. Além disso, mercê da sua expansão colonial, princípios, formas e numerosíssimos elementos dos seus sistemas político e jurídico vieram a ser difundidos pelos territórios em que exerceu soberania. Decerto, como já atrás acenámos, na Constituição inglesa encontram-se instituições insusceptíveis de transplantação para outros povos e lugares, devido à sua inserção nacional e local; mas acham-se também instituições que podem ser, e efectivamente foram, acolhidas em outros países.

II - Esta irradiação dos esquemas jurídico-constitucionais confunde-se com grande frequência com a do sistema de governo inglês. Se olharmos para o mundo dos nossos dias, logo descobriremos nos países por onde os Britânicos passaram traços de um sistema de governo parecido com o inglês, ou seja, um sistema parlamentar de gabinete. Assim acontece com o Canadá,29 a Austrália, a Nova Zelândia; e com a Índia, a Malásia, a Jamaica, Trindade, Malta, também dentro do Commonwealth; com a Irlanda (na prática, não propriamente na Constituição de 1937)30 e com Israel.

Contudo, importa advertir que não basta a similitude dos sistemas de governo para se concluir pela similitude dos sistemas constitucionais. Os países referidos, embora com maiores ou menores atenuações, incluem-se na família de Direito constitucional inglês em virtude de outros elementos que os aproximam uns dos outros e da Inglaterra, tais como a adesão ao Common Law, a importância do costume e da jurisprudência, o sentido liberal das normas constitucionais, a flexibilidade ou a menor rigidez de algumas das Constituições e, na maior parte das vezes, o sistema de partidos. Ao lado deles, temos, porém, países - os escandinavos, de alguma maneira, a Alemanha, a Espanha - cujos sistemas de governo actuais não são sem analogia com o sistema inglês e que, apesar disso, seria precipitado integrar na família constitucional de raiz inglesa, por faltarem outros

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elementos comuns; e no século XIX ainda mais nítido foi este fenómeno aquando da formação do parlamentarismo em grande parte da Europa.

Por outra banda, a recepção ou a adaptação do modelo constitucional inglês fez-se em momentos diversos no decurso dos últimos duzentos e cinquenta anos. Como o regime, entretanto, não deixou de evoluir, isso significa que afinal foram vários, e não apenas um, os modelos com que se tomou contacto e onde se bebeu inspiração.31

III - Por conseguinte, podem e devem discriminar-se, pelo menos, cinco momentos de difusão do sistema constitucional inglês no mundo:

1º) No século XVII, para as primeiras colónias da América do Norte e das Caraíbas. Os traços próprios desta difusão vêm a ser três: existência de Constituições limitativas da autoridade dos governadores; criação de assembleias representativas; garantia de liberdades.

2º) No século XVIII, para a Europa, através de conceitos como o de governo representativo e de responsabilidade ministerial, e para os Estados Unidos. Nos Estados Unidos viria a surgir um sistema constitucional diferente do inglês, mas não menos nítido foi o influxo da Constituição inglesa entre os descendentes de ingleses que fizeram a Constituição de 1787: primeiro, na concepção de separação dos poderes vinda da leitura de Montesquieu que, por seu lado, referia essa concepção à experiência constitucional britânica; segundo, na ideação do Presidente dos Estados Unidos a partir da figura do Rei de Inglaterra, um Rei dotado ainda de poderes substanciais.

3º) No primeiro quartel do século XIX, para a Europa continental, no rescaldo da Revolução francesa e do Império napoleónico (ou seja, na chamada época da Restauração). A monarquia constitucional inglesa - com um Rei, que participa na função legislativa e detém o poder executivo por si ou pelo Governo, e com um Parlamento bicameral - é o exemplo que pretendem seguir a Constituição sueca de 1809, a norueguesa de 1814, a Carta constitucional francesa de 1814, outorgada por Luís XVIII, até certo ponto a Carta constitucional portuguesa de 1826, outorgada por D. Pedro IV, e as Constituições de diversos Estados da Confederação Germânica. Supõe-se estar aí, com cambiantes vários, o compromisso mais apto para salvar simultaneamente os tronos e um liberalismo moderado.

4º) No segundo quartel do século XIX para a Europa continental (depois do Reform Act de 1832), em paralelo com a Constituição belga de 1831. Trata-se agora, por um lado, de uma monarquia constitucional fundamentada na Constituição, e não já num autónomo princípio monárquico, e, por outro lado, de um sistema parlamentar. O Estatuto outorgado pelo rei Carlos Alberto da Sardenha em 1848, e que viria mais tarde a ser extensivo à Itália unificada, é a Constituição mais importante feita sob essa influência.

5º) Em fins do século XIX e no século XX para os territórios do Império e da Comunidade Britânica32 ou que àquele tinham pertencido: Constituições canadiana (de 1867, alterada em 1981), australiana (de 1901), indiana (de 1950), etc. E, parcialmente, também para o Japão (Constituição de 1946).33 É uma forma mais evoluída do governo parlamentar de gabinete a que os textos e a prática constitucional vêm adoptar neste momento.

§ 2º Os Sistemas Constitucionais De Matriz Americana

52. O Direito constitucional dos Estados UnidosI - A Constituição dos Estados Unidos da América data de 1787. Porém, o Direito constitucional norte-americano34 não começa apenas nesse ano. Sem esquecer os Covenants e demais textos da

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época colonial (antes de mais, as Fundamental Orders of Connecticut, de 1639), integram-no, desde logo, em nível de princípios e valores ou de símbolos a Declaração de Independência, a Declaração de Virgínia e as outras Declarações de Direitos dos primeiros Estados.

Com a mesma força jurídica dos 7 artigos da Constituição são os 26 Aditamentos (Amendments), aprovados desde então e que a modificam e completam em alguns aspectos, designadamente no domínio dos direitos fundamentais.35

É ainda essencial ter em conta as grandes decisões judiciais sobre interpretação e aplicação da Constituição e embora menos do que na Grã-Bretanha, o costume, bem como (porque se trata do Estado federal) as Constituições dos Estados federados de larguíssima importância em numerosos domínios (eleições, participação popular, poder local, educação).

Não representa, por conseguinte, tarefa fácil, nem simples conhecer o Direito constitucional dos Estados Unidos (até porque a própria Constituição de 1787, com as suas extensas secções, não é tão breve quanto, por vezes, se supõe e as Constituições dos Estados, além de diversificadas, são frequentemente longas e regulamentárias).

II - A observação e a experiência mostram que se trata de Constituição simultaneamente rígida e elástica.

Rígida, visto que não pode ser alterada em moldes idênticos aos adoptados para a feitura das leis ordinárias, e qualquer modificação requer um processo complexo, com intervenção dos Estados. Elástica, visto que, a partir do seu texto primitivo, na aparência intacto, e dos aditamentos, tem podido ser concretizada, adaptada, vivificada (e até metamorfoseada) sobretudo pela acção dos tribunais.

Sem dúvida, a sua dupla função de lei fundamental e de pacto constitutivo da união (a Constituição funda verdadeiramente os Estados Unidos),36 a tradição jurídica anglo-saxónica, essa elasticidade, o trabalho jurisprudencial, circunstâncias histórico-sociais favoráveis explicam a longevidade da Constituição e a consistência das instituições políticas americanas.37

III - O Direito constitucional dos Estados Unidos brota do sistema jurídico inglês e do pensamento político do século XVIII, postos perante as condições peculiares da América do Norte.

As Constituições outorgadas pela Coroa às treze colónias, os grandes princípios de Direito público (como no taxation without representation, cujo desrespeito desencadearia a revolta), o Common Law, com o importantíssimo papel do juiz, eis as principais fontes a referir, a que se pode acrescentar uma ou outra prática constitucional proveniente da própria Revolução americana.

Os pais da Constituição não desconheciam, contudo, as obras filosóficas, políticas e jurídicas que, a partir de Locke, tinham versado os problemas do poder e não podiam deixar de sofrer a sua influência. A circulação de ideias entre as duas margens do Atlântico era intensíssima no século XVIII, e, assim, eles, naturalmente, vieram a receber muitos dos esquemas doutrinais da Grã-Bretanha e da França.

Por seu turno, os particularismos da situação haviam de determinar algumas das soluções: a antecedência histórica de colónias declaradas Estados independentes e a grande extensão territorial levaram, por exemplo, naturalmente, à estrutura federativa, tal como a ausência de dinastia e o ambiente de igualdade jurídico-política à república.38

A atitude das constituintes não foi, pois, tanto uma atitude voluntarista - como se exibiria em França pouco depois - quanto uma atitude cognoscitiva à imagem da que se adoptava em Inglaterra. Um racionalismo, sempre temperado pelo empirismo, e nunca desligado de um sedimento religioso,39 foi aí um meio ou caminho para organizar uma união de Estados livres.40

IV - O estudo do Direito constitucional norte-americano justifica-se fundamentalmente por causa do significado da sua experiência e por causa das aquisições e dos elementos novos que dela emergiram.

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A importância da experiência está nisto: primeiro grande Estado de tipo europeu formado fora da Europa; primeira revolução vitoriosa que se revela também anticolonial, mas que encerra contradições de carácter racial (algumas ainda hoje por resolver); primeira e mais duradoura Constituição escrita em sentido moderno;41 Constituição de base legal modelada pela jurisprudência, em conexão com o controlo da constitucionalidade; primeiro Estado federal (forma de Estados mais evoluída que a união real); primeiro Estado a decretar a separação das confissões religiosas; primeira república alicerçada no princípio democrático;42 primeiro sistema de governo presidencial por aplicação directa da doutrina da separação de poderes.

A noção de Constituição e do seu valor superior a todos os demais actos da Federação e dos Estados federados e, em especial, a autoridade reconhecida aos tribunais na sua interpretação e na sua concretização são notas tão profundas do sistema e tão específicas que, com o mesmo sentido ou com a mesma intensidade, não poderiam passar para qualquer outra parte. Transplantáveis, embora ainda com refracções, viriam a ser a fiscalização judicial da constitucionalidade, o federalismo e o presidencialismo; e, nessa medida, quando os três elementos juntos, viria a poder falar-se, nos países de recepção, em sistemas de matriz norte-americana.

53. O federalismoI - Produto histórico da transformação da confederação dos Estados independentes sucessores das treze colónias britânicas da costa oriental da América do Norte em união de natureza estatal, o federalismo americano é um federalismo perfeito em que se verificam, simultaneamente, uma estrutura de sobreposição (cada cidadão sujeito simultaneamente a dois poderes políticos e a dois ordenamentos constitucionais) e uma estrutura de participação (o poder político central como resultante da agregação dos poderes políticos dos Estados federados).

Os quatro princípios jurídicos em que se baseia são os seguintes:

1º) Poder constituinte de cada Estado, pois cada Estado decreta e altera a sua própria Constituição, nos limites da Constituição federal e somente com a necessidade de respeitar a forma republicana;43

2º) Intervenção institucionalizada na formação da vontade política federal, o que se traduz em:

- existência de uma 2ª câmara, o Senado, com igual representação dos Estados (2 senadores por Estado),44 em contraste com a 1ª Câmara, a dos Representantes (em número proporcional à população de cada Estado);

- composição e processo de votação do colégio eleitoral presidencial, o qual é formado por tantos eleitores por Estado quantos os Senadores e Representantes que lhe cabem;

- necessidade de os aditamentos à Constituição serem aprovados por 2/3 dos membros das duas câmaras e ratificados por 3/4 dos Estados;

3º) Especialidade das atribuições federais, entendendo-se que as que não forem próprias do Estado federal (v. g., defesa, comércio externo, moeda, correios) pertencem (ou podem pertencer) aos Estados federados (v. g., Direito civil, Direito penal, poder local);

4º) Igualdade jurídica dos Estados federados, manifestada não apenas na sua igualdade de condição e de participação no Senado e no processo de revisão constitucional mas também na igual capacidade de cidadãos de cada Estado noutros Estados e no reconhecimento de actos públicos, documentos e processos produzidos em qualquer Estado (art. IV da Constituição).

II - O entendimento e a prática do federalismo não têm sido unívocos e sem contrastes entre tendências centrífugas e centrípetas.

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Entretanto, o poder federal foi-se afirmando e robustecendo em consequência da guerra de secessão de 1861-1865 e das duas guerras mundiais, do aumento de número de Estados federados (de 13 para 50), da imigração e das comunicações, do reforço da coesão nacional e, ainda, do aumento das funções do Estado federal e do seu peso financeiro. A doutrina dos poderes implícitos elaborada sobre a secção VIII do art. I45 e a cláusula da supremacia nacional do art. VI da Constituição deram justificação a essa tendência.

O federalismo não se reduziu, porém, a mero regionalismo. Juridicamente, porque se mantêm as faculdades de intervenção dos Estados na União. Politicamente, porque também, ao mesmo tempo, se desenvolveram as funções dos poderes estaduais (os mais próximos do quotidiano das pessoas) e porque os partidos, as carreiras dos homens públicos e a vida política em geral são dominados ou influenciados (muito mais que na Europa) pelos condicionalismos locais. Administrativamente, porque, a par da centralização, se tem operado um processo de coordenação entre os serviços federais e estaduais.

Nos últimos anos, aliás, tem-se procurado afirmar uma tendência inversa, de diminuição das atribuições e dos encargos federais (ligada quase sempre a uma reacção contra o Welfare State).46

54. Os direitos fundamentaisI - Os autores da Constituição não fizeram uma enunciação dos direitos e liberdades individuais.47 Uns, porque a julgaram desnecessária em face das declarações já existentes nos Estados ou das regras constitucionais sobre separação de poderes. Outros, porque temiam que pudesse vir a servir para limitar as prerrogativas dos Estados em favor da União.48

No entanto, os 10 primeiros Aditamentos, aprovados em 1791 e inspirados nos mesmos pressupostos valorativos do texto de 1787, viriam cedo a suprir essa falta; e, mais tarde, outros viriam a completá-los.

II - O 1º Aditamento proíbe o estabelecimento de uma religião de Estado e garante as liberdades de culto,49 de palavra e de imprensa, bem como os direitos de reunião e de petição.

O 2º Aditamento garante o direito ao uso e porte de armas; o 3º proíbe o aboletamento de soldados em tempo de paz sem o consentimento do proprietário; o 4º assegura a inviolabilidade do domicílio; o 5º, o 6º e o 7º respeitam a garantias de processo penal; o 8º impõe limites às penas criminais.

O 9º Aditamento declara que a especificação de certos direitos pela Constituição não significa que fiquem excluídos ou desprezados outros direitos - é a chamada cláusula aberta, da maior importância nos Estados Unidos e noutros países. E o 10º Aditamento declara que os cidadãos gozam de todos os direitos que não lhes sejam expressamente vedados.

O 13º Aditamento (de 1865) proíbe a escravatura.

O 14º (de 1868) impede os Estados de fazer ou executar leis que restrinjam as prerrogativas e garantias dos cidadãos, privar alguma pessoa da vida, da liberdade ou da propriedade sem observância dos tramites legais ou recusar a qualquer pessoa a igualdade perante a lei.

O 15º (de 1870) garante o direito de voto, independentemente da raça, da cor ou da anterior condição de escravo; o 19º (de 1920), independentemente do sexo; o 24º (de 1964), independentemente do pagamento de qualquer taxa ou imposto; e o 26º (de 1971), independentemente de idade superior a 18 anos.

A tradução prática da maior parte destas regras deve-se menos ao legislador do que aos tribunais.50

III - Nos Aditamentos apenas se encontram normas sobre direitos, liberdades e garantias.

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Porém desde o New Deal do Presidente F. D. Roosevelt ergueu-se um complexo sistema de segurança social; direitos económicos, sociais e culturais aparecem na legislação ordinária e em Constituições dos Estados; e os tribunais têm vindo a definir novos direitos como o direito à habitação e direitos ligados à educação.

55. Os tribunais e a ConstituiçãoI - São três os aspectos que mais ressaltam na observação do sistema judicial dos Estados Unidos, originado no Common Law:1º) A singularidade da relação democrática entre os juízes e os cidadãos e a elevada autoridade social de que gozam;

2º) A complexidade proveniente da estrutura federal, com dualismo de tribunais, federais e estaduais (art. III da Constituição);

3º) A predominância do Supremo Tribunal (formado por 9 juízes vitalícios, designados pelo Presidente dos Estados Unidos com o "parecer e acordo do Senado") e a unidade de julgados que com ela se obtém.51

II - Ao invés da França e dos países europeus durante o século XIX, os Estados Unidos vivem quase desde a sua formação sob o princípio da constitucionalidade, isto é, de que as leis e os outros actos do Estado devem ser conformes à Constituição e não devem ser aplicados pelos tribunais no caso de serem desconformes.

Nenhum preceito constitucional expresso confere este poder de garantia aos tribunais, prevê a judicial review.52 Não obstante, sólidas razões jurídicas foram invocadas, desde o início, para o sustentar. Foram elas: 1ª) o poder legislativo é um poder constituído, que não pode ser exercido em contrário da Constituição, obra do poder constituinte; 2ª) os tribunais só podem aplicar leis válidas e são inválidas as leis contrárias à Construção - que é lei superior a todas as outras leis.53

Saliente-se, contudo, que, apesar de serem argumentos incontestáveis logicamente, eles só poderiam prevalecer num ambiente histórico-jurídico favorável, com a tradição das Constituições limitativas coloniais, o papel preponderante da interpretação judicial e o prestígio dos juízes, o consenso sobre as instituições, o funcionamento pragmático da separação dos poderes e o federalismo.

III - O sistema de fiscalização da constitucionalidade pode resumir-se assim:

a) É um sistema de competência difusa: todos os tribunais, estaduais e federais, apreciam a constitucionalidade, com ascendente natural do Supremo Tribunal;

b) Todos os actos normativos (incluindo os aditamentos à Constituição e as Constituições estaduais) estão sujeitos a fiscalização; mas não as questões políticas;

c) O poder de fiscalização não é um poder diferente do poder de jurisdição, é um poder normal dos juízes;

d) O sistema funciona sobretudo por via incidental:54 em qualquer pleito em tribunal, uma ou ambas as partes ou o próprio juiz podem arguir de inconstitucionalidade a lei aplicável, suscitando a questão prejudicial da sua validade;

e) A lei não é anulada, mas considerada não lei, nula; nem sequer o Supremo Tribunal exige que o Congresso declare a lei sem valor, é como se nunca tivesse sido votada.

IV - A judicial review foi posta em prática pela primeira vez em 1803 no acórdão do Supremo Tribunal que decidiu o caso "Marbury versus Madison".

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Muito em resumo, tratava-se do conflito entre um juiz, Marbury, e o Procurador-Geral Madison. O Supremo Tribunal - presidido pelo Chief Justice Marshal - considerando a questão de natureza política, declarou inconstitucional a lei que lhe permitiria intervir.55

De 1803 para cá sucedem-se três fases bem distintas:

1ª) Até cerca de 1880, a preocupação maior é a da defesa da unidade dos Estados Unidos e a fiscalização serve de arbitragem entre a União e os Estados federados;

2ª) De 1880 a 1935-1937 o Supremo Tribunal interpreta a Constituição num sentido conservador da ordem liberal capitalista e afirma a sua autoridade frente ao poder legislativo, sendo então que se fala em "governo dos juízes";56-57

3ª) Por último, sobretudo desde 1954 (caso "Brown versus Board of Education"), de preferência à salvaguarda da propriedade, dedica-se (mas com oscilações nos últimos anos) à salvaguarda da liberdade política e da igualdade racial.58

V - Não pode pretender-se que o sistema de fiscalização tenha funcionado sempre como sistema neutro, não comprometido com nenhuma finalidade política e social, e não sujeito a conflitos ou a inflexões. Mas seria erróneo pensar que tudo se tem passado como se a Suprema Corte e os outros tribunais americanos não fizessem senão reflectir em cada época imperativos vindos de fora. Há limites decorrentes dos princípios fundamentais de ordem constitucional.

Como escreve Rogério Soares, seguindo Gerhard Leibholz, quando a jurisprudência americana interpreta as cláusulas constitucionais da "Equal Protection of the Law", tradicionalmente supõe-nas compatíveis com o juízo de que os negros podem ser tratados "equal but separate"; todavia, em 1954, o Supremo vem declarar "que educação separada é uma violação do princípio da igualdade". Foi a constelação de valores socialmente acatados que obrigou assim a uma radical mudança de sentido na interpretação constitucional. E, no entanto, a estrutura da Constituição não teve de ser alterada, pois ela nunca aceitou uma regra inversa de desigualdades naturais entre os cidadãos.59

Por outro lado, são conhecidos o debate doutrinal e a divisão no seio dos próprios tribunais entre uma linha preferentemente historicista e o activismo construtivista.60

56. A separação dos poderes e o sistema presidencialI - A organização política da União (tal como a dos Estados) dir-se-ia directamente inspirada em Montesquieu: três poderes - Legislativo, Executivo, Judicial - e cada poder não só produzindo os actos inerentes à sua função (faculté de statuer) mas também interferindo em actos doutros órgãos, contribuindo para a produção dos seus efeitos ou impedindo que eles se dêem (faculté d'empêcher).É aquilo a que se tem chamado um mecanismo de checks and balances, de freios e contrapesos.61

II - Considerando apenas o sistema político stricto sensu, ele analisa-se no seguinte:

a) Atribuição do poder executivo a um Presidente dos Estados Unidos, eleito por 4 anos, formalmente através do há pouco mencionado colégio eleitoral, realmente (por força da intervenção dos partidos) por sufrágio directo;62

b) Atribuição do poder legislativo às duas Câmaras do Congresso, sendo os Senadores eleitos por 6 anos, com renovação bienal de um terço, e os Representantes por 2 anos;

c) Independência recíproca dos titulares, com incompatibilidade de cargos, e nem respondendo politicamente o Presidente perante o Congresso, nem podendo este ser dissolvido ou adiado por aquele;

d) Possibilidade de impeachment ou sujeição do Presidente a responsabilidade criminal efectivada

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por deliberação do Congresso, mas por maioria qualificada de dois terços;63

e) Interdependência funcional, com mútua colaboração e fiscalização - veto presidencial das leis (somente superável por maioria de 2/3) e mensagens do Presidente ao Congresso, por um lado, e autorizações e aprovações relativas a nomeações para altos cargos, a tratados e a créditos orçamentais, bem como comissões de inquérito, por outro lado;64

f) Na prática, atribuição ao Presidente, sobretudo, de faculdades de impulsão ou iniciativa (donde, os termos governo presidencial ou presidencialismo)65 e ao Congresso de faculdades de deliberação (o Presidente marca as grandes decisões do quadriénio, mas está sob a constante vigilância e influência efectiva do Congresso, em especial do Senado).66

III - O presidencialismo surgiu com a Constituição dos Estados Unidos e só aí tem sido verdadeiramente aplicado e tem funcionado eficaz e pacificamente.

Para lá da influência dos doutrinários, alguns factores históricos explicam bem a sua instauração: a experiência colonial, com governadores nomeados pela Coroa britânica e assembleias electivas; a tendência natural para conceber o Presidente à imagem do Rei de Inglaterra (no século XVIII ainda exercendo a "prerrogativa"); a vontade dos pais da Constituição de evitarem tanto o despotismo de um homem só como os vícios das assembleias soberanas.

Em dois séculos de história e apesar da sua complexa realização - pois implica dois centros de poder, ao contrário do parlamentarismo - o sistema revelou-se adequado às necessidades e aos problemas. Mesmo nas ocasiões em que o partido do Presidente não tem disposto de maioria no Congresso, os conflitos entre Executivo e Legislativo têm sido vencidos sem crises institucionais, mercê da flexibilidade dos partidos americanos e da homogeneidade fundamental do meio político e social (a despeito da diversidade étnica e económica).67

Por certo, aumentaram os poderes do Presidente (particularmente na área legislativa e na internacional); mas também os do Congresso noutros sentidos (assim, a importância adquirida pelas comissões senatoriais) e, desde 1951, o Presidente não pode ser eleito para terceiro mandato consecutivo. Numa perspectiva mais larga, dir-se-ia tudo se reconduzir a uma constante redistribuição de poder, numa relação cíclica de maior ou menor ascendente de um ou outro órgão (e do Supremo Tribunal dos Estados Unidos).68

57. O Presidente dos Estados Unidos e o Primeiro-Ministro britânicoI - O realce da posição do Primeiro-Ministro dentro do Gabinete britânico e o sentido político conferido às eleições gerais na Grã-Bretanha têm levado certos autores a assimilar o sistema britânico de governo ao sistema americano - ou seja, a sugerir que, sob a capa de parlamentarismo, o que existe no fundo em Inglaterra é um sistema presidencialista.

Na verdade, dir-se-iam semelhantes a posição do Presidente dos Estados Unidos e a do Primeiro-Ministro britânico. Ambos são objecto de votação popular (ao elegerem o Deputado do seu círculo, os eleitores britânicos votam no respectivo partido e no seu chefe, o qual, se o partido for maioritário, se tornará automaticamente Primeiro-Ministro); e um e outro praticamente mantêm-se no poder por um período certo, sem serem derrubados pelo Congresso ou pela Câmara dos Comuns.

Todavia, esta tentativa de aproximação não se afigura totalmente satisfatória, mesmo abstraindo de considerações de ordem jurídica. Várias são as razões que recomendam a rejeição:

1ª) O Primeiro-Ministro é deputado e é membro do Gabinete, órgão colegial; o Presidente identifica-se com o Poder Executivo, pois não há Governo em sentido próprio nos Estados Unidos, mas sim uma Administração submetida ao Presidente;69

2ª) As decisões políticas em Inglaterra são tomadas em Gabinete e perante o Parlamento, não nos

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Estados Unidos;

3ª) O Primeiro-Ministro tem de ter a maioria na Câmara dos Comuns, não o Presidente americano no Congresso;

4ª) São bastante diversos os meios de fiscalização parlamentar, não menos eficazes nos Estados Unidos do que em Inglaterra;

5ª) O Primeiro-Ministro é essencialmente o chefe de um partido político, do qual depende e no qual tem de se impor - em congressos anuais e no interior do respectivo grupo parlamentar - em concorrência com vários candidatos a essa chefia; o Presidente recebe um mandato nacional;

6ª) O Primeiro-Ministro pode ser substituído a meio da legislatura, não o Presidente;

7ª) Ao contrário dos partidos ingleses, de forte disciplina e distinta base, os partidos americanos não têm consistência ideológica, são muito localizados por Estado e, por conseguinte, permitem diferentes maiorias consoante as questões.

II - É inegável que tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos se tem evoluído para formas de democracia, a que já tem sido dado o nome de democracias directas (e não democracias mediatizadas), por permitirem a participação imediata dos cidadãos na escolha dos governantes e, em particular, do chefe do governo. Mas isso não basta, mesmo politicamente, para infirmar a originalidade do sistema parlamentar britânico. Trata-se apenas de um aspecto da sua evolução condicionado em grande parte pelos modernos meios de comunicação social.70

Continua, pois, a poder fazer-se a contraposição. O sistema parlamentar de governo é de interdependência por integração: Governo e Parlamento estão indissoluvelmente unidos, não podendo exercer as suas funções sem harmonia recíproca. O sistema presidencial é de interdependência por coordenação: há diversos órgãos políticos que actuam com autonomia uns perante os outros nas suas esferas respectivas, mas que devem colaborar para a prática de certos actos preestabelecidos.71

58. A difusão do Direito constitucional norte-americanoI - Há que distinguir, na difusão do Direito constitucional norte-americano, transplantações globais e parciais. As primeiras deram-se, por imitação, para os países de língua espanhola da América após a independência72 e para o Brasil após a proclamação da república e, por imposição, para os países que estiveram sob o domínio dos Estados Unidos (Libéria, Filipinas, Coreia do Sul). As segundas deram-se para numerosos outros países em diversas épocas.73

A difusão global raramente tem sido real. Para lá da proximidade das formulações constantes dos textos constitucionais, em poucos países ou em poucos momentos terá sido possível reproduzir na prática instituições análogas às americanas. Só na aparência se poderia supor tal afinidade.

No que toca à América Latina - dividida em Estados bastante diferentes entre si - a sua história, hábitos de centralização e concentração do poder, factores culturais e sociais,o subdesenvolvimento económico e a instabilidade política, por um lado, e a formação jurídica bem diversa, por outro lado, depressa levaram a acentuar os contrastes com os Estados Unidos.74

Não menos interessantes se oferecem as transplantações parciais ou transplantações dos três principais institutos (todos ou apenas algum ou alguns) introduzidos no constitucionalismo moderno pelo Direito constitucional dos Estados Unidos:

- O federalismo para o Canadá, a Austrália e a Índia, sem esquecer a influência da Constituição americana na Constituição federal suíça;

- A fiscalização judicial da constitucionalidade para muitos países do Commonwealth britânico, para Portugal (desde 1911), e para o Japão (cuja actual Constituição, de 1946, embora de monarquia parlamentar, foi imposta pelos Estados Unidos);

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- O presidencialismo para a França na Constituição de 1848.

II - Dos elementos acolhidos noutros países o que menos êxito tem obtido tem sido o presidencialismo, o que não surpreenderá se se recordarem as dificuldades de funcionamento do sistema. O sistema presidencial exige equilíbrio e transigência entre Presidente e Parlamento como órgãos independentes um do outro, e fora dos Estados Unidos não é fácil encontrar os indispensáveis condicionalismos de sustentação.

As sociedades latino-americanas não poderiam experimentar, fácil ou correctamente, o governo presidencial. Muitas delas têm oscilado entre a ditadura e o conflito: a ditadura ou, pelo menos, o governo pessoal, quando o Presidente consegue o apoio ou o domínio do Parlamento, a obstrução e o conflito, quando falta a coincidência entre a maioria parlamentar e o partido do Presidente. E mesmo onde tem funcionado melhor o sistema, sobressaem divergências em relação aos Estados Unidos: no sistema de partidos, na frequente consagração constitucional de Ministros (dando origem a um presidencialismo imperfeito), no reforço dos poderes do Presidente. O meio mais eficaz de limitação destes poderes é a regra da não reeleição para mandato subsequente.75

Na Europa - tirando a II república francesa (que caiu sob o golpe de Estado do Presidente, Luís Napoleão) e agora, após a queda do regime soviético, a Rússia com a Constituição de 1993 (mas ainda em fase de certa indefinição) - 76 o governo presidencial à americana não tem sido adoptado. Tem sido mais forte a tendência para o governo parlamentar ou para outros sistemas políticos.

III - Cabe perguntar, depois do que se disse, que sistemas constitucionais se podem considerar de matriz norte-americana.

Se atendermos aos três institutos - federalismo, fiscalização judicial, presidencialismo - ou só aos dois últimos - fiscalização e presidencialismo - e se atenderrnos também a que, por determinados períodos, certos países da América Latina e da Ásia conseguiram com eles viver em regime constitucional de liberdade política talvez se justifique falar em sistemas de matriz americana. Mas o sentido de uma família constitucional com base no Direito americano torna-se, assim - por radicar em elementos parcelares e não tanto em concepções gerais - mais pobre que o das famílias inglesa, francesa e soviética.

Se, algo diversamente, tomarmos como ponto de referência das instituições o sistema jurídico-constitucional (e também o administrativo) dos Estados Unidos, mais ou menos adaptado às tradições e condições locais, e se considerarmos desvios a tal modelo os regimes ditatoriais sofridos, quase todos de origem ou de carácter militar, então poderemos alargar algo mais a família. O Brasil e o México, os dois mais populosos e importantes Estados da América Latina - aquele tendo vivido de 1964 a 1985 em sistema político de excepção ou de democracia controlada, e este até há pouco, apesar da Constituição de 1917, em semiditadura de partido dominante –77-78 integrar-se-ão aí, nessa medida; e o mesmo se diga das Filipinas, salvo entre 1965 e 1985.

Duas notas, em especial, sobre o México, para salientar:

a) A consagração desde 1824 de um instituto de garantia da constitucionalidade e dos direitos individuais, o amparo;b) O carácter social da Constituição de 1917 (anterior em dois anos à Constituição de Weimar), donde constam a atribuição originária à Nação da propriedade da terra e normas sobre reforma agrária (art. 27º), a proibição de monopólios (art. 28º) e a previsão de direitos dos trabalhadores (art. 123º).

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§ 3º Os Sistemas Constitucionais De Matriz Francesa

59. Origem e sentido do sistema constitucional francêsI - Não é demais frisar que a grande diferença entre o sistema constitucional francês79 e os sistemas constitucionais britânico e americano reside, in primis, na sua origem revolucionária e, depois, na vocação universalista de difusão de ideias que lhe está associada.

O sistema vai-se formar a partir de 1789, por via de revolução que, em progressiva radicalização, se propõe destruir todas as instituições e estruturas antigas. As ideias que inspiram a mudança não se encontram somente em França, mas é lá (em face de certos condicionantes históricos muito propícios) que são formalizadas e compendiadas, e o seu triunfo torna-se um exemplo para o resto da Europa (para onde, marcharão, nas chamadas guerras da Revolução e do Império, os soldados franceses).

A Revolução francesa marca a ruptura com o Estado absoluto.80-81 É com ela, e não obviamente com a transição inglesa para o sistema parlamentar ou com a Revolução americana, que melhor se revela a contraposição entre Estado absoluto e Estado constitucional, representativo ou de Direito. E, durante ela, vão exprimir-se, nas concepções defendidas e nas práticas político-constitucionais experimentadas, alguns dos contrastes de formas e sistemas de governo que irão marcar as suas futuras vicissitudes.

II - A Revolução francesa prolonga-se por vários anos. O Ancien Régime não volta mais, nem sequer na fase mais dura da Restauração. Todavia, não se cria uma ordem constitucional homogénea e sem sobressaltos; pelo menos, não se cria desde logo; e o século XIX conhecerá também as suas revoluções (1830, 1848, 1870-1871).

Ao passo que, por exemplo, os Americanos tiveram até agora só uma Constituição e todas as transformações políticas e sociais ocorreram à sua sombra, os Franceses já experimentaram mais de dez Constituições e têm vivido em regimes de liberdade e de restrição de liberdade política, de concentração e de desconcentração do poder, de monarquia e de república, por mais de uma vez.

60. A história constitucional francesaI - As Constituições francesas foram elaboradas sucessivamente em muitos diversos momentos: a revolução; o consulado e o 1º império; a restauração; a 2ª república e o 2º império; a 3ª, a 4ª e a 5ª repúblicas. A cada momento correspondem diferentes Constituições, que espelham transformações histórico-sociais distintas.

São três as Constituições revolucionárias:

- a de 1791, que introduz a monarquia constitucional e o modelo do governo representativo clássico e atribui o poder executivo ao Rei e o Poder Legislativo a uma Assembleia;82

- a de 1793 ou do ano I, repudiando a separação dos poderes e criando um órgão político único, o Corpo Legislativo, que elegeria um Conselho Executivo dele dependente;

- a de 1795 ou do ano III, que estabelece duas Câmaras e um órgão colegial, o Directório, encarregado do poder executivo.

São três as Constituições napoleónicas:

- a de 1799 ou do ano VIII, fundando o consulado (com três Cônsules), criando quatro assembleias (o Senado, o Conselho de Estado, o Tribunado e o Corpo Legislativo) e estabelecendo o sistema eleitoral das listas de confiança;

- a de 1802 ou do ano X, transformando Napoleão Bonaparte em cônsul vitalício, mediante a

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revisão da Constituição anterior;

- a de 1804 ou do ano XII, instaurando o império.

São duas as Constituições da restauração:83

- a Carta Constitucional de 1814, outorgada por Luís XVIII, e esboçando uma monarquia limitada, com duas Câmaras;

- a Carta Constitucional de 1830, resultado de um pacto entre o Rei (agora Luís Filipe de Orleães) e a Câmara dos Deputados, o qual se traduz na aceitação da revisão da Carta de 1814 num sentido mais liberal.

São três as Constituições da II república e do II império:

- a de 1848, estabelecendo um regime presidencialista (Presidente e uma Assembleia);

- a de 1852, quase decalcada na do ano VIII, com rumo ao poder pessoal, o que vem a ser confirmado com a restauração do império (com Napoleão iii), nesse mesmo ano;

- a de 1870, indiciando uma evolução do império em sentido parlamentar.

Por último, a III, a IV e a V repúblicas têm, cada uma, a sua Constituição:

- a de 1875 (III república), consagrando um sistema parlamentar;

- a de 1946 (IV república), mantendo com algumas alterações o mesmo sistema;

- a de 1958 (V república), revista em 1962, tendente a limitar o parlamentarismo e reforçando, sobretudo, o papel do Presidente da República.

II - A simples observação da lista das Constituições decretadas (algumas quase sem chegarem a entrar em vigor) mostra diferenças entre o período de 1789 a 1871 e o período subsequente.

Por um lado, das catorze Constituições, onze pertencem à primeira fase, enquanto que, na época que se lhe segue, apenas se encontram três Constituições (e deve reparar-se em que a Constituição de 1875 foi vítima da derrota francesa de 1940 e a de 1946 das convulsões da Argélia).

Por outro lado, no primeiro período sucedem-se regimes e sistemas muito diversos, alguns mesmo opostos: as monarquias constitucionais de 1791 e de 1814, tão diferentes uma da outra, e o regime jacobino e convencional de 1973, o regime cesarista de 1799 e o regime democrático de 1848, o regime directorial de 1795 e o regime orleanista de 1830.84 Pelo contrário, no segundo período, de 1875 a 1958 domina o sistema parlamentar, que se esbate e é substituído (sem desaparecerem completamente alguns dos seus aspectos) a partir deste ano; e, sobretudo, o fundamento democrático do poder político não sofre já contestação, consolida-se o sufrágio universal e garantem-se as liberdades individuais.

III - As oscilações da história constitucional francesa traduzem também a prevalência ora de Montesquieu, ora de Rousseau, da doutrina e da mentalidade que se reconduzem a um ou outro grande pensador.

Montesquieu constrói a sua doutrina pensando na liberdade; a separação de poderes é uma garantia da liberdade, porque, contra o poder só o poder. ("É preciso que o poder detenha o poder.") Daí, outrossim, um governo representativo, porque sem representação política cai-se na concentração do poder no príncipe, ou no povo.

Diversamente, Rousseau procura a máxima pureza da democracia. Há um só povo; logo, deve haver unidade do seu poder; e a vontade do povo não se representa. A liberdade encontra-se no exercício do poder directamente pelo povo, não por quem se pretenda seu representante. ("Os Ingleses julgam-se livres, por escolherem os seus Deputados; na realidade, após a eleição ficam-lhes submetidos, como os Franceses ao rei de França.")

Por isso mesmo, como bem se sabe, Montesquieu e Rousseau acham-se no cerne do conflito

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filosófico-político de liberalismo e democracia (só ultrapassado no século XX). Mas, para o que importa neste momento, o primeiro está na base das formas de governo moderadas, ao passo que no segundo entroncam as formas de governo assentes na democracia absoluta, ainda que opostas (governo jacobino e governo cesarista).

Sieyès (Qu'est-ce que le Tiers-État?) prenuncia a solução do conflito, tentando conjugar soberania nacional (mas não soberania popular, fraccionada em razão dos membros da comunidade política, dos cidadãos) e representação política.

IV - Segundo Maurice Hauriou, em França, desde a Revolução, teriam estado em luta duas correntes de ideias e de forças políticas: 1ª) a corrente revolucionária de governo pelas assembleias representativas; 2ª) a corrente directorial, consular, imperial, presidencial, empenhada no reforço do poder executivo. O equilíbrio entre estas duas correntes seria dado pelo regime parlamentar, em que se combinaria a existência de assembleias com um poder executivo por elas fiscalizado.

Ainda segundo Hauriou, as interacções das duas correntes opostas provocariam a formação de dois ciclos políticos, cada um com a seguinte evolução: 1ª) um período revolucionário de governo de assembleia; 2ª) um período consular ou imperial de ditadura executiva, com uso do plebiscito; 3ª) um período parlamentar.

O primeiro ciclo iria de 1789 a 1848 e compreenderia: a monarquia constitucional de 1791 e a convenção (1793-1795), por uma banda; o directório, o consulado e o império, por outra banda; a restauração e Luís Filipe, por fim. O segundo ciclo começaria com o governo republicano revolucionário de 1848 e, passando pela república presidencialista e pelo II império, desembocaria na III república (parlamentar).85 E, se vivo fosse, talvez Hauriou visse na IV e na V repúblicas as duas primeiras fases (governo de assembleia e governo com predomínio do Executivo) de um terceiro ciclo constitucional.

Será de acolher o ensino de Hauriou?

Parece ser de aceitar, contanto que seja tomado como referente apenas à época de 1789 a 1871; os ciclos não são senão ciclos revolucionários e pós-revolucionários. Não parece que seja de aceitar no respeitante à época de 1871 para os nossos dias, em que prevalece uma impressão de homogeneidade.

Quer dizer: os ciclos, por si só, não servem de interpretação suficiente para toda a história constitucional francesa; mais importante do que a divisão em ciclos é a divisão entre a crise de 1789 e do século XIX e a estabilização correspondente à III, à IV e à V repúblicas.86

61. Instabilidade e sedimentaçãoI - Seja qual for a interpretação que se entenda mais razoável para tentar reduzir à unidade as vicissitudes político-constitucionais francesas, divisam-se causas que concorrem para tão grande instabilidade: causas de ordem geral e filosófico-jurídicas; sobretudo, causas de ordem política e social.

As primeiras estão ligadas à influência do pensamento racionalista num meio jurídico, intelectual e político favorável.

Marcello Caetano sintetiza-as assim:

"No final do século XVIII o movimento iluminista, cujo instrumento mais eficaz foi a Enciclopédia, espalhou a doutrina de que nos séculos anteriores o obscurantismo havia acumulado um acervo de erros grosseiros na forma de governar os povos por efeito de uma prática rotineira. Ora a essa época de ignorância sucedia desde então a era da Ciência, "o século das luzes", e tornava-se mister fazer tábua rasa do passado para deixar que a razão humana, esclarecida pelos novos conhecimentos, traçasse as regras adequadas à sociedade política ideal onde os homens encontrariam a felicidade.

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Nasceu daqui a desconfiança pela tradição e a divinização da Razão-raciocinante que levou os próceres da revolução francesa a redigir Constituições segundo as teorias consideradas mais perfeitas. E quando uma Constituição provava mal, procurava-se no arsenal filosófico nova doutrina para inspirar outra Constituição. - Daqui nasceram textos sucessivos, de vida fugaz, muitas constituições, nenhuma das quais conseguiu ser a Constituição da Nação francesa. E viu-se o paradoxo de o texto que vigorou mais tempo - o de 1875 - ter sido justamente aquele que, elaborado sem preocupações doutrinárias, foi redigido na ideia de servir de lei provisória, por poucos anos, até ser feita a Constituição definitiva."87

Sobressaem, porém, factores políticos e sociais. A instabilidade do período de 1789-1871 explica-se por nele se travar ainda uma luta decisiva de princípios de legitimidade - entre a legitimidade democrática e a monárquica - e de classes sociais - entre a burguesia urbana, que pretende consolidar o poder já adquirido, e a aristocracia rural, que pretende preservar ou restaurar antigos direitos -, luta esta que se transforma, a partir de 1830, com o aparecimento do operariado. As Constituições que se sucedem correspondem a diferentes momentos dessa luta, a altos e baixos de qualquer dos contendores ou a fases de conciliação (como a monarquia de Julho, de Luís Filipe) ou de estabilização pós-revolucionária (os dois governos bonapartistas).

O princípio monárquico, ligado (no modo que atrás se viu) a crenças religiosas, resiste durante décadas ao triunfo do princípio da soberania nacional. Leva tempo até que este tenha o assentimento da consciência colectiva.88 Mas o princípio da soberania nacional encarna quer em formas cesaristas quer em formas republicanas e só em 1884, quando se estabelece como limite material da revisão constitucional a imutabilidade da república se pode dizer que a monarquia é banida definitivamente.89

No plano social e económico, torna-se patente o contraste com a Inglaterra. Como observa Barrington Moore Junior, a sociedade francesa não gerou - e, provavelmente, não podia fazê-lo - um parlamento de senhores rurais em tons burgueses, à maneira inglesa, e o carácter inacabado da Revolução, facilmente relacionável com a estrutura da sociedade francesa dos fins do século XVIII, significava que ainda passaria longo tempo antes que uma democracia capitalista completamente desenvolvida se conseguisse estabelecer.90

II - A instabilidade de Constituições ao longo do século XIX faz-se num processo dialéctico, em que os antagonismos se vão tornando cada vez menos profundos e em que as sínteses são cada vez mais avançadas no concernente aos princípios liberais e democráticos. E isso porque as novas instituições progressivamente se sedimentam e, por conseguinte, se consolidam.91

Esta sedimentação é de instituições políticas e de certa ideia de Direito, traduzida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que subsiste mesmo sem inserção em textos constitucionais.92-93 Mas é apoiada por dois instrumentos decisivos: em nível social, pelo Código Civil (o Code Napoléon de 1804), que garante a igualdade jurídica, a liberdade contratual, a família e a propriedade burguesa; e, a nível de organização de poder, por uma administração centralizada e hierarquizada, que, vinda do Antigo Regime, o Primeiro Império reconstituiu e desenvolveu nos quadros da uniformidade sistemática criados pela Revolução.94

62. A Constituição e os tribunaisI - A Constituição, em França, é essencialmente lei, lei escrita ao serviço dos direitos e liberdades e da separação dos poderes (conforme o art. 16º da Declaração de 1789), acreditando-se que, sendo a lei escrita, mais patente se tornarão as suas violações e, assim, se dissuadirão os governantes de as cometer.95

Tal lei decorre de um poder constituinte, distinto, como mostrou Sieyès, dos demais poderes do Estado, poderes constituídos. Mas, ao contrário dos Estados Unidos, a supremacia da Constituição não era até há alguns anos um princípio jurídico operativo, determinante da invalidade das leis com

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ela incompatíveis. Na concepção francesa, a força jurídica formal da Constituição e a sua rigidez excluem (ou tendem a excluir) o costume; não envolvem - ou não envolviam até há pouco - todos os corolários lógicos comportáveis dentro do sistema jurídico.

II - Os tribunais judiciais não obtiveram até agora competência para apreciar a constitucionalidade das leis. Derivou isso do seguinte:

1º) Da ideia de lei (ordinária), ou do seu primado, como expressão da vontade geral formada através de assembleias soberanas;96

2º) Do entendimento dado à teoria da separação dos poderes, não se admitindo que órgãos estranhos à função legislativa, os tribunais, venham apreciar a validade das leis;

3º) Da reacção contra a prática dos parlamentos (judiciais) do Ancien Régime, o que levou até à proibição, por lei, da apreciação jurisdicional da constitucionalidade.97-98

A Constituição de 1958 criou, porém, um órgão de fiscalização preventiva - o Conselho Constitucional - que, embora de origem e composição políticas, funciona em moldes jurisdicionalizados e cuja importância, sobretudo desde 1974, tem vindo a crescer;99 e os tribunais comuns não podem deixar de ter em conta a sua jurisprudência.100

III - Muito mais antiga e consolidada é a fiscalização jurisdicional da legalidade administrativa como elemento básico de garantia dos direitos dos cidadãos.

Mas ela tão pouco se efectiva através dos tribunais judiciais. Efectiva-se - ainda por causa de razões históricas, ligadas ao entendimento da separação dos poderes - através de recurso para outros órgãos, os tribunais administrativos (o primeiro dos quais é o Conselho de Estado, com uma influência e um papel criador não sem paralelo mutatis mutandis ao do Supremo Tribunal dos Estados Unidos).101

63. O governo parlamentar na FrançaI - O princípio democrático, concebido em termos radicais, levou na França, nos dois ciclos dos séculos XVIII-XIX, quer ao governo convencional quer ao governo simplesmente representativo de Napoleão I e Napoleão III - ou seja, quer à ditadura de assembleia quer à ditadura pessoal. Num caso ou noutro, a democracia absoluta - jacobina ou cesarista - acabou por se destruir a si própria.

Mas o princípio democrático, mitigado pelo princípio da separação de poderes em certa acepção, deu ainda origem a uma forma intermédia: o governo parlamentar, conquanto com características muito diferentes das do sistema inglês. O sistema parlamentar aparece então um pouco como a síntese entre predomínio das Assembleias e do Poder Executivo e, ao mesmo tempo, entre democracia e separação de poderes.

Tanto o governo convencional como o governo cesarista são regimes específicos da experiência constitucional francesa. Mas são regimes revolucionários ou pós-revolucionários e, por isso, efémeros. Mais duradouro é o governo parlamentar, que se alonga entre 1871 e 1958, mesmo se menos típico que os outros.

II - O sistema parlamentar surge um pouco à imagem do sistema britânico, por necessidade política, aquando da Restauração; começa a esboçar traços próprios com Luís Filipe; adequa-se a um regime republicano - pela primeira vez;102 e singulariza-se a partir de 1875.103

Como características fundamentais do sistema, tal como resultam do funcionamento da 3ª e da 4ª repúblicas, apontem-se:

a) Subsistência de um Chefe do Estado na linha da tradição monárquica e no qual se faz assentar formalmente a titularidade do Poder Executivo;

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b) Bicameralismo;

c) Inexistência de maioria parlamentar de base, devido à multiplicidade de partidos políticos;

d) Necessidade de formação de governos de coligação;

e) Importância do Conselho de Ministros como órgão de definição e concerto da política governamental;

f) Governos de curta duração, em virtude da instabilidade das coligações;

g) Ausência ou paralisia do poder de dissolução do Parlamento pelo Chefe do Estado ou pelo Governo.

Na prática, o sistema de governo de tipo britânico distingue-se do sistema de governo parlamentar de tipo francês pelo seguinte. No primeiro, em regra o Governo nunca é posto em minoria no Parlamento; mas, se acaso o for, este será dissolvido, realizando-se de seguida novas eleições gerais. Pelo contrário, no segundo, pode haver crise ou dissidências na coligação governamental ou constituir-se nova coligação (o que determina num caso ou noutro a queda do Governo, por vezes, mesmo sem votação de moção de desconfiança ou censura nas Câmaras), sem que, por causa disso, tenha de ser dissolvido o Parlamento.

64. A V república e o presidencialismo gaullistaI - O que fica acabado de recortar é o esquema básico do governo parlamentar, tal como foi vivido em setenta anos da III república e, de uma forma ou de outra, em diversos regimes de outros países, como a I república portuguesa, a Itália antes e depois do fascismo e a Espanha entre 1931 e 1936.

A IV república (Constituição de 1946), embora não quisesse ser a mera repetição da III, acabou por muito pouco se afastar desse modelo. De novo só trouxe o reforço do papel do Presidente do Conselho em relação aos Ministros, a substituição do Senado por um Conselho da República de poderes reduzidos e a criação de um tímido Comité Constitucional, com competência respeitante à inconstitucionalidade. A prática constitucional orientou-se num sentido menos favorável à estabilidade: maior pulverização partidária, dificuldades de formação de coligações devido à força dos partidos adversos ao regime, Governos de duração mais breve que na III república.104

Seria com a V república que se haveria de verificar a reacção contra o governo da assembleia e conseguir a formação de um sistema diferente que, sem pôr em causa as tradições democráticas e liberais francesas, fosse capaz de dar e criar novas condições à política interna e externa do país.

Na sua versão original, a Constituição de 1958 destinava-se apenas a conter, limitar e racionalizar o parlamentarismo vindo das repúblicas anteriores.105 O sistema continuaria a ser de governo parlamentar,106 embora com o Presidente da República alçado à posição de árbitro, incumbido de velar pelo cumprimento da Constituição, pelo regular funcionamento dos poderes públicos e pela continuidade do Estado (art. 5º).

Mas logo predominou um entendimento diverso, resultante da forte personalidade do General de Gaulle e da crise da Argélia, primeiro, e, a seguir, da revisão constitucional de 1962 107 que estabeleceu a eleição do Presidente da República por sufrágio universal (em vez de ser por um colégio restrito). A permanência da situação e a legitimidade democrática imediata derivada da eleição - é uma regra geral em todos os países que quanto mais amplo for o colégio eleitoral maior importância política terá o eleito - levaram a que o sistema, longe de se traduzir em sistema parlamentar racionalizado, viesse a assumir características sui generis.E até pode pensar-se que o sistema da V república reúne ou aproveita, em larga medida, algumas das mais marcantes tendências dos sistemas anteriores: do parlamentarismo (responsabilidade do Governo perante o Parlamento), do bonapartismo (ascendente do Chefe do Estado) e do governo jacobino (participação do povo através de referendo).

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II - Numa visão mais formal pode dizer-se que o sistema gaullista (agora com quase quarenta anos de existência, com quatro Presidentes sucessores de De Gaulle e inversões de maioria em 1981, 1986, 1988 e 1993) corresponde a um sistema semipresidencial, por o Governo, livremente nomeado pelo Chefe do Estado (mas não livremente demitido), ser responsável politicamente perante o Parlamento. Ele não está muito longe, afinal na linha de outros países europeus que, antes e depois da Segunda Guerra Mundial, adoptaram ou pareceram adoptar esquemas semelhantes.

Na realidade, o centro principal da decisão política tem residido desde o início, no Presidente da República, por virtude da auto-atribuição de um "domínio reservado" em política externa e de defesa, da subalternização do Primeiro-Ministro, do apelo ao referendo e do exercício do poder de dissolução. Só em dois breves períodos (1986-1988 e 1993-1995) de não coincidência de maioria presidencial e de maioria parlamentar (e, portanto, de necessária "coabitação" de um Presidente e dum Governo de sinais diferentes) terá sido aplicada, à letra, a Constituição da V república.108

Nem se trata sequer de algo de extraordinário na experiência comparada dos sistemas semipresidenciais, fórmulas de compromisso de difícil realização entre elementos de parlamentarismo e de presidencialismo. Com excepção da Finlândia, e de, até agora, Portugal, os sistemas juridicamente semipresidenciais têm pendido ora para um, ora para outro lado: para o sistema parlamentar (Áustria, Irlanda e Islândia) ou para o sistema presidencial (a Alemanha de Weimar, de resto em crise permanente após 1925), consoante a dinâmica política assenta na maioria parlamentar ou na presidencial.109

De todo o modo, não é lícito confundir o presidencialismo gaullista com o presidencialismo verdadeiro e próprio, à americana, por aquele não ter sido criado expressamente pela Constituição, o Presidente em França ter um estatuto diferente do dos Estados Unidos e por o sistema francês continuar a ser (tal como nas repúblicas anteriores) de dualismo do Poder Executivo, com um Governo, jurídica e politicamente distinto do Chefe do Estado.

Especificando um pouco melhor, recorde-se que na V república francesa, ao contrário do que se verifica nos Estados Unidos:

- É obrigatória a demissão do Governo em consequência de votação desfavorável do Parlamento, assim como, em contrapartida, o Presidente da República pode dissolver a Assembleia Nacional;

- Apesar de haver incompatibilidade entre as funções de Ministro e Deputado, os Ministros podem participar nas reuniões plenárias das Câmaras (e não apenas das comissões) e desde 1966 todos procuram ser eleitos Deputados;

- Apesar de a Constituição de 1958 ter restringido a necessidade de referenda ministerial, ela mantém-se para certos actos;

- O Presidente da República tem o poder de submeter a referendo projectos de lei relativos à organização dos poderes públicos e à ratificação de determinados tratados (art. 11º da Constituição de 1958) e o de assumir, embora com consulta prévia de outros órgãos, poderes excepcionais em estado de necessidade (art. 16º);

- O Presidente é eleito por sete anos e pode ser reeleito indefinidamente.

Em suma, o sistema da V república oferece uma maior maleabilidade do que um sistema presidencial puro (visto que o Presidente tanto pode agir por si como através do Primeiro-Ministro, conforme as circunstâncias), mas também oferece uma maior ambiguidade e fragilidade (visto que o Presidente tem de concertar a sua acção com o Parlamento e, na medida em que recorra a referendo, pode ficar sujeito a derrotas como a de De Gaulle em 1969, a qual provocaria a sua renúncia).110

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65. A difusão do constitucionalismo francêsI - Não pode falar-se em constitucionalismo sem se falar na difusão do constitucionalismo formado em França a partir de 1789 e que, através de tantas vicissitudes, se estende até aos nossos dias.

Conforme vimos, foi muito intensa a influência do Direito constitucional britânico na Europa e verificou-se em mais de uma época. No entanto, ela nunca desceu tão fundo como a do Direito constitucional francês. Se em bastantes países se ensaiou com maior ou menor êxito o sistema de governo parlamentar imitado de Inglaterra, em compensação em quase todos eles a concepção que prevaleceu veio a ser a francesa e não a inglesa. E também sabemos que a incidência do constitucionalismo norte-americano aqui foi apenas parcelar, foi apenas de certos institutos.

II - Vários momentos de irradiação do Direito público francês podem, por seu turno, ser sucessivamente demarcados:

1º) Nos finais do século XVIII e inícios do século XIX para a grande parte do Continente europeu para onde se transmitem, por osmose ou em resultado das guerras e da ocupação militar, as ideias da Revolução: garantia dos direitos individuais, soberania nacional, separação de poderes. São desta época as Constituições espanhola de 1812 e portuguesa de 1822, inspiradas na Constituição de 1791. E a influência do jusracionalismo francês não está igualmente ausente do pensamento jurídico da América Latina, em luta pela independência;

2º) Após a revolução de 1830, e não sem conexão com as reformas eleitorais britânicas, para vários países, no sentido da passagem da monarquia constitucional da Restauração para uma fase mais liberal. A Constituição belga de 1831 111 (ainda em vigor, com alterações) e as Constituições espanhola de 1837 e portuguesa de 1838 assinalam tal difusão, assim como as primeiras tentativas constitucionais da Grécia;

3º) Após a revolução de 1848, num surto revolucionário generalizado, mas efémero, em que já aparecem ideias socialistas, sobretudo para a Europa central;

4º) Entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial, para alguns países da Europa meridional, dos Balcãs a Portugal (Constituição de 1911), e da América Latina. Difundem-se o republicanismo, com a separação da Igreja do Estado, e o governo parlamentar de assembleia;

5º) Após a Primeira Guerra Mundial, para os países que se tornam independentes dos Impérios vencidos e para outros que procuram adoptar também instituições republicanas. É também essa a época da "racionalização do poder" (Mirkine-Guetzévitch), sob a veste da Constituição formal;

6º) Com a descolonização, em termos precários, para os Estados em que se transformam os antigos territórios franceses e belgas da África;

7º) Com o fim dos regimes marxistas-leninistas da Europa centro-oriental, para os países dessa área, com influências gerais difusas (a par também de influências alemãs).

III - Nos países da América Latina a marca do constitucionalismo de raiz francesa, não obstante não desprezível,112 não se afigura determinante na construção e na vivência dos respectivos sistemas político-constitucionais. Já não nos países da Europa continental,113 com excepção da Suíça, da Alemanha e da Áustria, se bem que seja possível e necessário abrir distinções, que atentem na maior ou menor ligação e na especificidade da evolução histórica.

A Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, por um lado, e a Suécia, a Dinamarca, a Noruega e a Islândia, por outro lado, não deixam de evocar o sistema constitucional inglês por conhecerem uma experiência pacífica e paulatina e por conservarem, salvo a Islândia, a monarquia. Mas são países de Direito legal, o conceito de Constituição e os instrumentos de a trabalhar não são os ingleses e quase todos os respectivos sistemas de governo são aparentados do parlamentarismo de tipo francês.114

Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia e a Roménia, pelo carácter atribulado das suas histórias, com soluções de continuidade e convulsões revolucionárias das quais procedem sistemas e regimes

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opostos, têm tanto de instável como a França do século XIX; tanto como ela têm aprendido em concreto o significado da luta pela Constituição; e hoje, com excepção da Espanha, são repúblicas. Mas tem-lhes faltado a duração das instituições e o consenso nacional que são comuns ao resto da Europa ocidental.

A Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, Portugal, a Espanha, a Itália, a Grécia e a Roménia reflectem muito mais proximamente o modelo francês, até por ser a mesma a cultura jurídica. Não foi, de resto, apenas o Direito constitucional a ser aí objecto de recepção; também o foi o sistema administrativo (e na Bélgica, na Holanda e no Luxemburgo o Código Civil).

Mais afastados encontram-se os países nórdicos, quer pelas diferenças visíveis de cultura, tradição e organização social e administrativa (donde emergiu, por exemplo, o Ombudsman, agora com grande voga), quer pelas suas recentes experiências de formas avançadas de Estado social de Direito; e, por razões inversas, a Turquia (apesar do esforço assinalável que foi a Constituição de 1961, agora substituída, em sentido menos democrático, pela de 1982).

IV - Qual a difusão actual, mais em particular, do governo de assembleia e do presidencialismo ou semipresidencialismo da V república?

O sistema parlamentar de assembleia acha-se em nítido desfavor. Como observa Loewenstein, ele parece exercer uma atracção irresistível sobre os Estados que dão os primeiros passos na democracia constitucional, ao libertarem-se de domínios autocráticos.115 Foi o que sucedeu nos Estados da Europa centro-oriental a seguir à Primeira Guerra mundial e de novo, agora, em alguns desses Estados.

Quanto ao sistema semipresidencial, ele repercutiu-se na Grécia, nos anos imediatamente a seguir a 1975,116 em Portugal desde 1976 e, após 1989, na Polónia,117 na Roménia118 ou na Ucrânia. Nos países africanos francófonos, porém, ele tem conduzido a presidencialismo.

66. As Constituições da EspanhaI - A história política e constitucional da Espanha tem sido ainda mais agitada do que a da França.

Foram lá mais intensos os conflitos de legitimidade e prolongaram-se até há bem pouco tempo; foram ainda mais graves a crise das instituições (as antigas e as trazidas pelo liberalismo) e a debilidade das estruturas económicas, a que têm acrescido os irredentismos nacionalistas e regionalistas.

II - Entre 1812 e 1936 sucederam-se vários reinados de diferente tendência (liberal radical, absolutista, orleanista), várias ditaduras e duas repúblicas (1873-1874 e 1931-1936), bem como, naturalmente, várias restaurações e seis Constituições.119

Destas Constituições, as mais interessantes são, a primeira,120 de 1812 (chamada Constituição de Cádis) e a última, de 1931: a de 1812, modelo de Constituição revolucionária liberal para a Europa latina (e não sem influência, como se sabe, na América de língua espanhola);121 a de 1931, da 2ª república, de forte inspiração social, inspiradora da teoria do Estado regional e com um Tribunal de Garantias próximo do Tribunal Constitucional austríaco.

Mas de 1936 a 1975 (começando por uma guerra civil entre 1936 e 1939), a Espanha conheceria o longo regime autoritário conduzido pelo General Franco (a considerar adiante, no capítulo próprio). Dele se passaria para uma monarquia constitucional semelhante às que existem no norte da Europa, ou seja para uma monarquia que tem por conteúdo um sistema democrático parlamentar;122 os marcos dessa transição foram a Lei de Reforma Política e o referendo de 1976, as Cortes Constituintes de 1977-1978 e, por último, o referendo de 1978 de aprovação de uma nova Constituição.123

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III - A Constituição de 1978 representa tanto a consagração, ao fim de um século, de um constitucionalismo de matriz francesa quanto a abertura a novos caminhos.

Retomam-se as regiões ou comunidades autónomas (num regionalismo integral, e não parcial, como em 1931) e o Tribunal Constitucional (a que os cidadãos podem ter acesso directo através do recurso de amparo). À semelhança da Constituição italiana de 1947 e da portuguesa de 1976, introduzem-se "princípios directivos de política social e económica" e constitucionalizam-se direitos dos partidos, dos sindicatos e das associações empresariais. Procura-se instaurar um parlamentarismo racionalizado, com a moção de censura construtiva vinda da Constituição alemã de Bona.124

67. As Constituições da ItáliaI - Após a unificação a Itália teve uma monarquia constitucional de tendência orleanista. A Carta outorgada pelo Rei Carlos Alberto do Piemente em 1848 (o chamado "Estatuto Albertino") passou a vigorar como Constituição de toda a Itália; era uma Constituição flexível.125

Menos turbulenta do que a Espanha, a Itália viria, apesar disso, a entrar mais cedo em ditadura: foi, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial, o fascismo, implantado em 1922 e terminado em 1943 (ou, no norte da Península, em 1945). A seguir, em l946 seria proclamada a república, por decisão tomada em referendo, e seria aprovada em 1947 uma nova Constituição por uma assembleia constituinte.126

II - Domina a Constituição italiana actual um nítido carácter compromissório, também manifestado durante os mais de quarenta anos que já leva de vida.

Ponto de grande relevo são uma cuidada Parte I, sobre direitos fundamentais, que engloba "relações civis", "ético-sociais", "económicas" e "políticas"; inovações no exercício da função legislativa (iniciativa popular, veto popular com referendo resolutivo ou revogatório, competência deliberativa das comissões parlamentares); a instituição de regiões autónomas, umas de estatuto comum, outras de estatuto especial; a existência do Tribunal Constitucional; a posição algo reforçada do Presidente da República como Chefe do Estado, mas sem quebra do sistema parlamentar.127

Nos últimos anos, porém, o sistema político entrou em acentuada crise - crise de governabilidade e crise de legitimidade da classe política - sem que até agora as reformas ensaiadas tenham tido êxito.

§ 4º Os Sistemas Constitucionais De Matriz Soviética

68. O Estado e o constitucionalismo soviéticoI - Mais do que quaisquer outros, foram o Estado e o constitucionalismo soviético128 fortemente marcados por uma revolução: a revolução russa de outubro-novembro de 1917 (dita revolução de outubro), directa consequência das circunstâncias históricas da Rússia - sujeita a uma autocracia em crise intensa, com grande atraso administrativo, económico e social e derrotada em duas guerras (contra o Japão, em 1904-1905, e contra a Alemanha entre 1914 e 1917). Pesam neles, portanto, certos factos.

Mas foram também produto de certas ideias. Não podem ser desprendidos da propaganda revolucionária vinda do século XIX e animada, nesse contexto favorável, por Lenine. O seu sentido é impensável à margem da ideologia que se intitularia marxista-leninista.

Daí que tanto se fale em constitucionalismo soviético - porque a revolução foi feita em nome de "todo o poder aos sovietes" (quer dizer, aos conselhos de operários, soldados, camponeses e marinheiros) - como em constitucionalismo marxista-leninista - por causa daquela ideologia e do partido que a assume como sua, o partido comunista.

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II - Mais tarde, através de vicissitudes várias, outros países viriam a experimentar sistemas político-constitucionais idênticos aos semelhantes. Seriam a Mongólia Exterior desde 1922; no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, a Lituânia, a Letónia e a Estónia, a Polónia, a Checoslováquia, a Hungria, a Roménia, a Bulgária, a Jugoslávia, a Albânia e a Alemanha Oriental, bem como a Coreia do Norte; a China após 1949; o Vietname do Norte desde 1954, e todo o Vietname e também o Laos desde 1975; Cuba desde 1959-1961. E ainda, por certos períodos e com maior ou menor aproximação ao modelo soviético, Camboja, a Etiópia, o Iémen do Sul, Angola e Moçambique.129

O refluxo dar-se-ia ao longo dos anos 80 - da Perestroika, iniciada em 1985, à queda do muro de Berlim, ocorrida em 1989. Incapazes de acompanhar os progressos económico e tecnológico dos países ocidentais, de renovar os seus aparelhos políticos e administrativos e de dar resposta ou de resistir às aspirações de liberdade política das suas populações, os regimes comunistas europeus (por vezes, ditos de "socialismo real") desmoronar-se-iam ora por transição pacífica, ora por revolução, ora por processos mais complexos.130

Neste momento, o marxismo-leninista, com mais ou menos adaptações, apenas subsiste na China, na Coreia do Norte, no Vietname, no Laos e em Cuba - ou seja, em sociedades largamente agrárias com características diversas das europeias (algumas dos quais se têm reflectido no funcionamento das instituições).

Nem por isso deixa de se justificar ainda hoje o estudo da família constitucional de matriz soviética: pelos elementos originais que comporta ou comportou, pela importância da Rússia e da China e pelo impacto mundial das suas revoluções e das suas imagens durante décadas.

69. As sucessivas Constituições soviéticasI - Podem ser apontadas oito grandes fases na história política e constitucional soviética:

a) de 1917 a 1921, fase revolucionária de implantação do governo soviético e de guerra civil;

b) de 1921 a 1928, fase de reconstrução, traduzida por uma "nova política económica" (ao contrário do que poderia parecer, mais moderada que a do período anterior) e durante a qual se verifica a morte de Lenine (1924) e a sua sucessão por Estáline;

c) de 1928 a 1936, fase de consolidação, de industrialização e de colectivização;

d) de 1936 a 1953 (data do XX Congresso do Partido), estalinismo, reforçado pela Segunda Guerra Mundial e depois pela "guerra fria";

e) de 1953 ou 1956 a 1964, fase da "desestalinização", correspondente às reformas do tempo de Kruschef;

f) de 1964 a 1985, fase de estabilização interna e de grande intervenção externa sob a direcção de Brejnev e dos seus sucessores;

g) entre 1985 e 1989, fase dita da Perestroika (reestruturação) e de Glasnost (transparência), com Gorbachev;

h) de 1989 a 1991, desagregação.

II - O primeiro texto de vocação constitucional soviético foi a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 23 de janeiro de 1918, de alguma sorte réplica da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e contrapondo ao carácter individualista desta uma polémica afirmação dos princípios colectivistas.

Logo nesse ano, em 10 de julho, seria publicada uma Constituição - pela primeira vez uma Constituição adquiria conteúdo não liberal - que ostentava duas características:

a) A limitação do sufrágio, reservado aos que prestassem trabalho produtivo e de que ficavam

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excluídos os que explorassem o trabalho dos outros, como certas categorias sociais (comerciantes, proprietários, etc.);

b) A organização piramidal dos poderes - do soviete local ia-se subindo, por eleições em graus sucessivos, até o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que, por sua vez, elegia a Junta Central Executiva dos Sovietes e esta o Conselho dos Comissários do Povo.

III - A Constituição de 1918 era ainda Constituição da Rússia, pois que só em 1922 ficaria constituída (e viria a desenvolver-se posteriormente) a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pela agregação dos Estados da periferia que enquadravam os povos submetidos antes ao domínio russo.

A Constituição de 31 de Janeiro de 1924, que formalizou a União, procedeu, entre outras coisas, à separação, peculiar a um Estado federal, entre duas Câmaras; o Conselho da União e o Conselho das Nacionalidades (equivalente grosso modo ao Senado americano).

IV - Seguir-se-ia, num momento mais avançado, a Constituição de 5 de dezembro de 1936, pretendendo-se um boletim de vitória do Estado e do Direito socialistas, que teria posto fim à exploração do homem pelo homem e resolvido os diversos problemas de transição.131

Aparentemente, ela representou, todavia, o afastamento de certas instituições do período revolucionário e a aproximação dos esquemas do Estado constitucional representativo. Foi, assim, que deixou de haver sufrágio limitado e por escalões sucessivos para passar a haver sufrágio universal, directo e igual dos cidadãos (já que não haveria mais burguesia exploradora).

V - A Constituição aprovada em 7 de outubro de 1977, a quarta Constituição soviética, propôs-se expressamente ampliar e aprofundar "a democracia socialista", correspondente à concepção do Estado de "todo o povo".132 Nela encontravam-se, nomeadamente a prescrição expressa do princípio da legalidade socialista e uma enumeração mais completa e precisa dos direitos dos cidadãos; um capítulo novo sobre desenvolvimento social e cultural; a consagração do princípio da coexistência pacífica no domínio da política externa; e o reforço da institucionalização do partido comunista.133

Esta Constituição viria a sofrer, em 1989 e 1990, importantes modificações no respeitante à organização política, com vista a certa abertura à sociedade, à limitação recíproca dos órgãos de poder e a uma embrionária fiscalização da constitucionalidade das leis. Elas revelar-se-iam insuficientes ou contraproducentes e teriam limitadíssima vigência.134

VI - Em 1991 a U.R.S.S. desapareceria, tendo as repúblicas federadas adquirido ou readquirido (no caso de países bálticos) a soberania internacional.

Nesse mesmo ano seria constituída uma "Comunidade de Estados Independentes", próxima de uma confederação.135

70. A concepção do poder e o partido comunistaI - O constitucionalismo de matriz soviética tem como differentia specifica o domínio de todo o poder pela partido comunista, seja partido único exclusivo, seja partido único produtor de ideologia oficial numa pluralidade aparente de partidos.136 E esse domínio decorre, em linha recta, da concepção leninista, segundo a qual o partido, depois de ter permitido ao proletariado a conquista do poder, exerce este em seu nome.137

Vanguarda consciente da classe operária e instrumento da sua ditadura, o partido comunista apresenta-se essencialmente como um partido ideológico apto a enquadrar as massas. Daí que surja como:

a) Partido de escol ou animação (em que a entrada é limitada e confere tanto deveres como

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direitos);

b) Partido de estrutura centralizada ou de "centralismo democrático", com direcção, pela maioria, do topo para a base, discussão desde a base e não-reconhecimento às minorias de liberdade pública de expressão;138

c) Partido com grande desenvolvimento burocrático determinado pelo respectivo aparelho;139

d) Partido com papel reconhecido pela Constituição,140 havendo ao lado dos órgãos constitucionais órgãos do Partido, nuns casos com acumulação na mesma pessoa de funções nos dois "aparelhos", noutros casos com separação;

e) Partido que domina também as "organizações sociais", exprimindo, ao mesmo tempo, o Estado e a sociedade civil.141-142

A realidade do poder está no partido, e não nos órgãos de Estado, e o verdadeiro chefe político soviético é o Secretário-Geral do Partido Comunista, e não o Presidente do Soviete Supremo ou o Presidente do Conselho de Ministros.143 Juridicamente os actos políticos provêm dos órgãos do Estado, mas politicamente as decisões ou as grandes decisões são sempre tomadas pelos órgãos do Partido.

II - Por conseguinte, nos países com este regime as eleições para os órgãos constitucionais não se revestem de grande importância, pois têm um significado diferente do que possuem no Ocidente: nelas não se firma a legitimidade dos governantes em concreto e delas não pode resultar a substituição de um programa por outro programa, de um partido por outro no poder.

Trata-se de eleições-ratificação,144 nas quais o povo quase por unanimidade,145 é chamado a confirmar a lista apresentada pelo partido comunista e pelos cidadãos sem partido. Por outro lado, na lógica da recusa do princípio representativo, os mandatos dos eleitos são juridicamente revogáveis.

III - As concepções constitucionais do Estado marxista-leninista estavam resumidas, com muita nitidez, logo no primeiro capítulo da Constituição soviética (de 1977):

Art. 1º: "A U.R.S.S. é um Estado socialista de todo o povo que exprime a vontade e os interesses dos operários, dos camponeses e dos intelectuais, dos trabalhadores de todas as nações e etnias do país."

Art. 2º: "Na U.R.S.S. todo o poder pertence ao povo - O povo exerce o poder do Estado através dos Sovietes de Deputados do Povo, que constituem a base fundamental do sistema político da U.R.S.S. - Todos os outros órgãos do Estado estão sob o controlo dos Sovietes de Deputados do Povo e são perante ele responsáveis."

Art. 3º: "A organização e a actividade do Estado Soviético obedecem ao princípio do centralismo democrático: eleição de todos os órgãos do poder do Estado da base ao topo, obrigação de prestarem contas ao povo e obrigatoriedade das decisões dos órgãos superiores para os órgãos inferiores. O centralismo democrático conjuga a direcção única com a iniciativa e a actividade criadora na base e com a responsabilidade de cada órgão e de cada funcionário do Estado pela tarefa de que foi incumbido."

Art. 6º: "A força dirigente orientadora da sociedade soviética, o núcleo do seu sistema político e de todas as organizações estaduais e sociais, é o Partido Comunista da União Soviética. O P.C.U.S. existe para o povo e serve o povo. Todas as organizações do partido actuam no âmbito da Constituição da U.R.S.S."

Art. 8º: "Os colectivos de trabalhadores participam na discussão e na resolução dos assuntos do Estado e da sociedade, na planificação da produção e do desenvolvimento social, na preparação e na distribuição dos quadros, na discussão e na resolução das questões relativas à gestão das empresas e instituições, à melhoria das condições de trabalho e de vida e à utilização dos recursos destinados ao desenvolvimento da produção, bem como a medidas sociais e culturais e ao estímulo material… ."

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Art. 9º: "A orientação fundamental do desenvolvimento do sistema político da sociedade soviética é a contínua ampliação da democracia socialista: participação cada vez mais ampla dos cidadãos na gestão dos assuntos do Estado e da sociedade, aperfeiçoamento do aparelho de Estado, elevação do nível de actividade das organizações sociais, reforço do controlo popular, fortalecimento da base jurídica do Estado e da sociedade, ampliação da publicidade e consideração permanente pela opinião pública."

IV - A constituição revolucionária do domínio de um partido, tal como ocorreu na Rússia Soviética e noutros países, tem sido, diferentemente interpretada.

Haveria nela aí uma contradição paradoxal entre anarquismo em teoria e totalitarismo na prática. Marx e Engeis predisseram o desaparecimento da ordem coerciva como efeito automático do estabelecimento do socialismo. Desde que na Rússia Soviética esta previsão evidentemente se não verificou, Lenine e Estáline foram obrigados a modificar a doutrina original, adiando o desaparecimento do Estado para o momento em que o socialismo estivesse generalizado ao mundo inteiro. Uma vez que tal se não deve esperar num futuro próximo, o carácter provisório da maquinaria coerciva mantida na União Soviética precisa tanto mais de ser vincadamente sublinhado.146

Mas, igualmente, foi sustentado que o Estado soviético não seria um Estado conforme às visões e às recomendações de Marx, e sim às de Hegel.147

71. O princípio da legalidade socialista e os direitos fundamentaisI - Segundo a doutrina marxista-leninista, cada regime económico tem a sua Constituição. A Constituição socialista, expressão do regime económico socialista, desempenha uma função simultaneamente de balanço do que está feito (no socialismo) e de programa do que falta fazer (a caminho do comunismo).

Transcrevendo um autor:

"A Constituição não se destina somente a ser a expressão da tomada do poder pelo povo trabalhador mas também a servir para a consolidação das instituições socioeconómicas e políticas fundamentais do novo regime e de orientação essencial do seu desenvolvimento. Ora, esta orientação consiste na edificação da sociedade socialista e depois comunista. Daqui resulta o dinamismo específico das Constituições dos Estados do povo trabalhador, correspondente ao dinamismo do regime socioeconómico e político criado pela revolução… Exprimindo e consolidando em normas jurídicas as instituições fundamentais do regime socioeconómico e político, a Constituição exerce, ao mesmo tempo, uma função ideológica importante. Com efeito, é por meio dela que se manifestam os princípios que devem ser realizados pelo novo regime socioeconómico e político. A função social da Constituição ficaria, por isso, injustamente diminuída se ficasse confinada à regulamentação jurídica. A sua tarefa é muito mais vasta, porque ela deve também exprimir os princípios ideológicos fundamentais que se realizam através das instituições do regime.

"As Constituições envolvem tanto o presente como o futuro."148-149

II - A legalidade socialista é muito diferente do Estado de Direito, pois envolve:

a) A aceitação da hierarquia das normas jurídicas, não por causa do seu valor intrínseco e apenas por serem normas de Direito socialista;

b) A desvalorização, por conseguinte, das normas constitucionais em face de leis mais conformes com o estado actual da sociedade socialista;150

c) A redução do papel do juiz e da interpretação em geral;151

d) A recusa da fiscalização judicial da constitucionalidade das leis;

e) O papel importante da Procuradoria-Geral (com funções mais amplas que as de um Ministério

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Público), promovendo a aplicação uniforme da lei e a fiscalização dos órgãos administrativos, por iniciativa própria ou a pedido dos cidadãos (art. 164º da Constituição soviética);

f) A intervenção do Partido Comunista na interpretação e na aplicação do Direito (dado o carácter ideológico deste), através de directivas e resoluções dirigidas aos juízes;

g) A extensão do princípio da legalidade tanto aos órgãos do Estado como aos cidadãos em geral, a quem se exige uma colaboração activa na salvaguarda do Direito socialista.152

III - A concepção socialista dos direitos fundamentais não arranca da ideia de uma esfera individual independente e livre do Estado, mas da ideia de cidadão activo que tem o direito e o dever de participar na vida política e económica, social e cultural da sociedade socialista. Os direitos são simultaneamente deveres - os direitos do cidadão reconhecidos pela constituição socialista devem ser activamente exercidos a fim de se progredir na edificação da sociedade socialista. Na concepção socialista, o homem não se desdobra contraditoriamente em burguês (bourgeois) apolítico e cidadão político (citoyen), antes se eleva e realiza pura e simplesmente em cidadão.153

Mas o corte antropológico que a teoria socialista operou em relação à teoria tradicional de direitos do homem conduziu às suas deficiências principais: 1) funcionalização extrema de direitos fundamentais e minimização de uma irredutível dimensão subjectiva; 2) tendencial redução dos direitos à existência de condições materiais, económicas e sociais, com manifesto desprezo das garantias jurídicas.154

Na experiência concreta, presta-se um realce muito grande aos direitos económicos, sociais e culturais - direitos ao trabalho, ao repouso, à segurança social, à educação - em contraste com a situação precária das liberdades individuais. Por isso e invocando-se também as necessidades da construção do socialismo e da defesa contra os seus inimigos,155 as liberdades públicas ficam suprimidas ou os cidadãos só as podem exercer em obediência à linha do Partido Comunista ou por meio de organizações deste dependentes, directa ou indirectamente, e tudo dentro de uma atmosfera de completo uso dos meios de comunicação social pelo Estado.

A inviolabilidade da pessoa, o direito de ninguém ser arbitrariamente detido ou preso, a inviolabilidade do domicílio e outras garantias individuais recebem consagração constitucional. No entanto, a experiência, sobretudo dos anos de Estáline (e também antes e depois de Estáline), foi, não raro, de desrespeito destas garantias e a segurança dos cidadãos nunca chegou a ser preservada pela legalidade socialista.156 E o que se dizia da U.R.S.S. poderia dizer-se hoje da China ou de Cuba.

72. A unidade do poder, a forma e o sistema de governoI - As Constituições e a doutrina jurídica marxista-leninista afirmam o princípio da unidade do poder do Estado - seguindo Rousseau e em contraste com o dogma da separação dos poderes do constitucionalismo liberal.

"Todo o poder aos sovietes" significa que todos os sovietes ou conselhos são titulares do poder do Estado e que, em cada escalão ou dimensão, todo o poder (sem prejuízo da diferenciação de funções) é exercido pelo respectivo soviete.157 Ou, como se lia no art. 89º da Constituição de 1977: os sovietes de deputados do povo constituem um sistema único de órgãos representativos do poder do Estado.158

Isto não bastava para assimilar a forma de governo da U.R.S.S. à Convenção em França: na prática e, mesmo à luz da própria Constituição, os sovietes eram apenas uma forma; o conteúdo era o partido; o governo soviético era, pois, irredutível ao governo jacobino.159

II - Na linha da Constituição anterior, a Constituição de 1977 declarou o Soviete Supremo o "órgão

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superior do poder de Estado da U.R.S.S." (art. 108º) e o Conselho de Ministros o "órgão executivo e administrativo superior do poder de Estado da U.R.S.S." (art. 128º).

Ao Soviete Supremo (formado por duas Câmaras, por exigência do federalismo) competiam, pois, em princípio, todas as decisões políticas da União. Exercia, porém, os seus poderes, salvo em escassos dias de reunião por ano, através do Praesidium, segundo uma delegação ou substituição permanente predeterminada pela Constituição. E o Praesidium era o verdadeiro órgão de direcção política suprema, quase uma espécie de Chefe de Estado colegial (arts. 119º e segs.).160

Por isso, melhor do que qualificar o sistema de governo de convencional seria qualificá-lo de directorial161 (conquanto sui generis, bem diferente do sistema directorial de 1795 ou do suíço).

73. A família constitucional de matriz soviéticaA família de Direito constitucional de matriz soviética - hoje bastante mais reduzida do que até há alguns anos - é a mais homogénea de todas as quatro grandes famílias constitucionais.162

Em alguns casos, pretendeu-se levar ainda mais fundo ou mais depressa a realização do marxismo-leninismo: assim, a República Democrática Alemã com a acentuação da ideia de desenvolvimento e de revolução científica e cultural (v. g., arts. 49º, nº 1, e 124º, nº 3, do texto constitucional de 1974) e dos laços especiais com a U.R.S.S. dentro da "comunidade de Estados socialistas" (arts. 6º, nºs 2 e 3, 7º, nº 2, e 76º, nº 3). Noutros casos, existia ou existem particularidades institucionais com interesse: assim, a Jugoslávia e a China.

Na Jugoslávia afirmavam-se, antes de mais, o desejo de limitar o papel da Liga dos Comunistas à "influência ideológica e política" sobre o sentido da evolução da sociedade, deixando aos "órgãos de autogestão" o poder de decisão. E isto traduzia-se numa mais larga participação dos cidadãos e dos militantes, sem que, todavia, deixassem de ser os órgãos dirigentes da Liga a adoptar as orientações fundamentais.163 Esta experiência formalizou-se nas Constituições de 1953, 1963 e 1974.

Na Constituição de 1974, o direito à autogestão era definido (no preâmbulo) como o direito "em função do qual cada trabalhador decide, em igualdade de direitos com os outros trabalhadores do seu trabalho, das condições e dos resultados do trabalho, dos seus interesses próprios, do interesse colectivo e da orientação do desenvolvimento social e exerce o poder e a gestão dos outros negócios sociais."164

A República Popular da China já teve quatro Constituições: a de 1954, a de 1975, a de 1978 e a de 1982. Esta última, feita após a morte de Mao Zedong num momento de relativa estabilização, tem essencialmente em vista a "modernização socialista do país".165

Os princípios fundamentais da Constituição de 1982 são: 1º) o socialismo; 2º) a ditadura democrático-popular; 3º) o marxismo-leninismo e o pensamento de Mao Zedong; 4º) a direcção do Partido Comunista Chinês.

Entre as tarefas propostas ao Estado contam-se o desenvolvimento das actividades educativas, científicas e culturais; a salvaguarda da unidade e da autoridade da legalidade socialista; o reforço das assembleias populares de base; e o reforço da eficácia do Conselho de Estado.

Mantêm-se as comunas populares no âmbito da propriedade colectiva socialista das massas trabalhadoras, mas admite-se, ao mesmo tempo, que a economia individual de trabalhadores da cidade e do campo é um complemento do sector público da economia socialista e alude-se ao papel regulador suplementar do mercado.

Além da Assembleia Popular Nacional, do seu Comité Permanente e do Conselho de Estado (correspondentes, respectivamente, ao Soviete Supremo, ao "Praesidium" e ao Conselho de Ministros na U.R.S.S.), existem o Presidente da República e uma Comissão Militar Central.

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A China abrange outras nações e nacionalidades além da chinesa, as quais obtêm o reconhecimento da igualdade de direitos e a formação de regiões ou zonas de autonomia nacional.

CAPÍTULO III - Sistemas Constitucionais Não Integrados Em Famílias

§ 1º O Sistema Constitucional Suíço

74. Formação histórica e características fundamentaisI - A história constitucional suíça divide-se em quatro grandes períodos:

1º) A Confederação (até à Revolução francesa), com cantões de governo aristocrático e outros de governo democrático;

2º) A República Helvética e o Acto de Mediação de Napoleão);

3º) A Confederação, de novo (de 1815 a 1848);

4º) A Federação (desde 1848).

Recentemente, em 1999, foi aprovada uma nova Constituição.1

II - Como características singularizadoras do sistema constitucional suíço2 apontem-se:

a) O federalismo cantonal, em que cada Estado federado parece ter mais que ver com as Cidades-Estados da Grécia antiga do que com os Estados modernos;3

b) Em conexão com a estrutura municipal dos Estados, a prática secular de democracia directa em cinco dos menores cantões, através de assembleias populares (Landesgemeinden);c) A consagração e a frequência da iniciativa popular e do referendo, sendo o referendo obrigatório para a revisão constitucional e facultativo para as leis ordinárias (salvo em alguns cantões, onde é obrigatório);

d) O sistema de governo federal como sistema directorial;

e) A relativa timidez da fiscalização da constitucionalidade, a cargo do Tribunal Federal, pois a ela só estão sujeitas leis cantonais (o que, porém, acentua tendências centralizadoras);4

f) Uma certa plasticidade da Constituição (embora também adaptabilidade), devido à frequência das alterações que sofre.

75. O sistema de governo directorialI - Os órgãos políticos federais são a Assembleia Federal e o Conselho Federal.

A Assembleia Federal é um parlamento bicameral típico do federalismo: compõe-se do Conselho Nacional e do Conselho dos Estados.

Os poderes de ambas as Câmaras são iguais e elas devem ainda reunir-se em sessão conjunta para a prática de certos actos.

Quanto ao Conselho Federal, é o órgão executivo da Federação e é integrado por 7 membros, eleitos por 4 anos para Assembleia, mas que não dependem da confiança desta para se conservarem em funções.

Todos os anos a Assembleia Federal elege um dos membros do Conselho como Presidente da Confederação, se bem que não se trate de Chefe de Estado, pois não tem competência própria.

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II - O art. 148º da Constituição considera a Assembleia Federal o órgão supremo da Confederação (sob reserva dos direitos do povo e dos cantões), pelo que seria tentador, à primeira vista, procurar uma aproximação com o regime convencional. A realidade é, todavia, diferente. O poder na Suíça está distribuído entre a Assembleia e o Conselho Federal e este, embora eleito por aquela, exerce, com autonomia e estabilidade, a direcção política do Estado. O Conselho Federal está na Suíça um pouco como o Presidente nos Estados Unidos.

O sistema deve ser qualificado, sim, de directorial (na linha da Constituição francesa de 1795). Caracterizam-no, acima de tudo: 1º) a colegialidade do Conselho Federal; 2º) a inexistência de responsabilidade política do Conselho perante a Assembleia, sem embargo de esta lhe poder dirigir interpelações e moções; 3º) a impossibilidade de dissolução da Assembleia pelo Conselho e, ao contrário dos Estados Unidos, a inexistência de poder de veto.5

A prática tem revelado uma grande maleabilidade do funcionamento das instituições, propiciada também por um multipartidarismo sem tensões ideológicas agudas e pela frequência das votações populares.

A Suíça é o único exemplo actual deste sistema do governo, pois o Uruguai voltou ao presidencialismo depois de duas efémeras experiências, neste século, de Executivo colegial (o Conselho Nacional de Governo com 9 membros eleitos por sufrágio directo, 6 representando a maioria e 3 a minoria).]

§ 2º Os Sistemas Constitucionais Alemão E Austríaco

76. A monarquia constitucional alemãI - O século XIX é o século do constitucionalismo monárquico em toda a Europa (com as conhecidas excepções da Rússia e da Turquia que permanecem monarquias absolutas).

No entanto, o constitucionalismo assume um significado bastante diferente nos países da Europa ocidental, para os quais irradiaram com êxito as ideias da Revolução francesa, e nos países da Europa central (Estado alemães e Áustria), onde conseguem quase todos os governos resistir duradouramente às doutrinas liberais e democráticas, apesar dos embates revolucionários de 1848.6

Encontra-se, por um lado, a monarquia constitucional de tipo francês em que o princípio democrático prevalece sobre o princípio monárquico (embora com atenuações no regime orleanista). O Rei manda apenas por virtude da Constituição e esta é obra de um poder constituinte que pertence à Nação, ao Povo. O Rei está, sob este aspecto, em plano idêntico ao do Parlamento e a sua função primária é a de chefe do Poder Executivo.

Encontra-se, por outro lado, a monarquia constitucional de tipo austro-alemão, monarquia limitada ou monarquia constitucional propriamente dita, em que o princípio monárquico se sobrepõe ao princípio democrático e intervém ainda de forma constante e efectiva no governo. A Constituição possui agora um conteúdo menos intenso e é outorgada pelo Monarca que, assim, aceita limitar os seus poderes. E, ao passo que o Monarca conserva íntegra a sua autoridade em tudo quanto não disponha a Constituição, o Parlamento tem a sua área de acção estritamente demarcada. O verdadeiro titular do poder soberano continua a ser o Rei, não se torna o povo.7

II - A monarquia constitucional propriamente dita vem, pois, a ser aquela em que a autoridade do Rei, embora subdividida e reduzida por efeito da existência de diversos órgãos, se espraia por toda a vida do Estado. Daqui resulta que tudo quanto não seja atribuído aos outros órgãos cabe ao Rei e, em caso de dúvida ou conflito, presume-se a sua competência. Todos os outros órgãos devem ser, senão necessariamente subordinados ao Monarca, pelo menos, dele dependentes no sentido de que a sua vontade, o seu ininterrupto funcionamento ou ainda o conferir de força jurídica às suas decisões

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dependem da vontade do Monarca.8

Ao mesmo tempo, no tocante aos direitos e liberdades, domina uma concepção igualmente limitativa no confronto da que então vai prevalecendo na Europa ocidental. Tais direitos são confinados a direitos ou interesses reflexos, a mero reflexo do poder público (verdadeiros direitos só os tem o Estado). E, na prática, mantém-se um conjunto de restrições e autorizações, bem próximas das que tinham caracterizado o Estado de Polícia.9

Apesar desta situação, não foi de pouco relevo o labor teórico dos grandes juspublicistas alemães do século XIX (Von Mohl já atrás mencionado e, entre tantos, Gerber, Laband, Bluntschli, Jellinek), aos quais se deve a elaboração de importantíssimos conceitos, que mais tarde frutificariam no Direito positivo.10

III - É na base de instituições entendidas desta maneira que vão reger-se os Estados alemães, em três surtos subsequentes, respectivamente, a 1818, 1830 e 1848,11 e que se vem a organizar o Império Alemão pela Constituição de 1871 (vigente até 1918).12

Elemento assinalável nesta Constituição é o enaltecimento do Chefe do Governo, dito Chanceler, único Ministro com funções políticas: daí o chamado sistema de governo de chanceler ou de dualismo de poder executivo com concentração de poderes.

77. A Constituição de WeimarI - Com a derrota na Primeira Guerra Mundial, desapareceram os chamados Impérios Centrais e proclamaram-se sistemas republicanos em sua substituição. De seguida e vencidas as perturbações do momento, prepararam-se novos textos constitucionais.

A Constituição do Reich alemão, aprovada em 11 de agosto de 1919 na cidade de Weimar, pode considerar-se o mais importante texto nessa altura concebido e espelha bem toda a mudança no modo de encarar os problemas políticos, sociais e económicos do século XIX para o século XX. O seu interesse é múltiplo, quer no plano sistemático quer no da experimentação constitucional; e, por isso, ficaria registada na história e no direito comparado.13

II - No tocante à organização política, a Constituição faz uma tentativa de conciliação da tradição e, porventura, da necessidade de haver um Chefe de Estado forte com a aspiração, e também a necessidade, de a Alemanha se dotar de um Parlamento plenamente soberano (daí um esquema em si não distinto dos actuais sistemas semipresidenciais); e mitiga o princípio representativo através de formas de democracia directa ou semidirecta.

Prescreve, assim, uma regra de dupla responsabilidade política do Governo (arts. 52º e 54º) e prevê o recurso ao povo, por eleições e referendos, para decidir eventuais conflitos.

O Presidente, eleito por sufrágio universal (art. 41º), por sete anos e podendo ser reeleito (art. 43º), nomeia e demite o Chanceler e, sob proposta deste, os Ministros (art. 53º); dissolve o Parlamento, embora uma só vez pelo mesmo motivo (art. 25º); promulga as leis votadas em conformidade com a Constituição (art. 70º) e pode submetê-las a referendo (art. 73º); em caso de emergência, compete-lhe decretar as medidas necessárias ao restabelecimento da lei e da segurança, podendo, inclusive, para esse fim, suspender alguns dos direitos fundamentais (art. 48º). Em contrapartida, pode o Presidente ser destituído por voto popular, precedendo deliberação da Assembleia por maioria de dois terços (art. 43º).

Dadas as circunstâncias, com o nacionalismo exacerbado pela guerra e pelo tratado de Versalhes e com os gravíssimos problemas económicos e sociais da época,14 tanto em nível alemão como em nível mundial (crise de 1929), o sistema não funcionaria correctamente. O Reichstag depressa ficaria desacreditado e verificar-se-ia grande instabilidade ministerial; por outro lado, a prática dos "governos do Presidente", incapazes de resolver os problemas, viria a ser a porta aberta para o acesso de Hitler e do nacional-socialismo ao poder.

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III - Mas a Constituição de Weimar é sobretudo a primeira das grandes Constituições europeias a interessar-se profundamente pela questão social, em contraste com a aparente neutralidade das Constituições liberais do século passado.

Essa relevância constitucional dos problemas sociais traduz-se primacialmente em: 1º) a regulamentação de domínios até então esquecidos, como o casamento (art. 119º), a juventude (art. 120º), a educação (arts. 142º e segs.) ou a vida económica (arts. 151º e segs.); 2º) a atribuição aos cidadãos de direitos sociais; 3º) as limitações impostas ao princípio da liberdade contratual (art. 152º) e à propriedade privada (art. 153º), em virtude da função social que desempenham.

78. A Constituição de BonaI - Não bastam as fórmulas constitucionais, por melhores que sejam, para prevenir ou resolver os problemas políticos - e isto deve ser, para os juristas, suficiente convite à humildade.

Como a corrupção da Constituição de Weimar foi, a justo título, considerada uma das causas da conquista do poder pelos nacionais-socialistas, no segundo após-guerra haveria de ser mais forte a consciência das limitações dos sistemas jurídico-formais, assim como se haveria de procurar colher as lições da provação por que a Alemanha tinha acabado de passar.

Tais lições da experiência, ligadas aos imperativos do regresso da Alemanha à convivência pacífica europeia, projectam-se com vigor na Lei Fundamental de 23 de maio de 1949 ou Constituição de Bona, feita com carácter provisório para a Alemanha Ocidental.15

II - A adopção do sistema parlamentar é uma das novidades da Constituição.

O Governo, composto pelo Chanceler e por Ministros da sua escolha, passa a ser responsável perante a Assembleia Federal. É a esta que, sob proposta do Presidente da República, compete eleger o Chanceler (art. 63º); e, se lhe manifestar desconfiança, ele terá de ser substituído (art. 67º). No entanto, a censura ao Chanceler deverá ser acompanhada da indicação do seu sucessor (mesmo artigo).

O funcionamento prático do sistema é, sob vários aspectos, parecido com o do sistema inglês16 e tem sido acompanhado de grande estabilidade governamental (também facilitada por uma relativa tendência bipartidária).

Refira-se ainda, mas sem consagração na Constituição, o sistema eleitoral adoptado, de representação proporcional personalizada (dito por vezes, mas incorrectamente, sistema misto de representação proporcional e de representação maioritária em círculos uninominais).

III - A Constituição de Bona, como era de esperar depois do nacional-socialismo e da guerra, faz uma clara profissão de fé na dignidade da pessoa humana e admite, implícita ou explicitamente, que o Direito natural limita o poder do Estado.

Proclama, pois, entre outros, os seguintes princípios:

a) Os direitos do homem, invioláveis e inalienáveis, como fundamento da ordem social (art. 1º, nº 2);

b) A vinculação dos Poderes Legislativo, Executivo e Judicial pelos direitos fundamentais enunciados na Constituição (art. 1º, nº 3);

c) A necessidade de qualquer restrição de direito fundamental se efectuar por lei geral que não afecte o seu conteúdo essencial (art. 19º, nos 1 e 2);

d) A possibilidade de tutela jurisdicional em caso de ofensa de qualquer dos direitos fundamentais (art. 19º, nº 4).

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Em conexão com este empenho de tutela e reforço dos direitos fundamentais e do Estado de Direito17 e, em geral, de preservação da ordem constitucional de valores, foi instituído um Tribunal Constitucional (arts. 93º e 94º), cujo esforço construtivo tem sido relevantíssimo.18

IV - A Constituição de Bona tem tido alguma difusão no exterior. Acusam a sua influência, designadamente, a Constituição cipriota de 1960 (quanto ao Tribunal Constitucional), a portuguesa de 1976 (pelo menos, quanto ao regime dos direitos, liberdades e garantias) e, como dissemos, a espanhola de 1978 (também quanto às relações entre Governo e Parlamento, designadamente quanto à moção de censura construtiva).19

V - Após a queda do muro de Berlim desenrolou-se um surpreendemente rápido processo de unificação da Alemanha (em menos de um ano), mediante tratados entre os dois Estados alemães - a República Federal (Alemanha Ocidental) e a República Democrática (Alemanha Oriental) - e entre eles e as quatro potências ex-ocupantes - os Estados Unidos, a França, a Grã-Bretanha e a União Soviética.

Não se constituiu um novo Estado. Deu-se, sim, a extensão da República Federal aos cinco Länder correspondentes à República Democrática, nos termos do art. 23º da sua Constituição (e não do art. 146º, que implicaria uma assembleia constituinte).

A Constituição de Bona, porque provisória, deveria cessar com a unificação. Mas foi modificada - inclusive no preâmbulo - de modo a subsistir como definitiva. E, por isso, houve então o exercício de um poder constituinte (originário): no tocante à Alemanha Ocidental, porque a Constituição aí adquiriu um novo sentido de vigência; e, no tocante à antiga Alemanha Oriental, porque veio substituir o sistema constitucional do regime marxista-leninista. Embora sob a forma de revisão, verdadeiramente acabou por se verificar transição constitucional.20

79. Características comuns às três Constituições alemãsTodas as três Constituições alemãs mencionadas estabelecem um Estado federal. Para além das diferenças que não cabe examinar, há um ponto de semelhança: não se trata de um federalismo perfeito de tipo americano ou suíço, mas de um federalismo imperfeito, de que uma das manifestações é a representação inigualitária dos Estados (dos Länder) no Parlamento federal; essa desigualdade era sobretudo acentuada antes do desaparecimento da Prússia, Estado dominante da Federação (tal como a Rússia na União Soviética).

Em segundo lugar, o Direito constitucional alemão, da monarquia à república de Bona, passando pela república de Weimar, prevê um Executivo bicéfalo, com Chefe do Estado e Chefe de Governo ou Chanceler. E o Chanceler, como detentor efectivo da autoridade governamental, tem poderes substanciais, embora variáveis: não são os mesmos hoje21 e no tempo de Bismark.

Estas características comuns às três Constituições bem como a origem histórica, a elaboração doutrinária levada a cabo pelos juristas e as relações entre Direito constitucional e Direito administrativo em termos diversos das que ocorrem em França permitem autonomizar com nitidez o sistema constitucional alemão relativamente a outros sistemas da Europa continental.

80. O Direito constitucional austríacoI - O Direito constitucional austríaco tem participado de muitas das vicissitudes e de muitas das características do Direito constitucional alemão.

De 1867 a 1918 a Áustria e a Hungria formaram uma união real, no interior da qual a Áustria compreendia regiões com autonomia particular. Caído o Império, reduzida a Áustria ao território de língua alemã, ela viveu em crise permanente, passando pela república corporativa de Dolfuss até à anexação por Hitler em 1938 (Anschluss). De 1945 a 1955 o país sofreu ainda a ocupação das

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quatro potências vencedoras da guerra, e neste último ano foi declarada a neutralização.

Com a proclamação da república, foi aprovada a Constituição de 1920, em cuja preparação interveio Hans Kelsen. Revista em 1929, seria reposta em vigor em 1945.22

II - A Constituição institui um Estado federal, se bem que os 9 Länder talvez não sejam mais do que regiões autónomas.23

Estabelece também um sistema de governo que poderia ser semipresidencial, por o Presidente da República ser eleito por sufrágio directo, nomear o Governo e poder dissolver o Parlamento; mas na prática o sistema tem funcionado como parlamentar, dada a apresentação de candidaturas à presidência pelos partidos, o bipartidarismo e o ter sempre (ou quase sempre) o Chanceler a maioria nas Câmaras.24

III - A grande contribuição original da Áustria para o Direito constitucional é, contudo, a criação em 1920 do Tribunal Constitucional, como tribunal supremo de competência concentrada e especializada no domínio da inconstitucionalidade;25 e, por isso, onde existe esse tribunal fala-se em modelo austríaco de fiscalização da constitucionalidade.

§ 3º Os Sistemas Constitucionais Dos Regimes Fascistas E Fascizantes

81. Os fascismos e o seu quadro institucionalI - Apesar da sua viva contestação do Estado constitucional (dito de "democracia burguesa", mesmo na fase social do século XX, em contraposição à "democracia socialista"), o Estado soviético em concreto surge, não em ruptura com este (em nenhum país de democracia representativa ou pluralista houve revolução comunista triunfante), mas em ruptura com regimes doutro tipo (seja monarquia absoluta ou tradicional, seja ditadura de direita). Em ruptura com o Estado constitucional liberal surge, ao invés, o Estado fascista.

Como se sabe, este tem a sua primeira e quiçá mais característica manifestação na Itália entre 1922 e 1943, com a tomada do poder pelo partido fascista (organizado na base dos "fáscios" de combate)26 e a locução Estado fascista aplica-se, depois, a outros regimes. Não há, entretanto, um fascismo, antes diferentes fascismos - o italiano não se confunde com o nacional-socialismo alemão - e alguns elementos abrangem quer regimes europeus dos anos 20 e 30 quer regimes doutros continentes dessa época e de décadas posteriores.

II - Podem ser apontadas como características comuns aos fascismos mussoliniano e hitleriano as seguintes:

a) Como inspiração filosófica, Hegel e Nietzsche;

b) Como índole geral, o sentido romântico, muito concreto e avesso ao racionalismo, a admissão e a exaltação da força, a ordem como um valor em si, o transpersonalismo, o culto do chefe (levando ao Führerprinzip);

c) Como manifestações políticas, o governo da minoria (justificado pelo carácter ou pela pureza racial), a ditadura ideológica e o partido de massas elevado a partido único - o que aproxima bastante os sistemas políticos fascistas dos sistemas políticos marxistas-leninistas.27

III - Os regimes italiano e alemão, revolucionários, totalitários e belicistas, tiveram um impacto enorme em toda a Europa dos anos 30, a debater-se com a fraqueza do Estado constitucional democrático frente à crise económica e aos receios do comunismo. Um pouco por toda a parte difundiram-se ideias e fórmulas semelhantes, embora importe distinguir, com cuidado, o que releva

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de concepções fascistas em sentido próprio do que releva de concepções conservadoras e o que se traduz em regimes políticos totalitários do que não passa de ditaduras na linha das que se tinham conhecido no século XIX.

Em contrapartida, a derrota dos governos de Mussolini e de Hitler na Segunda Guerra Mundial não significou o desaparecimento de alguns dos regimes autoritários de direita existentes (como o salazarista em Portugal ou o franquista em Espanha), nem impediu o aparecimento de novos regimes de natureza e estrutura afins quer na Europa (na Grécia, de 1967 a 1974), quer na Ásia (por exemplo, na Indonésia, desde 1965), quer na América, aqui em variedade maior (desde o populismo peronista na Argentina, entre 1945 e 1955, ao fascismo de origem militar no Chile entre 1973 e 1990).

Se se quiser integrar na mesma categoria tanto os regimes fascista italiano e nacional-socialista alemão como os demais regimes totalitários e autoritários de direita da Europa dos anos 30 como ainda numerosos regimes ditatoriais da América Latina e doutros continentes no pós-guerra, ressaltará pois a sua grande heterogeneidade - em contraposição à homogeneidade dos regimes marxistas-leninistas. É mais pela negação - antiliberalismo e anticomunismo - do que pela afirmação - nacionalismo, concentração de poder, enquadramento da economia - que eles globalmente se podem recortar.28

82. O sistema constitucional do fascismo italianoI - O fascismo italiano ligou a sua visão totalitária muito mais a um cesarismo assente no culto do Estado ("Tudo pelo Estado, nada contra o Estado") do que a uma ideologia determinada e precisa.

"A Nação Italiana é um organismo com fins, vida e meios de acção superiores, pelo poder e pela duração, aos dos indivíduos, isolados ou associados, que a constituem. É uma unidade moral, política e económica que se realiza integralmente no Estado Fascista" (art. 1º da Carta del Lavoro, de 21 de abril de 1927).

II - Bastante pragmático, não criou uma organização de poder ex novo; inseriu-se, simplesmente, na monarquia constitucional, retirando-lhe a efectividade.

O sistema constitucional da Itália entre 1922 e 1943 apresenta, deste modo, uma face dupla:

a) Por um lado, um Rei, um Parlamento e um Governo nos moldes da Constituição (o já atrás referido Estatuto Albertino);

b) Por outro lado, 22 Corporações, a Câmara dos Fáscios e das Corporações (que em 1939 substituiu a Câmara dos Deputados) e o Grande Conselho do Fascismo (encabeçado no Chefe do Governo, o verdadeiro detentor do poder).29

83. O nacional-socialismo alemãoI - Muito mais radical, violento e efémero foi o nacional-socialismo alemão (1933-1945), por causa das circunstâncias do país, da estrutura do partido e da sua concepção racista.

Aí, o povo estava reduzido à comunidade étnica; o homem aparecia desprovido de direitos subjectivos, não existia senão como membro dessa comunidade (que perante ele não tinha qualquer obrigação jurídica); e o Direito objectivo ficava exclusivamente ao serviço dos interesses do povo alemão.

II - Num fenómeno de personalização, ao arrepio de toda a história de institucionalização do poder político, o nacional-socialismo dissolveu mesmo o Estado no partido e no Führer.

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Aproveitando a delegação de poderes que recebeu do Reichstag em 1933, Hitler fundiu no cargo de Führer as funções que pelo texto de Weimar pertenciam ao Presidente e ao Chanceler, transformou a Alemanha em Estado unitário e assumiu o supremo poder de direcção e todos os poderes - Legislativos, Executivos e até Judiciais - como intérprete do espírito do Povo Alemão e seu guia.30 E o Führer não era um órgão do Estado ou um agente passageiro do exercício do poder; era o próprio poder, sem intermédio em relação à ideia do Direito.31-32

84. O sistema constitucional da Espanha franquistaI - Também a Espanha, entre 1936 e 1975, teve uma experiência particular de ditadura, de início muito próxima do fascismo, mas que dele se foi progressivamente distanciando.

Os princípios deste regime (identificado com o General Franco) eram o nacionalismo e o tradicionalismo (a Espanha como unidade de destino); uma concepção orgânica da vida social e da representação política, através da família, do município e do sindicato; o autoritarismo político, com largas restrições das liberdades individuais; o intervencionismo económico e social; e a recusa dos princípios democráticos e da separação dos poderes.

II - No plano estritamente jurídico-constitucional, o regime oferecia três características gerais:

a) Ausência de Constituição, texto único e, em vez dele, sete Leis Fundamentais do Reino, elaboradas em épocas diferentes (entre 1938 e 1967);33

b) Concepção da ordem constitucional como processo,34 ou seja, como ordem constitucional em formação;

c) Valor hierárquico superior das Leis Fundamentais, embora com compreensão mais política do que jurídica.35

III - Eram órgãos políticos os seguintes:

a) O Chefe do Estado, General Franco, como Caudilho de Espanha, e, para o futuro, um Rei ou Regente;

b) O Governo, constituído pelo Presidente do Governo (nomeado por 5 anos pelo Chefe do Estado) e pelos Ministros;

c) As Cortes, assembleia de composição complexa, constituída por Procuradores designados por nomeação, inerência e eleição, e traduzindo os Procuradores electivos um princípio de representação orgânica, nomeadamente familiar e sindical;

d) O Conselho do Reino, também de composição complexa, com importantes funções consultivas (junto do Chefe do Estado) e não consultivas;

e) O Conselho Nacional, expressão orgânica suprema do Movimento Nacional, isto é, da organização política de apoio ao regime.

Preponderava o Chefe do Estado, representante supremo da Nação e detentor do poder supremo político e administrativo, o qual exercia a Chefia Nacional do Movimento, assegurava o regular funcionamento dos altos órgãos do Estado, sancionava e promulgava as leis, exercia o comando supremo dos Exércitos e em nome do qual era administrada a justiça (art. 6º da Lei Orgânica do Estado).

IV - O interesse do regime franquista para o Direito constitucional é, por conseguinte, duplo.

Em primeiro lugar, foi o único regime autoritário de direita da Europa que criou instituições próprias, a meio caminho entre as monarquias absolutas, as monarquias constitucionais e as ditaduras fascistas.

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Em segundo lugar, e algo paradoxalmente, foi o único em que essas instituições, por obra interna, por transição constitucional, mudaram e foram substituídas por instituições democráticas pluralistas. No respeito das formas jurídicas das "Leis Fundamentais" e com o impulso do Rei João Carlos, sucessor de Franco, liberalizou-se o regime, abriu-se um processo constituinte, fizeram-se eleições e foi votada uma nova Constituição, a que já fizemos referência. E, curiosamente, desde 1978, têm sido vários os processos de transição de regimes parecidos doutros países.

§ 4º Os Sistemas Constitucionais Dos Estados Asiáticos E Africanos

85. Os problemas constitucionais dos Estados asiáticos e africanosI - É muito usual aludir-se a sistemas políticos e constitucionais do Terceiro Mundo ou dos países subdesenvolvidos. Estas designações, além de relativas e algo fluidas, podem comportar o inconveniente de um realce excessivo dos factores económicos e tecnológicos em detrimento dos factores culturais e podem obnubilar o alcance irredutível do Direito constitucional.

Há quem fale em Estados de recente independência. Por seu turno, tal denominação levaria a arredar Estados que nunca chegaram, juridicamente, a perder a independência (embora a tivessem tido diminuída ou apagada, de facto, durante mais ou menos tempo) e que apresentam problemas semelhantes aos dos Estados saídos da descolonização dos últimos quarenta anos.

Parece preferível aludir a Estados da Ásia e da África. Apesar da evidente heterogeneidade que entre eles se regista, têm de comum o contraste histórico, sociocultural e político tanto com os países da Europa, da América do Norte e da Austrália-Nova Zelândia quanto com os da América Latina: são bem diferentes as tradições e os condicionalismos socioculturais, são outras as circunstâncias da formação dos Estados e cruzam-se aí concepções fundamentais de diversas raízes.

A meio caminho situar-se-ão alguns pequenos arquipélagos das Caraíbas e do Pacífico.

II - Podem ser considerados factores determinantes da problemática constitucional da grande maioria dos Estados asiáticos e africanos os seguintes:

a) A situação específica - consoante os casos - de criação, restauração ou modernização do Estado;

b) A precariedade da unidade política (na maior parte dos casos, por ausência de nação ou por causa de fronteiras artificiais);

c) A conexão estreita entre a situação do Estado e a da sociedade e a opção por certo sistema político e económico, com a correspondente definição de directrizes constitucionais;

d) O volume das incumbências do Estado;

e) O ascendente, seja qual a forma que revista, do Poder Executivo, apesar das deficiências de Administração;

f) As dependências externas, apesar dos esforços de liberação.36

III - Nos países que conheceram a colonização e, depois, a descolonização, as suas condições concretas não poderiam deixar de marcar as primeiras formas de organização político-constitucional:

a) Nos países que readquiriram a independência política ou que, nunca a tendo formalmente perdido, lograram a sua reafirmação, e em que tinham conseguido subsistir as antigas instituições, estas voltaram a ter plena efectividade, com mais ou menos adaptações;

b) Nos novos países ou naqueles que, pela primeira vez, atingiram a independência por via gradual e pacífica, adoptaram-se quase sempre instituições moldadas nas instituições das respectivas potências ex-coloniais;

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c) Nos países que conquistaram a independência por via da insurreição ou onde eclodiram guerras civis, instauraram-se regimes nacionalistas revolucionários, de tipo soviético ou vizinho (Vietname, Laos, Iémen do Sul, Angola, Moçambique) ou compósito, conjugando elementos desse tipo com elementos locais ou com intenções de originalidade (Argélia, Tanzânia, Guiné-Bissau, Cabo Verde).

IV - Por toda a parte ocorreriam, ao fim de algum tempo, vicissitudes e transformações em sentido contrário ao Estado constitucional representativo: constantes intervenções das Forças Armadas; tendências autoritárias nos países do Sueste Asiático; criação de sistemas de partido único na quase totalidade dos países da África subsariana; derrube de algumas das monarquias tradicionais (Etiópia, Afeganistão, Irão); aparecimento do fundamentalismo islâmico.

A partir de 1989 verificar-se-ia, porém, uma inflexão, com a desagregação da U.R.S.S., o incremento das aspirações democráticas na Ásia e a falência dos regimes de partido único em toda a África, com a consequente transição para o multipartidarismo. E muito significativo viria a ser também o fim do apartheid na África do Sul e a passagem pacífica para uma democracia pluralista multiracial.37

Resta saber se esta última tendência se manterá ou se, pelo contrário, as deficiências de base política, económica e social a propagação das ideias fundamentalistas e o agravamento dos desníveis Norte-Sul não irão, a prazo, impedir, em muitos casos, a sua consolidação. Resta saber se não continuarão (tal como aconteceu, noutras circunstâncias e noutras épocas, na Europa e na América) oscilações cíclicas de instabilidade e regimes de características opostas.

V - Um quadro actual dos regimes dos países asiáticos e africanos mostra:

1) Ainda algumas monarquias tradicionais, ora como monarquias absolutas (Arábia Saudita, Omã), ora com concessões ao pluralismo (Nepal, Coveite);

2) Regimes democráticos pluralistas bem radicados (Japão, Índia, Israel) ou mais frágeis (Filipinas, Coreia do Sul, e, sobretudo, os países muçulmanos e a maior parte dos países africanos) - integrados, como sabemos, nas famílias de matriz britânica, americana e francesa ou duma ou doutra aparentados;

3) Regimes marxistas-leninistas (China, Coreia do Norte, Vietname e Laos);

4) Regimes autoritários, ainda que com alguns elementos formal ou realmente democráticos (Malásia, Singapura, Formosa);

5) Regimes militares ou de base militar, mesmo se muito diferentes entre si (Birmânia, Líbia, Síria, Iraque);

6) Regimes de fundamentalismo islâmico (Irão, Sudão).38

Vale a pena passar, em relance sumário, as características distintivas dos sistemas político-constitucionais dos países asiáticos e africanos não redutíveis às dos sistemas até agora examinados: monarquias tradicionais, regimes autoritários do Sueste Asiático e regimes islâmicos, além dos regimes nacionalistas-revolucionários não marxistas-leninistas.

86. Relance pelos sistemas político-constitucionais com características particularesI - As monarquias tradicionais caracterizam-se (ou caracterizaram-se) por:

a) Ausência de Constituição em sentido formal;

b) Permanência da legitimidade monárquica;

c) Domínio pleno pelo monarca de toda a vida política, com raros mecanismos de autolimitação;

d) Autoristarismo conservador;

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e) Regime jurídico de união do Estado e da confissão religiosa dominante.

Ressaltam algumas afinidades com as antigas monarquias absolutas europeias.

II - As notas mais salientes dos regimes nacionalistas revolucionários não marxistas-leninistas de África eram:

a) A adopção como ideologia oficial de um socialismo de índole não marxista (socialismo árabe ou africano);

b) O partido único, agora no sentido de movimento de libertação (ou de movimento de unificação social e política), e não no sentido de partido ideológico de classe que conquista o poder;

c) A criação de uma Administração fortemente centralizada;

d) O empenho prioritário no desenvolvimento económico, com sistema planificado.

Assim, a Constituição argelina de 1976 declarava o socialismo "a opção irreversível do país" e "a única via" capaz de efectivar a independência (art. 10º), fixava-se o objectivo de "dotar a Argélia de uma base socioeconómica liberta da exploração e do subdesenvolvimento" (art. 11º) e atribuía ao partido único - a Frente de Libertação Nacional - a tarefa de "mobilizar permanentemente o povo" (art. 97º).

III - Os regimes autoritários do Sueste Asiático abrangem regimes com instituições constitucionais semelhantes às das democracias representativas, mas com prática diversa ou inversa, e regimes de base militar. Têm de comum:

a) As restrições ou a privação de liberdades públicas e as deficiências de mecanismos jurisdicionais de limitação do poder;

b) O domínio de partido hegemónicos (por vezes, apoiados nas Forças Armadas), sem alternância;

c) O primado do crescimento económico, com capitalismo ou liberalismo radical.39

IV - Os regimes islâmicos identificam-se, como se sabe, pela união do poder político e do poder religioso, o que implica:

a) Definição da comunidade política ou povo a partir da comunidade religiosa ou comunidade de crentes;

b) Limitação das liberdades e de toda a vida social pelos preceitos islâmicos;

c) Dependência da validade do Direito positivo, inclusive da Constituição, da sua conformidade com os preceitos islâmicos;

d) Juramento religioso dos titulares dos cargos políticos;

e) Papel eminente dos teólogos islâmicos.40

A experiência mais paradigmática destes regimes é a iraniana, iniciada em 1979, e, algo curiosamente, consagrada numa Constituição escrita, de 1986 (com 176 artigos), em que se tenta combinar teocracia e democracia.

"A República Islâmica é um sistema baseado na fé" (art. 2º). "Todas as leis e todos os decretos civis, penais, financeiros, administrativos, culturais, militares, políticos e relativos a recursos naturais devem basear-se em princípios islâmicos" (art. 4º). "Com o fim de assegurar que as deliberações da Assembleia não ignorem os preceitos islâmicos e os princípios da Constituição é instituído um Conselho de Vigilância da Constituição" composto por juristas muçulmanos (art. 91º), etc.

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CAPÍTULO IV - Os Sistemas Constitucionais De Portugal, Do Brasil E Dos Outros Países De Língua Portuguesa§ 1º O Sistema Constitucional Português

87. O constitucionalismo portuguêsI - O constitucionalismo moderno iniciou-se em Portugal com a revolução de 1820 e a sua história - semelhante, em alguns aspectos, à da Espanha e à da Itália - compreende três grandes períodos: o liberal, o autoritário e o democrático.1

A época liberal vai de 1820 a 1926. Durante ela sucedem-se quatro Constituições - de 1822, de 1826, de 1838 e de 1911, que se repartem por diferentes vigências; há duas efémeras restaurações do antigo regime; e passa-se da monarquia à república. E, à distância, as principais diferenças entre essas Constituições (relativas aos poderes recíprocos do Rei ou Presidente e do Parlamento e à forma de eleição deste) parecem bem menores do que aquilo que as une (a separação de poderes e os direitos individuais).

Vem a seguir, entre 1926 e 1974, a quase obnubilição do Estado constitucional, representativo e de Direito ou, doutro prisma, a pretensão de se erguer um constitucionalismo diferente, um "Estado Novo", um constitucionalismo corporativo e autoritário. Eis o período da Constituição de 1933 (apesar de tudo, uma Constituição, ao contrário do que se passou em Itália, Alemanha e Espanha) cujo despontar não surpreende no paralelo com a situação europeia dos anos 20 e 30, mas cuja longa duração não se afigura facilmente explicável.

Com a revolução de 1974, entra-se na época actual - muito recente e já muito rica de acontecimentos, ideologias e contrastes sociais e políticos - em que o país se encaminha para um regime democrático pluralista (ou de liberalismo político) com tendências descentralizadoras, por um lado, e socializantes numa primeira fase, por outro lado. A Constituição de 1976, resultante dessa revolução, significa, em primeiro lugar, o termo daquele interregno e, depois, a abertura para horizontes e aspirações de Estado social e de Estado de Direito democrático. E só nesta altura pode falar-se em constitucionalismo democrático, porque só agora está consignado o sufrágio universal.

II - Se cinco em seis das Constituições portuguesas brotam em linha recta de revoluções, o modo como são elaboradas revela assinaláveis diferenças. Três são elaboradas e decretadas por assembleias constituintes - as de 1822, 1911 e 1976. Uma é elaborada e aprovada por assembleia constituinte e submetida a sanção real - a de 1838. Outra - a de 1933 - é elaborada pelo Governo e objecto de plebiscito. E a Constituição de origem não revolucionária - a de 1826 - é escrita e outorgada pelo rei.

Por outro lado, sublinham-se os seguintes pontos:

a) É bastante variável a duração das Constituições - escassos sete meses a de 1822 na sua primeira vigência e dois anos na segunda; dois anos a Carta na primeira vigência, dois na segunda e sessenta e oito, embora com rupturas e modificações, na terceira (a mais longa etapa constitucional portuguesa até agora); menos de quatro anos a Constituição de 1838; quinze anos, com intervalo, a Constituição de 1911; quarenta e um anos a Constituição de 1933; vinte e cinco a Constituição actual;

b) Não há vigência contínua de todas as Constituições, há espaços em branco entre elas, mesmo se, entretanto, são publicadas leis formalmente constitucionais como sucede entre 1974 e 1976; e, se a Constituição de 1911 vai vigorar ainda parcialmente até 1933 e a de 1933 até 1976, não é senão a título derivado e secundário num fenómeno de mera recepção material;

c) Se as efémeras Constituições de 1822 e 1838 permaneceram intocadas durante os curtos tempos das suas vigências, já todas as outras Constituições vieram a sofrer revisões de maior ou menor amplitude e nem sempre no respeito das regras procedimentais estabelecidas.

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88. A Constituição de 1976I - A Constituição de 1976 é a mais complexa de todas as Constituições portuguesas e até agora a única que conseguiu ser uma Constituição normativa e não meramente nominal (na acepção de K. Loewenstein).2

Ela tem como grandes fundamentos a democracia representativa e a liberdade política. Admitiu, no entanto, por circunstancionalismos da época, a subsistência até à primeira revisão constitucional de um órgão de soberania composto por militares, o Conselho da Revolução.

É uma Constituição-garantia e uma Constituição prospectiva. Tendo em conta o regime autoritário derrubado em 1974 e o que foram os riscos de implantação de nova ditadura em 1975, é uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder. Mas, surgida em ambiente de repulsa do passado próximo e em que tudo parecia possível, procura vivificar e enriquecer o conteúdo da democracia, multiplicando as manifestações de igualdade efectiva, participação, intervenção, socialização, numa visão ampla e não sem alguns ingredientes de utopia.

Constituição pós-revolucionária, a Constituição de 1976 é também uma Constituição compromissória - tal como outras o têm sido em análogas circunstâncias, quer em Portugal (a de 1838), quer no estrangeiro (a alemã de Weimer, a italiana de 1974, etc.). E este carácter compromissório da Constituição está patente em cada uma das suas quatro partes e manteve-se, sem prejuízo das revisões que se verificaram em 1982, 1989, 1992, 1997 e 2001.

II - No tratamento dos direitos fundamentais sobressaem:

a) A prioridade dentro do sistema constitucional e o desenvolvimento da regulamentação, com princípios gerais comuns às grandes categorias de direitos previstos;

b) A extensão do elenco, com cláusula aberta ou de não tipicidade e interpretação e integração dos preceitos de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 18º);

c) A preocupação tanto de enumerar os direitos quanto de definir o seu conteúdo e fixar as suas garantias e as suas condições de efectivação;

d) A contraposição entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais, com primado dos primeiros, mas não sem conexões;

e) A fixação de um regime dos direitos, liberdades e garantias, donde resulta o carácter preceptivo, de aplicação imediata e de vinculação das respectivas normas (art. 18º);

f) A constitucionalização do Provedor de Justiça (ou Ombudsman) (art. 23º);

g) A previsão entre direitos, liberdades e garantias não só dos direitos clássicos mas também de direitos novos (como os respeitantes à informática, ao direito de antena e à objecção de consciência e de direitos institucionais a par de direitos individuais);

h) A colocação da prioridade, não já a par das liberdades, mas sim dentre os direitos económicos, sociais e culturais (art. 62º);

i) O aparecimento como direitos fundamentais de direitos dos trabalhadores e das suas organizações (arts. 53º e segs.).

III - Os constituintes pretenderam construir uma organização económica singular, conjugando o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção, um socialismo autogestionário e a iniciativa privada e de que foi norma emblemática até 1989 a irreversibilidade das

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nacionalizações efectuadas entre 1974 e 1976 (entre a revolução e a Constituição). E por certo, essa parte viria a ser mais controversa do texto contitucional, embora sempre se devesse afirmar (como afirmaria a jurisprudência constitucional) que o princípio socializante estava subordinado ao democrático.

Mas, de todo o modo, a realidade do País e de país com economia aberta e a integração na Comunidade Europeia levariam a arredar qualquer ideia de "transição para o socialismo". Subsistem, entretanto, como notas específicas a ideia de uma economia mista, o favorecimento do cooperativismo e as implicações económicas dos direitos fundamentais.

IV - O sistema do governo de 1976 foi moldado com a preocupação maior de evitar os vícios inversos do parlamentarismo de assembleia da Constituição de 1911 e da concentração de poder da Constituição de 1933, e tendo como pano de fundo a situação institucional pós-revolucionária. Daí um sistema (semipresidencial, parlamentar mitigado ou misto presidencial-parlamentar, conforme os prismas), com três órgãos políticos activos, em interdependência: Presidente da República, Assembleia da República e Governo.

O Presidente, eleito por sufrágio directo, em data diferente da de eleição parlamentar, com candidaturas de grupos de cidadãos e com exigência de maioria absoluta, preside, não governa. E presidir envolve um conjunto de poderes bem diferentes ou mais fortes do que os que teria um Presidente parlamentar, entre os quais dissolver o Parlamento só com condicionamentos temporais e procedimentais, demitir o Governo quando o exija o regular funcionamento das instituições, decidir sobre a convocação dos referendos, exercer veto político e veto por inconstitucionalidade, etc.

A Assembleia da República, unicameral e assente na representação proporcional e com candidaturas só de partidos, detém o primado de competência legislativa, poderes de orientação política e de fiscalização e poderes respeitantes a outros órgãos (electivos, autorizativos, etc.).

O Governo, órgão de condução da política geral do País, é nomeado pelo Presidente da República tendo em conta os resultados eleitorais. Responsável politicamente perante o Parlamento, não tem, contudo, de obter aí um voto favorável aquando da apreciação do seu programa: só há votação se ele apresenta uma moção de confiança ou se a Oposição apresenta uma moção de rejeição. E isso tem permitido a formação de Governos minoritários, com as vantagens e os inconvenientes que se conhecem.

V - A Constituição aponta para uma democracia descentralizada, proclamando, entre os "princípios fundamentais", o da autonomia das autarquias locais e o da descentralização democrática da administração pública e erigindo os arquipélagos dos Açores e a Madeira em regiões autónomas, dotadas de estatutos político-administrativos próprios (art. 6º). E, assim, o Estado torna-se um Estado unitário regional, ainda que na parte continental do país apenas se prevejam regiões administrativas, meras autarquias locais (e ainda não criadas em concreto).

Em cada região autónoma e em cada autarquia local há uma assembleia e um órgão executivo, mas em articulações diferentes: de puro sistema parlamentar nas regiões e de sistema directorial nos municípios.

VI - A chave do sistema de fiscalização da constitucionalidade está na distinção entre fiscalização concreta (no caso concreto, perante situações de vida) e fiscalização abstracta (independente de qualquer caso, em tese). E também na conjugação dos poderes de decisão dos tribunais em geral e de um tribunal a se, de competência especializada, o Tribunal Constitucional - o que faz do sistema português um sistema misto, diferente tanto do modelo clássico norte-americano quanto do modelo concentrado austríaco ou kelseniano.3

A fiscalização concreta é, antes de mais, difusa e incidental (art. 204º). Qualquer tribunal (na linha vinda da Constituição de 1911 e mantida, com certas alterações, na Constituição de 1933) tem o poder, a instância das partes ou do Ministério Público, ou ex officio, de apreciar a conformidade da norma aplicável ao caso a decidir. Mas cabe recurso para o Tribunal Constitucional verificados

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determinados pressupostos (art. 280º); e, se este julgar a mesma norma inconstitucional três vezes, poderá desencadear-se um processo de fiscalização abstracta (art. 281º).

A fiscalização abstracta compreende três modalidades: fiscalização preventiva e fiscalização sucessiva de inconstitucionalidade por acção e fiscalização da inconstitucionalidade por omissão. O órgão competente é o Tribunal Constitucional.

Na fiscalização sucessiva abstracta, a decisão de acolhimento do pedido ou positiva traduz-se na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, vinculativa de todas as autoridades públicas e dos particulares (não podendo o legislador reproduzir a norma sem mudança da norma constitucional em que ela se fundamentou). Os efeitos retroagem ao tempo da ocorrência da inconstitucionalidade, embora possa o Tribunal limitá-los e fiquem ressalvados os casos julgados (art. 282º).

Com se vê, o órgão central do sistema é o Tribunal Constitucional, que tem a última palavra na fiscalização concreta e a única na abstracta. À semelhança de tribunais idênticos, ele é um tribunal - adstrito a regras e a critérios próprios dos tribunais - mas com uma composição diferente da dos demais tribunais, por um princípio de legitimidade. Integram-no 13 juízes, dos quais 10 são eleitos pelo Parlamento por maioria de dois terços e 3 cooptados pelos primeiros. O mandato é (após 1997) de nove anos, não renovável para o período seguinte.

Mas o Tribunal não exerce apenas funções de controlo de constitucionalidade. Exerce também, paralelamente e em moldes idênticos, funções de controlo de legalidade frente a leis de valor reforçado e a leis gerais da República, funções de controlo de conformidade de normas internas com convenções internacionais, funções de fiscalização prévia da constitucionalidade e da legalidade de referendos, funções de contencioso eleitoral e de partidos - tudo no âmbito da jurisdicionalização do Direito constitucional.

§ 2º O Sistema Constitucional Brasileiro

89. O constitucionalismo brasileiroI - Apesar de marcada também por grande instabilidade e por graves deficiências no funcionamento de poderes do Estado, a história constitucional brasileira oferece características inconfundíveis com as dos países vizinhos de língua espanhola.4

Basta lembrar a independência adquirida praticamente sob forma pacífica e declarada pelo príncipe herdeiro da Coroa de Portugal, a adopção da monarquia constitucional e a sua subsistência durante décadas, a conservação da unidade, o menor dramatismo das rupturas políticas e o relativamente menor peso dos militares (com tendência para a institucionalização, e não para o caudilhismo).

II - Interessante é também o paralelo que pode estabelecer-se entre Constituições brasileiras e portuguesas.

A Constituição portuguesa de 1822 seria votada por uma Assembleia Constituinte com Deputados eleitos em Portugal e no Brasil (mau grado as desavenças e os mal-entendidos, que tanto contribuíram para a separação) e ela formalizaria o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (que D. João VI criara no Rio de Janeiro em 1815). Mas não chegaria a vigorar no Brasil, porque viria a ser aprovada em 23 de setembro e, entretanto, a 7 de setembro, fora proclamada a independência.5

A seguir, a Carta Constitucional de 1826 seria (literalmente) decalcada da Constituição brasileira de 1824 e feita no Brasil pelo autor desta: D. Pedro I, IV de Portugal. O seu elemento mais típico, o poder moderador (com origem em Benjamin Constant), encontra-se já no texto brasileiro. E, com vicissitudes várias, as duas Constituições vigorariam conjuntamente durante cerca de meio século -

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o que permitiria que, na época, porventura, se pudesse falar numa família ou subfamília constitucional luso-brasileira.

Se o movimento republicano brasileiro viria a exercer largo impacto em Portugal, não menor viria a ser a influência da primeira Constituição republicana brasileira, a de 1891, sobre a primeira Constituição republicana portuguesa, a de 1911, a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis.

As tendências autoritárias imperantes em Portugal de 1926 a 1974 tiveram paralelo no Brasil por duas vezes: entre 1937 e 1945 (num regime também cognominado de "Estado Novo") e de 1964 a 1985. Não admira que a nossa Constituição de 1933 tenha inspirado, na Constituição brasileira de 1937, a criação de um Conselho de Economia Nacional (idêntico à Câmara Corporativa) e a atribuição ao Presidente da República dos poderes de dissolução da Câmara dos Deputados e da feitura de decretos-leis.

Em contrapartida, ultrapassado o autoritarismo, as Constituições actuais de ambos os países - a de 1976 em Portugal e a de 1988 no Brasil - apresentam muitos traços em comum: a extensão das matérias com relevância constitucional, o cuidado posto na garantia dos direitos de liberdade, a promessa de numerosos direitos sociais, a descentralização, a abundância das normas programáticas. E a Constituição brasileira consagraria regras ou institutos indiscutivelmente provindos da portuguesa: a definição do regime como "Estado Democrático de Direito", alguns direitos fundamentais, o estímulo ao cooperativismo, o alargamento dos limites materiais da revisão constitucional, a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão:

Registe-se ainda a introdução (no Brasil desde 1969 e em Portugal desde 1971) de cláusulas constitucionais de equiparação de direitos de portugueses e brasileiros, concretizadas através da Convenção de 7 de setembro de l971, celebrada em Brasília.

90. O Império e a Constituição de 1824I - A primeira Constituição brasileira data de 1824 e nela trabalharam sucessivamente uma Assembleia Constituinte e um Conselho de Estado, tendo acabado, depois, de vários episódios, por ser outorgada pelo Imperador D. Pedro I. O Brasil independente foi, assim, desde o início, uma monarquia constitucional.6

À semelhança das demais Constituições do século XIX, assentava na separação dos poderes, com forte posição do Imperador, simultaneamente titular do poder moderador e chefe do poder executivo.7 Representantes da Nação eram o Imperador e o Parlamento, chamado Assembleia Geral.

A Assembleia Geral tinha duas Câmaras: a Câmara dos Deputados (electiva e temporária) e o Senado (composto por membros vitalícios designados pelo Imperador em listas tríplices resultantes de eleição provincial). Os projectos votados na Assembleia careciam de sanção imperial para se converterem em lei, mas a denegação de sanção era apenas suspensiva (a sanção entendia-se concedida ao fim de duas legislaturas a seguir àquela em que o projecto tivesse sido aprovado).

Em cada província, existia um conselho geral, eleito nas mesmas condições da Câmara de Deputados, e com competência para propor, discutir e deliberar sobre os assuntos provinciais (mas sendo as suas resoluções submetidas ao poder central).

Junto do Imperador funcionava um Conselho de Estado, de sua nomeação e vitalício.

O catálogo de direitos individuais era também idêntico aos das Constituições liberais. A escravatura continuava a ser, porém, directa ou indirectamente admitida.

II - Houve dois reinados: de D. Pedro I (de 1822 a 1831, ano em que abdicou) e de D. Pedro II (de

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1831 a 1889, ano da proclamação da república).8 Deram-se duas revisões da Constituição apenas: o Acto Adicional de 1834 e a Lei de Interpretação de 1840.

O Acto Adicional extinguiu o Conselho de Estado e atribuiu poderes legislativos aos conselhos gerais das províncias, doravante chamados assembleias legislativas; a Lei de Interpretação do Acto Adicional restringiu a autonomia das províncias. Teve ainda carácter constitucional a Lei de 23 de novembro de 1841, que restabeleceu o Conselho de Estado.

As instituições políticas não poderiam deixar de ser condicionadas por uma estrutura étnica e cultural em vias de consolidação e sedimentação, na qual se integrariam fortes correntes imigratórias europeias; por profundas divisões sociais; pela oposição entre o Brasil agrário, dominado pela aristocracia rural das plantações, e o Brasil urbano, concentrado no litoral e de tendência burguesa.

O regime pretendeu evoluir para um sistema parlamentar de estilo inglês, com dois partidos a alternar no poder (o liberal e o conservador). Mas foi sempre afectado pela falta de base social e política e pela constante intervenção, de tipo orleanista, do Imperador fazendo e desfazendo governos (apesar de ter sido criado em 1847 o cargo de Presidente do Conselho de Ministros).9

A grande obra do Império consistiu na conservação da unidade política a seguir à independência e em perto de setenta anos de paz, em contraste com a América espanhola. No entanto, a sua queda foi inevitável. Com um meio urbano trabalhado pela propaganda republicana (de inspiração positivista francesa e sensível à singularidade do Brasil num continente republicano), o meio rural manteve-se fiel à monarquia até que a abolição da escravatura (1888) pôs em causa o seu antigo equilíbrio e levou os senhores da terra a também deixar de apoiar o regime.

91. A repúblicaI - O exército depôs D. Pedro II em 15 de novembro de 1889 e proclamou a república, a república federativa (pois que as províncias passaram a Estados). Em 1891, um Congresso Constituinte aprovou a Constituição correspondente à nova situação.

Fundamentalmente, a Constituição de 1891 adaptou ao Brasil o sistema constitucional de modelo norte-americano, à semelhança do que já tinham feito o México e a Argentina. Foi reorganizado o poder, distribuído entre a União e os Estados federados, e substituiu-se à tendência parlamentar um princípio de governo presidencial.10

Exerciam o poder legislativo duas Câmaras: a Câmara dos Deputados, com representantes do povo eleitos por 3 anos; e o Senado, com senadores em número de três por cada Estado e pelo Distrito Federal, eleitos de 9 em 9 anos, mas renovando-se o terço trienalmente.

Exercia o poder executivo o Presidente da República, eleito por sufrágio directo de 4 em 4 anos, e não reelegível para o período imediato. Havia um Vice-Presidente e Ministros, que não respondiam perante o Congresso (como é próprio do sistema presidencialista), mas que, ao invés dos Estados Unidos, recebiam estatuto constitucional e referendavam os actos presidenciais.

Exerciam o poder judicial o Supremo Tribunal Federal e os demais tribunais. Entre outras faculdades a Constituição conferia-lhes a de apreciar a constitucionalidade das leis.

Cada Estado federado tinha a sua Constituição, as suas leis, os seus tribunais. Previa-se intervenção federal nos Estados, a qual só podia ocorrer nos casos especificados na Constituição federal. Os Estados adoptariam um sistema de governo análogo ao federal, com assembleia legislativa e governador ou presidente eleito.

Os municípios tinham a sua autonomia reforçada em tudo quanto respeitasse aos seus particulares interesses (princípio da plenitude, e não apenas da especialidade das atribuições municipais).

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No essencial, o esquema da Constituição de 1891 passaria para todas as Constituições posteriores, mais ou menos aperfeiçoado ou atenuado.11

II - O ambiente da república de 1889-1891 não era muito diverso do Império. A vida económica e social continuava a girar em torno dos interesses comerciais das cidades e dos interesses agrícolas dos grandes proprietários. A vida política esteava-se num grande partido de governo e, em nível local, nos caciques ou "coronéis", tão bem descritos na literatura da época.

Ainda haveria certa estabilidade das instituições políticas,12 no hábito vindo do império, e sucessão regular dos mandatos presidenciais, salvo algumas perturbações esporádicas.

Mas o Brasil iria passar a uma fase mais difícil e complexa da sua existência. O sentido dos problemas nacionais iria desenvolver-se, tensões sociais acumular-se, o jogo das forças políticas em nível estadual e federal tornar-se mais difícil, as crises locais tornarem-se mais facilmente crises nacionais, os espíritos ficarem mais permeáveis a ideias do exterior.

Nos anos 20, estavam lançados os dados para o superamento da situação tradicional: progressiva urbanização e industrialização, surgimento de classe operária e de sindicatos (em breve constituindo uma nova força política), crescimento demográfico sem par, impaciência da população perante as insuficiências do governo federal.

A revolução de outubro de 1930, proveniente do Rio Grande do Sul e influenciada, em parte, pelas revoluções políticas e sociais hispano-americanas e, em parte, pelas revoluções europeias do 1º pós-guerra, viria pôr fim à "República velha" e abrir um novo período na história do Brasil. Com diferentes oscilações e fases, este período pode considerar-se ainda o actual.

92. A evolução desde 1930I - O período iniciado em 1930 é assinalado por três notas gerais: 1ª) evolução com soluções de continuidade e com frequentes crises político-militares; 2ª) sucessão, quase alternância, de governos autoritários e de governos liberais e democráticos; 3ª) proliferação de Constituições (5 Constituições desde 1934 contra 2 apenas desde a independência até esse ano).

II - Sucedem-se sete grandes fases:

1ª fase (1930-1934): governo provisório;

2ª fase (1934-1937): regresso às formas constitucionais,13 com Constituição aprovada em assembleia constituinte em 1934;

3ª fase (1939-1945): ditadura de Getúlio Vargas (presidente desde 1930), que outorgou uma Constituição e estabeleceu um regime à moda da época, mas de carácter populista;14

4ª fase (1945-1961): após a Segunda Guerra Mundial (em que o Brasil participou ao lado dos Aliados), nova fase democrático-liberal e nova Constituição, a de 1946;

5ª fase (1961-1964): crise institucional aberta pela surpreendente renúncia do presidente Jânio Quadros, a quem sucedeu o vice-presidente João Goulart;

6ª fase (1964-1985): governo de base ou de características militares, resultante da revolução de 1964, e em que é feita a Constituição de 1967 (alterada em 1969);

7ª fase (desde 1985): transição para uma nova Constituição, a de 1988, e vigência desta.

III - A Constituição de 1934 consagrou a justiça eleitoral (criada em 1932); reforçou os poderes do Congresso (em especial, da Câmara dos Deputados, eleita pelo povo e pelas organizações profissionais); previu formas de intervenção do Estado na economia e direitos sociais na linha da

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Constituição mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar; introduziu o mandado de segurança, para garantia de direitos certos e incontestáveis contra actos inconstitucionais ou ilegais.15

A Constituição de 1937 reduziu a autonomia dos Estados; estabeleceu o sufrágio indirecto na eleição da Câmara dos Deputados e do Conselho Federal (nome dado ao Senado); criou o Conselho da Economia Nacional, órgão consultivo, de carácter corporativo, há pouco referido; e alargou os poderes do Presidente da República, o qual passou, entretanto, a ser eleito por 6 anos por um colégio de eleitores designados pelas câmaras municipais, pelo Conselho da Economia Nacional e pelo Parlamento.

A Constituição de 1946 retomou o rumo da de 1934, conjugando a democracia liberal e a institucionalização dos partidos com aquisições sociais (como o direito à greve e a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas). Como tentativa de resolver a crise de 1961, pôs-se em prática, durante algum tempo (pelo Acto Adicional de 1961) um sistema parlamentar,16 ou, talvez melhor, semipresidencial.17

Após a revolução de 1964, a Constituição de 1946 ficou subordinada a quatro Actos Institucionais, publicados entre esse ano e 1966 e todos dirigidos à concentração do poder no Presidente da República. Mas, a breve trecho, sentiu-se a necessidade de elaborar nova Constituição a fim de integrar tais Actos Institucionais e os seus Actos Complementares: assim surgiu a Constituição de 1967. Esta não iria durar na sua forma primitiva senão dois anos, pois, entretanto, os chefes militares publicaram novos e numerosos Actos Institucionais e Complementares e, para lhes dar forma coerente, surgiu em outubro de 1969 a emenda constitucional nº 1 (entenda-se como Constituição nova ou como Constituição de 1967 alterada).

Aspectos a salientar num e noutro texto são o sentido centralizador, o aumento dos poderes financeiros da União, o reforço do Poder Executivo, a eleição do Presidente por sufrágio indirecto (colégio composto pelos membros do Congresso e por representantes dos Estados), o cuidado posto no processo de elaboração das leis, a extensão da justiça militar, a noção de segurança nacional e a prefixação do sistema partidário.18

IV - Finalmente, do regime autoritário assim estabelecido passar-se-ia para um novo regime constitucional, através de um longo processo, dito de transição democrática, a partir da "abertura" levada a cabo pelos dois últimos Presidentes militares, da grande campanha de 1984 por eleições directas para a Presidência da República, da capacidade negociadora dos dirigentes oposicionistas e de dissidências no interior do partido situacionista. Em janeiro de 1985 seria eleito Presidente, nessas condições, ainda pelo colégio eleitoral, o candidato da Oposição.19 Logo a seguir, a emenda constitucional de 15 de maio suprimiria as normas constitucionais de excepção e retomaria a eleição presidencial directa; e a emenda de 27 de novembro atribuiria poderes constituintes ao Congresso a eleger em 15 de novembro de 1986.20-21

Não se previu uma assembleia constituinte; previu-se um Congresso simultaneamente ordinário e constituinte (e que como Congresso ordinário, tal como o Presidente da República empossado em 1985, iria perdurar até terminar o seu mandato). Esse Congresso aprovaria uma nova Constituição em 5 de outubro de 1988.

93. A Constituição de 1988I - A Constituição de 1988 22 abre com um preâmbulo (donde consta a invocação do nome de Deus) e com "princípios fundamentais".

Duas notas se salientam aqui: 1ª) o declarar-se no art. 1º ser a República formada pela "união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal" (art. 1º), o que, indo ao encontro da

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realidade, aponta para um duplo grau de organização territorial - federalismo em nível de Estados e regionalismo em nível de município; 2ª) o fundar-se o "Estado Democrático de Direito" (mesmo art. 1º) na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político.

II - Diversamente de todas as anteriores Constituições, a de 1988 ocupa-se dos direitos fundamentais com prioridade em relação as demais matérias.

Além de direitos habitualmente enumerados noutras Constituições, encontram-se no longo art. 5º: a garantia de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação colectiva; a previsão de prazo, nos termos da lei, para a prestação de informação pelos poderes públicos; a qualificação do racismo e da tortura como crimes inafiançáveis; o mandado de segurança colectivo (a impetrar por partidos políticos, organizações sindicais ou de classe ou associações legalmente constituídas); o mandado de injunção, a conceder "sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania"; a também nova figura do "habeas data" para conhecimento de informações constantes de registos ou de bancos de dados de entidades públicas e para rectificação desses dados. As normas definidoras dos direitos e garantias têm aplicação imediata (art. 5º, § 1).

Os direitos sociais abrangem tanto a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a protecção à maternidade e à infância e a assistência aos desempregados como os direitos dos trabalhadores atinentes à segurança do emprego, ao salário, à associação sindical, à greve e à participação (arts. 6º a 11). No que é, por certo, a mais grave deficiência do texto constitucional, só muito depois surge a "ordem social" (arts. 193 a 232), evidentemente indissociável dos direitos sociais, mesmo quando se traduz em garantias institucionais e incumbências do Estado. Dominam aqui as normas programáticas, muitas delas de difícil cumprimento até a longo prazo, pelo menos da mesma maneira num país tão diversificado como o Brasil (e cuja estrutura federativa deveria recomendar maior plasticidade).

Mas não pode esquecer-se que algumas das normas atinentes a direitos são bem necessárias no contexto concreto do Brasil: assim, a vedação da comercialização de órgãos, tecidos, substâncias humanas, sangue e seus derivados (art. 199, § 4); a consideração, a par da segurança social, da assistência social (art. 203); a gratuidade e a gestão democrática do ensino público (art. 206, nos 4 e 5); o acesso ao ensino obrigatório como direito público subjectivo (art. 208, § 1); a obrigação de recuperação do ambiente degradado após explorações mineiras (art. 225, § 2); a consideração da Floresta Amazónica como património nacional (art. 225, § 4); a recondução do planeamento familiar a livre decisão do casal (art. 226, § 7); o apoio à adopção (art. 227, nº 5); o reconhecimento da organização social e cultural e a protecção das terras dos índios (arts. 231 e 232). E ainda: o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e a coexistência de instituições públicas e privadas do ensino (art. 206, nº 3); a possibilidade de os recursos públicos serem dirigidos a escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, sem fins lucrativos (art. 213); a consideração do ensino religioso facultativo como disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental (art. 210, § 1); a proibição de qualquer censura política, ideológica e artística (art. 220, § 1); a criação de um Conselho de Comunicação Social (art. 224).

Inserem-se também no terreno dos direitos fundamentais a garantia institucional da advocacia (art. 113); a criação de Defensoria Pública ao serviço dos necessitados (art. 134); e as limitações ao poder de tributar, designadamente a não retroactividade das leis criadoras de tributos (art. 150).

No capítulo dos direitos políticos, sobressaem a previsão de plebiscito, referendo e iniciativa popular, o abaixamento da capacidade eleitoral activa para 16 anos (embora só a partir dos 18 anos seja o voto obrigatório e se verifique imputabilidade penal) e a proibição de cassação. E, no capítulo anexo dos partidos políticos, o princípio da livre criação, a proibição de financiamento por entidades estrangeiras, a prestação de contas à justiça eleitoral, a exigência de normas de fidelidade e disciplina partidária, o direito a recursos do fundo partidário e o acesso gratuito à rádio e à televisão. A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após a sua promulgação

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(art. 16).

III - A Constituição económica apresenta-se moderadamente nacionalista, com compromisso entre tendências liberais e estatizantes, e nem sempre em sintonia com as incumbências assumidas pelo Estado na ordem social.23

Prevê-se tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (art. 170). É assegurado o livre exercício de qualquer actividade económica, independentemente de autorização, salvo nos casos previstos na lei; ressalvados os casos previstos na Constituição a exploração directa de actividade pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse colectivo (art. 173); e as empresas públicas sujeitam-se ao regime das empresas privadas (art. 173, § 1). Todavia, o Estado exercerá funções de fiscalização, incentivo e planejamento (determinante para o sector público e indicativo para o sector privado) e a lei reprime o abuso do poder económico (arts. 174 e 173, § 4). São apoiadas e estimuladas as cooperativas e outras formas de associativismo (art. 174, § 2).

As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indemnização em dinheiro (art. 182, § 2); as de imóveis rurais, para fins de reforma agrária, mediante prévia e justa indemnização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, mas as benfeitorias úteis e necessárias sê-lo-ão em dinheiro (art. 184). Serão, porém, insusceptíveis de desapropriação a pequena e média propriedade rural, desde que o seu proprietário não possua outra, e a propriedade produtiva (art. 185).

IV - A organização do poder político federal mantém-se fiel à divisão clássica dos três poderes e ao sistema presidencial, este algo controlado ou fiscalizado.

No Congresso, bicameral, a Câmara dos Deputados é eleita por 4 anos, por representação proporcional em cada Estado e no Distrito Federal; e o Senado por representação maioritária, elegendo cada Estado e o Distrito Federal 3 Senadores, com mandato de 8 anos. O Congresso pode suster os actos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentário ou dos limites de delegação legislativa (art. 49, nº 5) e compete-lhe autorizar referendos e convocar plebiscitos (art. 49, nº 15).24

O Presidente da República é eleito por sistema de dois turnos ou duas voltas (como em França e em Portugal), por 4 anos. A eleição do Presidente importa a do Vice-Presidente com ele registado. O Presidente é auxiliado pelos Ministros de Estado, que referendam os seus actos e decretos e em quem ele pode delegar algumas das suas atribuições de carácter administrativo. O Congresso, que passa a eleger 2/3 dos membros do Tribunal de Contas da União, pode convocar os Ministros para informações, sob pena de responsabilidade (art. 50).

O poder judiciário compreende o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, os Tribunais e Juízes de Trabalho, Eleitorais e Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados, do Distrito Federal e dos territórios (art. 92).

V - Ao Supremo Tribunal Federal, composto por 11 Ministros nomeados pelo Presidente da República depois de aprovada a escolha pelo Senado (art. 101), compete julgar originariamente a acção directa de inconstitucionalidade de lei ou acto normativo federal ou estadual e o mandado de injunção, quando a norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso, de um dos Tribunais Superiores ou do próprio Supremo Tribunal Federal; julgar, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal ou julgar válida lei ou acto de governo local contestado em face da Constituição; e exercer a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão (arts. 102 e 103).

VI - Na Constituinte havia uma larga corrente parlamentarista. Manteve-se o sistema presidencial; mas, à luz duma fórmula conciliatória, o Acto das Disposições Constitucionais Transitórias determinou a realização, em 7 de setembro de 1993, dum plebiscito para se decidir o problema, e

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também para se escolher entre república e monarquia (art. 2º).

Os resultados do plebiscito25 viriam a ser favoráveis tanto ao presidencialismo como à república e a Constituição deixou, assim, de ser provisória no referente a estes dois aspectos - aliás, fundamentais - a partir de então.

VII - O Acto das Disposições Transitórias estabeleceu igualmente que a revisão constitucional se efectuaria após cinco anos contados de promulgação da Constituição, pelo voto de maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional em sessão unicameral (art. 3º). Era um regime distinto das emendas (art. 60), não sem parecença com o regime da primeira revisão da Constituição portuguesa de 1976 e, como este destinado (parece) a uma adaptação mais facilitada das normas constitucionais depois de um primeiro período de experiência.26

Esta revisão frustrar-se-ia. Contudo, desde 1994 têm sido aprovadas sucessivas alterações avulsas, sobretudo no domínio da organização económica.

O debate constitucional prossegue, pois, no Brasil.

§ 3º Os Sistemas Constitucionais Dos Países Africanos De Língua Portuguesa

94. As primeiras ConstituiçõesI - O acesso à independência dos cinco países africanos de língua portuguesa não se fez ao mesmo tempo e nos mesmos termos em que decorreu o acesso à independência dos demais países da África. Naturalmente tal como por toda a parte, esse tempo e esse modo haviam de determinar os seus sistemas políticos e constitucionais originários.

Com efeito, depois de ter sido longamente retardado por causa do regime político em Portugal, deu-se a ritmo acelerado, logo que este regime foi substituído, e em cerca de 15 meses. Os "movimentos de libertação" que tinham conduzido a luta (política-militar ou só política) receberam o poder, praticamente sem transição gradual, por meio de acordos então celebrados com o Estado Português.27 Nuns casos (Guiné, Moçambique e Angola) os próprios movimentos viriam a proclamar a independência e a outorgar Constituições; noutros casos (Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe), ela seria declarada formalmente por assembleias eleitas, mas todas dominadas pelos respectivos movimentos, transformados também logo em partidos únicos.28

II - As primeiras Constituições29 foram: a de 1973 30 (depois substituída pela de 1984), quanto à Guiné-Bissau; as de 1975, quanto a de Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Angola; e a provisória, de 1975 (depois substituída pela de 1980), quanto a Cabo Verde.31

E tiveram de comum:

a) Concepção monista do poder e institucionalização de partido único (correspondente ao movimento de libertação do país, ou, relativamente a Angola, ao movimento vencedor na capital);

b) Abundância de fórmulas ideológico-proclamatórias e de apelo às massas populares;

c) Empenhamento na construção do Estado - de um Estado director de toda a sociedade;

d) Compressão acentuada das liberdades públicas, em moldes autoritários e até, em alguns casos, totalitários;

e) Organização económica do tipo colectivizante;

f) Recusa da separação de poderes em nível da organização política e primado formal da assembleia popular nacional.

Em Cabo Verde e na Guiné-Bissau, os regimes eram definidos como de "democracia nacional

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revolucionários" (art. 3º em cada uma das Constituições, respectivamente de 1980 e 1984), sendo o Partido Africano de Independência de Cabo Verde ou da Guiné e Cabo Verde a força política dirigente da sociedade e de Estado (art. 4º).

Moçambique era um Estado de democracia popular, pertencendo o poder aos operários e camponeses unidos e dirigidos pela FRELIMO (art. 2º da sua Constituição).

Em Angola, o MPLA-Partido do Trabalho constituía "a vanguarda organizada da classe operária" e cabia-lhe "como partido marxista-leninista, a direcção política, económica e social do Estado nos esforços para a construção da sociedade socialista" (art. 2º da Constituição).

Em S. Tomé e Príncipe, era o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, como vanguarda revolucionária, a força política dirigente da Nação, cabendo-lhe determinar a orientação política do Estado (art. 3º da respectiva Constituição).

III - O poder fora conquistado por movimentos de libertação vindos de duras lutas, que exigiam um comando centralizado e, por vezes, personalizado. Por outro lado, a despeito da diferença de condições, na África dos anos 70 e 80 também era o modelo de partido único que prevalecia por toda a parte. Finalmente, Portugal não deixara nos seus antigos territórios nem instituições, nem tradições democráticas, liberais e pluralistas - até porque desde 1926 tão pouco houvera instituições dessa natureza entre nós e foi só a seguir a 1974 (já depois de consumada a separação) que em Portugal se ergueu, de novo e com mais aprofundamento, o Estado de Direito.

Tudo isto poderá explicar o carácter não democrático e o afastamento dos modelos ocidentais nos cinco países de língua oficial portuguesa.

95. As transições constitucionais democráticasI - A partir da segunda metade dos anos 80, os regimes instaurados começaram a revelar nítidos sinais de esvaziamento, de incapacidade para resolver os problemas, de falta de consenso ou de legitimidade - sobretudo em Angola e Moçambique com dramáticas guerras civis alimentadas do exterior.

De 1990 para cá abrir-se-iam em todos os cinco países, embora em termos e com resultados diversos, processos constituintes em resposta a essa situação:

- Em Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau, processos de transição verdadeira e própria, por iniciativa dos próprios regimes no poder - processo de revisão constitucional no primeiro e no terceiro casos e culminando na aprovação de uma nova Constituição formal no segundo;

- Em Moçambique e Angola, processos de transição ligados aos processos de paz e conduzindo também a novas Constituições.

Em todos os países viriam a efectuar-se eleições gerais, inclusive com vitória da Oposição em Cabo Verde e em S. Tomé e Príncipe; a seguir, em Cabo Verde far-se-ia uma nova Constituição. Mas, como é sabido em Angola não se conseguiu até agora ultrapassar as sequelas da guerra.

II - As novas Constituições datam de 1990, quanto a S. Tomé e Príncipe e Moçambique, e de 1992, quanto a Cabo Verde e Angola. A Guiné-Bissau não fez ainda uma nova Constituição, mas apenas sucessivas revisões.32

E, tal como nas Leis Fundamentais da primeira era constitucional, não custa reconhecer fortes pontos de semelhança:

a) O reforço dos direitos e liberdades fundamentais, com enumerações largas e relativamente precisas, regras gerais sobre a sua garantia e proibição da pena de morte (como já acontecia em Cabo Verde);

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b) A previsão de mecanismos de economia de mercado, bem como do pluralismo de sectores de propriedade, e, em geral, a desideologização da Constituição económica;

c) A inserção de regras básicas de democracia representativa; e o reconhecimento do papel dos partidos políticos;

d) A superação do princípio da unidade do poder e uma distribuição mais clara das competências;

e) Sistemas de governo com três órgãos políticos significativos - Presidente, Assembleia e Governo - com acentuação parlamentarizante em Cabo Verde, presidencialista em Moçambique, Angola e Guiné-Bissau e semipresidencial em S. Tomé e Príncipe;

f) Um primeiro passo no sentido da criação de autarquias locais;

g) A preocupação com a garantia da constitucionalidade e da legalidade (com a instauração, a prazo, em Moçambique de um Conselho Constitucional e em Angola de um Tribunal Constitucional).

Em muitas das fórmulas e das soluções divisam-se directas influências da Constituição portuguesa de 1976.33

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PARTE II - ESTRUTURA DO ESTADO

CAPÍTULO I - A Problemática Do Estado Em Geral

96. SequênciaI - Embora não falte nas últimas décadas quem ponha em causa o interesse do conceito de Estado - seja em nome de concepções teóricas gerais, seja por pretender que este atravessa uma crise e quase se reduz a simples nome1 - não vemos como prescindir dele, para efeito de análise e de tratamento de situações jurídico-positivas.

Mas, na postura que preferimos, o Estado é um fenómeno historicamente situado; não equivale ao político, é tão-só uma manifestação do político que ocorre em certas circunstâncias e se reveste de certas características; ligado a eventos bem conhecidos, assume diversas configurações consoante os condicionalismos a que se encontra sujeito; podendo emergir em qualquer época, lugar ou civilização, reporta-se, sobretudo - para o que aqui importa - ao Estado de matriz europeia dos últimos quinhentos anos.

Por outro lado, é questão extremamente complexa e controversa saber qual a natureza ou essência do Estado, saber qual a realidade a que correspondem todos os aspectos mencionados (e, aí, evidentemente, Estado e político não se distinguem). Cabe também referi-la; e - porque se afigura ser questão prévia, pelo menos do modo como levar a cabo aquele exame descritivo - justifica-se, mesmo, começar por ela.

II - Mais para efeitos didácticos do que científicos, grande número de autores reconduz o tratamento do Estado aos dos seus três "elementos": povo, território e poder político. É tese a que não aderimos; quando muito, aceitamos falar em "condições de existência". Não obstante, iremos - pelo peso da tradição e por maior facilidade de exposição - dedicar os próximos capítulos ao Estado como comunidade política (ou povo), à cidadania como qualidade de membro do Estado, ao Estado como poder e ao território do Estado; só depois versaremos as formas de Estado.

97. As grandes correntes doutrinais acerca da natureza ou essência do EstadoNão menos do que às ciências juspublicísticas diz respeito à filosofia o problema da natureza, da essência, do ser do Estado; e o debate sobre este ponto anda, desde há muito, bem próximo do debate acerca da formação ou da justificação do poder (ou acerca da legitimidade do poder e dos governantes).

As grandes correntes que se deparam na doutrina - jurídica, filosófica e politológica - podem sumariar-se a partir das seguintes contraposições:

a) Entre correntes idealistas (o Estado encalado como ideia ou finalidade) e realistas (o Estado como ser de existência temporal e sensível);

b) Entre correntes objectivistas (o Estado considerado como realidade exterior aos homens) e subjectivistas (o Estado tomado como realidade predominantemente subjectiva ou até como expressão fundamentalmente psicológica de relações humanas);

c) Entre correntes atomistas ou nominalistas (o Estado, mero conjunto de indivíduos, nome sem realidade substancial) e organicistas ou realistas2 (o Estado, irredutível aos indivíduos, susceptível

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de ser tomado como uma entidade específica ou com vontade própria);

d) Entre correntes contratualistas (o Estado como produto da vontade, como associação) e institucionalistas (o Estado como sentido, relação, ordem objectiva ou objectivada, como instituição);

e) Entre correntes monistas (o Estado como centro ou titular do poder político) e dualistas (o Estado como objecto do poder ou instrumento ao serviço dos verdadeiros detentores do poder);

f) Entre correntes normativistas (o Estado, realidade normativa ou, numa visão radical, identificado com o sistema ou a unidade de normas) e não normativistas (o Estado, não redutível a normas jurídicas ou, numa visão radical, somente realidade sociológica à margem das normas jurídicas).

A importância teórica de algumas das doutrinas e a projecção que alcançaram na própria história do Estado moderno exigem que se lhes faça referência em particular, ainda que curta. Trata-se das concepções contratualistas, das organicistas, da hegeliana, da marxista, da de Jellinek, da escola realista francesa e da de Kelsen.

Também o interesse que merece a elaboração de autores como Schmitt, Smend, Heller, Santi Romano, Burdeau, Cabral de Moncada, Julien Freund, Talcott Parsons e Gomes Canotilho justifica que as registremos com a devida atenção.3

A despeito de se situarem nos estritos terrenos da Sociologia e da Ciência Política, não devem ser esquecidas ainda outras correntes, como as funcionalistas e as sistémicas, que, de resto, não lidam como o conceito do Estado.4

98. As concepções mais significativasI - As concepções contratualistas têm raízes no pensamento político medieval - que só a partir do contrato apreendia a organização policêntrica da sociedade e, que, quando afirmava a origem popular do poder, recorria aos conceitos de pactum unionis e de pactum subjectionis.5 Todavia desenvolveram-se sobretudo nos séculos XVII e XVIII e os seus mais significativos representantes vieram a ser Hobbes e Rousseau, além de Altúsio, Suarez, Grócio, Locke, Puffendorf, Kant e tantos mais.

Não se visa com estes escritores, sublinhe-se, um contrato que se tenha verificado de facto, mas um princípio lógico de explicação do Estado ou um fundamento ético em que este deva assentar.6

Em Hobbes, pelo contrato social transfere-se o direito natural absoluto que cada um possui sobre todas as coisas a um príncipe ou a uma assembleia e, assim, constituem-se, ao mesmo tempo o Estado e a sujeição a esse príncipe ou a essa assembleia.

O único modo de erigir um poder comum, capaz de defender os homens e de lhes assegurar os frutos da terra, consiste em conferir todo o seu poder e força a um homem ou a uma assembleia que reduzirá à unidade a pluralidade de vontades. Através de um só e mesmo acto os homens formam a comunidade e submetem-se a um soberano.7

Rousseau, diversamente, vê no pacto social a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade, de sorte que cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém, a condição é igual para todos e cada um ganha o equivalente daquilo que perde e mais força para conservar aquilo que tem.

O acto de associação produz um corpo moral e colectivo, que dele recebe a sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade, e se chama Estado quando passivo, soberano quando activo e potência quando comparado aos demais. Esse acto encerra um compromisso recíproco do público e dos particulares: contratando, por assim dizer, consigo próprio, cada indivíduo fica vinculado, numa dupla qualidade - como membro do soberano para com os particulares e como membro do Estado

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para com o soberano.8

Segundo Kant, apenas no contrato originário se pode fundar entre os homens uma constituição civil, por conseguinte inteiramente legítima, e também uma comunidade.

Mas este contrato (chamado contractus originarius ou pactum socialis) enquanto coligação de todas as vontades particulares e privadas num povo numa vontade geral e pública (em vista de uma legislação simplesmente jurídica) não se deve, de modo algum, pressupor necessariamente como um facto (e nem sequer é possível pressupô-lo). E uma simples ideia da razão, a qual tem, no entanto, a sua realidade (prática) indubitável: obriga todo o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo inteiro, e a considerar todo o súbdito, enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade.9

II - As várias correntes organicistas oscilam entre a consideração do Estado como unidade espiritual e a equiparação a um organismo natural ou biológico.

A primeira tendência (Gierke, designadamente) arranca da escola histórica alemã e do romantismo, para os quais Direito e Estado não são senão expressões do espírito de um povo. O Estado é um princípio vital, uma totalidade, uma integração ou união de vontades.

Descrever o Estado como um organismo significa representá-lo simbolicamente como um corpo vivo, que se desenvolve segundo uma ideia própria.10

A outra tendência (Spencer, designadamente) liga-se ao positivismo e ao cientismo, tão característicos de certo pensamento oitocentista, e procura, alargar ao domínio do político e do jurídico os esquemas dos cientistas da natureza. O Estado é um ser vivo, sujeito a leis paralelas às dos restantes seres vivos.

O Estado desenvolve-se perfeitamente como os seres vivos. Segundo o meio em que se encontra assim evoluciona dum ou doutro modo, tornando-se predominante este ou aquele aparelho. Se as suas condições de existência se modificam, adapta-se, directa ou indirectamente, às novas condições, experimentando metamorfoses, adquirindo novos órgãos e desenvolvendo novas formas, Os Estados estão sujeitos à morte, porque a maior parte daqueles de que fala a história extinguiram-se. Os Estados podem escapar à destruição total pela reprodução como os organismos, dando origem a outras sociedades que continuam a suas tradições, a sua civilização, as suas ideias e as suas crenças.11

III - Para Hegel, o Estado é a realidade em acto da ideia moral objectiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe.

Como realidade em acto da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel; nele a liberdade obtém o seu valor supremo e, assim, este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever. E se o Estado é o espírito objectivo, então só como seu membro é que o indivíduo tem objectividade, verdade e moralidade.12

IV - Na concepção marxista, o Estado surge sem substância própria perante a economia, consequência da sociedade de classes e máquina de domínio de uma classe sobre as outras.

O Estado é um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irredutível contradição consigo mesma e está dividida por antagonismos irreconciliáveis. Para que esses antagonismos, essas classes com interesses económicos colidentes, não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder colocado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem": esse poder é o Estado.13

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O Estado é o resumo, o ponto de condensação das contradições da sociedade; e daí que o político em geral se aproxime do estadual. Por outras palavra: o estado político exprime, nos limites da sua forma, todos os combates, necessidades ou interesses sociais. E a Constituição Política de um Estado condensará ou procurará, em nível jurídico, os processos intencionalmente políticos que se desenvolvem no seio de uma sociedade não homogénea, antes dominada por clivagens ideológicas, derivadas de antagonismo político-sociais e económicos.14

V - A importância da contribuição de Jellinek reside na dupla perspectiva ou concepção - social e jurídica - do Estado que propõe e na integração dos três elementos - povo, território e poder político - que recorta. Não se trata, porém, propriamente de uma análise da essência do Estado.

O Estado é a unidade de associação dotada originariamente de poder de domínio e formada por homens assentes num território (concepção social); e é a corporação formada por um povo, dotada de um poder de comando originário e assente num determinado território (concepção jurídica).15

VI - Para a escola "realista" francesa, o Estado apresenta-se como um puro facto: o facto de haver indivíduos mais fortes (material, religiosa, económica, moral, intelectual ou numericamente) que outros e que querem e podem impor aos outros a sua vontade; o facto da distinção positiva entre governantes e governados, com a possibilidade de aqueles darem a estes ordens sancionadas por um constrangimento material. Como diz Duguit, seja qual for a forma que revista a diferenciação social entre os fortes e os fracos, desde que ela se produz há um Estado.16

VII - Muito ao invés, para a escola normativista de Viena, o Estado aparece identificado com o Direito, como ordem jurídica relativamente centralizada.

O Estado constitui uma ordem normativa de comportamentos humanos e só através desta forma se torna possível conhecê-lo no âmbito da Teoria do Direito e do Estado. Os três elementos tradicionais do Estado não são mais do que a vigência e a validade de uma ordem jurídica: a população corresponde ao domínio pessoal de vigência, o território ao domínio espacial e o poder à eficácia dessa ordem jurídica (e não a qualquer força ou instância mística escondida por detrás do Estado e do Direito).17

99. Outras elaborações doutrinaisI - Com Carl Schmitt, não se visa encontrar uma substância ou uma axiologia; procura-se o critério, o princípio identificador do político. Ele consiste na distinção - a que reconduz os actos e os móbeis políticos - entre amigo e inimigo (distinção essa que corresponde, na ordem política, aos critérios relativamente autónomos de diversas outras oposições - o bem e o mal na moral, o bonito e o feio na estética, etc.).

Inimigo não significa inimicus, mas sim hostis (estrangeiro): é um conjunto de indivíduos agrupados, afrontando um conjunto da mesma natureza e empenhado numa luta, pelo menos, virtual, quer dizer, efectivamente possível. E o Estado aparece então como uma unidade política organizada, formando um todo a que cabe a divisão amigo-inimigo.18

II - Para Rudolf Smend, o Estado é uma associação voluntária real, e tem de ser compreendido através de um processo de integração (pessoal, funcional e material).

O Estado não é um fenómeno da natureza, mas uma realização cultural, um conjunto de relações objectivadas no mundo do espírito; como qualquer realidade da vida do espírito necessita de renovação e desenvolvimento; e, se a sua dinâmica corresponde a uma permanente restauração como agrupamento soberano de vontades, ela não é em si senão um sistema de integração.

Falar em Estado equivale a falar num plebiscito que se repete todos os dias.19

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III - Hermann Heller adopta uma perspectiva dinâmica, à luz da qual o género próximo do Estado vem a ser a organização, a estrutura de efectividade organizada de forma planejada para a unidade de decisão e de acção, e a diferença específica a sua qualidade de dominação territorial soberana.

A unidade estatal não se identifica com nenhum dos seus elementos. O Estado não é uma ordem normativa e também não o é o "povo"; não é formado por homens, mas por actividades humanas; e tão pouco pode ser identificado com os órgãos que actualizam a sua unidade de decisão e acção.

A organização estatal é aquele status renovado constantemente pelos seus membros, a que se juntam organizadores e organizados. E a unidade real do Estado adquire existência somente pelo facto de dispor de um governo, de modo unitário, sobre as actividades unidas, necessárias à auto-afirmação do Estado; assim como o povo, o território e os órgãos do Estado só adquirem plena verdade e realidade na sua recíproca relação.20

IV - Para Santi Romano, são entes políticos os entes de fins gerais, os entes que, embora propondo-se finalidades que em dado momento se podem precisar e circunscrever, são, apesar disso, susceptíveis de assumir qualquer outra finalidade sem mudança de natureza.

Todos os entes territoriais são também entes políticos, porque, de regra, a sua esfera de competência se estende a uma infinita série de interesses que se manifestam dentro do seu território. Todos os entes territoriais são entes políticos enquanto os seus fins (mesmo se em concreto e em determinado momento se restringem aos previstos nos ordenamentos jurídicos que os regulam) se apresentam sempre susceptíveis de indefinidas mutações, sem que os seus caracteres se transformem por isso. O Estado é sempre um ente político, ainda quando a prossecução dos seus fins gerais (que nunca faltam) surge coordenada ou subordinada a um fim particular.21

V - Georges Burdeau define o Estado a partir do poder institucionalizado e procura não apenas reter o facto histórico da sua existência mas também tomá-lo como fenómeno jurídico.

O Estado é um conceito; existe, porque pensado por governantes e governados; e é uma instituição que incorpora uma ideia de Direito e, através dela, obtém a adesão dos membros do grupo.22

VI - Uma tentativa de perscrutar a essência do político através de uma orientação fenomenológica foi feita, na doutrina portuguesa, por Cabral de Moncada.

Segundo este autor, o "político" pertence ao domínio da cultura e corresponde a um momento susceptível de ser distinguido, mas jamais radicalmente separado, do "jurídico" e do "social", da convivência, das relações entre o "eu" e o "outro". Pois todo o ordenamento jurídico tende a estabilizar-se, a converter-se em "estado", em "status". O "político", em todas as suas modalidades, incluída a do Estado, outra coisa não é senão "acto" daquilo que no "jurídico" se acha em "potência". Todo o jurídico aspira ao político, bem como todo o político pressupõe e reclama o jurídico.Como todos os "objectos intencionais", o "político" tem igualmente uma estrutura própria, que é a autoridade. A ideia de autoridade faz parte da essência estrutural do objecto "político"; mas ela não se concebe dentro de quaisquer relações intersubjectivas sem certa distinção fundamental dos sujeitos destas mesmas relações - entre governantes e governados, entre quem mande e quem obedeça.

Em terceiro lugar, a justiça é ingrediente tão necessário do conceito de direito como do conceito de político, ainda que se trate de uma justiça distributiva, de superordenação e subordinação, de proporcionalidade em atenção à função que cada qual terá a desempenhar dentro da comunidade.

Donde, certa coincidência dos conceitos de "político" e "social", porque tudo no mundo, afinal, é político, desde que os homens se congregam e se entra no domínio do colectivo humano estruturado. O "político" não é senão a vida humana perfilada em forma, um certo grau de condensação do social. O "político" é a forma natural de sociedade, uma vez ultrapassado o

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simplesmente multitudinário e colectivo, logo que este se projecta e surge no plano do espírito para a realização de uma ideia.23

VII - Análise predominantemente filosófica (em que entram elementos vindos de Schmitt e de outros autores) é a de Julien Freund ao enunciar as características que diferenciam o político de outros fenómenos de ordem colectiva (como o económico ou o religioso).

Para ele, o político como categoria fundamental, constante desenraizável da matriz humana, é uma essência que tem por pressupostos as relações de comando e obediência, de privado e de público e de amigo e inimigo; e a dialéctica dessas três relações traduz-se, respectivamente, em ordem, opinião e luta. Por outro lado, o fim específico do político é o bem comum e a sua menor especificação é a força (como obstáculo a outra força).

A política é a actividade social que se propõe assegurar pela força, geralmente fundada no direito, a segurança exterior e a concórdia interior de uma unidade política particular, garantindo a ordem no meio de lutas que nascem da diversidade e da divergência das opiniões e dos interesses.24

VIII - Como exemplo de visão exclusivamente sociológica, em que se não depara ou se dilui o conceito de Estado, dê-se conta da de Talcott Parsons.

Segundo este autor, a política é um subsistema funcional primário da sociedade, com status teórico exactamente paralelo à economia. Ela não deve ser identificada com nenhuma estrutura específica de colectividade dentro da sociedade, como o governo (assim como a economia não deve ser concebida como o agregado de empresas de negócios), nem com nenhum tipo concreto de actividade individual. Analiticamente, a política é entendida como o aspecto de toda a acção relacionada à função da busca colectiva de bens colectivos.25

IX - Finalmente, refira-se a maneira de entender o Estado como fenómeno de desenvolvimento político exposta por Gomes Canotilho nas penúltimas edições do seu Direito Constitucional.

O Estado, escreve, não é um valor em si ou uma organização finalisticamente racional, portadora de fins autónomos. O político e o Direito são, sim, subsistemas do sistema social. E há um trilátero mágico de poder-normas-domínio.

As normas jurídicas são criadas por um poder de natureza injuntiva e este concebe-se como uma modalidade de interacção social. A um nível profundo, o poder político assenta em estruturas de domínio, entendendo-se por domínio a distribuição desigualitária de poder (produção de bens materiais, produção de bens simbólicos, detenção de instrumentos de coerção). Por seu turno, a articulação do domínio (nível profundo) com o poder (nível superficial de interacções) pressupõe esquemas de mediação ou modos de racionalidade mediadora essencialmente revelada por normas jurídicamente vinculantes.26

100. Posição adoptadaI - Repetimos: o Estado é um caso histórico de existência política e esta, por seu turno, uma manifestação do social, qualificada ou específica.

O político assenta na intensificação, na diversificação e na extensão da vida em comum, na dimensão mais ampla ou no significado mais forte que ela adquire para ir ao encontro de necessidades não susceptíveis (ou já não susceptíveis) de satisfação em nível de sociedades primárias ou menores.27 Consiste em determinada forma de conceber o social em termos de colectivo, de propor e prosseguir fins pluriinstitucionais e fins gerais a se,28 de se dotar de meios adequados a tais fins, de criar dependências e interdependências, numa solidariedade organizada segundo uma ideia da obra comunitária a empreender, a qual prevalece sobre todas as outras

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solidariedades baseadas em fins temporais.

O político é o global;29 é tudo aquilo que assume relevância para toda uma sociedade ou um conjunto de sociedades, em certo tempo e em certo lugar. E quanto maiores forem (como sucede na nossa época) os condicionamentos e as interacções de sociedades menores e de interesses particulares - e nunca completamente redutíveis ou amalgamáveis - mais espaço haverá para o político.

Político é o que envolve, prende e insere num mesmo âmbito uma multiplicidade de grupos e o que comporta contraposição, ascendente e descendente, entre diferentes fins gerais e diversos quadros institucionais em que esses fins podem ser concretizados.30 Naturalmente aqui se tornam mais nítidos os contornos da convergência e do conflito, da integração e da exclusão, da igualização e da hierarquia, do consentimento e do constrangimento, da permanência e da mudança.31

A essência do político encontra-se sobretudo na dialéctica do grupo humano e do poder. O grupo empresta enquadramento ao poder, modela os homens que o exercem, reconhece-lhes legitimidade; o poder político (a que se exige mais do que a qualquer outro poder) gera um processo próprio de agir e afirma-se em graus variáveis que, no Estado, chegam à autonomia.32 Mas, porque o poder está em relação com fins e pressupõe pessoas que os partilhem, ele é o poder numa comunidade; pressupõe obediência e é obediência transformada;33 traduz-se em soberania de sujeição;34 é certa forma de relações humanas, inerente às condições de subsistência do grupo;35 é um universo de existência social;36 daí, um constante influir e refluir da comunidade e do poder.37

O político possui uma estrutura dualista e implica um momento de unidade: estrutura dualista, na medida em que se analisa em comunidade e em poder, em participação e em sujeição a autoridade, em distinção entre os membros da Civitas e os que detêm o governo; momento de unidade, visto que comunidade e poder não existem por si, implicam-se reciprocamente e apenas podem ligar-se através de uma organização e de valores jurídicos.38

Se a comunidade diluísse ou absorvesse o poder, não ocorreria fenómeno político; como não ocorreria, se o poder fosse um poder sem destinatários; ou se a organização não se referisse a uma comunidade e a um poder em concreto; ou se a chamada diferenciação política, ou de governantes e governados, fosse remetida para o mero domínio dos factos. Porém, para que se verifique fenómeno político, todos estes vectores têm de estar presentes, articulados e complementares, e tem de se encontrar o elemento valorativo que faz dessa unidade dialéctica de comunidade e poder uma unidade de ordem. Não se encontra o político sem o jurídico.

II - Falar em Estado equivale, portanto, a falar em comunidade e em poder organizados ou, doutro prisma, em organização da comunidade e do poder; equivale a falar em comunidade ao serviço da qual está o poder e em organização que imprime carácter e garantias de perdurabilidade a uma e outro.

As duas perspectivas sobre o Estado que a experiência (ou a intuição) revela - o Estado-sociedade (ou Estado-colectividade) e o Estado-poder (ou Estado-governo ou Estado-aparelho) - não são senão dois aspectos de uma mesma realidade; assim como a institucionalização, sinal mais marcante do Estado no cotejo das sociedades políticas anteriores de poder difuso ou de poder personalizado, corresponde fundamentalmente a organização. O Estado é institucionalização do poder, mas esta não significa apenas existência de órgãos, ou seja, de instituições com faculdades de formação da vontade; significa também organização da comunidade, predisposição para os seus membros serem destinatários dos comandos vindos dos órgãos do poder.

O Estado aparece como comunidade de homens concretos, constituido com duração indefinida em certo lugar.39-40 Comunidade na qual se exerce um poder em seu nome, dirigido a cada uma das pessoas e dos grupos que a integram; e poder de que se encarregam as pessoas investidas na qualidade de titulares de órgãos. Comunidade e poder que se vertem em organização - em organização jurídica - como a que é dada, primeiro que tudo pela Constituição (muito embora a organização não se identifique propriamente com as normas em si, antes com a objectivação ou o

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resultado dessas normas).41

O Estado é comunidade e poder juridicamente organizados, pois só o Direito permite passar, na comunidade, da simples coexistência à coesão convivencial42 e, no poder, do facto à instituição. E nenhum Estado pode deixar de existir sob o Direito, fonte de segurança e de justiça, e não sob a força ou a violência. No entanto, o Estado não se esgota no Direito43 - assim como o Direito não se reduz simplesmente a forma de Estado.44 É, sim, objecto do Direito, e, apenas enquanto estruturalmente diverso do Direito, pode ser a ele submetido, por ele avaliado e por ele tornado legítimo.

Finalmente, o Estado não só se projecta em actividade como obtém da actividade a constante renovação da sua unidade - actividade do poder desdobrada em actos típicos jurídicamente regulados, sujeitos a um princípio da legalidade (lato ou latissimo sensu), bem como actividade proveniente da própria comunidade e traduzida na transmissão de necessidades e na emissão de juízos sobre os comportamentos do poder. A organização é condição da actividade, mas sem a actividade não poderia a organização subsistir.

101. As relações entre Estado e sociedadeI - Quando se contrapõem Estado-comunidade e Estado-poder (ou Estado-aparelho), está-se a raciocinar no interior de fenómeno estadual, com o seu enlace necessário e dinâmico entre comunidade e poder. Quando, contudo - noutra distinção não pouco usada e importante -, se contrapõem Estado e sociedade, já o âmbito se exibe diferente e mais largo.

Convém evocar esta problemática quer no plano histórico quer no plano conceitual.45

II - No pensamento grego e romano não se encontra uma noção autónoma de sociedade fora da polis ou da Civitas. A Cidade Antiga não era constituída por uma sociedade civil que devesse ser governada como coisa distinta do Estado.46

Durante a Idade Média e na transição estamental, o político dispersa-se e está presente na sociedade e na sua riquíssima teia de instituições - as ordens religiosas, as universidades, as obras assistenciais, as corporações de mesteres, as comunas ou os concelhos, etc. Ou antes: é na sociedade como expressão integrante de todas as instituições (incluindo a instituição real) que reside o político.

Pelo contrário, com o absolutismo, o Estado identifica-se com o poder, com a soberania, com o Rei, e a sociedade - seja naquilo que vem de longe, seja naquilo que traz de novo - aparece à margem do político e sem projecção sobre o poder. Vem a ser apenas na época liberal que a sociedade volta a afirmar-se, se bem que em termos negativos, abrangendo tudo quanto se pretende que fique subtraído à acção do poder. Assim como vem a ser com as concepções contratualistas então dominantes, primeiro, e, depois, com a passagem à democracia que se toma ou se readquire consciência da face comunitária do Estado. E, mais tarde, certos regimes políticos afastam-se tanto da vontade e dos interesses dos cidadãos que o Estado-poder, no limite, se lhes entremostra completamento alheio e exterior.47

O Estado liberal tem em vista uma sociedade livre da gestão ou direcção do poder. O Estado social intervém nela para a transformar ou conformar. Num caso ou noutro, a sociedade carrega-se de intenções políticas48 ou, se se preferir, de funções políticas. Num caso ou noutro, a sociedade corresponde ao Estado-comunidade, mas não tem de se lhe assimilar, de com ele coincidir ou de ser por ele absorvida. Já no Estado marxista-leninista não existe sociedade civil.

A evolução do termo e do conceito da sociedade civil não deixa ela própria de ser elucidativa. Começou por equivaler a sociedade política, distinta da Igreja, do conjunto de fiéis enquanto tais: societas civilis sive res publics. A partir de Hegel recorta-se como conjunto de relações e situações

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que se projectam entre o indivíduo e o Estado, como conjunto dos homens privados: bürgerliche Gesellschaft.III - Se a sociedade, a sociedade civil, sustenta o Estado-comunidade enquanto conjunto humano, não se confunde com ele dum prisma jurídico e institucional, pois guarda sempre um grau maior ou menor de distanciamento e, pelo menos, sempre seria configurável para efeito de análise, como desprendida do poder.49

Não significa isto que não haja pontes ou veículos de passagem, que a sociedade seja indiferente politicamente, sobretudo hoje, ou que ela possa captar-se sem o influxo do poder. Apenas se afirma a possibilidade de uma consideração da sociedade à margem da redução ao fenómeno estatal (ou ao político).

Por outro lado, o Estado-comunidade apresenta-se como uma unidade em razão do poder e da organização, como uma só sociedade política. Já a sociedade, a sociedade civil, se apresenta como ambiência e feixe de classes, de estruturas, de grupos de natureza vária (cultural, religiosa, socioprofissional, económica, etc.). E cada vez mais, com a crescente circulação internacional de pessoas, ideias e bens, aqui se cruzam factores e presenças com origem no exterior (os estrangeiros radicados no país, com actividade relevante, também acabam por pertencer à sociedade civil da sua residência).

Os grupos e todas as forças sociais não podem, contudo, coexistir, prevaleçam estes ou aqueles interesses, sem a garantia prestada pelo Estado. Em contrapartida, também o Estado da sociedade plural, industrializada, urbana dos nossos dias e que se pretende em regime democrático não pode prescindir da regulação contratual dos conflitos.50

De tudo decorre que o Estado-comunidade ascende de pleno à esfera do público, do que é geral ou se torna geral e comum, para a res publica; e que a sociedade é, por definição, o domínio do privado ou onde o privado se pode manifestar e desenvolver. Somente na medida em que a sociedade em absoluto fosse, em toda a sua vida (e, por conseguinte, em toda a vida dos indivíduos que a compõem) determinada ou sujeita, toda ela, a injunções administrativas é que deixaria de ter sentido distingui-la do Estado (tal como deixaria de ter sentido distinguir Direito público e Direito privado). Mas continuaria a justificar-se sempre discernir Estado-comunidade e Estado-poder.

102. Os elementos ou condições de existência do EstadoI - Na maneira mais corrente de configurar o Estado (e a que principalmente Jellinek concedeu o seu prestígio), ele é descrito como o fenómeno histórico que consiste em um povo exercer em determinado território um poder próprio, o poder político.O larguíssimo acolhimento que tem tido esta focagem compreende-se bem pela importância que confere a essas três realidades e que, como quer que seja, efectivamente elas merecem. Ressalta, contudo, a ambivalência do termo "elementos do Estado" com que são designadas.

Elementos do Estado tanto podem ser elementos constitutivos ou componentes do Estado, definidores do seu conceito ou da sua essência,51 quanto condições ou manifestações da sua existência.52 No primeiro sentido, na essência do Estado, pelo menos, abrangem-se um povo, um território e um poder político (ainda que possam abranger-se outros elementos). No segundo, para existir Estado, tem de haver um povo, um território e um poder político, sem com isso se aceitar, necessariamente, a recondução a eles da estrutura do Estado.

II - Qual deva ser o entendimento a atribuir aos "elementos do Estado" é questão que se põe com mais acuidade a respeito do território.

Há quem sustente que o território adere ao homem e que todos os efeitos jurídicos do território têm a sua raiz na vida interna dos homens53 ou que o Estado implica stare, sede fixa, de tal jeito que o território não equivale só a um espaço reservado à acção do Estado, entra também a constituí-lo.54 Ou que o poder soberano se traduz numa organização, de que é elemento dimensional o território.55

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Ou que o território faz parte do ser do Estado, e não apenas do seu haver.56

Em contrário, diz-se que o território nao pode considerar-se como o "corpo" do Estado. Não é o território que delimita o âmbito do senhorio, é o senhorio que delimita o território.57 O território é elemento meramente exterior (quase como o solo para qualquer edifício). Uma coisa é dizer que ele é elemento da idsia de Estado, outra coisa que é elemento do Estado.58 E há quem tome o território, não como um elemento autónomo, mas como um elemento com recurso ao qual cada um dos outros, de acordo com a sua natureza, se qualifica e se caracteriza - e daí a ideia de territorialidade. O território apenas se converte em elemento da definição do Estado enquanto serve para distinguir a ordem jurídica estadual de qualquer ordem jurídica não territorial.59 Só historicamente, não geneticamente, ele adquire prepunderância.60

III - Afastamos decididamente a ideia de elementos essenciais ou constitutivos do Estado.

Os elementos não podem ser tomados como partes integrantes do Estado, visto que isso: 1) suporia reduzir o Estado a eles, à sua soma ou à sua aglutinação quase mecânica ou naturalística; 2) suporia ainda assimilar a estrutura de cada um dos elementos à dos outros dois ou, porventura, colocar todos em pé de igualdade; 3) esqueceria outros aspectos ou factores tão significativos como o sentido de obra comum61 ou os fins;62 4) não explicaria o papel da organização como base unificante do Estado.

Outra coisa vem a ser o segundo sentido. Aqui apenas se pretende inculcar que povo, território e poder político são pressupostos ou condições de existência do Estado, indispensáveis em todos os lugares e em todas as épocas em que pode falar-se em Estado, embora com funções e relações diversas. Sociedade política complexa, o Estado traduz-se num conjunto de pessoas ou povo, fixa-se num espaço físico ou território e requer uma autoridade institucionalizada ou poder político.Ora, se o povo corresponde à comunidade política e o poder é o poder organizado do Estado, já o território, embora necessariamente presente, se situa fora do Estado, não se insere na substância do Estado: os efeitos jurídicos fundamentais que se lhe ligam não postulam que ele seja Estado; postulam que ele é uma condição sem a qual o Estado não poderia subsistir. O território não vale por si, vale como elemento definidor (ou aglutinador) do povo e do poder (o que, aliás, não é pouco).

Adoptado este sentido, a concepção dos três elementos não oferece dificuldades particulares. Trata-se então de uma certa óptica de encarar o Estado. E acaba por se mostrar algo secundário, se bem que não despiciendo, dizer que há dois aspectos no Estado - a comunidade e o poder - com determinada base territorial ou considerar que, para que cada Estado exista, têm de se encontrar um povo, um território e um poder. Acima de tudo, o que importa é ter a noção da perspectiva e do papel específico dessas realidades no âmbito da teoria constitucional e do Direito positivo.

103. As vicissitudes do EstadoI - Relacionado com a estrutura, acha-se o tema das vicissitudes do Estado em concreto, pois as vicissitudes comprovam aquilo que a define, como ela depende sempre de regras jurídicas e como são essas regras que permitem a permanência do Estado para além de todos os eventos que possam ocorrer.63

Há vicissitudes totais - as que determinam a tormação e o desaparecimento do Estado - e vicissitudes parciais - as que acarretam transformações ou meras modificações.

A formação do Estado pode dar-se pela elevação a Estado de comunidade não estadual ou até então politicamente dependente; pela agregação de dois ou mais Estados preexistentes em novo Estado; pelo desmembramento ou pela desagregação de anterior Estado; ou pela secessão de uma das suas partes. E pode ser a formação de um Estado novo ou equivaler, historicamente, à reconstituição de um Estado antigo.

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O desaparecimento do Estado, em contrapartida, ocorre pela redução a comunidade não estadual ou politicamente dependente (por exemplo, redução a colónia); pela agregação com outros. Estados num novo Estado a constituir ou pela desagregação em diferentes Estados novos; e pela integração ou incorporação num ou em vários Estados preexistentes (no caso de serem vários Estados, fala-se em partilha).

O Estado transforma-se no confronto de outros Estados por transformação da soberania (v. g., por sujeição a regime de protectorado ou sua cessação ou por incorporação ou desincorporação em confederação) e por perda ou aquisição da soberania internacional (por integração em Estado federal ou por secessão deste). Modifica-se ainda sem alteração da sua estrutura (ou seja, mais quantitativa do que qualitativamente) quando se verificam migrações ou transferências de populações com reflexos na cidadania ou se registam modificações territoriais, tais como ocupação ou desocupação de territórios não apropriados e anexação ou perda, por qualquer causa, de territórios em relação a outro Estado.64

Porém, o Estado não se transforma internacionalmente com quaisquer vicissitudes constitucionais, sejam totais (revolução, transição constitucional) ou parciais (revisão constitucional, ruptura não revolucionária, etc.). E subsiste na sua identidade e na sua unidade para além de todos estes actos e eventos - exactamente porque envolve institucionalização, continuidade, estabilidade, e porque o Direito internacional obriga os demais Estados a respeitarem a sua livre capacidade de decisão constitucional.65

A análise em pormenor dos vários tipos de vicissitudes e dos grandes problemas que suscitam não pode ser levada a cabo aqui. Melhor cabe noutros capítulos (como a que, em breve, iremos fazer a respeito das modificações de cidadania e de território) ou noutras disciplinas, designadamente o Direito internacional (v. g., no tocante à formação e ao desaparecimento do Estado). Aqui importa só deixar traçado o quadro geral.

II - O Estado é uma criação da vida jurídica; sendo um mecanismo de preservação da ordem, ao mesmo tempo é um conjunto de situações de direito.66 Nenhuma das suas vicissitudes vem a ser, portanto, indiferente ao Direito, nenhuma decorre fora do âmbito das regras jurídicas, deixa de implicar um significado normativo, uma legitimidade ou uma regularidade.

A própria formação (originária) de um novo Estado não se reduz a puro facto ou a acto material ou metajurídico. Pelo contrário, até pode resultar de um processo, no todo ou em parte, previsto pelo Direito do Estado a que estava sujeita a comunidade que se erige em estadual, Direito esse que chama a intervir ou apenas os órgãos governativos competentes para manifestarem o consentimento definitivo do Estado ou também os órgãos que já tenham sido instituídos eventualmente em tal colectividade.67 Mas, ainda quando tudo se passe à margem ou contra esse Direito, por declaração (unilateral ou revolucionária) de independência, nem por isso cessa a juridicidade: a instituição do Estado, pelo menos, opera-se à luz da concepção de Direito natural ou da ideia de Direito dominante na colectividade ou na vida internacional.68

Ao Direito das Gentes cabe, por seu lado, dispor sobre o acesso à comunidade internacional de qualquer dos seus membros ou, em certos casos, promovê-lo e orientá-lo.69 Ele estabelece os requisitos de aquisição dessa qualidade ou soberania e os modos e efeitos do reconhecimento pelos demais Estados; ele define o âmbito possível das relações entre a nova ordem jurídica estadual e a ordem ou as regras jurídicas preexistentes, em termos de uma eventual recepção ou novação destas;70 ele ocupa-se da sucessão dos Estados quanto aos direitos e obrigações internacionais, provenientes de tratados71 ou doutras fontes. Não faltam ainda Estados historicamente constituídos por tratado.72

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104. O Estado como pessoa colectivaI - A unidade jurídica que o Estado constitui pode exprimir-se com recurso à noção de pessoa colectiva, distinta de cada uma das pessoas físicas que compõem a comunidade e dos próprios governantes e susceptível de entrar em relações jurídicas com outras entidades, tanto no domínio do Direito interno como no do Direito internacional, tanto sob a veste do Direito público como sob a do Direito privado.

Personaliza-se o Estado na estrutura que lhe pertence - na sua estrutura dual de comunidade e de poder (apesar de, umas vezes, a doutrina e o regime jurídico salientarem mais a comunidade, a base corporacional, e, outras vezes, mais o poder, a base institucional).73

Escusado será sublinhar - tendo em conta as premissas de que partimos - que, se a unidade do Estado advém do sistema normativo, não é este o substrato da personalidade do Estado,74 mas tão-só o elemento donde, justamente, procede o fenómeno jurídico de atribuição da personalidade.

II - A subjectivação ou personificação do Estado obedece a uma dupla finalidade: de racionalização e de acentuação da subordinação à norma jurídica.

Ela propicia, em primeiro lugar, um instrumento técnico ou construtivo muito importante (embora, não o único possível) destinado a dar resposta a algumas das mais prementes necessidades da vida do Estado, na multiplicidade de actos e contratos que tem constantemente de celebrar e de direitos e obrigações que se lhes vinculam.

Implica, em segundo lugar, uma mais imediata e nítida afirmação de integração no mundo jurídico, na medida em que, sendo sujeito de relações e mesmo quando dotado de prerrogativas ou privilégios de autoridade, o Estado tira a sua capacidade de querer e de agir da norma jurídica.

Não é por acaso que (sem esquecer antecedentes diversos) esta figura remonta a cerca de cento e cinquenta anos, formulada designadamente por Gerber.75-76 Na concepção patrimonial, o Estado não era sujeito, mas objecto de um direito do monarca, e no Estado de Polícia procedia-se à distinção entre Estado propriamente dito e Fisco. Somente com o início do aprofundamento dogmático do Direito público e com as ideias e os conceitos do Estado de Direito se vai avançar na linha da personalidade do Estado77 - a qual envolve, necessariamente, o reconhecimento de uma personalidade de direito público dos cidadãos, situações jurídico-públicas não apenas do Estado mas também das pessoas membros da comunidade política e, muito em especial, direitos fundamentais perante e contra o Estado.

Não é por acaso, que em alguns países, como a Alemanha, se afirma que a consideração do Estado como pessoa jurídica foi o mais relevante ataque intelectual contra a construção monárquica do Estado, por o monarca se converter em órgão do Estado.78 Ou que se nota, sem paradoxo, que a personalização do Estado anda a par da despersonalização ou da maior institucionalização do poder político.79

As resistências opostas à teoria da personalidade radicam, umas, em visões do Estado que o identificam com o poder, a soberania, a autoridade, o jus imperii, outras, em contestações globais do próprio conceito.80 Têm perdido crescentemente ressonância, em face dos progressos da elaboração jurídica do Estado e em face da demonstração feita pelas doutrinas privatísticas e publicísticas de como a personalidade colectiva, longe de corresponder a qualquer pretensa realidade natural, é apenas um conceito analógico ou um quadro específico de trabalho de uma ciência normativa, susceptível de explicar a unidade do ente e a imputação a ele de situações e actos jurídicos.81

Em contrapartida, não deve esperar-se do conceito (como de tantos outros) mais do que ele pode dar. Parece exagerado aduzir que para conjurar o arbítrio, para submeter ao direito o poder público, nenhum meio mais eficaz, mais directo e mais seguro do que considerar o Estado como pessoa jurídica.82 E talvez haja mesmo que reconhecer que a personalidade colectiva, na medida em que tomada como mera unidade formal (como faz o positivismo) ou hipostasiada à volta da temática da

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formação da vontade serviu (ou pode servir) para abafar todas as investigações sobre o cerne do Estado e do político.83

III - Isto o essencial acerca do conceito. Contudo, a personalidade de cada Estado em concreto e os termos em que se recorta dependem das regras jurídicas positivas.

Pode asseverar-se que todos os Estados com acesso directo às relações internacionais - os Estados soberanos - possuem personalidade jurídica, tal como personalidade jurídica possuem a Santa Sé, as organizações internacionais e outras entidades. A presença nestas relações, a capacidade de praticar actos jurídicos relevantes internacionalmente e a responsabilidade deles emergente postulam a subjectividade internacional dos Estados.

Já no interior dos respectivos ordenamentos apenas pode dizer-se que cada Estado, enquanto ente unitário e perpétuo que ultrapassa a existência dos indivíduos que o compõem, oferece susceptibilidade e, mesmo, tendência para se personificar.84 O problema da sua extensão e dos seus caracteres não pode, entretanto, resolver-se de modo absoluto e uniforme para todos os Estados; é problema do respectivo Direito positivo.85 Pelo menos, o caso britânico, em que a titularidade de poderes e direitos cabe a certas instituições,86 atesta que pode haver Estados modernos sem personalidade de direito interno.

Por outro lado, a personificação opera-se na base de regimes algo diversificados, quer no tocante à capacidade de gozo de direitos atribuidos ao Estado, quer no tocante aos órgãos através dos quais se manifesta a capacidade de exercício. Um desses regimes consiste num eventual desdobramento em mais de uma pessoa colectiva: o Estado (em sentido restrito) ou o Estado como pessoa colectiva que, para efeito das relações de direito interno, tem por órgão o Governo;87 e as demais pessoas colectivas públicas, dele distintas com vista à celebração de actos e contratos, à autonomização de patrimónios e à assunção de responsabilidade civil.88

IV - Que relação se produz entre o Estado pessoa colectiva de Direito internacional e o Estado pessoa colectiva de Direito interno?

Há quem contraponha, em termos radicais, o Estado-colectividade (pessoa colectiva de Direito internacional) ao Estado-administração.89 Não vemos nem necessidade, nem possibilidade de tal corte: é sempre a mesma pessoa jurídica, o mesmo Estado, a agir tanto no âmbito do Direito internacional como no âmbito do Direito interno.

Tudo está numa diferença de capacidade e de responsabilidade. Enquanto que o Estado (o Estado em sentido restrito) possui capacidade plena quer de Direito interno quer de Direito internacional, as demais pessoas colectivas públicas têm uma capacidade circunscrita ao Direito interno e, com excepção das regiões autónomas (ou dos Estados federados), à função administrativa. E é por isso, justamente, que se diz que só o Estado é soberano.90

CAPÍTULO II - O Estado Como Comunidade Política

105. A comunidade política ou povoI - O Estado consiste, primordialmente, numa comunidade de pessoas, de homens livres (como, desde a Grécia, se pretende).1 Constituem-no aqueles homens e aquelas mulheres que o seu Direito reveste da qualidade de cidadãos ou súbditos e que permanecem unidos na obediência às mesmas leis.

A tal comunidade, à comunidade política, vários nomes têm sido dados ao longo dos tempos - em português gente,2 república,3 grei,4 povo,5 nação. Preferimos falar em povo como termo jurídico

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bem adequado ao conceito, trabalhado pela doutrina e com largo reflexo no direito positivo.

Não ignoramos que não é unívoca a utilização do termo Povo, que tem servido também para designar uma parte apenas da comunidade:6 assim, em Roma, onde se dizia Senatus Populusque Romanus; assim, o povo como terceira ordem do reino em Portugal ou o povo como agregado das classes trabalhadoras ou das classes populares nos últimos duzentos anos; assim ainda, como lembraremos, as acepções ideológicas que se lhe associam. No entanto, mais forte e mais significativa revela-se a tradição - não estranha, de resto, à própria Roma7 e, sobretudo, ligada ao pensamento judaico-cristão8-9 - do povo como conjunto de todas as pessoas.

É este sentido que, passando pela noção medieval de comunidade politicamente ordenada e diferenciada10 e pela ideia de origem popular do poder dos governantes, se afirma na Revolução americana11 e na francesa, desemboca nos sistemas democráticos contemporâneos e é adoptado pela Constituição de 1976.12

II - Escreve Rousseau, no final do Capítulo VI do Livro I do Contrat Social: "Os associados, os membros do Estado tomam colectivamente o nome de povo e chamam-se, em particular, cidadãos enquanto participantes na autoridade soberana e súbditos enquanto sujeitos às leis do Estado".13-14 O conceito de povo compreende, na verdade, duas faces ou dois sentidos: um sentido subjectivo e um sentido objectivo15 ou, se se quiser, activo e passivo. O povo vem a ser, simultaneamente, sujeito e objecto do poder, princípio activo e princípio passivo na dinâmica estatal.

Enquanto comunidade política, o povo aparece como sujeito do poder, pois que o poder é o poder do Estado. Como conjunto de homens livres, ele engloba pessoas dotadas de direitos subjectivos umas diante de outras e perante o Estado. Assim sucede em qualquer regime ou sistema político em concreto, embora a natureza ou a estrutura dos direitos e os graus de participação activa na formação da vontade do Estado se apresentem com largas variações.

Enquanto comunidade política ainda, o povo e cada um dos indivíduos que o integram apresentam-se como destinatários de normas jurídicas e objecto de Direito, se bem que um Direito próprio, não um Direito estranho. E, exactamente porque homens livres, podem os indivíduos deixar de cumprir essas regras e, no limite, recusar o seu assentimento ao governo.16

106. Povo e EstadoI - Não há povo sem organização política, repetimos. É a mesma a origem do povo e da organização - pois o povo não pode conceber-se senão como realidade jurídica, tal como a organização não pode deixar de ser a organização de certos homens, os cidadãos ou súbditos do Estado.

O povo só existe através do Estado, é sempre o povo do Estado em concreto, dependente da organização específica do Estado (e a ela também subjacente). O povo, que nasce com o Estado, não subsiste senão em face da organização e do poder do Estado, de tal sorte que a eliminação de uma ou de outro acarretaria automaticamente o desaparecimento do povo como tal.17

II - Qualifica-se o povo como o substrato humano do Estado para significar:

a) Que a razão de ser do Estado, aquilo que o modela em concreto, é o seu povo;

b) Que o Estado resulta de obra da colectividade que se há-de tornar o povo (ou de quem age ao serviço dessa colectividade);

c) Que o poder político se define, antes de mais, como poder em relação a um povo, e só depois como poder diante doutros poderes de idêntica ou diferente natureza;

d) Que o poder emerge (historicamente) sempre do povo - mesmo quanto seja atribuído a um único

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homem, tem de ser sempre alguém pertencente à comunidade política, nunca um estrangeiro (daí, a proibição em Portugal, pelo menos após a Restauração, de reis estrangeiros) - e tem de assentar numa convicção de legitimidade;

e) Que o poder político exerce-se sempre, directa ou indirectamente, por referência ao povo (em nome do povo, nos sistemas democráticos) e conformado pelo modo de ser, de agir e de obedecer do povo e das pessoas que o compõem;

f) Que o território do Estado corresponde à área de fixação do povo (ou da colectividade donde provém) por direito próprio;

g) Que, nas ocorrências extraordinárias de Estado com território ocupado, temporariamente privado de governo ou com a soberania suspensa, pode pretender-se (quando elas não se prolonguem para lá de certos limites) subsistir o Estado por permanecer o povo.

III - A relação necessária entre povo e Estado não é infirmada - ou posta em causa em favor de um conceito mais amplo18 - por certos acontecimentos contemporâneos, designadamente os que se prendem com a proclamação do princípio da autodeterminação dos povos.

Em rigor, não há povo anteriormente à efectivação deste princípio; não há povo, enquanto um grupo, por mais vocacionado para a independência ou a autonomia que esteja, não disponha de possibilidades e de meios para realizar um destino político próprio. E, ainda que se insista em falar então em povo (para efeitos jurídico-internacionais, sobretudo), convém reconhecer que tal somente se justifica em correlação com o conceito de Estado: porque a autodeterminação de qualquer povo, no fundo, equivale à sua passagem a povo de um Estado com que se reconheça identificado (seja povo de um Estado coincidente com ele, seja povo integrado com outro, formando uma parcela do povo de um Estado preexistente).19

107. O Estado, o povo e a colectividade pré-estadualI - Qualquer Estado surge como realidade necessária e envolvente, como ambiente em que cada cidadão ou súbdito tem de se inserir. Mas localiza-se também na história, resulta de actos de vontade, sofre o influxo de factores muito variados, nasce e evolui, requer capacidade de adaptação aos tempos e às circunstâncias.

Deste modo, cabe distinguir: o Estado e a formação do Estado, o povo como colectividade estadual e a colectividade que historicamente precede o Estado, o Direito constitucional do Estado e as normas que regem esta colectividade, as condições sociais e económicas subjacentes à organização política e as que provocam o seu aparecimento em certo momento.

Entre a colectividade pré-estadual e o povo ou colectividade estadual a diferença não é tanto de índole cronológica ou sociológica - fases na sua existência ou transformação de estruturas sociais, económicas e culturais - quanto de índole jurídica - adstrição a um Direito, a uma organização que não procede do exterior e que se torna a fonte objectiva da sua unidade.

Interessa, portanto, observar, se bem que em termos esquemáticos, a situação (ou o modelo de situação) correspondente à colectividade pré-estadual, ou seja, àquele grupo humano que, em virtude da instituição do poder político, se vem a transformar em povo.20

II - Como se apresenta tal grupo? Os laços que o unem podem ser de diversa natureza: étnicos e geográficos, linguísticos e culturais, religiosos e meramente políticos. No tipo europeu de Estado (em que entroncam quase todos os Estados contemporâneos), tendem a mostrar um carácter simultaneamente mais profundo, duradouro e complexo por tomarem por base a existência de uma nação.

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Quando uma colectividade bem diferenciada de outras e há muito estabelecida num território começa a tomar consciência de si própria, a sua natural aspiração está em que a considerem como um povo. Todavia, o elemento objectivo da transformabilidade em povo e até o elemento subjectivo da coesão da colectividade não bastam para que se constitua em Estado; tem ainda de se verificar a presença de certos elementos jurídicos e políticos adequados a esse fim.21

Quer dizer: pressuposto da criação do Estado é tanto a identidade de que o grupo se julga portador como o condicionalismo político interior e exterior, que propicia (ou não) a energia motriz de um Direito e de um poder independente ou soberano. E sabe-se que tão prementes são as conveniências políticas que, não raro, têm levado a reunir a um núcleo nacional dominante populações semelhantes.

III - O estatuto jurídico-político da comunidade pré-estatal desenvolve-se à volta de uma de duas hipóteses principais: ou o grupo não dispõe de nenhuma organização administrativa e política particular antes da criação do Estado; ou já existem instituições administrativas e políticas correspondentes ao grupo, através das quais pode vir a ser canalizada a sua evolução.

Como quer que seja, haja ou não entidades ou pessoas reconhecidas como representativas da colectividade, as suas atribuições e competências provêm sempre de um sistema de normas que não são próprias da colectividade. Por definição, uma colectividade não estadual vive a sombra das normas de Direito interno de um Estado ou, em alguma medida ainda, de normas de Direito internacional; e mesmo que goze de auto-administração ou autogoverno, uma e outro derivam dessas normas e podem por elas ser retirados.

São as leis do Estado de que a colectividade depende ou a que se acha anexada que regulam as relações de Direito privado, ou, não o fazendo directamente, que autorizam os órgãos internos da colectividade a proceder a essa regulamentação; são elas que prevêem os crimes e as penas, os impostos e os demais encargos cívicos e que se ocupam dos tribunais, da administração e da segurança pública; e é a Constituição do Estado que abre ou não à colectividade a possibilidade de afirmar a sua expectativa de ter um destino político próprio.

No actual século, tem-se registado uma crescente interferência do Direito internacional na ordem interna dos Estados onde se encontrem ou de que dependam grupos susceptíveis de se converterem em Estados, quer para assegurar a sua subsistência física e cultural e a protecção dos direitos fundamentais quer para os encaminhar para a separação ou a independência. E tem-se chegado mesmo a atribuir em certos casos, após a Segunda Guerra Mundial, a essas colectividades ou aos movimentos ou organizações que agem em seu nome (os "movimentos de libertação"), a qualidade de sujeitos de Direito internacional, embora com capacidade restrita à defesa da sua identidade ou ao exercício do direito à autodeterminação.22

IV - O reconhecer-se, numa perspectiva realista, que o Estado se pode encontrar na continuação de uma colectividade preexistente e até que a sua criação se pode atribuir à obra de indivíduos que agem em nome dela suscita, por vezes, alguns equívocos a desfazer ou a evitar.

Constituído o Estado, nem por isso, necessariamente, se extingue aquela colectividade; desde que permaneça a base que a suportava - geográfica, cultural, económica ou outra - decerto a colectividade também perdura. Simplesmente, mantém-se nessa base, com as características que tinha, e não como colectividade jurídica e política, porque o jurídico e o político são qualidades que lhe escapam por apenas pertencerem ao Estado ou ao povo.

Os homens e as instituições que fazem parte do grupo que, porventura, esteve na origem do Estado não podem alcançar uma dimensão jurídica e política a não ser na medida em que participam do Estado, na medida em que vivem integrados nele. Nem outra se afigura a finalidade da organização estatal: dar realização política às aspirações de determinado grupo humano, dar-lhe a virtualidade de livremente definir e prosseguir o interesse colectivo.23

Nenhum lugar aqui existe para qualquer espécie de dualismo. Comunidade política é apenas o povo,

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não esse grupo, mesmo que se trate duma nação. Direito é apenas o do Estado; poder é apenas o que se exerce no Estado (o eventual poder de a colectividade se constituir em Estado logicamente é estranho ao Estado, mas o poder de fazer e modificar a Constituição e de governar só se compreende à luz do Direito do Estado). Nenhuma tensão ou interacção pode ocorrer fora do âmbito do Estado - dos seus cidadãos ou dos seus órgãos.

Se a nação condiciona indiscutivelmente o Estado, em contrapartida não age senão através do Estado (e o que se diz da nação, vale para qualquer outro tipo de colectividade); não é sujeito de direitos, não pode formar qualquer vontade específica.

108. A unidade do povo e as distinções políticas entre os cidadãosI - O povo é a comunidade dos cidadãos ou súbditos, a universitas civium. E porque o poder sobre todos recai e a lei a todos se dirige, bem pode aduzir-se que a regra fundamental que lhe preside vem a ser da unidade, a qual postula, logicamente, universalidade e igualdade de direitos e deveres.

Mas, historicamente, a unidade do povo não determina, só por si, pelo menos, igualdade de participação no exercício do poder político - tal como a igualdade dentro do Estado não acarreta, só por si, a abolição das diferenciações e estratificações que se verifiquem dentro da sociedade24 e com as quais o poder vai ou não contemporizar. Uma análise jurídica não o poderia obliterar.

Como escreve Burdeau, para o indivíduo a sujeição é sempre concreta, mas a sua cidadania pode ser abstracta ou efectiva; a essa efectividade comporta toda uma gama de cambiantes, em que se escalonam todas as formas políticas. Cidadão abstracto é o que é somente cidadão de um Estado livre; cidadão real aquele cuja vontade pessoal, cujas determinações particulares, cujas originalidades incomensuráveis têm a possibilidade de pesar nas opções que valerão como decisões do Estado.25

II - A unidade básica dos cidadãos ou súbditos vem a par da distinção entre governantes e governados, inelutável em qualquer Estado (seja qual for o fundo económico e social que tenha e a tradução jurídica que alcance, embora sem ser a sua nota mais característica, ao contrário do que sustenta Duguit).

Tal como existe (e deve salientar-se) a organização do poder em face da comunidade, assim devem salientar-se a autonomizar-se os homens que a concretizam, que ocupam os cargos públicos, que detêm o aparelho institucional do Estado, no confronto dos restantes homens. São eles os governantes latissimo sensu,26 em contraposição aos governados - e eles agem quotidianamente como sendo o Estado a agir e, por isso, tendem a identificar-se com o poder político.

Por certo, não são simples as relações entre governantes e governados e a configuração que patenteiem pode servir para classificar os diferentes sistemas e regimes. Mas nenhum sistema político, por mais democrático que seja, suprime a distinção; só a pode mitigar ou reordenar mais em coerência com os princípios.

Não é uma contraposição específica da autocracia. Aparece na democracia representativa. E recorta-se ainda na democracia directa mais pura, não só porque não deixa então de haver menores e incapazes privados de direitos políticos como também porque cada cidadão se apresenta aí umas vezes, sim, a legislar e a deliberar nos negócios do Estado e, outras vezes (fora da assembleia popular, isto é, em quase toda a sua vida), a viver sob o comando das leis como em qualquer outro sistema; aí então, governantes são os indivíduos enquanto cidadãos e governados os indivíduos enquanto súbditos.

O que importa sublinhar é que a separação entre governantes e governados deve ser compreendida não como uma abissal separação de pessoas, mas como uma necessária separação de funções. Não se trata de qualidades inatas às pessoas, trata-se de funções voltadas para a prossecução dos fins do Estado. Só há governantes em razão das normas jurídicas.

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Os governantes fazem tanto parte do povo como os governados. Têm de ser cidadãos do país, têm de vir do povo - seja qual for a sua condição social e sejam quais forem as formas de designação. Se pode dizer-se que encarnam o Estado-poder, já não pode pretender-se que só os governados formem o Estado-comunidade. Cidadãos como eles, recrutados entre eles, os governantes não podem deixar de viver e conviver com os governados e de se integrar também no Estado-comunidade.

A condição jurídica dos governantes é dupla. Como governantes têm um estatuto ditado pela Constituição. Como cidadãos são iguais aos outros cidadãos, e em tudo aquilo que não disser respeito ao exercício dos seus cargos, em tudo aquilo que não for actividade funcional, mas apenas pessoal, estão sujeitos às normas comuns de Direito criminal e Direito privado, de Direito administrativo e Direito tributário. Ponto está, por consequência, em discernir e em evitar que eventuais imunidades e regalias funcionais se convertam em garantias e privilégios pessoais.

III - O que se diz da distinção entre governantes e governados vale analogamente para outra distinção, esta específica dos sistemas político-constitucionais em que os cidadãos têm direitos políticos: a distinção entre cidadãos activos e não activos.

Cidadãos activos (na expressão vinda desde o constitucionalismo)27 ou optimo jure (retomando a expressão latina) ou ainda cidadãos eleitores (devido à relevância central da eleição)28 vêm a ser os titulares de direitos políticos, de jus suffragii e jus honorum; os que atingem a plenitude dos direitos atribuídos pela ordem jurídica estadual no seu grau máximo - o status activae civitatis;29 os que tomam parte na direcção dos assuntos públicos do país (art. 21º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art. 48º da Constituição de 1976), no estabelecimento e no exercício do poder público (art. 60º do antigo Código Penal português).

Cidadãos não activos vêm a ser os que, por qualquer causa, não possuem capacidade de participação política.

No Estado moderno, todas as pessoas que à comunidade política estejam ligadas de modo duradouro e efectivo são cidadãos e todos os cidadãos, enquanto tais, têm direitos perante o Estado;30 mas a interferência, actual e não puramente virtual, de cada cidadão no poder depende da verificação de certas condições, em consonância com os princípios enformadores do sistema constitucional. São cidadãos todas as pessoas desde o nascimento até à morte; contudo, nem todos são titulares de direitos políticos.

Como se sabe, as Constituições liberais estabeleciam largos condicionalismos, principalmente de natureza económica, à atribuição de direitos políticos; e, embora previsível o resultado,31-32 decorreria mais de um século e não sem lutas, até se passar do sufrágio censitário e do capacitário ao sufrágio universal.33

IV - O sentido do sufrágio universal não é que todos, incluindo as crianças e os dementes, tenham direito de voto; é que haja correspondência entre capacidade civil e capacidade eleitoral; é que tenham direito de voto e, assim, interfiram na regência da comunidade todos aqueles que podem reger as suas próprias pessoas.

Pode, portanto, haver (ou ter de haver) incapacidades eleitorais activas (assim como passivas). Mas têm de ser definidas pela lei - por lei geral - e avaliadas nos parâmetros da Constituição. E, em Estado de Direito somente critérios materiais que nesses parâmetros se compreendam podem justificar a não concessão do status activae civitatis, sem arbítrios e sem discriminações de categorias de pessoas por motivos políticos ou outros.34

V - Na democracia representativa do século XX, avulta extraordinariamente, como se sabe, o papel dos partidos políticos como veículos de mobilização dos cidadãos e de simplificação das escolhas eleitorais e dotados, não raro, por normas constitucionais ou legais, de certos direitos e até de certos privilégios. E porque só os seus membros interferem na tomada das respectivas decisões - mormente, na designação dos candidatos aos órgãos políticos - acaba por ocorrer também uma diferenciação entre militantes e não militantes.

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Trata-se, aparentemente, apenas de diversos graus de intensidade de participação política e esta não se esgota, de resto, nos partidos. Todavia, não poucos problemas se suscitam - e, desde logo, no próprio plano da autenticidade do sistema - quando os directórios partidários comandam, de fora, a vida parlamentar ou quando, por si ou por intermédio dos militantes, penetram em todas as entidades públicas e em múltiplos esferas da sociedade civil.35

109. Conceitos afins do conceito de povoI - Do conceito de povo distingue-se claramente o de população.

O povo corresponde a um conceito jurídico e político, a população a um conceito demográfico e económico. O primeiro é uma unidade de ordem, a segunda a simples soma de uma multiplicidade de homens atomisticamente considerados.36 A população é o conjunto de residentes em certo território, sejam cidadãos ou estrangeiros; o povo é o conjunto de cidadãos, residentes ou não no território do Estado.

II - Maior dificuldade há em separar povo e nação.37-38

O moderno Estado de tipo europeu emergiu na história como Estado nacional (foi a nação que lhe conferiu unidade e coesão); após séculos de absolutismo, a Revolução Francesa adoptou o termo "nação" para designar o povo; finalmente, a própria existência do ordenamento estatal e o convívio durante gerações na sujeição ao mesmo poder representam fortes veículos de criação de novos laços sociais e culturais, e não apenas políticos. Se na Europa a ideia de Estado e o sentimento de nação despontaram quase ao mesmo tempo, noutros continentes, nos séculos XIX e XX, o Estado tem vindo a preceder a nação e a servir de fulcro para a sua formação (até para que, com a nação formada, melhor fique assegurada a sua sobrevivência).

O específico da nação encontra-se no domínio do espírito, da cultura, da subjectividade (embora de uma subjectividade inter ou multi-individual). Ela é uma alma, um princípio espiritual, na conhecidíssima definição de Renan;39 ou, como já dissemos, uma comunidade histórica de cultura. Mas não se trata do cultural desligado do político, trata-se do cultural que assume dimensão política. Uma nação não é qualquer grupo cultural, é uma comunidade cultural com vocação ou aspiração a comunidade política.Uma nação funda-se, portanto, numa história comum, em atitudes e estilos de vida, em maneiras de estar na natureza e no mundo, em instituições comuns, numa ideia de futuro (ou desígnio) a cumprir. Diferencia-se das demais pelos factores característicos que a fazem tomar consciência de si mesma e que ficam a marcar o seu destino. Estes factores são extremamente variáveis: há nações que aparecem vinculadas mais a factores linguísticos, outras a factores étnicos, ou religiosos, ou geográficos ou institucionais.40 De acordo com os factores prevalecentes, diversos se manifestam os sentimentos nacionais.

Por outro lado, porém, a consciência nacional revela-se consciência dum povo que se sente ele próprio portador de valores humanos universais, dum povo que traz em si e nos seus flancos a própria humanidade (Radbruch),41 "As nações todas são mistérios, cada uma é toda o mundo a sós" (Fernando Pessoa).42

Há, assim, em cada nação, um cruzamento do particular e do universal: a nação é ainda uma participação no universal. E daí também as tensões profundas (em certas épocas, pelo menos) entre exclusivismo ou emulação e colaboração com as outras nações.

III - Entre nação e pátria existe coincidência no essencial. Todavia, podem ainda discernir-se.

A nação é um conceito cultural acompanhado de vivências dominantes afectivas; a pátria pertence,

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toda ela, ao domínio da afectividade. Na nação realçam-se sobretudo, o elemento pessoal e a ideia de uma comunidade transtemporal; a pátria tem de ser vista em relação a um território concreto (a pátria é a terra dos pais).43

110. A relevância jurídico-política do fenómeno nacionalI - Assim como que tinha tido uma importância decisiva na formação da maior parte dos Estados europeus, a nação volta a desempenhar um significativo papel nos últimos 200 anos. E, sem se confundir com o Estado, vem a receber, não raro, projecção em normas jurídicas.

Em primeiro lugar, se a nação fora séculos antes um poderoso veículo de apoio à acção centralizadora do Rei, aquando da Revolução francesa ela é trazida para a luta política, identificada com o povo ou, segundo Sieyés44 com o "terceiro estado". Num contexto de substituição de legitimidades, a nação ou "a alegoria nacional"45 dá coesão e sentido ao conjunto dos cidadãos e habilita-os a reivindicar a titularidade da soberania.

Em segundo lugar, a época liberal vai assistir ao irromper do princípio das nacionalidades como tradução, em termos jurídico-políticos, da ideia de nação: cada nação deve (ou deve poder) erigir-se em Estado e cada Estado deve constituir-se na base de uma nação. Ideia racionalista de organização da comunidade internacional, como a propõe Mancini,46 ela torna-se a bandeira romântica da unificação da Itália e da Alemanha, da independência (conseguida) da Grécia, da Roménia e de outros países balcânicos e da independência (não conseguida então) da Polónia e da Irlanda.47

Em terceiro lugar, se os contrastes ideológicos do século XX pareceram obnubilar a força da ideia nacional em muitos países, logo que eles foram ultrapassados ou atenuados esta reacendeu-se com vigor e até tem vindo a provocar o refazer das fronteiras dos Estados, não sem conflitos de maiores ou menores proporções: é o que tem sucedido em toda a Europa Central e Oriental, com os sucessivos desmembramentos da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia. E também na Europa Ocidental essa força não deixa de se manifestar.48

II - É na medida em que o cultural condiciona o político que a nação em si, adquire relevância específica no Estado contemporâneo, quer gerando factos políticos49 quer obtendo tradução normativa enquanto tal.

Em Constituições do século XX, recentes ou um pouco mais antigas, o fenómeno adquire relevância jurídica sob vários aspectos:

a) Através da identificação do Estado por referência à nação a que corresponde (ou pretende corresponder) ou por menção da comunidade política desta indissociável (assim, o preâmbulo da Constituição alemã de Bona, antes e depois da reunificação, ou o art. 1º em Constituições como a italiana, a francesa, a portuguesa, a espanhola ou a brasileira);

b) Através da elevação da nação ou de um desígnio tido como da nação a fundamento, finalidade ou limite do poder político, quando se trate de regimes inspirados no nacionalismo político (como o da Constituição portuguesa de 1933 ou o das Leis Fundamentais franquistas, maxime no art. 3º da Lei Orgânica de 1967, que definia a Espanha como "unidade de destino");

c) Através da garantia e da promoção da língua e do acesso à cultura nacional [assim, os arts. 9º, alínea b), e 11º, nº 3, da Constituição portuguesa e o art. 13 da Constituição brasileira] ou da preservação das várias línguas nacionais (assim, na Suíça, o art. 116º da Constituição); e através da protecção de outros elementos definidores da identidade da nação como a paisagem e o património cultural [art. 9º da Constituição italiana; arts. 9º, alínea e), 66º, nº 2, alíneas c) e e), e 78º da Constituição portuguesa; ou art. 216 da Constituição brasileira];

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d) Através do tratamento especial de certas pessoas, em virtude de estarem ligadas à nação correspondente ao Estado (assim, art. 51º da Constituição italiana, a equiparação quanto a empregos públicos e cargos electivos em favor dos "italianos não pertencentes à República") ou em virtude de fazerem parte de nações ou povos com laços históricos com a nação correspondente ao Estado (assim, art. 15º, nº 3, da Constituição portuguesa ou art. 12, nº 2, da Constituição brasileira).

Enfim, acrescente-se, em Direito internacional tem-se dado, em certas circunstâncias, o reconhecimento como nação e como movimento nacional (como sucedeu com a Polónia e a Checoslováquia na Primeira Guerra Mundial).50

Mas, porque a aplicação do princípio das nacionalidades não é fácil ou sequer possível em todos os casos e porque não é o único princípio ou factor político, há Estados com pluralidade de nações e Estados com minorias nacionais ou linguísticas, étnicas e religiosas. E daí problemas de enorme delicadeza quer no tocante à subsistência da unidade de Estado, quer no tocante ao respeito dos princípios democráticos,51 a que nem sempre os respectivos ordenamentos têm sabido ou podido dar solução.

III - Em número considerável e de não pouco interesse são as situações dos Estados plurinacionais e, mutatis mutandis, dos Estados plurilinguísticos,52 dos pluriconfessionais e dos pluricomunitários. Com excepção talvez do Império Austro-Húngaro poucos eram os que em 1918 como tais se assumiam; não já depois.

A pluralidade, às vezes, determina estatutos pessoais separados, garantias específicas ou simplesmente divisão ou reserva de cargos públicos (como na Constituição libanesa de 1926 ou na cipriota de 1960). Na maior parte das vezes - até por isso poder contender com a unidade política e com a igualdade dos cidadãos - importa diferenciações territoriais, leva à adequação da forma de Estado e é uma das principais causas de federalismo ou de regionalismo político. Outras vezes, ensaiam-se sistemas mistos.53

Casos típicos de organização territorial complexa eram os da U.R.S.S. - "Estado multinacional", assente na "livre autodeterminação das nações" (art. 70º da Constituição de 1977); da Jugoslávia - "comunidade política de nações livremente unidas" (art. 1º da Constituição de 1974) e cuja presidência da República era um órgão colegial composto de tantos membros quantas as repúblicas e províncias autónomas (art. 321º); e da Checoslováquia, entre 1969 e 1992.

A Espanha, primeiro com a Constituição de 1931 e agora com a de 1978, adoptou uma estrutura diferente, mas de alcance semelhante. Se continua a invocar-se a "indissolúvel unidade da nação espanhola", reconhece-se e garante-se, ao mesmo tempo, o "direito à autonomia" das "nacionalidades e regiões que a integram" (art. 2º actual) e distinguem-se províncias ou grupos de províncias com características históricas, culturais e económicas comuns e províncias com mera entidade regional histórica (art. 143º).

Indiquem-se ainda: a China, "Estado multinacional unitário, com zonas nacionais autónomas" (arts. 4º e 112º e segs. da Constituição de 1982); a Índia, cujos Estados federados reproduzem as grandes áreas linguísticas; a Rússia, antes e depois do desmembramento da U.R.S.S. (cf., hoje, art. 3º da Constituição de 1993); e a Bélgica, com três áreas culturais, agora organizada sob forma federal.

111. A protecção das minoriasI - A problemática das minorias - nacionais ou linguísticas, étnicas ou religiosas54 - e da sua necessária protecção vem de muito longe: recordem-se o tratamento dos judeus na Idade Média, o Édito de Nantes ou as regras decorrentes dos Tratados de Vestefália e da Acta final de Viena de 1815. Somente, porém, a partir da Primeira Guerra Mundial (ou, mais recentemente, após as grandes modificações subsequentes a 1989) se lhe tem atribuído uma sistemática atenção - e tanto na Europa como nos demais continentes.

Está em causa, antes de mais, o reconhecimento aos cidadãos pertencentes a uma minoria dos

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mesmos direitos e das mesmas condições de exercício dos direitos dos demais cidadãos. Mas não basta evitar ou superar a discriminação. É necessário assegurar o respeito da identidade do grupo e propiciar-lhe meios de preservação e de livre desenvolvimento. Donde, a atribuição de direitos particulares - de direitos fundamentais próprios desses grupos, de carácter individual ou institucional - e a prescrição ao Estado de correspondentes incumbências.

Algumas Constituições contemplam expressamente a situação das minorias (v. g., os §§ 14º e 50º da Constituição finlandesa, o art. 8º da Constituição austríaca, o art. 6º da Constituição italiana, os arts. 29º, 30º e 350º da Constituição indiana, o art. 68º da Constituição húngara, reformada em 1989, o art. 6º da Constituição romena, os arts. 50º e 51º da Constituição estoniana, os arts. 5º, 64º e 65º da Constituição eslovena, o art. 10º da Constituição ucraniana, o art. 27º da Constituição polaca). E mais interessantes ainda se revelam as tentativas de garantia no âmbito do Direito das Gentes, incluindo o acesso do individuo a instâncias próprias de organização internacionais.55

Foram numerosos e alcançaram alguma efectividade os preceitos sobre minorias constantes de tratados bilaterais e multilaterais celebrados sob a égide da Sociedade das Nações. O órgão competente desta era o Conselho, chamado a intervir por qualquer dos seus Estados-Membros e ao qual podiam ser dirigidas petições.

No final da Segunda Guerra Mundial, se disposições análogas aparecem no tratado de paz com a Itália e no tratado de Estado da Áustria, a tendência tem sido para a formulação de regras multilaterais gerais: assim, o art. 5º, nº 1, alínea c), da Convenção sobre a luta contra a discriminação no domínio do ensino (aprovada pela UNESCO em 1960); o art. 27º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos56 e o nº 1, VII, da Acta final de Helsínquia (de 1975); a Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas ou Linguísticas, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1992; e a convenção-quadro para a protecção das minorias nacionais, aprovada pelo Conselho da Europa em 1994.57

O regime das minorias foi um dos precursores da protecção internacional dos direitos do homem, mas não se reconduz simplesmente a esse domínio; está também na fronteira dos direitos dos povos, como a experiência histórica vem demonstrando.

II - Diversas das minorias em sentido próprio são as comunidades de trabalhadores imigrantes e as de refugiados. Diversas, desde logo, porque elas mantêm, em geral, as suas cidadanias e laços fortes com os seus países de origem e porque resultam de causas económicas, têm fixação conjuntural e requerem, sobretudo, intervenção de reintegração social ou sociocultural.

No entanto, quando os imigrantes ou os refugiados são muito numerosos, se encontram radicados por períodos mais ou menos longos e quando se mostra difícil a assimilação nos países de acolhimento (como a dos turcos na Alemanha ou a dos norte-africanos na França), os problemas acabam por ser não muito distantes dos problemas das minorias.58

112. Povo e comunidades em diferentes estádios culturaisI - Próximo do problema das minorias é o da existência no interior das fronteiras de alguns Estados - na América, na Ásia, na Oceania e até na Europa - de comunidades ou populações em estádio cultural ou civilizacional diverso do da generalidade da população (ou da sua parte politicamente dominante). No seu conjunto ultrapassam 250 milhões de pessoas.

Tanto as minorias como as comunidades nessas condições - ditas aborígenes, indígenas ou autóctones - estão sujeitas a regras especiais, tenham estas origem nas próprias comunidades (sobretudo, então, com carácter consuetudinário) ou venham do exterior. Mas, até há poucos anos, entendia-se que diferentemente do regime das minorias, o regime dos indígenas ou aborígenes deveria visar a integração ou assimilação na comunidade estadual a que pertencessem, por só essa

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integração propiciar o desenvolvimento económico, social e cultural e o acesso à civilização moderna.59

Hoje tende-se a realçar as semelhanças não só por causa de maus resultados (ou dos maus meios) dos processos de assimilação como por a princípio da autodeterminação estar a encontrar eco nesses grupos. Daí a recusa da integração pura e simples, a afirmação da prioridade histórica, a reivindicação da identidade cultural e a procura de estatutos políticos compatíveis, tanto em nível interno quanto em nível internacional.60-61

Por outro lado, há acentuadas afinidades sociológicas entre os indigenas e os nativos de territórios coloniais ou dependentes e pode haver mesmo analogia de situações jurídico-públicas, quando os indígenas não gozem ou não gozem plenamente de direitos políticos.

No entanto, não menos avulta a diferença. Os indígenas são cidadãos de um Estado, destinados, portanto, à igualdade com os demais cidadãos. Os nativos de territórios coloniais ou dependentes não o são, fazem parte de comunidades distintas, destinada cada uma delas a constituir um novo povo, um novo Estado (ou a integrar-se noutro povo ou Estado); e, enquanto tal não se der, a sua relação com o Estado que os governa, directa ou indirectamente, é de sujeição - são súbditos no sentido literal do termo, súbditos coloniais.62

II - Na expansão ultramarina portuguesa, houve, em vários tempos e lugares, regimes especiais em razão das pessoas e comunidades locais. Foi o que aconteceu, por último, com o regime do indigenato de Angola, Moçambique e Guiné até 1961 e com o dos "vizinhos das regedorias", nos mesmos territórios, até 1974 - considere-se ou não que eram verdadeiros regimes de aborígenes ou de súbditos coloniais.63

III - No Brasil, a Constituição de 1988 dedica um capítulo aos índios, sendo índio - segundo a Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 - "todo o indivíduo de origem e ascendência precolombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional".

Aos índios são reconhecidos a sua organização social, os seus costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (art. 231 da Constituição). E, embora o ensino fundamental regular seja ministrado em língua portuguesa, são-lhes assegurados também a utilização das suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (art. 210, § 2º).

Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo para defesa dos seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os actos do processo (art. 232).64

113. As concepções político-constitucionais e ideológicas de povoI - Como comunidade política, o povo identifica-se sempre com o conjunto dos homens, sejam estes quais forem, que, em certo momento, estão sujeitos às leis do Estado e têm um laço permanente com o poder político; define-se através da cidadania. Tal é uma noção válida para todos os Estados e para todos os sistemas políticos em concreto que se conhecem.

Todavia, vêm a ser diversas e antagónicas as interpretações adoptadas acerca da comunidade política e daqueles que a integram. Distinguem-se elas em razão do papel de sujeito político efectivo que atribuem ao povo e, sobretudo, em razão da relevância que emprestam a outros factores além dos estritamente jurídicos. E essas várias maneiras de conceber o povo - por vezes, para o converter ou reconverter - e com o povo, os indivíduos, traduzem-se em normas constitucionais caracterizadoras dos sistemas e regimes políticos.

Olhando apenas às que são coevas do constitucionalismo, sem custo se reconhecem cinco mais

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significativas concepções político-constitucionais e ideológicas de povo, consoante se esteiam em critérios puramente jurídicos, em critérios económicos, em critérios rácicos, em critérios ético-históricos ou histórico-orgânicos e em critérios religiosos.

Há noções de povo que se pretendem só jurídicas: as que remontam às Revoluções americanas e francesa e prevalecem nos Estados de Direito de tipo ocidental. Há noções económico-sociais de povo: as que se encontram no marxismo e também, antes deste e com finalidade oposta, as que sustentam o sufrágio censitário. Há noções rácicas de povo: em especial, a da Alemanha nacional-socialista. Há noções ético-históricas ou histórico-orgânicas de povo: as do fascismo italiano e do nacionalismo autoritário. E há noções religiosas: as do fundamentalismo islâmico.65

II - O constitucionalismo proclamou o povo como totalidade e unidade dos cidadãos e conferiu a esse povo a soberania, o poder. "O povo soberano é constituído pela totalidade dos cidadãos franceses" (art. 7º do "acto constitucional" inserido na Constituição francesa do ano I).

O povo aparece como um conjunto de homens livres que agem racionalmente. Trata-se, porém, de uma noção ideal e abstracta, de um povo de "indivíduos sem individualidade";66 e, por outro lado, de uma noção em correspondência com a dominância burguesa na sociedade, traduzida, designadamente, no sufrágio censitário e capacitário.

Pretende-se ligar a participação na formação da vontade soberana à capacidade de assumir responsabilidades familiares, à propriedade ou a outras funções sociais. E, se com isso se supõe acautelar o correcto exercício do voto e o bem comum, objectivamente são um critério económico e uma opção de classe que avultam. O conceito de povo liberal é também um conceito de povo burguês - a que se contrapõe o povo dos que aspiram ao acesso à cidadania plena.

Quanto se fez a seguir foi para tentar vencer a contradição. O progressivo alargamento do sufrágio, ao longo de décadas, visou aproximar do povo jurídico o povo politicamente activo. E veio modificar tanto a consideração interna do povo correspondente à sociedade como o próprio Estado-poder - porque a ascensão das classes trabalhadoras tira à burguesia, pelo menos, o exclusivo do governo, desloca o fulcro das deliberações colectivas e provoca o aparecimento de novas formas institucionais. O "advento do povo real", do homem "concreto" e "situado"67 equivale ao advento do conceito democrático de povo.68

Para lá da silhueta esboçada do povo, vislumbra-se, portanto, quer numa quer noutra fase da evolução do Estado constitucional elementos, forças, interesses, motivações doutra índole. Todavia, as mudanças de estrutura social e económica que se operam vão inserir-se num mesmo quadro fundamental de referência e, assim, se garante a continuidade jurídica. Precisamente por se recortar nos mais amplos termos, a noção de povo como universalidade de cidadãos pretende-se dotada da virtualidade de se adaptar a essas mudanças e de fazer dos homens situados cidadãos optimo jure.69

III - O conceito marxista de povo apresenta-se, em primeiro lugar, como resposta à noção e à prática burguesas e, em segundo lugar, como resultado da análise, até às últimas consequências, da situação económica relativa das pessoas e dos grupos dentro da comunidade política.

É um conceito que privilegia a posição perante os bens e as relações de produção e que se prende com a vontade de as transformar de acordo com a concepção do homem e da vida própria do materialismo histórico e dialéctico - de acordo com a concepção do individuo concreto e "socializado"70 o que está em causa é substituir a actual divisão da sociedade em classes por uma unidade construída a partir da revolução feita pelo proletariado, em que se alterem tanto a natureza da comunidade política como o estatuto do indivíduo. O povo não pode abranger explorados e exploradores, somente pode abranger as classes trabalhadoras ou as classes revolucionárias.

A emancipação política, escreve Marx, reduz o homem, por um lado, ao membro da sociedade civil, ao indivíduo egoísta independente, e, por outro lado, ao cidadão, à pessoa moral. "Será apenas quando o homem real individual retomar em si o cidadão abstracto e se tornar, na sua vida empírica, no seu trabalho, nas suas relações individuais, um ser genérico, será apenas quando ele reconhecer e

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organizar as suas forças próprias como forças sociais e não mais separar de si a força social sob a forma de força polífica, será apenas nessa altura que se consumará a emancipação humana".71-72

A primeira e a quarta Constituições soviéticas continham conceitos de povo - qualificado segundo o povo activo - paradigmáticos das duas sucessivas fases de "ditadura do proletariado" e de "Estado de todo o povo": "A República Russa é uma livre comunidade socialista de todos os trabalhadores da Rússia. Todo o poder … pertence à totalidade da população operária do país, organizada nos sovietes das cidades e dos campos" (art. 10º da Constituição de 1918); "A U.R.S.S. é um Estado socialista de todo o povo, que exprime a vontade e os interesses dos operários, dos camponeses e dos intelectuais, trabalhadores de todas as nações e etnias do país" (art. 1º da Constituição de 1977). E na actual Constituição chinesa, de 1982, ainda se lê: "A República Popular da China é um Estado socialista subordinado à ditadura democrático-popular da classe operária e assente na aliança de operários e camponeses" (art. 1º).

IV - Na Alemanha do nacional-socialismo - mas a ideia tinha antecedentes aí e noutros países73 - dominou um conceito de povo na base de critérios biológicos mitigados historicamente.

O povo, de harmonia com a doutrina nacional-socialista, não é nem o conjunto dos cidadãos, nem uma unidade política; é uma unidade étnica que repousa na comunidade de sangue.74 Esta, porém, não se confunde com uma nação única, até porque, em qualquer povo, se encontram elementos de várias raças. A unidade nacional aparece quando uma história e uma civilização comuns operam uma ligação constante entre essas raças, já que uma delas (a raça nórdica no caso alemão) terá sempre a preponderância e imporá a sua marca própria.

O fim supremo é a conservação do povo e da raça. O Estado possui mero valor secundário diante desse fim e da vontade do Führer: o Estado não é senão a organização política do povo conduzido pelo Führer, o qual toma as decisões, faz as leis, dá ordens à administração e, assim, colabora também na formação do espírito popular (Volksgeist).75

V - As concepções ético-históricas ou histórico-orgânicas de povo têm de comum o diluírem o povo numa realidade mais ampla que o ultrapassa, em nome de imperativos mais fortes, sejam imperativos do Estado, sejam imperativos da Nação. "Tudo pelo Estado, nada contra o Estado" é o lema do fascismo italiano. "Tudo pela Nação, nada contra a Nação", é o lema do nacionalismo autoritário português.

Eticismo objectivo, conúbio de idealismo hegeliano e de activismo vitalista,76 o fascismo é a teoria da minoria activa que age, não em nome do princípio político da nação, mas em nome de uma noção metafísica de nação.77 E essa ideia de nação - ou de povo - surge implicada com o poder do Estado, do Estado que é "a verdadeira realidade do indivíduo" (Mussollini).

Do prisma histórico, social, orgânico, o povo é, não uma massa, uma multidão, uma soma, um número, mas uma colectividade irredutível aos elementos que a compõem, aos indivíduos; o todo está antes e é mais que as partes em sentido aristotélico, e universitas non solvitur in singularitates; é um ente em si, um sujeito, uma pessoa ideal, espiritual ou moral, mesmo se não jurídica; é um "organismo ético", no sentido hegeliano.78

"A Nação Italiana é um organismo com fins, vida e meios de acção superiores, pelo poder e pela duração, aos dos indivíduos, isolados ou associados, que o constituem. É uma unidade moral, política e económica, que se realiza integralmente no Estado Fascista" (art. 1º da Carta del Lavoro).79 "A Nação Portuguesa constitui uma unidade moral, política e económica, cujos fins e interesses dominam os dos indivíduos e grupos que a compõem" (art. 1º do Estatuto do Trabalho Nacional).

Na Nação Portuguesa, afirma Oliveira Salazar, estão encorporados e por ela vivem os indivíduos, as famílias, os organismos privados e públicos. E na unidade resultante da sua integração e da concordância profunda dos seus interesses, ainda que às vezes aparentemente contrários, não há que separá-los ou opô-los, mas que subordinar a sua actividade ao interesse colectivo. Nada contra a

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Nação, tudo pela Nação.80

Há, para Marcello Caetano, duas acepções do termo nação: como povo português, elemento humano do Estado, e como comunidade cultural transpessoal "formada pela ininterrupta cadeia de gerações onde se conserva e elabora tudo o que dá carácter aos portugueses e os diferencia no mundo, e donde resultam imperativos a que o Estado como expressão política da unidade nacional e instrumento da sua missão ecuménica tem de se subordinar".81 E a soberania nacional não se confunde com a soberania popular, porque esta assenta na manifestação da vontade do povo pelos eleitores, enquanto aquela existe mesmo quando interpretada, e até adivinhada, pelos homens de escol que sabem dar consciência a tendências latentes, mas ignoradas ou passivas no seio da colectividade. - Mas a soberania nacional é compatível com a soberania popular, se admitirmos que em certo grau de evolução da Nação os seus cidadãos e as sociedades primárias que a integram estão aptos a traduzir a consciência e a vontade actuais da comunidade, embora não sejam senhores de dispor dela e devam ser considerados meros depositários do poder para exercerem a delicada função de realizar no presente a continuação do passado e a preparação de um futuro segundo a mesma linha de continuidade tradicional".82

Com relativa facilidade se reconhece que, apesar das semelhanças, a noção fascista italiana e a noção nacionalista portuguesa possuem sentidos diversos: a segunda está mais próxima das concepções românticas antiliberais do século XIX83 e tem um cunho conservador, mas não totalitário.

VI - Para o fundamentalismo islâmico,84 não pode existir separação entre a esfera política e a esfera religiosa, o povo é a comunidade dos crentes e a lei islâmica deve vigorar como lei civil.

A República Islâmica do Irão, proclamada em 1979, apresenta-se com a experiência mais radical de realização desta ideia85 e a sua Constituição, de 1986, patenteia-a bem impressivamente.

Assim, a República Islâmica é um "sistema baseado na fé" (art. 2º), em que o povo é "chamado à virtude" e "os crentes, homens e mulheres, são amigos uns dos outros, rejubilam no Bem e proíbem o Mal" (Alcorão, 9:71) (art. 8º).

Os princípios islâmicos são limites aos direitos dos cidadãos e critério de acção do Estado (arts. 21º, 24º, 27º e 28º), embora o governo e todos os muçulmanos sejam obrigados a conduzir-se "com moderação, justiça e equidade" para com os não muçulmanos e devam salvaguardar os direitos destes (art. 14º, 2ª parte) e a nacionalidade seja um "direito absoluto" de todos os cidadãos (art. 41º).

Por outro lado, logicamente, os poderes soberanos exercem-se sob a supervisão dos dirigentes religiosos (art. 57º).

Eis um programa que aponta para a teocracia e se afasta da moderna construção do Estado, como que pretendendo o retorno a concepções das primeiras épocas muçulmanas (sem embargo da aceitação de certas formas jurídicas de origem europeia).

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CAPÍTULO III - A Cidadania

114. Povo e cidadaniaI - O povo abrange os destinatários permanentes da ordem jurídica estatal. Em face desta, os homens dividem-se em duas categorias: aqueles cuja vida social está toda submetida à sua regulamentação, e aqueles que não estão em contacto com ela ou só em contacto acidental ou transitório.

A vocação primária das leis do Estado é para se aplicarem em razão das pessoas e não em razão de outros factores. As leis do Estado são pensadas e editadas para os membros da comunidade política, tendo em conta as suas experiências e os seus projectos comuns e os circunstancialismos concretos em que se encontram; só por via diversa, de harmonia com princípios de Direito internacional ou com outras regras, atingem os estrangeiros, ou sejam, os destinatários doutras ordens jurídicas estatais ou os que não são destinatários de nenhuma (apátridas ou apólidas).

Por certo, do território depende largamente essa aplicação e só no seu território o Estado pode dar força executiva e sancionatória às leis que decrete. Mas isso não impede que as situações jurídicas que afectem cidadãos do Estado ou em que intervenham cidadãos do Estado possam ser contornadas pelo ordenamento estadual onde quer que decorram. E, por outra banda, tem sempre o Estado um dever geral (e, por vezes, deveres específicos) de protecção dos seus cidadãos frente aos Estados em cujos territórios residam.

Eis, portanto, um princípio de pessoalidade, inerente ao Estado moderno - como mutatis mutandis ao Estado grego e ao romano1 - ainda que se lhe não possa atribuir um alcance absoluto e indiscriminado;2 ou, falando em âmbito jurídico-constitucional, um princípio de cidadania.

II - Ao conceito de povo reporta-se o de cidadania. Cidadãos são os membros do Estado, da Civitas, os destinatários da ordem jurídica estatal, os sujeitos e os súbditos do poder.

Não existem, contudo, apenas, como se sabe, Estados - ou só Estados soberanos. Para além deles existiram em número considerável e ainda existem outras comunidades políticas, em face das quais se estabelecem qualidades ou vínculos similares aos da cidadania: assim, a condição de súbditos feudais, a dos súbditos coloniais, a dos cidadãos de Estado sem acesso ou sem acesso pleno à vida internacional, ou a dos territórios associados ou internacionalizados;3 e daí entrosamentos com as leis dos Estados soberanos a que possam estar ligados.4

Por outro lado, em Estado complexos (Estados federais, uniões reais) ocorre um desdobramento da cidadania em moldes variáveis, embora (salvas algumas excepções), seja sempre a cidadania do Estado central a determinar ou a preceder a cidadania correspondente a qualquer das entidades competentes.

Diversamente, em confederações, em organizações internacionais e noutras entidades de Direito internacional não pode falar-se, em rigor, em cidadania, nem é uma verdadeira cidadania a cidadania europeia consagrada a partir do Tratado de Maastricht ou de União Europeia, de 1992.

III - Cidadania é a qualidade de cidadão. E por este motivo, a palavra "nacionalidade" - embora mais corrente e não sem conexão com o fundo do Estado nacional - deve ser afastada, porquanto menos precisa. "Nacionalidade" liga-se a nação, revela a pertença a uma nação, não a um Estado.5 Ou, se se atender a outras utilizações consagradas, trata-se de termo com extensão maior do que cidadania: nacionalidade têm as pessoas colectivas e nacionalidade pode ser atribuída a coisas (navios, aeronaves),6 mas cidadania só possuem as pessoas singulares.7

Cidadania significa ainda, mais vincadamente, a participação em Estado democrático. Foi nesta perspectiva que o conceito foi elaborado e se difundiu após a Revolução francesa. E se, por vezes, parece reservar-se o termo para a cidadania activa, correspondente à capacidade eleitoral,8 a restrição acaba por radicar ainda na mesma ideia.

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IV - A determinação da cidadania de cada indivíduo equivale à determinação do povo (e, portanto, do Estado) a que se vincula. Tal como a determinação de quem compõe em concreto certo povo passa pelo apuramento das regras sobre aquisição e perda da cidadania aí vigentes.

Trata-se, antes de mais, de problema a equacionar pelo Direito interno de cada Estado. É cada Estado que, interpretando o modo de ser da comunidade que lhe dá vida, escolhe e fixa os critérios da cidadania. E há dois tipos fundamentais de critérios: o da filiação ou jus sanguinis -9 vindo da Grécia e de Roma, em conexão com a estrutura dos respectivos Estados, e hoje prevalecente em Estados de formação antiga - e o do local de nascimento ou jus soli - vindo da Idade Média, por influência dos laços feudais e hoje prevalecente em Estados jovens e de imigração.

Por isso mesmo se trata também do problema substancialmente constitucional, a colocar em sede de Direito constitucional, embora com pressupostos de Direito civil e com incidências directas em Direito internacional privado e em todos os outros sectores.10 As regras sobre quem é ou deixa de ser cidadão constituem (rigorosamente, no plano jurídico) o Estado.

Mas a matéria depende outrossim (e, antes de mais) do Direito internacional,11 porque nenhum Estado poderia gozar de uma liberdade ilimitada no estabelecimento daqueles critérios; bem ao invés, cada Estado tem de os definir reconhecendo a existência dos restantes Estado e, por conseguinte, está adstrito a certas balizas. Além disso, avulta a necessidade de regras destinadas a evitar ou a resolver conflitos positivos (pluricidadania ou pluripatridia) ou negativos (apatridia, apolidia) de cidadania.

V - A cidadania apresenta-se como status e apresenta-se, simultaneamente, como objecto de um direito fundamental das pessoas.

Num mundo em que dominam os Estados, participar num Estado é participar na vida jurídica e política que ele propicia e beneficiar da defesa e da promoção de direitos que ele concede -12 tanto na ordem interna como nas relações com outros Estados. Num mundo em que se intensifica a circulação das pessoas e em que, apesar de todas as adversidades, se afirma a liberdade individual, a pertença a uma comunidade política, sendo embora permanente, já não tem de ser perpétua como noutras épocas: o direito à cidadania vai ser acompanhado, dentro de certos limites, de um direito de escolher a cidadania.Em contrapartida (ou, em contrapartida, só prima facie) num mundo em que se evidenciam afinidades (culturais, políticas, económicas) entre alguns Estados ou em que se visa criar grandes espaços, a concepção tradicional da unidade e exclusividade da cidadania aparece, por vezes, atenuada - mormente através de convenções de dupla nacionalidade e da extensão a certos estrangeiros de direitos, em princípio, reservados a cidadãos do próprio Estado.13

115. A cidadania no Direito internacionalI - Numa brevíssima referência do Direito internacional (por mais não caber na economia deste livro), saliente-se que aí a cidadania é principalmente objecto de princípios gerais ou de regras consuetudinárias, e só em segundo nível de convenções multilaterais e bilaterais. Nem poderia deixar de ser assim tendo em conta a natureza do fenómeno e a estrutura da comunidade internacional.

Segundo o mais importante tratado sobre a matéria - a Convenção da Haia, de 1930, relativa aos conflitos de leis no domínio da nacionalidade - as leis de cada Estado somente devem ser observadas pelos restantes Estados, desde que estejam de acordo com as convenções internacionais, o costume internacional e os princípios de direito reconhecidos.

O Direito das Gentes devolve para o Direito interno de cada Estado a definição das regras de aquisição e de perda da cidadania respectiva. Ou seja: confere competência para tanto aos órgãos estatais14 e adstringe os demais Estados a respeitar as suas decisões - tanto normativas como não

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normativas - pertinentes à cidadania de qualquer pessoa.15 Mas, ao mesmo tempo, prescreve princípios, parâmetros, grandes directrizes a que ficam sujeitos os diversos ordenamentos e que traduzem aquisições comuns.

Em resumo, ao Direito internacional não cabe, só por si, atribuir ou retirar a quem quer que seja a cidadania deste ou daquele Estado; apenas cabe estabelecer condições de relevância,16 declarar ineficaz ou inoponível erga omnes um acto de Direito interno que contrarie os seus princípios e cominar responsabilidade para o Estado seu autor.17

II - O primeiro dos princípios gerais de Direito internacional sobre cidadania é o da ligação efectiva (entenda-se ou não como reflexo do postulado da efectividade). Um Estado apenas pode atribuir a sua cidadania a pessoa que com ele tenha uma relação efectiva, sociológica, sem formalismos ou artificialismos;18 apenas pode ser reputado como originariamente cidadão de um Estado um indivíduo que se lhe encontre ligado por qualquer vínculo material evidente;19 e o mesmo se diga mutatis mutandis quanto à aquisição da cidadania por facto posterior ao nascimento.20

De certa maneira, é um corolário deste princípio a exclusão do regime do jus soli quanto aos filhos dos diplomatas ou de outras agentes de Estados estrangeiros nascidos no país onde um dos pais está prestando serviço. Considera-se mais efectiva a ligação ao Estado de origem do que ao Estado do local de nascimento.

Tão pouco pode, qualquer Estado dispor sobre as condições de aquisição e de perda de uma cidadania estrangeira. Poderá fazer depender a atribuição da sua cidadania a um estrangeiro da renúncia deste à cidadania anterior; não poderá, por acto de autoridade, determinar essa renúncia. Se o fizer, a sua prescrição será, em absoluto, irrelevante (pelo menos no domínio jurídico-internacional).

A aquisição e a perda da cidadania revestem, em princípio, alcance individual e não colectivo. Para que afectem categorias ou grupos de pessoas, para que se estendam a uma pluralidade de indivíduos, têm de se verificar vicissitudes extraordinárias, como formação de novos Estados ou modificações territoriais significativas; e importa então encontrar o equilíbrio entre os legítimos interesses do Estado recém-constituído ou recém-administrante de certo território (que não pode ser obrigado a conceder a sua cidadania a todos os habitantes) e as legítimas expectativas destes (os quais não podem ser tratados arbitrariamente).21

A naturalização ou qualquer outra forma de aquisição superveniente da cidadania pressupõe o consentimento;22 e este deve ser dado, em regra, explicitamente e não pelo silêncio,23 para garantia da liberdade das pessoas.

Ocorrendo pluricidadania ou polipatridia, se a pessoa em causa se encontrar no interior do território de um dos Estados a que está vinculada, em princípio aí só poderá invocar a correspondente cidadania; e, se se encontrar no território de terceiro Estado, haverá aí de invocar a cidadania do Estado com que mantiver relação efectiva ou activa.24 O que não poderá será invocar a cidadania de um Estado contra a do outro.25

Ocorrendo apatridia, o Estado no qual o indivíduo residir ou com que tiver qualquer outra ligação efectiva terá a faculdade de lhe atribuir a sua cidadania.26

III - Recolhendo e sintetizando toda essa experiência e indo ao encontro de uma longa aspiração, agora mais sentida, a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclama, no seu art. 15º: "1. Todo o indivíduo tem direito a uma nacionalidade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade."27 E o Pacto Internacional de Direitos Civil e Político estabelece que "todas as crianças têm o direito de adquirir uma nacionalidade" (art. 24º, nº 3).

Há aqui dois direitos - 28 sobretudo o primeiro do maior relevo e ao qual corresponde a obrigação do Estado de atribuir a sua cidadania ou de não privar dela um indivíduo que com ele tenha uma

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ligação efectiva e que não adopte um comportamento de sentido contrário.29 E liga-se a cidadania à vontade, admitindo-se o direito de opção por cidadania diferente da que se possua.30

Por seu turno, a garantia contra privações arbitrárias consiste na garantia de processos jurídicos regulares, com meios de defesa assegurados, e, especialmente, a proibição de privações por motivos políticos, ideológicos, religiosos ou rácicos31 (como as que fizeram diversos regimes totalitários ao longo deste século, inclusive contra residentes no próprio território do Estado).

Na linha da Declaração Universal, a Convenção sobre Redução da Apatridia, de 1961, transformou em obrigação para as suas partes, em certos casos, a faculdade dos Estados de atribuição da sua cidadania dos indivíduos com ligação efectiva com eles e, que, doutro modo, seriam apátridas; e fez depender a perda da cidadania, em face de determinados Estados, da posse ou aquisição da cidadania doutro Estado.

116. A condição jurídica dos estrangeirosI - Tal como a cidadania, a condição dos estrangeiros, a estrangeiria, depende simultaneamente do Direito legislado de cada Estado e do Direito das Gentes. A diferença reside em que os cidadãos estão sujeitos directa, natural e plenamente à lei do seu país, salvas as limitações decorrentes das normas internacionais recebidas na ordem interna, ao passo que os estrangeiros - sejam cidadãos de outro Estado ou apátridas - só lhes estão vinculados transitória e precariamente e o seu estatuto é recortado a partir do Direito internacional.32

Nem sempre assim foi: em Roma, por exemplo, chegou a formar-se um Direito interno especial para os estrangeiros ou peregrinos, o jus gentium.33 Mas no sistema europeu de Estados surgido na Idade moderna, o lugar primacial tem pertencido ao Direito internacional e só depois tem intervindo o Direito interno. Em contrapartida, o Direito internacional convencional não molda de forma completa e uniforme a condição dos estrangeiros.

De qualquer sorte, dois pontos de base parecem hoje34 evidentes: em primeiro lugar, que os estrangeiros devem ter uma condição jurídica compatível com a dignidade da pessoa humana, que devem ser tratados como homens e mulheres livres e usufruir, por conseguinte, dos direitos que daí decorrem; e, em segundo lugar, que podem estar privados de direitos políticos, ou, pelo menos, de participação na formação das decisões fundamentais do Estado. Entre estas balizas abre-se uma gama variada de soluções consoante os diversos ordenamentos jurídicos internos e as circunstâncias culturais, políticas e económicas de cada tempo.

II - Em Direito internacional, o estatuto dos estrangeiros compreende um núcleo firme e mais elevado de princípios sedimentados na Declaração Universal, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e noutros textos produzidos pelas Nações Unidas - princípios reconduzíveis a jus cogens, inderrogáveis por qualquer tratado;35 compreende depois os princípios e as regras consuetudinárias que lhes são conexos ou que os complementam; e compreende ainda numerosíssimas regras constantes de convenções bilaterais ou, em certos casos, multilaterais.36

As regras de Direito internacional geral não pretendem estabelecer uma homogeneização ou equiparação plena dos cidadãos dos diversos Estados; procuram apenas promover um tratamento razoável dos estrangeiros como pessoas, à luz da consciência ética universal ou dominante no nosso tempo. Equiparação ou tratamento mais favorável, com ou sem reciprocidade, visam, sim, os tratados e acordos (v. g., de emigração, de segurança social, de cooperação, de igualdade de direitos) celebrados entre estes ou aqueles Estados, com base em laços históricos ou em factores de outra natureza.

Por outro lado, os direitos dos estrangeiros contemplados por tais normas não são, de ordinário, no estádio actual do Direito das Gentes, verdadeiros direitos subjectivos internacionais dos indivíduos que eles possam invocar directa e imediatamente enquanto tais. São, antes, direitos que os Estados

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concedem aos cidadãos doutros Estados por força de normas jurídicas que os vinculam entre si e cuja violação envolve responsabilidade desses mesmos Estados. Somente à face de algumas - e, por agora, bem poucas - convenções se opera uma personalização internacional dos indivíduos.

III - A Declaração Universal, proclamando que todos os seres humanos nascem livre e iguais em dignidade e direitos (art. 1º), consagra as seguintes regras relevantes para os estrangeiros:

a) A proibição de discriminações entre estrangeiros (impostas arbitrariamente pelo Estado local) - pois não se admitem distinções de origem nacional, nem fundadas no estatuto do país ou território de naturalidade das pessoas (art. 2º);

b) O reconhecimento a todos os indivíduos, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica (art. 6º);

c) O direito de qualquer pessoa de abandonar o país em que se encontre (art. 13º, nº 2);

d) O direito de qualquer pessoa sujeita a perseguição de procurar e de beneficiar de asilo em outro país (art. 14º).

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos37 acrescenta o direito de qualquer estrangeiro que se encontre legalmente no território de um Estado-parte de não ser expulso a não ser em cumprimento de decisão tomada em conformidade com a lei, e o direito, salvo motivos imperiosos de segurança nacional, de fazer valer as razões que militam contra a expulsão e de as levar à apreciação da autoridade competente (art. 13º).

Assinalem-se ainda, entre outros textos feitos no desenvolvimento da Declaração Universal, a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados (estendida a novas categorias de pessoas por um protocolo de 1966), o Protocolo Adicional nº 4 (de 1963) à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Convenção de 1965 sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Declaração sobre Asilo Territorial (aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1967), o art. 22º da Convenção Interamericana dos Direitos do Homem e o art. 12º, nº 3, da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.

As Convenções sobre Refugiados e Apátridas (muito parecidas) consignam um princípio geral de não discriminação dos refugiados e dos apátridas entre si e deveres e direitos perante os Estados que os acolhem - dever de obediência às leis e direitos e garantias respeitantes à religião, à propriedade, à associação não política, ao exercício da profissão, à liberdade de circulação, à concessão de títulos de viagens para o exterior, à transferência de bens, às facilidades de naturalização, aos direitos sociais, etc.

Sob reserva de disposições mais favoráveis, os Estados-partes concedem aos apátridas o regime que concedem aos estrangeiros em geral e, ao fim de três anos, os refugiados beneficiam de dispensa de reciprocidade legislativa. Em caso de expulsão, os Estados-partes comprometem-se a dar aos refugiados ou aos apátridas um prazo razoável que lhes permita procurar entrar regularmente em qualquer outro Estado. E nenhum Estado expulsará ou repelirá qualquer refugiado para um território onde a sua vida ou a sua liberdade possam correr riscos.

A Convenção sobre Discriminação Racial não só obriga a modificar, revogar ou anular leis discriminatórias e a pôr termo a discriminações praticadas por quaisquer pessoas ou grupos como vincula os Estados partes a adoptar, se as circunstâncias o exigirem, medidas especiais e concretas para assegurar, nos domínios social, económico e cultural, o desenvolvimento de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos, a fim de lhes garantir, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos e liberdades fundamentais.

Quanto à Declaração sobre Asilo Territorial, dela constam dois pontos novos: que o asilo concedido por um Estado, no exercício da sua soberania e segundo a qualificação das causas que o justificam, deve ser respeitado pelos demais Estados; e que a comunidade internacional deve procurar contribuir, em espírito de solidariedade, para aliviar as dificuldades que, devido à concessão do asilo, se coloquem a qualquer Estado.

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No Direito internacional latino-americano reconhece-se ainda o direito de asilo diplomático.38

IV - Nenhum estrangeiro tem, à face da ordem internacional, direito de entrada no território de outro Estado (ao contrário do que sucede com os cidadãos deste); mas, uma vez admitido, fica o Estado adstrito a tratá-lo de modo justo segundo um critério objectivo (que pode, no limite, envolver direitos não conferidos, aos seus cidadãos).39

Englobam-se aqui, designadamente:

a) Não haver interdição de entrada de estrangeiros que sejam cidadãos de Estado com o qual o Estado local mantenha relações pacíficas, a não ser quando eles se proponham fins ilícitos ou o interesse público o não consinta;

b) Não haver expulsão de estrangeiros, designadamente de refugiados e apátridas,40 em tempo de paz senão quando o seu comportamento ponha em perigo a ordem e a segurança pública;41

c) O respeito dos direitos adquiridos pelos estrangeiros, com o correspondente direito a indemnização em caso de prejuízo;

d) Certas formas de protecção do emprego e dos direitos dos trabalhadores migrantes;42

e) As garantias da segurança pessoal, incluindo a protecção penal contra quaisquer actos, venham de particulares ou de agentes de autoridade;

f) O direito de acesso a tribunal;

g) A imposição aos estrangeiros do respeito pelas leis e instituições do Estado local, mas não de actos ou actividades (v. g., serviço militar) contrários aos vínculos da cidadania a que estejam sujeitos;

h) Não haver impedimento à livre saída de estrangeiros do país.43

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CAPÍTULO IV - O Poder Político§ 1º Poder E Soberania

117. Estrutura e função do poderO Estado surge em virtude de se instituir um poder que transforma uma colectividade em povo. Esta instituição é (como salientámos), um fenómeno jurídico - ainda quando nasce à margem de actos previstos em normas ordenadas a esse resultado; e a própria criação revolucionária do poder é portadora de juridicidade plena, pois que não só define relações jurídicas entre os cidadãos como se funda no Direito natural ou, se se preferir, na ideia do Direito dominante na colectividade em certa circunstância.1

Constituir o Estado equivale a dar-lhe a sua primeira Constituição, a lançar as bases da sua ordem jurídica, a dispor um estatuto geral de governantes e governados. Todo o Estado, porque constituído, tem Constituição nesta acepção - em sentido institucional (por inerente à institucionalização do poder).

O poder político é, por consequência, um poder constituinte enquanto molda o Estado segundo uma ideia, um projecto, um fim de organização. E este poder constituinte não cessa quando a Constituição material fica aprovada; ele perdura ou está latente na vigência desta, confere-lhe consistência, pode substituí-la por outra em face da realidade política, económica e social sempre mutável.

Mas o Estado não existe em si ou por si; existe para resolver problemas da sociedade, quotidianamente; existe para garantir segurança, fazer justiça, promover a comunicação entre os homens, dar-lhes paz e bem-estar e progresso. É um poder de decisão no momento presente, de escolher entre opções diversas, de praticar os actos pelos quais satisfaz pretensões generalizadas ou individualizadas das pessoas e dos grupos. É autoridade2 e é serviço.3

Repartido juridicamente por órgãos e agentes do Estado, o poder toma, por outro lado, a configuração de um conjunto de competências ou poderes funcionais de tais órgãos, poderes esses estabelecidos pela Constituição, poderes constituídos e, portanto, definidos e circunscritos pelas suas normas.

Aumentando as necessidades sociais e aumentando a consciência da necessidade de intervenção e conformação pelo Estado, de crescente complexidade se revestem as suas funções e os seus meios. Daí, igualmente, uma organização cada vez mais intrincada, segundo leis e regulamentos cada vez mais numerosos, que internamente disciplinam órgãos e agentes e externamente fixam os seus poderes, deveres, tarefas e incumbências em face dos cidadãos e dos grupos.

Finalmente, o Estado vive em relação com outros Estados, em intercâmbio também, por seu turno, cada vez mais intenso em todos os domínios. O Estado é parte da comunidade internacional, da qual emergem múltiplas regras, de natureza consuetudinária e não consuetudinária, celebra tratados com os outros Estados, integra-se em organizações dotadas de faculdades normativas. E, nesse plano, está ainda sujeito a regras e a princípios de Direito - de Direito internacional.

118. O problema da limitação do poder pelo DireitoI - O Estado não pode, pois, viver à margem do Direito (nunca é de mais insistir). Ele actua sempre através de processos ou procedimentos jurídicos ou de operações materiais que remontam a normas de competência. Significa isto, porém, que o poder político se submete efectivamente ao Direito? Significa isto que os detentores do poder observam, na prática, a Constituição e a lei?

Mesmo que haja um ou mais órgãos encarregados de velar pela conformidade dos actos do Estado com o Direito, quis custodiet custodes? A quem cabe a última palavra? Em definitivo, quem decide

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eventuais conflitos e declara as situações jurídicas recíprocas das entidades públicas e dos particulares?

E, declarado o direito, tem de se passar à execução. Admitindo que um tribunal profere uma sentença desfavorável ao Estado - o que, à primeira vista, dir-se-ia paradoxal, porquanto o tribunal funciona como órgão desse mesmo Estado - será possível obrigá-lo a prestar-lhe acatamentos? Como explicar a execução das sentenças pelo Estado?

Por ser de homens, a autoridade está tão propensa a infringir as normas jurídicas como a liberdade humana individual. Tem então de se averiguar se é racional recorrer a um sistema de sanções. Pois, se algum indivíduo viola a lei, logo aquela autoridade, de regra, o vai ferir de uma sanção; ao passo que o Estado é o próprio titular do poder sancionatório e, como tal, aparentemente, insusceptível de a sofrer.

Recai-se, de novo, na controvérsia sobre o conceito de Direito. A opinião ainda dominante fala em coercibilidade. Mas, como não se afigura fácil explicar como pode o Estado ser objecto de sanção coactiva, de duas uma: ou a coercibilidade é característica de norma jurídica, e então o Direito público não é Direito na plena acepção do termo; ou a coercibilidade não é característica do Direito.

Este o problema da limitação jurídica do poder político, conforme habitualmente é posto.

II - É impossível discutir aqui o ploblema, o qual careceria de ser examinado e equacionado em instância de Filosofia do Direito e do Estado. Mas queremos reiterar clara adesão às teses que afirmam a limitação do Estado pelo Direito - mesmo pelas leis por si decretadas - porque sem o seu cumprimento não subsistiria a organização indispensável ao perdurar do poder e seria destruída a segurança em que assenta a comunidade jurídica.

O Estado está adstrito ao seu próprio Direito positivo, seja este qual for, por uma necessidade lógica de coerência e de coesão social. E isto até porque, como diz Gustav Radbruch,4 "o positivismo jurídico e político pressupõe, quando levado logicamente às suas últimas consequências, um preceito jurídico de direito natural na base de todas as suas construções". Eis esse preceito: "Quando numa colectividade existe um supremo governante, o que ele ordenar deve ser obedecido." Ora, só os governantes, pela circunstância de o serem, se acham em condições de poder pôr termo por meio dum acto de autoridade à luta das opiniões - ou melhor, em condições de poderem impor, eles, uma decisão e de a tornarem eficaz - o que equivale a reconhecer unicamente neles o poder de garantia a segurança do direito. Mas se esta garantia da segurança jurídica é que constitui o fundamento e o título justificativo do poder dos governantes para fundar e criar o direito... são ainda essa mesma garantia e essa mesma segurança jurídica que devem afinal servir também de limites a esse mesmo poder." Continua Radbruch: "Só por via da obrigatoriedade das suas leis e da certeza dessa obrigatoriedade, é que o Estado tem o poder legislativo. Mas uma tal certeza e a segurança que lhe está ligada desapareceriam, se o Estado pudesse, ele próprio, libertar-se da obrigatoriedade das suas leis. Ou, por outras palavras: pode dizer-se que o Estado não é chamado ao poder de legislar senão porque promete, e não pode deixar de prometer, sujeitar-se às leis que ele próprio faz; esta sujeição é a condição para ele poder ser chamado a legislar. E, assim, pode também dizer-se que os dois preceitos jurídicos de direito natural - o que estabelece o poder legislativo de todo o governante e o que estabele a sujeição desse mesmo governante às suas próprias leis - se acham indissoluvelmente ligados um ao outro. Os governantes cessariam de ter o direito de legislar, desde que procurassem fugir ao cumprimento e respeito devido às suas próprias leis, comprometendo assim, eles próprios, a segurança jurídica. É no mesmo momento em que o poder é assumido por alguém que é também por esse alguém assumida, necessária e iniluludivelmente, a obrigação de fundar um Estado-de-direito... Em resumo: é ainda um direito suprapositivo e natural que obriga o Estado a manter-se sujeito às suas próprias leis. O preceito jurídico que isto determina é o mesmo que serve de fundamento à obrigatoriedade do direito positivo."

III - Pode considerar-se, não sem razão, este tipo de limitação do Estado pelo Direito como

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puramente formal: porque, se o Estado deve obediência às suas leis enquanto vigorem, também pode revogá-las, substituindo ou negando os direitos e garantias que daquelas constem.

No entanto, diante dos condicionalismos políticos, económicos, sociais e culturais em que o Estado se move, podem os governantes encontrar obstáculos para retirar ou apagar direitos e garantias dos indivíduos e dos grupos, pois as reacções e as resistências nem sempre são de afastar e, na nossa época, ganham ressonância internacional. E, por outro lado, as formas jurídicas possuem um dinamismo próprio, visto que as leis, uma vez decretadas, desprendem-se de quem as tenha feito, valem por si e o seu objectivo pode servir intenções ou interesses diferentes dos que tiveram em vista os seus autores.

IV - Para além disto, que já é muito, importa ter em conta que a limitação do poder político pode e deve procurar-se noutra sede: em sede de uma limitação material, e não só formal, através de um conteúdo preceptivo que se impõe por si ou através da referência a valores permanentes e superiores a qualquer decisão política.

Do que se trata então não é de limitação pelas formas dos actos, mas de limitação por regras que impeçam o poder de invadir (ou deixar invadir por outros poderes sociais) as esferas próprias das pessoas. Limitação material significa disciplina do poder - inclusive, do poder constituinte - contenção dos governantes e defesa dos direitos dos governados; traduz-se no respeito pela autonomia destes últimos; implica instrumentos jurídicos de garantia.

Sejam quais forem os fins, a limitação do poder depende, em última instância, da concepção de governantes e governados sobre as suas relações recíprocas, do equilíbrio entre liberdade e autoridade sem sacrifício, em caso algum, da primeira à segunda (salvo em estado de necessidade), da efectiva observância pelos governantes dos direitos dos governados e da consciência que estes possuam tanto dos seus direitos como dos seus deveres cívicos.

Um Estado com fins muito reduzidos pode, na experiência vivida, salvaguardar pior a esfera livre das pessoas do que um Estado com dilatados fins, por não lhes dar ou tirar-lhe segurança no exercício dos direitos e por, naquilo em que intervém, se afirmar prepotente e arbitrário. Tal como, em contrapartida, mais acentuada intervenção do Estado pode destinar-se justamente a dar condições de liberdade e igualdade às pessoas.

Tudo consiste em saber se, diante dos fins que o Estado actual é capaz de levar a cabo, há ou não respeito pela liberdade individual e institucional. Somente se verifica limitação quando o Estado - pelos pontos fixos em que assenta, pelo fundamento para que apela, pela coerência da sua política com os princípios e valores professados - admite e promove esta liberdade na sua acção concreta, na prática.

Eis um feixe de perguntas cuja resposta tem de se encontrar, agora, não tanto no terreno da Filosofia jurídica e política quanto no terreno da História e do Direito público positivo. É aqui que se vão encontrar diferentes situações e sistemas; é aqui que se exibe uma maior ou menor vinculação do Estado a normas jurídicas de sua lavra ou de origem que o transcende - com os inerentes reflexos nos cidadãos e na comunidade política em geral; é aqui que tem ou não sentido falar em Estado de Direito, na acepção exacta do termo.5

119. Titularidade e exercício do poderI - O poder é qualidade ou atributo do Estado. Condição de existência do Estado, ele aparece simultaneamente como a mais marcante das suas manifestações e encontra-se-lhe ligado por um nexo de pertença.

No plano sociológico, porventura, o poder não é tanto da comunidade estadual quanto do aparelho de órgãos e serviços que dentro desta se salientam. Existindo, embora, na e para a comunidade, o

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poder vai exercer-se sobre ela e vai agir, unificando-a e orientando-a.

No plano jurídico, pelo contrário, não é admissível separar (ou separar inteiramente) a titularidade do poder da própria comunidade. Pelo menos em três aspectos:

a) A pessoa colectiva Estado tem por substrato a comunidade, não se reduz aos órgãos e agentes que formam e exprimem a sua vontade;

b) Os titulares dos órgãos e agentes detentores das faculdades ou parcelas de poder político provêm da comunidade, têm de ser designados dentre os seus membros (seja qual for o modo de designação);

c) O poder constituinte como poder de auto-organização originária é um poder da comunidade, e não evidentemente dos governantes instituídos por essa organização.

II - Não quer isto dizer que todo o Estado tenha de ser, em pura lógica, democrático. A história antiga e contemporânea prova-o à saciedade. O traço característico da democracia - como governo contraposto à autocracia - consiste em algo mais do que nessa relação do poder político com a comunidade e até, se se perfilhar um mínimo de concepção democrática de legitimidade dos governantes, em algo mais do que na origem popular do poder.

Com efeito, uma coisa é a titularidade do poder no Estado, descrito como comunidade, organização e pessoa colectiva, e poder esse necessariamente exercido por órgãos, agentes, entidades ou pessoas físicas no desempenho de serviços ou funções em seu benefício ou a ele imputados; outra coisa (importa sempre ter presente) a titularidade do poder no povo, conjunto de cidadãos dotados de direitos de participação activa na vida pública (os direitos políticos).

Para lá da criação do Estado, só deve falar-se em princípio democrático (distinto, por exemplo, do princípio monárquico) quando o povo é o titular do poder constituinte como poder de fazer, decretar, alterar a Constituição positiva do Estado. E só deve falar-se em governo democrático, soberania do povo, soberania nacional ou soberania popular, quando o povo tem meios actuais e efectivos de determinar ou influir nas directrizes políticas dos órgãos das várias funções estatais (legislativa, administrativa, etc.); ou seja, quando o povo é o titular (ou o titular último) dos poderes constituídos.6

III - Seja como for, é necessário considerar em conjunto a titularidade e o exercício do poder (grosso modo o aspecto estático e o aspecto dinâmico do poder), porquanto:

a) A titularidade do poder no Estado vem a par da titularidade de poderes funcionais ou competências nos órgãos, poderes esses que correspondem ao desenvolvimento de funções do Estado e que são de exercício obrigatório (embora em termos bastante diversos conforme as funções);

b) Também a titularidade do poder no povo em democracia implica exercício de poder, pelo menos o exercício do poder de escolher todos ou alguns dos governantes através de qualquer forma de eleição; e a atribuição deste poder de escolha ao povo ou ao colégio eleitoral é, sob alguns prismas, semelhante à atribuição de competência aos órgãos governativos.

120. Poder político e soberaniaO poder político no Estado moderno de matriz europeia não se apresenta isolado, fechado ou dotado de uma expansibilidade ilimitada como noutros tipos históricos; assume sentido relacional - pois cada Estado tem de coexistir com outros Estados; pressupõe uma ordem interna e uma ordem externa ou internacional em que se insere; envolve capacidade simultaneamente activa e passiva diante de outros poderes.7

Como se sabe, a este poder assim bem localizado dá-se, desde Bodin, o nome de soberania. E,

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embora o conceito correspondente não possua hoje compreensão idêntica à que tinha há 400 ou há 100 anos, tem sobrevivido, susceptível de adaptações e de reconversões. Não por acaso quer a generalidade das Constituições, quer a própria Carta das Nações Unidas (art. 2º, nº 1) continuam a fazer-lhe apelo.

Dentro da mesma perspectiva, também nós falaremos indiferentemente em poder político e em soberania.

121. Sentido de soberania na ordem internacionalI - A vida internacional que se desenvolveu a partir dos séculos XVI-XVII assentou num sistema de Estados que se declararam livres e iguais. E a soberania ou poder independente na ordem externa pretendeu significar acesso a tal sistema ou comunidade de Estados, igualdade de todos, não subordinação à força ou às directrizes de nenhum Estado estrangeiro e, explícita ou implicitamente, aceitação de um conjunto de normas jurídicas - de um embrionário Direito das Gentes - regulador das relações entre todos esses Estados.

A vida internacional nunca foi ou conseguiu ser, porém, uma ordem puramente equilibrada de potências soberanas. Por causa das dependências ou interdependências existentes, de direito ou de facto, de certos Estados perante outros, o grau de participação nela sofreu e continua a sofrer variações consideráveis, tanto na Europa como noutros continentes.

Classicamente, revelavam a existência de soberania três direitos dos Estados: o jus tractuum ou direito de celebrar tratados, o jus legationis ou de receber e enviar representantes diplomáticos e o jus belli ou de fazer a guerra. Agora, com a proibição da guerra pela Carta das Nações Unidas (art. 2º, nº 4), este último é interpretado como mero direito de legítima defesa, individual ou colectiva (art. 51º da mesma Carta). Em compensação, acrescenta-se um novo direito, o de reclamação internacional, destinado à defesa dos interesses dos Estado perante os órgãos políticos e jurisdicionais da comunidade internacional; e autonomiza-se o direito de participação em organizações internacionais - tudo traduzindo um direito geral de escolha de uma inserção específica na vida internacional.

Ora, nem todos os Estados têm ou têm tido capacidade plena de gozo ou de exercício desses direitos e de outros que lhes estejam conexos. Nem todos têm ou têm tido soberania internacional ou soberania plena nesse sentido.8

Por outro lado, nunca foram os Estados os únicos sujeitos de Direito internacional. A Santa Sé (expressão jurídica da Igreja Católica) esteve também na origem da comunidade internacional. E hoje, a par dela, avultam, entre outras sujeitos, as organizações internacionais, de vários tipos (universais e regionais, políticas, económicas, culturais, etc.). Só os Estados têm ou podem ter soberania, mas não são eles, como já dissemos, os únicos entes com personalidade internacional.9

II - Ao lado dos Estados soberanos, a observação da actualidade e, sobretudo, do passado - porque, apesar de tudo, algo se caminhou no sentido da igualdade jurídica entre os Estados - mostra-nos a existência de:

1º) Estados protegidos - Estados com a titularidade de direitos internacionais, mas só os podendo exercer através de outros Estados ditos protectores (a cuja supremacia territorial se encontram sujeitos) numa espécie de fenómeno de representação internacional.10

2º) Estados vassalos - Estados que, tendo aqueles mesmos direitos, estão adstritos a certas obrigações relativamente a outros, não podendo, nomeadamente, exercer alguns deles sem a sua autorização.11

3º) Estados exíguos - Estados que, pela exiguidade do seu povo ou território, não possuem a plenitude da capacidade internacional e se encontram em situação especial perante os Estados

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limítrofes ou vizinhos.12

4º) Estados confederados - Estados que, por serem membros de uma confederação, ficam com a sua soberania limitada em certas matérias, ainda que se trate de uma limitação de soberania com a contrapartida, ao invés do que acontece nos outros casos, de participação na entidades que dela deriva.13

5º) Estados ocupados e Estados divididos - Estados em situação excepcional decorrente da guerra ou de outras vicissitudes e sujeitos a ocupação ou a formas específicas de limitação político-militar.14

Nos Estados protegidos, nos Estados vassalos, nos Estados confederados e nos Estados ocupados e divididos, como que se conserva intacta a capacidade internacional de gozo e só se restringe a capacidade de exercício; já nos Estados exíguos é a própria capacidade de gozo que fica limitada, se bem que eles tenham capacidade para exercer os direitos de que são titulares.15

Por outro lado, a experiência das federações de Estados vem patentear que pode haver Estados, - os Estados federados - que apenas têm soberania na ordem interna (em concorrência com a soberania dos Estados em que se integram), não na ordem internacional. E o mesmo acontece com os Estados-Membros de uniões reais. Uns e outros não possuem, ou só possuem muito reduzidamente, sobretudo, os segundos, o direito de representação diplomática e outros direitos internacionais.16-17

III - Tomando, portanto, a soberania como capacidade internacional plena, os Estados classificam-se em:

a) Soberanos - os que têm esse estatuto, sem que as restrições, cada vez mais numerosas, que lhe impõem as realidades do mundo contemporâneo a afectem qualitativamente, mas só quantitativamente;

b) Semi-soberanos ou (talvez melhor), com soberania seduzida ou limitada - Estados protegidos, vassalos, exíguos, confederados e ocupados e divididos;

c) Não soberanos - os Estados federados e os Estados-Membros de uniões reais.

Só os Estados da primeira e da segunda categorias integram (a par de outros sujeitos) a comunidade internacional organizada, não os Estados não soberanos. E apenas eles participam na formação das próprias regras por que ela se rege: o Direito internacional público é ainda primordialmente (embora não exclusivamente) um Direito de coordenação e cooperação de Estados soberanos e de Estados com soberania limitada.

122. Direitos e deveres dos EstadosI - O Direito internacional dos nossos dias tem procurado definir direitos e deveres fundamentais dos Estados,18 na base de uma distinção que pode entender-se homóloga da que no Direito constitucional se faz entre direitos de liberdade e direitos sociais.

Ha, por um lado, regras jurídicas atinentes à existência, à independência e à participação jurídico-internacional dos Estados; há, por outro lado, regras - principalmente programáticas - que estabelecem ou procuram estabelecer condições concretas dessa existência, do seu desenvolvimento e do seu acesso (ou do acesso dos seus cidadãos) ao progresso material e cultural.

No essencial, as primeiras regras constam da Carta das Nações Unidas e, muito especificamente, do seu art. 2º, e as outras da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, aprovada em 1974 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

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II - Em resumo, o art. 2º da Carta enuncia os seguintes princípios:

1º) Princípio da igualdade jurídica;

2º) Dever de boa-fé;

3º) Dever de solução pacífica dos conflitos;

4º) Direito à integridade territorial e correlativo dever de respeito;

5º) Direito à independência política e correlativo dever de respeito;

6º) Dever de assistência às Nações Unidas por parte dos seus membros;

7º) Dever, mesmo dos Estado não membros, de actuarem de acordo com os princípios das Nações Unidas em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz e da segurança internacionais;

8º) Garantia de não intervenção das Nações Unidas em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado, ou garantia do domínio reservado dos Estados.

III - O princípio da igualdade é também algo de homólogo do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, que aparece em qualquer Constituição. Mas, enquanto que o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei não sofre nenhum limite - ainda que a igualdade signifique não identidade, mas sim proporcionalidade - já no concernente aos Estados, existem restrições ou distinções no âmbito do Direito interno de certas organizações internacionais.

Basta recordar, no seio da própria organização da Nações Unidas, o estatuto excepcional dos cinco Estados que são membros permanentes do Conselho de Segurança e gozam de direito de veto (art. 27º da Carta). E também se encontram diferenciações, de carácter variável na Organização Internacional do Trabalho e noutras organizações e entidades.

IV - Em plano diferente surgem as desigualdades do facto entre os Estados, a que têm procurado responder as Nações Unidas e organizações especializadas e regionais, através de diversas acções e medidas.

Tal o sentido do novo Direito internacional marítimo, atento aos condicionalismos específicos desfavoráveis dos Estados sem litoral, dos Estados costeiros sem acesso a zonas económicas e dos Estados insulares. Tal o sentido do Direito internacional do desenvolvimento e que procura adoptar tratamentos diferenciados dos vários Estados consoante as suas situações e, particularmente, atribuir aos mais pobres ou prejudicados por crises e cataclismos "vantagens compensadoras".19

Esta distinção de regimes e esta diversa distribuição de benefícios não põem, só por si, em causa o conceito tradicional de soberania. Elas são paralelas mutatis mutandis às preocupações de igualdade social, efectiva ou real de que se fala em Direito interno [cf. art. 9º, alínea d), da Constituição]; e assim como discriminações positivas não põem em causa a igualdade fundamental dos cidadãos, também regras específicas em favor de certos Estados não comprometem a sua soberania e a soberania dos demais. Pelo contrário, é a concretização de uma igualdade efectiva ou a remoção das desigualdades de facto que pode dar inteiro sentido à igualdade jurídica formal.

V - Não sem ligação com esta ideia de igualdade efectiva entre os Estados, encontram-se os direitos enunciados na Carta de 1974.

Eis alguns:

- Cada Estado tem o direito soberano e inalienável de escolher o seu sistema económico, político, social e cultural (art. 1º do Capítulo II);

- Cada Estado tem e exerce livremente uma soberania plena e permanente sobre todas as suas riquezas, recursos naturais e actividades económicas, a qual abrange o direito de regulamentar os investimentos estrangeiros e as sociedades transnacionais e o direito de nacionalizar ou expropriar

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bens estrangeiros, mediante indemnização (art. 2º);

- Cada Estado tem o direito de ter comércio internacional (art. 4º);

- Todos os Estados têm o direito de se agrupar em organizações de produtores (art. 5º);

- Todos os Estados têm o direito de participar nos benefícios do progresso e das inovações científicas e técnicas (art. 13º).

Enumeram-se simultaneamente deveres de cooperação (arts. 12º e 14º e segs.), de utilização pacífica dos oceanos e dos fundos marinhos (art. 29º) e de preservação do ambiente (art. 30º).

123. Soberania e ordem interna do EstadoI - Os Estados federados não têm soberania externa ou de Direito internacional. Possuem, contudo, soberania do outro prisma por que o conceito pode ser encarado; possuem soberania à face do seu Direito interno e até à face do Direito do Estado federal que se coloca entre eles e a comunidade internacional.

Verifica-se aqui o mesmo que sucede com a jurisdição pessoal e territorial (a que também, em breve, iremos aludir): o Estado federado detém supremacia, assim como detém jurisdição pessoal e territorial. E, porque o Estado federado faz parte da federação, verifica-se um fenómeno de desdobramento de tais faculdades ou atributos pelo Estado federado e pelo Estado federal.

Esta supremacia política, existente em ambos os Estados, é muito diversa da que se possa descobrir em qualquer hierarquia de sociedades infraestatais. Leva consigo uma característica especial: é uma supremacia originária, porque quer Estado federado quer Estado federal têm poder próprio e cada um cria um sistema jurídico que é fonte de todos os que nele estão incorporados.

No plano interno, o Estado federado (tal como o Estado protegido ou qualquer outro Estado) possui, pois, necessariamente soberania enquanto possui um poder originário de se organizar e reger. Originariedade significa não só auto-organização como ainda subsistência por si da ordem jurídica, a qual no Estado (mesmo no Estado federado) não depende, quanto à sua validade, de qualquer outra ordem jurídica estatal.20

Olhando de cima para baixo, ou seja, do Estado para as colectividades que se movem no seu âmbito, os poderes que elas exerçam e os sistemas jurídicos que estabeleçam surgem agora como poderes e sistemas de segundo grau ou classe, como poderes atribuídos ou sistemas derivados. Não pode obnubilar-se o pluralismo das ordens jurídicas, mas só a ordem jurídica estatal é ordem primária.21

II - A soberania como originariedade do poder do Estado deve ser entendida - quase escusado seria sublinhá-lo - em termos jurídicos, e não históricos. Não se trata de remontar à formação do Estado, até porque, como sabemos, bem numerosos são os Estados constituídos a partir de outros ou por actos de outros e muitos dos Estados compostos ou, pelo menos, Estados federais perfeitos resultam (ou têm de ser concebidos como resultantes) da agregação de Estados preexistentes. Do que se trata é tão-somente de recortar a posição do Estado frente às demais entidades ou pessoas colectivas públicas de direito interno.

Esta característica ou differentia specifica do Estado é, de longe, a dominante na doutrina. Todavia, o seu enquadramento dogmático varia consoante as grandes concepções em precompreensões; ou, simplesmente, apresenta diversas formulações.

Assim, para Jellinek, a nota essencial do Estado é a existência de um poder que não se deriva de nenhum outro, que procede dele próprio e de harmonia com o seu próprio direito. Onde haja uma comunidade com tal poder originário e meios coercitivos de domínio sobre os seus membros e o seu território, no âmbito da sua ordem jurídica, aí existe um Estado. Soberania significa capacidade de auto-organização e autovinculação.22

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Segundo Santi Romano, o Estado é sempre soberano à face da sua ordem jurídica, pois a soberania deve ser vista perante a ordem jurídica que a estabelece. Uma coisa é a soberania atribuída ao Estado pelo seu Direito interno, outra coisa a que lhe pode ser ou não atribuída pelo Direito de uma comunidade como o Direito de um Estado federal ou o Direito internacional.23

Para Kelsen, a soberania é uma qualidade de Direito, da vontade do Estado considerada como ordem jurídica na sua esfera específica de validade. Um Estado é soberano quando a ordem nele personificada é uma ordem suprema insusceptível de ulterior fundamentação, quando é uma ordem jurídica total, não parcial.24-25

III - Problema diferente consiste em saber, no plano estritamente interno do Estado (e não já em relação a outras entidades compreendidas no seu seio), qual a manifestação específica ou mais qualificada da soberania ou em saber qual o verdadeiro titular (político) da soberania ou o órgão hegemónico do aparelho do poder.

As teses clássicas são as legislativas e as executivas: as primeiras encontram a essência da soberania na emissão da lei (assim, Bodin, Locke, Rousseau), as segundas no momento da execução ou da coerção (assim, Hobbes). E também há quem ligue a soberania ao poder de emitir moeda, ao de lançar impostos, ao de punir ou ao de recrutar tropas. Assim como há quem sustente que soberano é quem decreta o estado de excepção (Carl Schmitt).26-27

O assunto não tem que ver propriamente com as condições de existência do Estado. Pertence, antes, ao domínio das funções e dos órgãos, ao das formas de governo, ao dos regimes políticos.

124. Soberania, descentralização, autonomiaI - O Estado não é na generalidade dos países a única entidade pública incumbida de realizar o interesse colectivo. Fala-se então de descentralização para designar o fenómeno da concessão de poderes ou atribuições públicas a entidades infraestatais. E pode falar-se ainda em autonomia, autarquia, autogoverno, auto-administração.28

Os conceitos aqui tornam-se múltiplos e às vezes flutuantes, já que múltiplos se revelam os modos e os graus, os pressupostos e os entendimentos da descentralização. Entretanto, todos têm por base a separação entre a pessoa colectiva Estado e outras pessoas colectivas a ela subordinadas e chamadas também a participar na prossecução de finalidades públicas com poderes de autoridade (pessoas colectivas de direito público não estaduais).29

Ao invés, na desconcentração não se depara uma pluralidade de pessoas colectivas, e tão-somente uma pluralidade de órgãos sem prejuízo da unicidade de imputação jurídica; existem vários órgãos do Estado por que se dividem funções e competências, a diferente nível hierárquico ou não,30 e de âmbito central ou local.

Quer na descentralização, quer na desconcentração, trata-se sempre do Estado e de diversas formas de organização do poder político ou de entidades em conexão específica com este poder. O conceito (se bem que não necessariamente coincidente) homólogo no plano da sociedade é o de pluralismo de grupos, de interesses e de iniciativas.31

II - A descentralização ora assume a forma de descentralização administrativa, ora a de descentralização política. Nunca assume a forma de descentralização jurisdicional, porque a função jurisdicional está sempre reservada aos tribunais, órgãos do Estado.

Na descentralização administrativa, atribuem-se poderes ou funções de natureza administrativa, tendentes à satisfação quotidiana de necessidades colectivas. Na descentralização política, poderes ou funções de natureza política, relativas à definição do interesse público ou à tomada de decisões políticas (designadamente, de decisões legislativas).

Em qualquer dos casos, as entidades beneficiárias ou suportes de tais poderes têm existência

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jurídica em virtude de uma criação ex novo ou de um reconhecimento feito pela Constituição ou pelas leis do Estado.

III - Os modos de descentralização administrativa são, em latitude crescente:

a) Atribuição de personalidade jurídica de direito público;

b) Personalidade com autonomia administrativa (isto é, capacidade de praticar actos administrativos definitivos e executórios);

c) Personalidade com autonomia administrativa e autonomia financeira (isto é, capacidade de afectar receitas próprias às despesas próprias);

d) Personalidade com plena autonomia e faculdade regulamentares.32-33

A descentralização administrativa pode ainda ser territorial - pela outorga de poderes administrativos a entes territoriais menores - ou institucional ou funcional - através de instituições públicas, corporações, associações públicas, etc. Ali é o factor territorial da vizinhança o determinante da configuração do substrato, aqui o factor pessoal ou o simplesmente funcional.

Também se contrapõem descentralização administrativa primária - atribuição, por via constitucional ou legislativa, de funções administrativas a pessoas colectivas de direito público - e descentralização administrativa secundária - permissão legal de transferência de poderes administrativos de pessoas colectivas de direito público para pessoas colectivas de direito privado e regime administrativo.34

IV - Quanto à descentralização política, por maiores que sejam os poderes legislativos e governativos dados às províncias ou regiões - porque só há descentralização política de âmbito territorial - estas não integram nunca o conceito de Estado. Esses poderes não são próprios delas e os ordenamentos jurídicos que constituem não têm validade originária, nem dispõem de eficácia ou executoriedade sem o apoio do braço do Estado. Descentralização política equivale, não a soberania, mas apenas a autonomia político-administrativa ou, como se verá noutro capítulo, a autonomia com integração.V - A propósito da problemática da descentralização alude-se correntemente ao princípio da subsidiariedade, ou princípio segundo o qual o Estado só deve assumir as atribuições, as tarefas ou as incumbências que outras entidades existentes no seu âmbito e mais próximas das pessoas e dos seus problemas concretos - como os municípios ou as regiões - não possam assumir e exercer melhor ou mais eficazmente.35

O nexo entre ambos os termos não se mostra, contudo, tão unívoco quanto pareceria prima facie, por mais de um motivo:

1º) Porque na descentralização parte-se do Estado para pessoas colectivas por ele criadas ou com poderes por ele outorgados, ao passo que na subsidiariedade o movimento é inverso, é ascendente, e em último termo arranca da sociedade civil;

2º) Porque, por isso mesmo, a subsidiariedade dir-se-ia mais adequada a um Estado federal do que a um Estado unitário (embora nem sequer esteja presente em todas as concepções de federalismo);

3º) Porque a subsidiariedade não é suficiente garantia de descentralização, tudo depende do juízo que, em cada momento, se faça acerca das necessidades colectivas e acerca dos modos e dos meios de as satisfazer.

De resto, se uma análise vertical ou piramidal da vida colectiva (desde as sociedades menores até sociedades cada vez mais complexas) pode quiçá ser adoptada a título explicativo da formação do Estado, ela tem de ser completada por uma análise horizontal que capte os laços entre os cidadãos e a sua inserção na comunidade. A estrutura real e actual ou o tecido conjuntivo da comunidade política assenta mais num princípio de solidariedade do que num princípio de subsidiariedade.

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CAPÍTULO V - Funções, Órgãos E Actos Do Estado

§ 1º Funções Do Estado

125. Os dois sentidos de função do EstadoI - São dois os sentidos possíveis de função do Estado:1 como fim, tarefa ou incumbência, correspondente a certa necessidade colectiva ou a certa zona da vida social; e como actividade com características próprias, passagem a acção, modelo de comportamento.

No primeiro sentido, a função traduz um determinado enlace entre a sociedade e o Estado, assim como um princípio (ou uma tentativa) de legitimação do exercício do poder. A crescente complexidade das funções assumidas pelo Estado - da garantia da segurança perante o exterior, da justiça e da paz civil à promoção do bem-estar, da cultura e da defesa do ambiente - decorre do alargamento das necessidades humanas, das pretensões de intervenção dos governantes e dos meios de que se podem dotar; e é ainda uma maneira de o Estado ou os governantes em concreto justificarem a sua existência ou a sua permanência no poder.

No segundo sentido, a função - agora não tanto algo de pensado quanto algo de realizado - entronca nos actos e actividades que o Estado constantemente, repetida e repetivelmente, vai desenvolvendo, de harmonia com as regras que o condicionam e conformam; define-se através das estruturas e das formas desses actos e actividades; e revela-se indissociável da pluralidade de processos e procedimentos, de sujeitos e de resultados de toda a dinâmica jurídico-pública.

No primeiro sentido, a função não tem apenas que ver com o Estado enquanto poder; tem também que ver com o Estado enquanto comunidade. Tanto pode ser prosseguida só pelos seus órgãos constitucional ou legalmente competentes e por outras entidades públicas como ser realizada por grupos e entidades da sociedade civil, em formas variáveis de complementaridade e subsidiariedade (tudo dependendo das concepções dominantes e da intenção global do ordenamento).

No segundo sentido, a função não é outra coisa senão uma manifestação específica do poder político, um modo tipicizado de exercício do poder,2 e carece de ser apreendida numa tríplice perspectiva-material, formal e orgânica.

II - Numa e noutra acepções, exibe-se um elemento finalístico: directamente, na função como tarefa; indirectamente, na função como actividade.3

A tarefa mais não é que um fim do Estado concretizado em certa época histórica, em certa situação político-constitucional, em certo regime ou Constituição material. Por seu turno, a função enquanto actividade (a descobrir por via de uma análise espectral da obra do Estado, dos seus órgãos, agentes e serviços) não vem a ser senão um meio para atingir esse fim, qualificado sob certo aspecto; e, se a tarefa implica a adstrição de um comportamento (positivo), tão pouco a actividade existe por si mesma.

126. A função no sentido de actividadeI - A função no sentido de actividade pode definir-se como um complexo ordenado de actos (interdependentes ou aparentemente independendentes uns em relação aos outros), destinados à prossecução de um fim ou de vários fins conexos, por forma própria. Consiste na actividade4 que o Estado desenvolve, mediante os seus órgãos e agentes, com vista à realização das tarefas e incumbências que, constitucional ou legalmente, lhe cabem.

Cada função ou actividade oferece, assim, três características:

a) É específica ou diferenciada, pelos seus elementos materiais - as respectivas causas e os

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resultados que produz -, formais - os trâmites e as formalidades que exige - e orgânicos - os órgãos ou agentes por onde corre;

b) É duradoura - prolonga-se indefinidamente, ainda que se desdobre em actos localizados no tempo que envolvem pessoas e situações diversas;5

c) É, consequentemente, globalizada - tem de ser encarada como um conjunto, e não como uma série de actos avulsos.

II - São os fins do Estado, permanentes ou conjunturais, que determinam o tipo e a feição das actividades dos seus órgãos e agentes, e são as normas jurídico-públicas que as qualificam como actividades do Estado.

Ora, se as funções do Estado dependem das normas (e, antes de mais, das normas constitucionais) que as regem, então todas as funções do Estado e todos os actos em que se desdobram não podem deixar de ser funções jurídicas e todos os actos jurídico-públicos. Não há actividade do Estado à margem do Direito.6

III - Enunciam-se correntemente como funções do Estado a legislativa, a governativa, a jurisdicional, a administrativa e ainda a técnica.7 Importa, porém, distinguir.

O Estado tem ou tende a ter o monopólio dos três primeiros e só com seu consentimento ou por sua delegação outras colectividades ou entidades dão corpo a actos cuja natureza se reconduza a uma ou outra dessas funções. Ao invés, no que concerne à função administrativa e à chamada função técnica, o Estado não é senão um (embora, ainda hoje, o de maior peso e volume) dos sujeitos que as podem promover. Ao lado do Estado, outras pessoas colectivas públicas - ou mesmo privadas - desempenham também função administrativa,8 havendo então que harmonizar os diferentes interesses por elas prosseguidos.

Isso em nível interno. Porque, em nível internacional, observa-se uma cada vez maior intervenção das organizações especializadas das Nações Unidas e de entidades como as Comunidades Europeias, devido à complexidade dos problemas económicos, sociais e culturais, à sua planetarização e à formação de grandes espaços. E aí exercem-se funções homólogas àquelas funções estaduais, e não sem efeitos na redução dos fins e das actividades dos Estados.

127. A elaboração teórica das funções do EstadoI - A conceituação ex professo das funções acompanha o desenvolvimento das teorias gerais do Estado e do Direito público. No entanto, de forma explícita ou implicita, o problema vem de há muito, conexo (como, de resto, continua a estar) com os problemas das características, dos fins e dos poderes do Estado.

Recordem-se, a este propósito, as teorias das partes ou das faculdades da soberania - de Aristóteles a Bodin, a Grócio e a Puffendorf - e, sobretudo, as teorias ou doutrinas de separação dos poderes de Locke e Montesquieu.

Designadamente, os três poderes referidos por Montesquieu - Legislativo, Eecutivo e Jurisdicional - correspondem a funções; e também a distinção, em cada poder, de uma faculté de statuer e de uma faculté d'empêcher prefigura algumas das análises mais recentes sobre função de fiscalização ou controlo.9

Entretanto, por razões óbvias, de seguida, aludir-se-á apenas a algumas das classificações doutrinais dos últimos cem anos: as de Jellinek, Duguit, Hans Kelsen, Georges Burdeau, Karl Loewenstein, M. J. C. Vile e Marcello Caetano.

II - Na perspectiva de Jellinek, os critérios fundamentais são os fins do Estado (jurídico e cultural) e os meios (abstractos e concretos).

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Donde, a função legislativa (realização de qualquer dos fins por meio de regras abstractas), a função jurisdicional (realização do fim jurídico por actos concretos) e a função administrativa (realização do fim cultural por actos concretos); e os actos legislativos e jurisdicionais como actos de império.

Mas considera a existência ainda, ao lado destas funções, de funções extraordinárias, bem como, em cada função, de uma actividade livre e de uma actividade vinculada.10

III - Na análise de Duguit, o critério fundamental é o dos actos; e daí vai para as funções (jurídicas), distinguindo actos-regra, actos-condição (aplicação de regras abstractas a um indivíduo) e actos subjectivos (criação de situações subjectivas não impostas por nenhuma regra abstracta anterior).

Donde, a função legislativa (feitura de actos-regra), a função administrativa (prática de actos condição, de actos subjectivos e de actos materiais, para assegurar o funcionamento de um serviço público) e a função jurisdicional (resolução de questões de direito).11-12

IV - Para Hans Kelsen, porque o Estado se identifica com a ordem jurídica ou com a sua unidade, as funções do Estado são apenas funções jurídicas e a função corresponde a cada um dos graus ou modos de realização da ordem jurídica.

Há dois tipos de sistemas de normas, o estático e o dinâmico.13 A ordem jurídica tem essencialmente um carácter dinâmico: uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela via de um raciocínio lógico de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada.14 A norma fundamental da ordem jurídica é a instauração do facto fundamental da criação jurídica e pode ser designada como Constituição no sentido lógico-jurídico para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-positivo. Ela é o ponto de partida de um processo: do processo de criação do Direito positivo.15

A aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. É desacertado distinguir entre actos de criação e actos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limite - a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto coercivo - entre os quais se desenvolve o processo jurídico, todo o acto jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma inferior. Se considerarmos a ordem jurídica estadual sem ter em conta um direito internacional que lhe esteja supra-ordenado, então a norma fundamental determina, de facto, a criação da Constituição, sem que ela própria seja, ao mesmo tempo, aplicação de uma norma superior. Mas a criação da Constituição realiza-se por aplicação da norma fundamental. Por aplicação da Constituição, opera-se a criação das normas jurídicas gerais através da legislação e do costume; e, em aplicação destas normas gerais, realiza-se a criação das normas individuais através das decisões judiciais e das resoluções administrativas. Somente a execução do acto coercivo estatuído por estas normas individuais - o último acto do processo de produção jurídica - se opera em aplicação das normas individuais que a determinam sem que seja, ela própria, criação de uma norma.16

Criação e aplicação do Direito devem ser distinguidas da observância do Direito. Observância do Direito é a conduta que corresponde, como conduta oposta, àquela a que o acto coercitivo da sanção é ligado. É antes de tudo a conduta que evita a sanção, o cumprimento do dever jurídico constituído através da sanção. Criação do Direito, aplicação do Direito e observância do Direito são funções jurídicas no sentido mais amplo. Também o uso de uma permissão positiva pode ser designado como observância do Direito. Porém, só a criação e a aplicação do Direito são designadas como funções jurídicas num sentido estrito específico.17

V - Em Georges Burdeau, as funções definem-se não tanto pela natureza quanto pelo objecto dos actos.

São duas as funções fundamentais: a governamental e a administrativa, sendo aquela incondicionada, criadora e autónoma. Por seu turno, a função governamental divide-se em

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legislativa e governamental e a função administrativa em administrativa propriamente dita, jurisdicional e regulamentar.

A nota mais importante desta visão é a colocação da lei na função governamental, tendo em conta a unidade da acção governamental através de vários órgãos associados entre si.18

VI - Uma análise em plano diferente vem a ser a de Karl Loewenstein.

Procede agora a uma tripartição: decisão política conformadora ou fundamental; execução da decisão política fundamental através de legislação, administração e jurisdição; e fiscalização política.

A novidade está nesta actividade fiscalizadora, elevada a função autónoma do Estado, quer tenha dimensão horizontal (fiscalização ou controlos intra e interorgânicos) quer tenha dimensão vertical (federalismo, liberdades individuais, pluralismo social).19-20

VII - M. J. C. Vile, distinguindo embora função legislativa, política, administrativa e judicial,21 salienta não poder dar-se uma separação rígida entre elas e sustenta que quaisquer actos do Estado envolvem as diversas funções. Depois, numa linha mais politológica do que jurídica, fala numa função de controlo e numa função de coordenação.22

A função de controlo requer, de certa maneira, uma noção de equilíbrio, seja dentro da máquina governamental, seja entre povo e governantes, seja entre os próprios meios de controlo.23 A função de coordenação tira toda a sua importância do aumento das funções do Estado no século XX, é a função por excelência dos sistemas políticos actuais do Ocidente.24

VIII - A "teoria integral das funções do Estado" de Marcello Caetano pretende (como o nome indica) abranger todas as categorias de funções e de actos a partir da distinção entre funções jurídicas e não jurídicas.

São funções jurídicas as de criação e execução do Direito; e compreendem a função legislativa (criação do Direito estadual) e a executiva, esta com duas modalidades - jurisdicional (caracterizada pela imparcialidade e pela passividade) e administrativa (caracterizada pela parcialidade e pela iniciativa).

São funções não jurídicas as que não têm conteúdo jurídico, e desdobram-se em função política (de conservação da sociedade política e de definição e prossecução do interesse geral) e em função técnica (produção de bens e prestação de serviços).25

IX - Deste rápido excurso retiram-se as seguintes ilações ou verificações:

a) Aparecimento, em todas as classificações, de uma função legislativa, de uma função administrativa ou executiva stricto sensu e de uma função jurisdicional, ainda que com diferentes relacionamentos;

b) Correlação ou dependência das classificações das orientações teóricas globais perfilhadas pelos autores;

c) Relatividade histórica ou dependência também da experiência histórica e da situação concreta do Estado;

d) Reconhecimento de que, a par das classificações de funções, se procede a classificações de actos (ou de tipos de actos) jurídico-públicos.

128. Classificação adoptada: funções fundamentais e funções complementares, acessórias e atípicasI - Na esteira da maior parte dos autores, assentamos26 numa divisão tricotómica das funções do Estado - função política, função administrativa e função jurisdicional.27 E subdistinguimos na

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primeira a função legislativa (legislatio) e a função governativa ou política stricto sensu (gubernatio) consoante se traduz em actos normativos (directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente) e em actos de conteúdo não normativo.

Para tanto, sempre sem laivos de originalidade, consideramos quer critérios materiais quer critérios formais e orgânicos. Ou seja: caracterizamos as funções em razão dos fins ou do objecto dos actos por que se desenvolvem, em razão dos seus modos e formas de manifestação e em razão dos órgãos e das instituições através das quais são praticados esses actos.

Mas esta tripartição não esgota, nos nossos dias, as actividades do Estado ou não as reflecte com suficiente clareza e homogeneidade. É mister ter em conta zonas de fronteira entre aquelas três funções fundamentais e até funções complementares, acessórias ou atípicas.

II - Eis o quadro classificatório fundamental:

FUNÇÕES CRITÉRIOS MATERIAIS

CRITÉRIOS FORMAIS

CRITÉRIOS ORGÂNICOS

Funções política (legis-lativae governativa ou política stricto sensu)

Definição primária e global do interesse público; interpretação dos fins do Estado e escolha dos meios adequados para os atingir; direcção do Estado

Liberdade ou discricionariedade máxima, o que não significa não subordinação a regras jurídicas (às da Constituição, desde logo); liberdade de escolha, senão quanto ao conteúdo, pelo menos quanto ao tempo e às circunstâncias, ou não havendo esta (v.g., promulgação obrigatória), ausência de sanções jurídicas específicas

- Órgãos (políticos ou governativos) e colégios em conexão directa com a forma e o sistema de governo

- Havendo pluralidade de órgãos, ausência de hierarquia e apenas relações de responsabilidade política

Função administrativa Satisfação constante e quotidiana das necessidades colectivas; prestação de bens e serviços

- Iniciativa (indo ao encontro das necessidades)

- Parcialidade (na prossecução do interesse público), o que não impede imparcialidade no tratamento dos particulares

- Dependência funcional, com sujeição, no interior de cada sistema ou aparelho de órgãos e serviços, a ordens e instruções (hierarquia descendente) e a recurso hierárquico (hierarquia ascendente)

- Coordenação e subordinação, com mais ou menos centralização e concentração ou

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descentralização e desconcentração

Função administrativa Declaração do direito; decisção de questões jurídicas, seja em concreto perante situações de vida, seja em abstracto

- Passividade (implicando necessidade de pedido de outra entidade, definição do objecto do processo através do pedido e necessidade de decisão)

- Imparcialidade (posição super partes)

- Independência de cada órgão, sem prejuízo de recurso para órgão superiores (hierarquia apenas ascendente)

- Em princípio, atribuição a órgãos específicos, os tribunais, formados por juízes

III - Às funções correspondem os seguintes grandes tipos de actos do Estado, de actos jurídico-públicos:

Função do Estado

Leis Constitucionais – Actos constituintes e leis de revisão constitucional

Função política Função legislativa – Actos de conteúdo normativo - Leis

Leis Infraconstitucionais

De eficácia externa – Leis stricto sensu

De eficácia interna – Regimentos de órgãos políticos

Actos do povo activo Eleições Referendos (não normativos)

Função política Função governativa ou stricto sensu – Actos de conteúdo não normativo – Actos políticos

Actos dos órgãos governativos

Actos políticos Stricto Sensu ou de governo

Actos de Direito Interno

Actos de Direito

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Internacional

Função administrativa

Actos de conteúdo normativo

Actos externos – Regulamentos

Actos internos – Instruções, estatutos, regimentos de órgãos administrativos, regulamentos internos de serviços28

Unilaterais (por imposição de autoridade) – Actos administrativos, outros actos da Administração

Actos de conteúdo não normativo

Bilaterais (convencionais) – Contratos administrativos (ou, mais amplamente, contratos públicos)

Actos de conteúdo normativo – Declarações de inconstitucionalidade e de ilegalidade (e até há pouco tempo assentos)

Função jurisdicional – Actos Jurisdicionais ou Sentenças latissimo sensu

Actos de conteúdo não normativo – Sentenças medio sensu (sentenças e acórdãos) e decisões interlocutórias

IV - Olhando para o esquema de actos jurídico-públicos acabado de apresentar, verifica-se que no exercício de qualquer das três grandes funções do Estado se praticam actos normativos. Eles não se reduzem às leis, nem sequer aos regulamentos.

O que deve, porém, entender-se por acto normativo ou por norma jurídica (que é o conteúdo ou o resultado do acto normativo)?

Em estrito plano doutrinal - porque, como se mostrará na altura própria, outra pode ser a perspectiva funcional ou juspositiva - parece prevalecer a tendência no sentido de norma significar regra, critério, prescrição (como se queira) com características de generalidade e, na maior parte das vezes, de abstracção. No entanto, múltiplas são as divergências, reais ou aparentes, acerca do que sejam essas características.29

Generalidade equivale a pluralidade de destinatários? A pluralidade indefinida? A indeterminação ou a indeterminabilidade? A mera não individualização? Refere-se a uma categoria de pessoas? Consiste, afinal, em abstracção? E, por seu turno, reconduz-se abstracção a indeterminação de facto ou de situações a regular? Ou a tipicidade, ou a hipoteticidade, ou a futurabilidade, etc.?

Não cabe no escopo do presente manual a análise de tão intrincada problemática, mais do foro da

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Teoria Geral do Direito do que do Direito constitucional. Torna-se indispensável, apesar disso, aduzir uma opinião, definir um entendimento que sirva de pressuposto de subsequentes considerações.

Ora, também para nós, acto normativo é, em princípio, acto de conteúdo geral, se bem que a generalidade não seja dele exclusiva e se depare, outrossim, no acto administrativo geral e, porventura, até em certos actos políticos ou de governo.

No acto normativo, os destinatários são indefinidos, indeterminados ou indetermináveis, e recortam-se em abstracto, sem acepção de pessoas. Já no acto administrativo geral (v. g., a abertura de um concurso, o anúncio de uma hasta pública, talvez um plano de urbanização), por mais alargados que sejam os destinatários, eles circunscrevem-se e são sempre determináveis a posteriori, pois no momento da execução do acto procede-se à sua individualização, tendo em conta os respectivos interesses mais ou menos diferenciados.30

A generalidade inerente à norma liga-se a não instantaneidade, a repetitividade, a uma dimensão temporal, a "uma pretensão imanente de duração" (Forsthoff), a uma "vigência sucessiva" (Gomes Canotilho). A norma aplica-se um número indefinido de vezes a uma pluralidade de pessoas, o acto administrativo geral uma só vez (Michel Fromont). A execução da norma não a esgota, nem a consome; afirma-a (Garcia de Enterría). Pelo contrário, o acto administrativo geral esgota-se numa única aplicação (ou com uma única aplicação a cada um dos destinatários). E mutatis mutandis é isso ainda que acontece com actos políticos de eficácia geral (como a marcação de eleições) ou de execução diferida como o programa do Governo (nas Constituições que a prevêem), que se vai cumprindo e, portanto esgotando, enquanto se vão realizando as medidas que contém.

A norma envolve a distinção entre o momento da sua emanação e o momento do seu cumprimento;31 é um padrão de comportamento e de solução, um quadro de referência que, estabelecido agora, se projecta no tempo (em geral, no tempo futuro), mais ou menos distante ou imediato; e, precisamente por isso, uma norma pode dirigir-se a um único destinatário de cada vez (como sucede com qualquer norma sobre um órgão singular ou sobre o seu titular).

Resta sublinhar as notas peculiares do acto legislativo, no confronto dos demais actos normativos. Em consequência da sua inserção na função política, só o acto legislativo compreende - sem embargo de alguns limites - livre iniciativa, livre escolha do objecto, livre conformação do conteúdo e livre modificabilidade32 (e daí implicações na própria generalidade, para quem aceite esta nota).

Quanto à abstracção como característica do objecto ou do conteúdo do acto normativo, ninguém contesta ser incindível do regulamento. Não da lei, porque há, a par das leis gerais e abstractas, certas leis gerais e concretas - as chamadas leis-medidas, as leis de amnistias, as leis orçamentárias, a que iremos aludir num próximo capítulo.

129. A função políticaI - Porque se trata de funções do Estado, a configuração de cada uma das funções acabadas de esquematizar em qualquer Estado em concreto relaciona-se com a forma - unitária ou complexa - de enlace de povo, poder político e território e com a ideia de Direito aí dominante, com a sua Constituição. Para lá de tudo quanto se encontre de comum, observam-se iniludíveis variações e inflexões de país para país, e em cada país ao longo dos tempos; observam-se quanto aos fins e à estrutura dos actos e quanto aos órgãos competentes para os emanar.

Mais ainda, o específico da função política reside na sua incindibilidade total da forma e do sistema de governo.33 Se os órgãos administrativos e os jurisdicionais se aproximam, mais ou menos, por toda a parte, já as instituições políticas são apenas aquelas que a Constituição cria - e a Constituição tem, necessariamente, de as criar e regular, sob pena de sua inefectividade - e, em cada caso, em sintonia com a forma e o sistema de governo constitucionalmente consagrados.

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É oposta a organização política em monarquia absoluta e em democracia representativa, e nesta e em governo leninista ou em governo fascista. O povo activo ou eleitorado somente adquire relevância (ou relevância plena) em democracia representativa. E não menos sensíveis vêm a ser as diferenças de papel e de poderes de Parlamento, Presidente da República e Governo em sistema parlamentar, em sistema presidencial e em sistema semipresidencial.

II - Reconhecemos o risco de, com a associação das funções legislativa e governativa, se afectar o sentido mais tradicional de lei (que a liga a racionalidade e a permanência) ou se vir a instrumentalizá-la ao serviço desta ou daquela ideologia.34

Entretanto, é seguro que a lei sempre esteve inserida, directa ou indirectamente, consciente ou inconscientemente, nas referências e nas opções fundamentais da vida colectiva e que, sobretudo no século XX, sofre o impacto das variáveis conjunturas políticas.35-36 De resto, a lei não se confunde com o Direito; ela é apenas, em cada instante, uma das suas expressões e o Direito envolve-a e ultrapassa-a.37

Por outro lado, a função governativa participa dos mesmos valores e do mesmo enquadramento institucional da função legislativa. Nenhuma das decisões em que se desdobra pode aperceber-se ou deixar de ser apreciada à sua margem.38

130. A problemática jurídico-política da leiI - A lei como acto da função legislativa - ou, tantas vezes, em alcance conexo com ela, como Direito decretado pelo Estado - constitui um dos temas recorrentes da ciência juspublicística e, antes e para além desta, da filosofia política e jurídica.

Desde a antiguidade clássica têm sido objecto de indagação constante a sua essência, o seu fundamento e os seus limites, a sua relação com o bem comum ou com o princípio da unidade política e a autoridade donde deve emanar. As mais significativas concepções sobre o Estado e o Direito projectam-se necessariamente em diversos entendimentos do que seja (ou deva ser) a lei.

Recordem-se, assim, nos últimos séculos:

- A lei, ordenação da razão (S. Tomás de Aquino e, de certo modo, ainda Suarez);

- A lei, vontade do soberano (Hobbes);

- A lei, garantia da liberdade civil e da propriedade (Locke);

- A lei ligada à divisão do poder e ao equilíbrio das instituições (Montesquieu);

- A lei, expressão da vontade geral (Rousseau);

- A lei, vontade racional (Kant);

- A lei, instrumento para a utilidade e a felicidade geral (Bentham);

- A lei, manifestação imediata do poder soberano (Austin);

- A lei, instrumento do domínio de classe (Marx e Engels);

- A lei, escalão de normas imediatamente a seguir à Constituição (Kelsen);

- O conceito político de lei (Schmitt).39

II - Mas a problemática da lei insere-se na problemática geral do poder. Com o conteúdo da lei contendem a organização da sociedade e do poder de a governar.

Não é por acaso que Locke considera o poder legislativo o poder primordial por ser ele que determina as diferentes formas de governo.40 Nem é por acaso que, recusando embora a separação

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de poderes, Rousseau admite a distinção entre função legislativa e função executiva, sustentando que aquela é a única soberana.41 Ou que, pelo contrário, Montesquieu a pretende limitar.42

131. A lei na evolução do EstadoI - A cada tipo histórico de Estado corresponde uma certa configuração da lei no âmbito das ordens jurídicas positivas (em interacção com as correntes doutrinais prevalecentes). E em cada uma das grandes fases de desenvolvimento de cada tipo histórico oferece ainda a lei características incontornáveis.

Castanheira Neves fala, por isso, em historicidade e condicionalidade da função legislativa, sublinhando a sua referência específica ao poder político: pode não ter sido sempre a legislação a forma eminente e mais eficaz da afirmação desse poder, como o é hoje, mas se, por um lado, ela foi a partir do século XVI "o corolário essencial da soberania", por outro lado, a cada espécie de poder político corresponde um tipo particular de legislação - como for o poder político, assim será a legislação.43

II - Tal como a respeito do fenómeno constitucional, sobressai aqui a contraposição entre o período anterior ao iluminismo e à Revolução francesa e o período subsequente. São, no essencial, as mesmas as causas do aparecimento da Constituição material e formal e das metamorfoses da lei.

Antes do iluminismo e da Revolução francesa, o peso da lei era (a despeito do esforço centralizador do Estado absoluto) relativamente pequeno;44 lei e Direito objectivo não se confundiam, não só devido ao papel desempenhado pelo costume mas também devido à aceitação de certos princípios ético-jurídicos; eram estes, mais do que a lei, que conformavam sociedades alicerçadas em hierarquias de classes e funções; a autoridade da lei ou era pressuposta ou estribava-se na legitimidade tradicional do monarca; e era tanto mais respeitada quanto mais antiga.

Diversamente, a partir do constitucionalismo, a lei tende a dominar todo o ordenamento jurídico estatal e chega a querer-se reduzir a tarefa dos juristas à sua exegese; as sociedades são agora sociedades em movimento, com múltiplas vicissitudes, não raro revolucionárias, que a lei acompanha, nuns casos e, determina (ou supõe-se que determina), noutros casos; a lei dir-se-ia estar na disponibilidade do poder; multiplica-se e renova-se sem cessar; e a sua autoridade é apenas imanente ou parece justificar-se por si mesma.45

A teoria do Estado absoluto levara já ao contraste entre razão e vontade nos domínios da criação e da aplicação da lei. Com a modernidade, o conflito passa a ser entre liberdade e soberania popular. Na vertente liberal, lei implica separação de poderes e primado dos direitos individuais; na democrática, primado da soberania popular e da sua tradução maioritária; e essa tensão dialéctica vai prolongar-se dentro do Estado de Direito democrático.

III - Se bem que o enquadramento da lei surgido com a Revolução francesa perdure até os nossos dias, há diferenças sensíveis entre a lei na época do Estado liberal e a lei no século XX.

No século XIX, a lei integra-se na visão de uma sociedade de indivíduos livres e iguais, homogénea, bem estruturada frente ao poder e cujo funcionamento se pauta de acordo com a razão. Prescrição normativa àqueles dirigida, define-se pela generalidade e pela abstracção. Instrumento neutro incindível de fins permanentes e universais, tem na sua certeza um esteio básico a preservar e vê na codificação o seu maior triunfo. Proveniente do Parlamento, reveste forma unitária.

A lei assenta na majestade da razão e, por isso, a racionalidade é o seu limite intrínseco, único e necessário. Aliás, a Constituição, dominada quase por completo por normas organizatórias, não interfere na grande maioria das matérias legais, nem é entendida como parâmetro de validade da lei. E, como bem se sabe, a ideia de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade, acolhida nos Estados Unidos, não acharia terreno fértil na Europa desse tempo.46

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Naturalmente, a sociedade (ou a consciência de sociedade) do século XX não poderia deixar de alterar a posição da lei. O legislador - seja o Parlamento, seja o Executivo enquanto investido também de competências legiferantes - defronta-se com uma sociedade cada vez mais heterogénea, mutável e conflitual de grupos, de interesses e de forças políticas e ideológicas e tem de utilizar, não raro, a lei para intervenções contingentes nos mais variados sectores da vida social, económica e cultural. A complexidade torna-se inelutável, nem sequer se esgota na conhecida dicotomia lei-regra (Rechtsgesetz) e lei-medida (Massnahmengesetz)47 e entremostram-se fluidas as fronteiras entre legislação e administração.

A dilatação de campos, a especialização por diversos objectivos e procedimentos e a pulverização decisionista - conduzindo àquilo a que se tem chamado inflação legislativa e às leis omnibus (Garcia de Enterría) - não reforçam a autoridade da lei. Muito pelo contrário: a função garantística transfere-se para a Constituição - doravante a sede ou o repositório dos valores fundamentais da comunidade e com normas imediatamente aplicáveis e vinculativas. Em vez de soberania da lei, impõe-se o princípio da constitucionalidade e implantam-se sistemas de justiça constitucional. Ao mesmo tempo, a intensa comunicação entre os povos leva à subordinação da lei às normas de Direito internacional convencional e de Direito próprio das organizações internacionais.48

Por fim, a tudo isto cabe acrescentar as tendências mais recentes de descentralização de poderes normativos, de participação e até de contratualização nos procedimentos legislativos e de desregulação ou de deslegalização. Porventura, sob alguns aspectos, elas podem preludiar uma nova noção de lei.49

132. Lei em sentido material e lei em sentido formalI - A ideia de lei esteve tradicionalmente sempre ligada à de criação ou de revelação do Direito e, de modo directo ou indirecto, a norma, precrição, regra.

Com o constitucionalismo o poder legislativo foi atribuído ao Parlamento (sozinho ou com a sanção do monarca). Mas, ao mesmo tempo, tendeu a ser lei todo o acto do Parlamento (e, mais tarde, de outro ou outros órgãos com análoga competência), desde que produzido através de procedimento específico e exteriorizado por determinada forma. Donde, o falar-se ali em lei em sentido material e aqui em lei em sentido formal (conforme já atrás dissemos).

A lei em sentido material corresponde a lei como acto da função legislativa tal como ficou recortada no Capítulo I; e é sempre, necessariamente, também lei em sentido formal. Já não a lei em sentido formal, que pode ou não ser revestida de conteúdo legislativo.

II - É corrente estabelecer-se correspondência entre Estado liberal e conceito material de lei e entre a situação do século xx (seja qual for a natureza do regime político) e o domínio de um conceito meramente formal.

Tal maneira de ver deve ser, porém, considerada com algumas reservas.

Em primeiro lugar, a distinção - e, mais do que a distinção, a dissociação - dos dois sentidos remonta já ao século XIX (lançada pela doutrina alemã da época, embora muito marcada pelos condicionalismos da monarquia limitada).50

Em segundo lugar, não faltam Autores bem identificados com as concepções do liberalismo e do positivismo jurídico que definem a lei com apelo exclusivamente a elementos formais e ao princípio da sua supremacia frente a quaisquer outros actos.51

Em terceiro lugar, além da tese da generalidade, outros entendimentos materiais de lei têm sido propostos, com mais ou menos êxito, entre os quais o da regra de direito, o da novidade, o da interferência na esfera de liberdade e propriedade das pessoas, o da execução imediata ou da concretização da Constituição.

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Em quarto lugar, se a abstracção enquanto característica da lei vem sendo posta em causa ou abandonada, sobretudo devido à emergência das leis-medidas, nem por isso a generalidade deixa de continuar a aparecer, senão como propriedade essencial, pelo menos (na expressão de Laband,52 seguido por tantos outros Autores)53 como propriedade natural da lei.

Em quinto lugar, se a exigência de generalidade se compagina historicamente com a conquista do princípio da igualdade perante a lei e se a sua crítica vem a ser formulada hoje com frequência em nome de uma igualdade efectiva e real, aberta a diferenciações e a discriminações positivas, não menos seguro é que em Estado social de Direito não há antagonismo entre as duas vertentes; muito pelo contrário, elas completam-se numa tensão dialéctica, em que se interpenetram igualdade e proporcionalidade.54

III - O fenómeno das leis concretas e gerais (independentemente do que seja aí a generalidade) não se dá apenas com as leis-medidas. Ele manifesta-se há muito com as leis orçamentais, as leis de amnistia e as de declaração de estado de sítio e de outros estados de excepção.

Mas as leis-medidas (Massnahmengesetze, leggi-provvedimento) estão ligadas à complexidade cada vez maior da vida hodierna e à sua aceleração, ao alargamento das tarefas do Estado e à diversidade de veículos de comunicação entre a sociedade e o poder. São leis de intervenção em situações concretas para precisos efeitos e que se traduzem, pois, em medidas ou providências dirigidas à resolução destes ou daqueles problemas em tempo útil; ou, numa fórmula conhecida,55 leis em que a actio dir-se-ia suplantar a ratio ou a constitutio.

O legislador, querendo intervir, a dirigir a economia e a conformar a sociedade, para dar satisfação aos direitos económicos, sociais e culturais dos cidadãos, tem de actuar, sob uma forma fragmentária e assistemática, descendo ao particular, ao diferente, ao concreto, ao contingente, ao territorialmente circunscrito, ao adequado e ao graduado - prescindindo dos actos administrativos de execução e realizando ele mesmo o efeito ou resultado desejado.56

A natureza das leis-medidas é bastante controversa. Alguns falam em desvalorização da lei, em correspondência com o Estado funcional;57 outros consideram estar aí um fenómeno de administrativização do Legislativo simétrico da assunção de poderes normativos pelo Executivo;58 outros realçam aspectos específicos como a decisão, o objecto, o círculo de destinatários, a duração da sua vigência ou a excepcionalidade.59

Seja como for, elas não saem do campo da função legislativa, porque estribam-se em opções políticas60 alheias à Administração e, ainda quando auto-exequíveis, não são (ou quase nunca são) consuntivas de actos de aplicação às situações da vida.

IV - Pode outrossim haver leis individuais, leis real ou aparentemente individuais, contanto que, por detrás deste ou daquele comando aplicável a certa pessoa, possa encontrar-se uma prescrição ou um princípio geral.61

Tudo reside em saber se a razão de ser da medida concreta e individual que se decreta (tal como a da lei posta perante a Constituição flexível) leva consigo uma intenção de generalidade, se corresponde a um sentido objectivo, a um princípio geral, por virtude do qual se alarga o âmbito da lei de maneira a abranger aquela medida; ou se, pelo contrário, se esgota em si mesma, desinserida de qualquer novo juízo de valor legal.62

Uma coisa é então a lei individual ainda reconduzível ao cerne da generalidade, implícita ou indirectamente;63-64 outra coisa o acto administrativo sob forma de lei, simples decisão de um caso concreto e individual e que deve (ou deveria) ser simples aplicação de regra preexistente e só válido se com ela se conforma. Entretanto, a distinção nem sempre é fácil e nem sempre é feita.

O que, em Estados de Direito, em caso algum, podem ser admitidas são leis individuais privativas ou restritivas de direitos. A haver tais leis (quando a Constituição as autorize) a generalidade tem de constar da respectiva previsão, tem de se oferecer imediata e inequívoca.65

V - Resta sublinhar que o dualismo lei material e formal - lei formal não material não se reduz à

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presença ou ausência de generalidade (ou de outro qualquer elemento substancialístico). Tem de ser encarado no quadro geral das funções do Estado, como temos vindo a fazer.

Lei em sentido material não é apenas a lei enquanto dotada de generalidade. É a lei, repetimos, como acto da função política e sujeita imediatamente à Constituição. Sem essa localização, sem a ponderação prospectiva do interesse geral, sem a visão ampla da comunidade política, sem a discricionariedade que lhe é inerente, não existe lei.

Em suma, a lei é o meio de acção essencial do poder sobre a vida social.66 Com a lei trata-se de programar e promover, pelas suas prescrições, uma ordem político-social; trata-se de legitimar e normalizar, juridicamente, uma política global do Estado.67 Conteúdo adequado ou apropriado à forma de lei há-de ter, em princípio, especial relevância para os particulares e/ou para a comunidade.68

Por isso, os regulamentos não podem ser leis em sentido material.69 E tão pouco o podem ser as declarações de inconstitucionalidade e de ilegalidade de normas jurídicas com força obrigatória geral; ou o poderiam ser (recorde-se) os assentos do Supremo Tribunal de Justiça.

Assim, a relação entre lei em sentido material e lei em sentido formal deve estabelecer-se na base de dois círculos concêntricos

133. A função administrativa e a função jurisdicionalI - Através da função administrativa realiza-se a prossecução dos interesses públicos correspondentes às necessidades colectivas prescritas pela lei, sejam esses interesses da comunidade política como um todo ou interesses com os quais se articulem relevantes interesses sociais diferenciados.70-71

Na função jurisdicional define-se o Direito (juris dictio) em concreto, perante situações da vida (litígios entre particulares, entre entidades públicas e entre particulares e entidades públicas, e aplicação de sanções), e em abstracto, na apreciação da constitucionalidade e da legalidade de actos jurídicos (maxime, de actos normativos).

Donde:

- O interesse público como causa dos actos da função administrativa; e o cumprimento das normas jurídicas como causa dos actos da função jurisdicional;72

- Uma postura essencialmente volitiva e prospectiva a da administração; e uma postura essencialmente intelectiva e retrospectiva a da jurisdição;

- Na função administrativa, o predomínio da componente autoritária, mesmo se tem de se compaginar com a crescente afirmação de garantias dos administrados e com formas associativas de organização;73 e na função jurisdicional a presença do princípio do contraditório, mesmo se nem sempre o processo é concebido como processo de partes;

-A maior liberdade relativa dos órgãos da função administrativa, com gradações várias no caso do chamado poder discricionário, ainda que o princípio da legalidade, mais do que compatibilidade, implique conformidade dos actos com a lei74 e nunca o interesse público se lhe possa sobrepor.75

Vale a pena evocar aqui palavras de Marcello Caetano:

a) Quando está em causa um conflito de interesses, quer se trate de dois interesses privados, quer de um interesse privado e de um interesse público, a execução da lei exige prévia definição do interesse que disfruta da protecção jurídica para assim se deslindar o conflito. O essencial é verificar as circunstâncias em que o problema se põe, definir com precisão os elementos de facto constitutivos da hipótese, para depois se fazer justa aplicação do Direito. O órgão do Estado executor da lei procede sobretudo mediante operações intelectuais: verifica os factos e ajusta-lhes o

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Direito aplicável.

Tal modo de executar a lei exige perfeita imparcialidade do órgão de execução: este não deve estar de modo nenhum interessado no conflito ("ninguém pode ser juiz em causa própria") e não deve resolver sem ouvir todos os interessados. Por outro lado, a própria natureza deste processo de agir exige que o órgão de execução só actue quando lhe seja pedido por um dos interessados, pelo menos. Estas regras observam-se mesmo quando o conflito se dê entre interesses representados pelo próprio Estado e outros quaisquer: o órgão competente para aplicar a lei também se há-de considerar imparcial, competindo a outro órgão (o Ministério Público, geralmente) representar os interesses que o Estado quer fazer valer.

Imparcialidade e passividade são, pois, as características do processo jurisdicional da execução das leis.

b) Mas o Estado promove e assegura a execução das leis sem esperar que do choque de interesses resultem conflitos em que duas ou mais partes reivindiquem a protecção jurídica na convicção de lhes ser devida. O Estado tem órgãos que tomam a iniciativa da realização dos comandos legais, directamente ou mediante a orientação da conduta dos particulares. E nesses casos os órgãos do Estado procedem como se fossem eles próprios os titulares dos interesses que a lei quer ver em acção, agindo como partes nas relações com os particulares, isto é, com parcialidade. O Estado não espera que lhe venham pedir que intervenha para executar a lei: aproveita faculdades legais, usa os seus poderes, cumpre os seus deveres, escolhendo quando lhe seja possível as oportunidades de intervenção e determinando-se nela por motivos de conveniência. Assim, as decisões ou operações de vontade predominam sobre os julgamentos ou operações de inteligência. E o Estado, na medida em que se proponha realizar os seus interesses, pode entrar em conflito com outros interessados.

Parcialidade e iniciativa aparecem-nos agora como características do processo administrativo da execução das leis.76-77

II - Para se compreender melhor o alcance das duas funções no âmbito do ordenamento jurídico, importar acrescentar três pontos.

Em primeiro lugar, não deve tomar-se à letra ou exagerar-se o seu carácter executivo, pois numa e noutra também se encontram momentos ou elementos irredutíveis de criação, de intervenção constitutiva ou de densificação de normas: basta pensar na emanação de regulamentos independentes ou autónomos (adstritos a uma pluralidade não especificada de leis, e não a esta ou àquela lei)78 e na elaboração jurisprudencial do Direito.79

Tal como, em contrapartida, se a lei ordinária não pode conceber-se como mera execução da Constituição, não raro aparece referida a certas e determinadas normas constitucionais, para as regulamentar (sobretudo no domínio dos direitos, liberdades e garantias) ou para as concretizar e lhes conferir exequibilidade (sobretudo no domínio dos direitos económicos, sociais e culturais);80 e há quem fale em imposições legiferantes.81

Se bem que o poder político se ostente de modo mais forte, mais intenso e mais impressivo na feitura das leis e nas decisões de governo, não deixe de se manifestar igualmente na função administrativa e na função jurisdicional. Sociologica e juridicamente, a Administração apresenta-se como poder.82 E o poder do juiz não é, de jeito algum, um poder nulo ou neutro como supunha Montesquieu;83 muito menos o do juiz constitucional.84 A justiça é administrada "em nome do povo" (art. 101º da Constituição italiana e art. 202º, nº 1, da Constituição portuguesa), o que significa que o juiz se deve fazer também intérprete da intenção jurídico-social da comunidade.85

Tão pouco pode ignorar-se a significação política que assumem muitos dos actos tanto da função administrativa (quando provenientes do Governo ou de órgãos electivos de entidades descentralizadas) como da função jurisdicional (v. g., actos de fiscalização abstracta, preventiva ou sucessiva, de constitucionalidade ou de jurisdição relativa a crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos). Isto ainda sem atender às precompreensões, conotações ou implicações

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metajurídicas a que nunca conseguem subtrair-se os titulares de órgãos de uma e outra função.86

134. Zonas de fronteira e funções complementares, acessórias e atípicasI - Os actos próprios de cada função devem provir, em princípio, de órgãos correspondentes a essa função. Todavia, encontram-se, em vários ordenamentos, algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas.

É o que sucede, sobretudo, com a actividade do Ministério Público em processo penal, que não se integra nem na administração - apesar da iniciativa - nem na jurisdição - apesar de actividade estruturalmente conexionada com a dos tribunais;87 e com as autoridades independentes da Administração.

Com efeito, o Ministério Público não aparece aí como parte no sentido de defender um interesse contraposto ao do arguido;88 antes, deve colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade. E, dotado de estatuto próprio e de autonomia (art. 219º, nº 2, da Constituição portuguesa) ou de independência funcional (art. 127 da Constituição brasileira), assim serve de anteparo da independência dos tribunais89 sem com eles se confundir.90

Fenómeno novo nos países latinos,91 vem a ser o dos "órgãos ou autoridades independentes da Administração" ou órgãos que interferem no exercício da função administrativa sem dependerem de direcção, superintendência ou tutela do Governo e cujos titulares, quase sempre eleitos, no todo ou em parte pelo Parlamento, gozam de inamovibilidade. Uns são criados directamente pela Constituição, outros pela lei ordinária, embora com fundamento naquela, pela sua instrumentalidade com direitos fundamentais e com princípios gerais de Direito eleitoral ou de organização económica.

Enquanto recebem competência de consulta ou de controlo não parece que estes órgãos se situem fora da função administrativa (não existe apenas a Administração activa). Já não quando ficam investidos em competências de regulação.92

§ 2º Órgãos Do Estado

135. Origem do conceitoI - O conceito de órgão - de órgão do Estado93 - surgiu no século XIX fruto, quase simultaneamente, de dois movimentos distintos: o constitucionalismo, com a multiplicação de centros de poder e a manifestação, no interior do Estado, de diferentes interesses e posições políticas; e o organicismo germânico (de Gierke, sobretudo), com a sua concepção do fenómeno estadual como princípio vital e integração de vontades.

Havia que traduzir a complexidade institucional derivada da separação dos poderes sem perda da estrutura unitária do Estado, e o recurso simbólico ou analógico a noções já trabalhadas pelas ciências da natureza oferecia-se como um instrumento útil de análise e construção (contanto que se não caísse, como por vezes sucedeu, num reducionismo ou num pretenso realismo de matiz biológico).94

Relativamente cedo, a noção desprender-se-ia da sua marca doutrinal de origem e seria acolhida e reinterpretada por outras correntes, à luz das suas perspectivas próprias (do positivismo Kelseniano ao institucionalismo e à teoria da integração de SMEND); só o positivismo sociológico a repeliu.

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Das ciências publicísticas, passaria para a ciência do Direito internacional, com adaptações, e, em menor medida, para as ciências jusprivatísticas.

O conceito de órgão aparece hoje muito estreitamente associado à teoria da personalidade colectiva Mas não a implica necessariamente: pode admitir-se que, para o exercício das suas actividades, grupos e entes não personalizados (ou o Estado quando se adoptasse uma tese negativista) disponham de órgãos; e pode configurar-se a organização à margem de quaisquer considerações normativas ou técnico-jurídicas nos domínios da sociologia, da ciência da administração e de outras disciplinas.

II - É muito rico o interesse do conceito:

1º) Ele propicia um instrumento de mediação entre a colectividade e a vontade ou poder que a unifica;95

2º) Ele exprime a duração ou permanência desse poder para além da mudança dos indivíduos nele investidos;

3º) Ele explica a transformação da vontade psicológica (de certas pessoas físicas - os governantes e os outros detentores do poder político) em vontade funcional (em vontade do Estado ou da pessoa colectiva);96

4º) Ele ajuda a compreender, no plano da dogmática jurídica, o fenómeno da divisão do poder político, através de diversos órgãos com competências próprias;97

5º) Ele permite resolver problemas de responsabilidade.98

136. Órgãos e conceitos afinsI - Por órgão do Estado entende-se, pois, o centro autónomo institucionalizado de emanação de uma vontade que lhe é atribuída, sejam quais forem a relevância, o alcance, os efeitos (externos ou mesmo internos) que ela assuma; o centro de formação de actos jurídicos do Estado (e no Estado); a instituição, tornada efectiva através de uma ou mais de uma pessoa física, de que o Estado carece para agir (para agir juridicamente).

Cada órgão diferencia-se dos demais, primeiro que tudo pelos poderes jurídicos que recebe para esses fins; estrutura-se em razão de tais poderes; insere-se no plano dos princípios e do sistema constantes da Constituição (maxime da forma e do sistema de governo); e subsiste por virtude da institucionalização que daí procede.

II - O conceito de órgão distingue-se do de agente (lato sensu).O agente não forma, nem exprime a vontade colectiva; limita-se a colaborar na sua formação ou, o mais das vezes, a dar execução às decisões que dela derivam, sob a direcção e a fiscalização do órgão. Quaisquer decisões do agente que, porventura de certa perspectiva, se configurem são subordinadas ou de segundo grau, e necessariamente a nível não constitucional.99

Quando muito, pode dizer-se que o nexo entre órgão e agente é entre principal e acessório.

III - Os órgãos são elementos integrantes do Estado enquanto ser juridicamente constituído (donde a sua radical distinção dos órgãos dos seres biológicos) e os órgãos constitucionais aqueles através dos quais o Estado actua constitucionalmente. O sujeito é o Estado, os órgãos instrumentos ao seu serviço.

Ao mesmo tempo, afigura-se possível encará-los numa linha mais próxima da Ciência política do que da do Direito constitucional: os órgãos, não já enquanto formadores de uma vontade imputável ao Estado, mas enquanto dinamizadores da vida jurídico-pública ou intervenientes, a par de outros intervenientes, no contraditório político.

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Neste plano não são, porém, os órgãos os únicos sujeitos constitucionais (porque são sempre normas constitucionais que os prevêem e lhes conferem relevância). Há outras entidades, personificadas ou não, com direito ou poder de iniciativa de actividades político-constitucionalmente relevantes: assim, os partidos políticos (específicas associações de Direito constitucional), as organizações de trabalhadores e de empregadores, as associações culturais, ambientais, desportivas, etc.

Se é indispensável conhecer as duas faces da realidade, não menos indeclinável deve ser o cuidado em não as confundir.

137. Órgão e imputaçãoI - No Estado (como, em geral, nas pessoas colectivas) verifica-se, por um lado, a definição normativa de centros de formação da vontade colectiva e, por outro lado, a atribuição a certas pessoas físicas da função de os preencherem em concreto, de agirem como se fosse o Estado a agir. E, então, a vontade que essas pessoas singulares formem - uma vontade psicológica como qualquer outra - é tida como vontade da pessoa colectiva e qualquer acto que pratiquem, automaticamente enquanto tal, a ela atribuído. Nisto consiste o fenómeno da imputação.100

Não há dualidade de pessoas (a pessoa titular dos direitos e a pessoa que os exerce) como na representação, legal ou voluntária. Há unidade: é uma só pessoa - a pessoa colectiva - que exerce o seu direito ou prossegue o seu interesse, mas mediante pessoas físicas - as que formam a vontade, as que são suportes ou titulares dos órgãos.

Dualidade ou desdobramento ocorre, sim, na pessoa singular suporte do órgão, já que nela se acumulam duas qualidades: a de pessoa como particular e como cidadão, e a de titular do órgão. E, assim, em qualquer acção ou omissão haverá que discernir - que discernir se é um comportamento seu, no âmbito da sua vida e dos seus interesses, ou se é um comportamento ao serviço da pessoa colectiva; haverá que discernir se é um acto pessoal ou um acto funcional.Nem há incapacidade de exercício de direitos do Estado (ou de qualquer pessoa colectiva). O Estado é plenamente capaz e exerce a sua capacidade pelos meios adequados e que são precisamente os órgãos.

II - Tudo reside na projecção da norma jurídica a enquadrar no plano global da institucionalização social e da ideia de Direito. Vontade funcional nunca pode deixar de ser vontade normativa: é a norma que converte a vontade psicológica em vontade do órgão, ou seja, em vontade do Estado.

Por isso, não é necessário distinguir, a respeito da natureza dos órgãos, entre os órgãos como instituições no âmbito da teoria da organização administrativa e como indivíduos no âmbito da teoria da actividade administrativa.101 Não são os indivíduos, sem mais, que praticam os actos administrativos ou os actos jurídico-constitucionais; nem são as instituições, sem os indivíduos. São os indivíduos enquadrados nas instituições ou as instituições necessariamente corporizadas através de indivíduos.102

Por isso ainda, o problema dos vícios da vontade no tocante a actos do Estado não pode colocar-se nos mesmos moldes em que é posto em relação ao negócio jurídico.

III - Representação (de Direito privado) e imputação são, portanto, coisas bem diversas. O órgão não representa a pessoa colectiva; o órgão é a pessoa colectiva e esta não pode ter outra dinâmica jurídica senão a que lhe vem do órgão.103

Como escreve um Autor, ao passo que o representante conserva uma individualidade autónoma diferente da do representado, a vontade do órgão é referida ou imputada por lei à pessoa colectiva, constituindo para o Direito a própria vontade dessa pessoa; enquanto que a vontade do representante

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é a vontade dele mesmo (embora, numa certa medida, venha a produzir efeitos, desde logo, na esfera jurídica do representado), os actos do órgão valem como actos da própria pessoa colectiva.104

IV - Com isto, tão pouco, tem que ver o instituto da representação política, pressuposto fundamental da forma de governo representativo. É só por causa da representação política que se fala em órgãos representativos, mas estes não o são por representarem ou deixarem de representar o Estado; são representativos, porque os seus titulares representam o povo, os cidadãos, enquanto recebem a representação política deles por meio de eleição (ou, por outras vias, eventualmente).105

A imputação refere-se aos actos jurídicos e aos seus efeitos, a representação política aos titulares dos órgãos e ao sentido ou conteúdo político que imprimem aos actos.

138. Órgãos e actos com eficácia internaI - O conceito de órgão revela-se indispensável para explicar as relações jurídicas que se estabelecem e desenvolvem entre o Estado e os cidadãos (bem como entre o Estado e outras pessoas colectivas públicas, privadas e de Direito internacional). Todavia, não há apenas actos de eficácia externa; há, outrossim, actos com eficácia interna - com eficácia intra-orgânica, nuns casos, e com eficácia interorgânica noutros - actos cuja relevância se exaure (aparentemente) no interior do aparelho do poder estadual.

Há actos com eficácia intra-orgânica, sejam actos de auto-organização ou decorrentes de auto-organização (v. g., aprovação de regimento ou eleição de mesa de órgão colegial), sejam actos interlocutórios no processo ou procedimento de formação da vontade do órgão. Há actos de um órgão que se projectam em actos de outro órgão, seja porque se requeira a colaboração de ambos para o emitir do acto final do Estado (v. g., a aprovação parlamentar da lei e a promulgação pelo Presidente da República), seja porque se confira a um órgão uma faculté d'empêcher em face da faculté de statuer doutro (v. g., o poder de veto - político ou por inconstitucionalidade - ou o de recusa de ratificação de decretos-leis).106 E, em certos casos, dir-se-ia ocorrer um desdobramento do Estado, tanto no interior como no exterior (assim os tribunais e o Ministério Público, no exemplo mais divulgado).

Em todas estas hipóteses continua ainda a justificar-se falar de imputação, pelo seguinte:

a) Quanto aos actos de efeitos intra-orgânicos (ou de efeitos directos intra-organicamente), eles são instrumentais ou preparatórios diante de actos específicos do órgão, correspondentes à parcela, que lhe cabe, do poder do Estado;

b) Quanto à necessidade de adição de actos de vários órgãos para que se produza um acto final do Estado, em rigor a imputação só se dará também a final, em face do resultado dessa adição; os actos de diferentes órgãos são imputados ao Estado na medida em que concorrem para tal acto global (ou complexo) ou para tal resultado;

c) Nem é isto infirmado pela possibilidade de emanação, dentro de um processo ou procedimento, de actos de sentido divergente de dois ou mais órgãos, porque é ainda o acto final, seja qual for a vontade que prevaleça, que se imputa ao Estado; nada impede, entretanto, uma relativa autonomização dos actos de diversos órgãos, enquanto se tome o Estado constitucional, representativo ou de Direito como Estado com pluralidade de poderes;

d) Quanto ao desdobramento orgânico - funcional, quer no domínio da função jurisdicional quer no domínio da função administrativa, ou se trata de uma adequação para o desempenho de certas funções ou tarefas ou de um desdobramento mais em nível de pessoas colectivas do que a nível de órgãos.

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II - Poder-se-á ir ao ponto de falar numa personificação do órgão, ainda que limitada107 ou parcial?108 Ou concluir que o Estado é uma organização diversificada actuante, e não uma unidade de imputação em vestes de pessoa colectiva?109

Não parece necessário ir tão longe. Uma vez que para o próprio Estado e para os destinatários permanentes da ordem jurídica estadual aquilo que importa, em última análise, são os actos finais, tudo quanto até lá se passe não se apresenta relevante no plano da personalidade colectiva e daí que não se descubra interesse nesse desdobramento ou multiplicação da figura.

Aliás, não é preciso recorrer à técnica da personificação para qualificar qualquer situação ou relação como jurídica, como significativa do prisma do Direito. O Direito regula não só relações entre sujeitos mas também entre sujeitos e objectos e no interior de um mesmo sujeito.110

Mais: porque toda a evolução do Direito público vai na linha de uma institucionalização e complexificação crescente, todas as acções e omissões dos órgãos hão-de compreender-se sempre à luz de referências e quadros jurídicos - mas referências e conceitos muito diversificados, adequados à função própria de cada decisão ou expressão de vontade, e não à luz de uma só forma de os entender (como seria a subjectivação dos órgãos).

139. Órgãos em Direito interno e em Direito internacionalI - Como se disse, a teoria do órgão é susceptível de ser estendida, e tem-no sido, ao Direito internacional. Desde logo, as organizações internacionais possuem uma realidade essencialmente institucional. Mas tanto elas como os demais sujeitos de Direito internacional (com excepção, naturalmente, do indivíduo, quando este seja sujeito de Direito internacional) também só podem agir através de órgãos (e agentes) nas suas relações jurídicas.111

Relativamente ao Estado o problema que pode suscitar-se vem a ser o de saber se há coincidência entre órgãos para efeitos de Direito interno e órgãos para efeitos de Direito internacional; ou de saber qual é a ordem jurídica que determina os órgãos com competência na sua esfera externa (ou seja, com poder para vincular o Estado internacionalmente e também para o constituir em responsabilidade) - se o próprio Direito estadual, se o internacional.

II - Em princípio, o Direito internacional não dispõe sobre quem representa o Estado nas relações internacionais, embora venha de há muito o jus raepresentationis omnimodae dos Chefes do Estado.112 Remete para o Direito interno (ou acolhe o que este dispõe).113

Os órgãos do Estado à face do Direito interno são-no também, por conseguinte, à face do Direito das Gentes e são as Constituições que estipulam quais os órgãos com competências específicas nas relações internacionais. Assim, entre nós, o Presidente da República representa a República Portuguesa (segundo o art. 120º da Constituição) e no processo de conclusão de convenções internacionais intervêm ou podem intervir o Governo, a Assembleia da República e o Presidente (arts. 197º, 161º e 135º).

Não quer isto dizer, no entanto, que a imputação se faça em Direito internacional em moldes ou com critérios exactamente iguais aos do Direito interno. Há factores irredutíveis, nomeadamente no domínio da responsabilidade.

Por outro lado, haverá sempre que ter em devida conta o princípio da efectividade. Tal como, em situação de necessidade - por exemplo, em caso de ocupação estrangeira ou de guerra civil - adquire especial relevância o instituto do reconhecimento de Governo.

Finalmente, ocorrendo alterações constitucionais que afectem, não já os titulares dos órgãos, mas sim os próprios órgãos (como sucede quando muda o regime político ou a forma de governo, com as inerentes implicações em nível dos órgãos da função política), a regra jurídico-internacional da identidade e continuidade do Estado não pode deixar de prevalecer.

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140. Os elementos do conceito de órgãoI - O conceito de órgão implica quatro elementos (inseparáveis, mas que cabe distinguir):

a) A instituição ou, em certa acepção, o ofício - sendo instituição na célebre definição de Hauriou, a ideia de obra ou de empreendimento que se realiza e perdura no meio social;114

b) A competência ou complexo de poderes funcionais cometidos ao órgão, parcela de poder público que lhe cabe;

c) O titular ou pessoa física ou conjunto de pessoas físicas que, em cada momento, encarnam a instituição e formam a vontade que há-de corresponder ao órgão;115

d) O cargo ou (quando se trate de órgão electivo) mandato - função do titular, "papel institucionalizado"116 que lhe é distribuído, relação específica dele com o Estado, traduzida em situações subjectivas, activas e passivas.117

II - A instituição e a competência dir-se-iam elementos objectivos, o titular e o cargo elementos subjectivos; nos primeiros dir-se-ia dominar factores normativos e transtemporais, nos segundos factores pessoais.

No entanto, também o titular e o cargo são conformados objectivamente pelas normas - de Direito constitucional e de Direito ordinário - que não só inserem o titular no órgão mas também regulam a sua designação, a sua cessação de funções e outras vicissitudes. O estatuto do titular, em todos os aspectos, radica, tal como a competência, na norma jurídica. Não é por acaso que também se fala em magistratura (como sinónimo de cargo), sobretudo quando se trata de órgãos singulares ou com um só titular.118

141. Sentido da competênciaI - A competência119 é algo de instrumental no confronto dos fins ou funções do Estado ou dos interesses públicos. É um meio que os pressupõe forçosamente.

Seria possível pensar a competência em qualquer sistema político-constitucional, mas em rigor só importa considerar o conceito quando haja mais de um órgão ou centro de poder. Historicamente imbricada com o emergir do constitucionalismo moderno e com a ideia de separação ou de divisão de poder, ela liga-se, ao mesmo tempo, a um postulado elementar de racionalidade e de operacionalidade.

No tocante às demais pessoas colectivas de direito público, a competência é uma concretização das atribuições - quer dizer, dos interesses ou finalidades específicas que devem prosseguir.120 É o conjunto de poderes de que uma pessoa colectiva pública dispõe para a realização das suas atribuições,121 havendo ainda que discernir, de harmonia com a estrutura funcional da pessoa colectiva, o segmento conferido a cada um dos seus órgãos.

Mutatis mutandis pode também aludir-se a competência quanto às pessoas colectivas de direito privado,122 na medida em que se torna necessário ou conveniente distinguir e distribuir por diversos órgãos o seu poder, seja associativo, fundacional ou societário (um poder que não é poder público, mas que não deixa de ser poder em relação aos membros ou aos beneficiários).

II - A competência pode ser delimitada em razão da matéria, da hierarquia, do território, do tempo e do valor dos actos.

Noutra perspectiva, alude-se, por vezes, a competência subjectiva para indicar a competência de um órgão em face da competência de outros órgãos da mesma pessoa colectiva; e alude-se a competência objectiva para a recortar em razão da matéria ou da parcela de funções, atribuições ou interesses que deve prosseguir.123

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Pode, porém, haver conflitos de competência: conflitos positivos - se dois ou mais órgãos se pretendem competentes para a prática de certo acto (através de interpretações, porventura, diversas da norma definidora de competência); e conflitos negativos - se nenhum órgão se considere competente.124

III - A competência analisa-se em poderes funcionais, não em direitos subjectivos. Os órgãos só existem no âmbito da pessoa colectiva e as pessoas que são titulares dos órgãos estão ao seu serviço, insista-se; nenhum interesse próprio delas pode aqui ser relevante; e assim tem de ser, até por maioria de razão, no Estado.

Há uma funcionalização ao interesse público mediatizado pela norma jurídica. E são essas finalidades objectivas que comandam, portanto, o exercício da competência, na latitude variável de liberdade dos critérios de decisão correspondentes às diversas funções do Estado ou aos diversos tipos de actos.125

IV - A competência não se confunde com a capacidade, susceptibilidade ou medida de situações activas e passivas, de direitos, poderes e deveres, de que uma pessoa colectiva pode ser titular. A competência segue a capacidade, a qual se afere, salvo no Estado, de acordo com um princípio de especialidade.

Na prática das relações jurídicas, a competência dos órgãos do Estado e das demais entidades públicas desempenha, porém, uma função equivalente à da capacidade e da legitimidade dos particulares.126

142. A competência e a norma jurídicaI - Sendo a competência definida pelo Direito objectivo, o órgão não pode ter outra competência além da que a norma estipula. Não pertence ao próprio órgão fazer seus poderes que lhe não sejam atribuídos; e nenhuma autoridade do Estado pode praticar actos que não se reconduzam a competências pré-estabelecidas; assim como não pode dispor delas, transmiti-las a outra autoridade ou conformá-las de modo diferente.

No respeitante aos órgãos constitucionais, significa isto que eles são dotados tão-somente de poderes constituídos -127 constituídos pela Constituição - e que esses poderes devem ser entendidos no seu plano sistemático e exercidos no respeito pelas respectivas normas.

II - O princípio da prescrição normativa da competência é, numa ordem constitucional de Estado de Direito, manifestação de duas ideias mais fundas: a de limitação do poder público como garantia de liberdade das pessoas e a da separação e articulação dos órgãos do Estado entre si e entre eles e os órgãos de quaisquer entidades ou instituições públicas.

Ao passo que em Direito privado e em Direito constitucional, no tocante aos direitos fundamentais, o princípio é o da liberdade ou da autonomia, no tocante aos órgãos é o da competência. Na concepção do constitucionalismo moderno, os indivíduos podem ter todos os direitos que não contrariem os direitos dos outros, a Constituição escrita não esgota os direitos fundamentais (art. 16º, nº 1, da Constituição portuguesa e art. 5º, § 2º, da Constituição brasileira) e a liberdade só tem por limites os que a lei estabelecer; já os órgãos do Estado - que não valem por si, mas enquanto instituições ao serviço das finalidades colectivas - apenas podem agir com os poderes que as normas a eles relativas lhes confiram e nos termos por elas traçados.

A competência traduz-se numa autorização ou legitimação para a prática de actos jurídicos (aspecto positivo) e num limite para essa prática (aspecto negativo).

Se um órgão do Estado praticar um acto que não recaia na sua competência, esse acto será inválido, irregular ou ineficaz por incompetência (ou, conforme os casos, incompetência stricto sensu, usurpação de poder ou, ainda de certa óptica, desvio de poder).

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III - A competência vem da norma; não se presume. Contudo, tanto pode ser explícita quanto implícita. Quer dizer tanto pode assentar numa norma que, explicitamente, a declare como assentar em norma cujo sentido somente seja descoberto através de técnicas interpretativas e que surja como consequência de outra norma ou nela esteja contida. Não há diferença de natureza entre poderes explícitos e implícitos; há somente diferença de graus de leitura.128

A afirmação de poderes implícitos de certo órgão é muitas vezes feita para aumentar a sua influência ou a sua competência em detrimento de outros órgãos. Tal intuito é, porém, inadmissível.

Os poderes implícitos de um órgão não podem brigar com os poderes - explícitos e implícitos - de quaisquer outros. E também aqui a interpretação tem de ser sistemática, levando a conjugar a interpretação de qualquer preceito definidor de competência com, pelo menos, os restantes preceitos que prevêem competências dos demais órgãos.

E são de conceber, em órgãos constitucionais, poderes criados ou derivados directamente da lei ordinária e não da Constituição? Tais poderes são legítimos, desde que entronquem em poderes constitucionais; desde que, justamente mediante interpretação sistemática de todos os preceitos constitucionais de competência, possam ser entendidos como poderes implícitos neles contidos; desde que tenham "base constitucional".

IV - Outras classificações de competências ou de poderes (funcionais) abrangidos nas competências de órgãos são as que contrapõem:

- Poderes originários ou directos (vindos imediatamente de norma jurídica, ainda que implícita) e poderes derivados ou indirectos (vindos de delegação ou de atribuição de outro órgão, quando a norma jurídica a consinta);

- Poderes exclusivos ou reservados (de um só órgão)129 e poderes concorrentes (concedidos a dois ou mais órgãos, de tal sorte que actos de uns podem revogar actos de outro ou outros);

- Poderes constitucionais (previstos por normas constitucionais)130 e poderes legais (previstos por normas legais, de legislação ordinária);131

- Poderes materiais (relativos a actos ou funções do Estado, directa e imediatamente) e poderes institucionais (ou poderes de uns órgãos em relação a outros);

- Poderes positivos (correspondentes ao pouvoir de statuer de Montesquieu) e poderes negativos ou de controlo (correspondentes ao pouvoir d'empêcher);

- Poderes internos (respeitantes à organização e ao funcionamento de cada órgão) e poderes externos (poderes relativos ao exercício de funções de Estado e a outros órgãos);

- Poderes de exercício livre, condicionado e obrigatório.

143. Os titulares e as suas situaçõesI - O órgão caracteriza-se tanto pela permanência e pela continuidade que lhe trazem a instituição, a competência e o cargo quanto pela precariedade inerente ao titular.

O titular é sempre temporário: pelo menos, por força da duração limitada da vida humana ou da capacidade física e mental para o exercício do cargo; e também por virtude de regras jurídicas, variáveis consoante os sistemas e as circunstâncias históricas.

Se, por definição, o Estado como forma de organização política impede a apropriação pessoal de qualquer cargo, o princípio democrático é o da renovação periódica por via, directa ou indirectamente, de eleição pelo povo, e o princípio republicano (enquanto princípio democrático qualificado)132 exige mesmo a limitação dos mandatos.

II - Sob a denominação genérica de situações funcionais, englobam-se as situações jurídicas, activas

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e passivas, dos titulares dos órgãos e dos agentes (ou de alguns agentes) do Estado e de quaisquer entidades públicas enquanto tais. Englobam-se as situações jurídicas em que se subjectivam os estatutos correspondentes aos cargos desempenhados por essas pessoas no Estado e nas outras entidades públicas: poderes funcionais, imunidade, regalias, deveres.133

III - Os modos de designação dos titulares dos órgãos de Estado são variadíssimos, quer no passado quer no presente. Não é possível aqui senão propor uma classificação, olhando à experiência histórica:

a) Entre formas de designação por mero efeito do Direito - a sucessão hereditária (própria de sistemas monárquicos e aristocráticos), o sorteio,134 a rotação, a antiguidade e a inerência;135

b) E entre formas de designação por efeito do Direito e da vontade - a cooptação (simultânea e sucessiva),136 a adopção, a nomeação, a eleição, a aclamação, a aquisição revolucionária.

A cada uma destas modalidades correspondem determinadas regras jurídicas. Da sua observância dependem, em concreto, a investidura no cargo (sujeita ainda a requisitos formais) e a legitimidade de título dos governantes (contraposta, após Bártolo, à legitimidade de exercício).137

Problemas importantes são, por outra banda, os que se prendem com os titulares putativos de órgão do Estado e com a usurpação e a restauração no cargo. Não podemos versá-los aqui.

IV - São coisas diversas as inelegibilidades (e, positivamente, os requisitos de elegibilidade) e as incompatibilidades.

As inelegibilidades impedem a eleição e, por conseguinte, atingem o direito fundamental de ser eleito. Destinadas a garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e a independência do exercício dos cargos, devem ser interpretadas restritivamente.138

As incompatibilidades consistem na impossibilidade de exercício simultâneo de dois cargos ou na impossibilidade de exercício de um cargo quando o seu titular detenha um interesse (privado) ou esteja ligado a um interesse em conflito (ou susceptível de entrar em conflito) com o interesse público.

De entre as inelegibilidades, algumas (as chamadas inelegibilidades especiais) podem equivaler a incompatibilidades de cargos - é o que acontece quando, à partida, quem seja titular de certo cargo fique impedido de disputar uma eleição (por exemplo, o governador civil no respectivo distrito). Porém, as incompatibilidades proprio sensu não obstam à eleição, apenas obstam à acumulação de cargo: o eleito está validamente eleito, o que tem é de escolher aquele dos cargos que pretende, de facto, exercer.

144. Classificação dos órgãosI - Os órgãos do Estado são susceptíveis de classificações estruturais (relativas à instituição e aos titulares dos cargos), de classificações funcionais (respeitantes à competência) e de classificações estruturais-funcionais (em que se conjugam uns e outros aspectos).

O rigor científico de algumas das distinções a que assim se procede talvez nem sempre seja completo, mas elas afiguram-se úteis e, duma maneira ou doutra, são habitualmente citadas pela doutrina.139

II - Classificações estruturais são as que permitem contrapor:

a) Órgãos singulares e órgãos colegiais - consoante têm um ou mais de um titular, e avultando entre os segundos, as assembleias;

b) Órgãos simples e órgãos complexos - sendo simples os que, sejam singulares ou colegiais, apenas formem uma vontade unitária; e complexos os órgãos, necessariamente colegiais, que se desdobram

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ou multiplicam, para efeito de formação de vontade, em dois ou mais órgãos, uns singulares (por exemplo, os Ministros no Governo), outra ainda colegiais (a Mesa e as comissões do Parlamento, os Conselhos de Ministros gerais ou especializados, as secções do Tribunal Constitucional e de outros tribunais superiores);

c) Órgãos electivos e não electivos - consoante a eleição é ou não o modo de designação dos titulares;

d) Órgãos representativos e não representativos - sendo representativos aqueles em que a eleição constitui vínculo de representação política (v. g., Presidente da República, Assembleia da República, assembleias legislativas regionais, órgãos de poder local) e não representativos, os órgãos não electivos e os órgãos electivos sem representação política (v. g., Provedor de Justiça e, em parte, Tribunal Constitucional - cujos titulares são independentes);

e) Órgãos constitucionais e não constitucionais - sendo aqueles os que a Constituição cria e que não podem, por conseguinte, ser extintos ou eventualmente modificados por lei ordinária;

f) Órgãos de existência obrigatória e órgão de existência facultativa - correspondendo os primeiros à regra geral, mas podendo, em certos casos, a norma admitir que uns órgãos (necessariamente de existência obrigatória) venham a criar ou a constituir outros.

III - Classificações funcionais, por seu turno, são as que contrapõem:

a) Órgãos deliberativos e órgãos consultivos - consoante tomam decisões ou deliberações ou actos consultivos ou pareceres;

b) Órgãos a se e órgãos auxiliares - sendo estes os que, a título consultivo ou deliberativo, coadjuvam outros, de modo a habilitá-los melhor a decidir ou mesmo a funcionar;140

c) Órgãos de competência originária e órgãos de competência derivada - conforme possuem competência originária, directamente provinda da norma jurídica, ou competência delegada ou atribuída por outro órgão (ainda que em Direito constitucional não haja órgãos unicamente com poderes delegados);

d) Órgãos legislativos, governativos, administrativos e jurisdicionais - em razão das funções do Estado que desempenham ou em que intervêm (embora nenhum órgão pratique actos de uma só natureza e possa falar-se quanto a cada órgão em funções principais e acessórias);

e) Órgãos de decisão e órgãos de controlo, de fiscalização ou de garantia - aqueles com competência para a prática de actos finais com projecção na vida política ou nas situações das pessoas e estes com competência para a apreciação desses actos, sejam quais forem os resultados da apreciação (inclusive, no limite, a sua anulação ou revogação).

IV - Classificações estruturais-funcionais são as que levam a distinguir:

a) Órgãos externos e órgãos internos - sendo estes, em órgãos complexos, os que possuem competência interna;

b) Órgãos políticos e órgãos não políticos - consoante se movam segundo critérios políticos ou segundo outros critérios (jurídicos, administrativos, técnicos) ou, doutro ângulo, consoante exerçam, exclusiva ou parcialmente, a função legislativa e a governativa ou não a exerçam;

c) Órgãos primários e órgãos vicários - sendo os primeiros os que têm competência em condições de normalidade institucional ou para períodos normais de funcionamento e vicários os que têm competências de substituição;

d) Órgãos centrais e órgãos locais - consoante a sua competência abrange todo o território do Estado ou parte dele;

e) Órgãos hierarquizados e órgãos não hierarquizados - os primeiros, integrados em estruturas hierarquizadas de decisão, como sucede (embora em termos opostos) com os órgãos administrativos

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e os jurisdicionais; e os segundos, não integrados (e não sendo órgãos hierarquizados, naturalmente, os órgãos políticos).

145. Os órgãos colegiais e o seu funcionamentoPela sua própria natureza, os órgãos colegiais, mormente as assembleias, requerem mecanismos complexos de estruturação, de garantia dos direitos dos seus titulares ou membros e de formação e eficácia jurídica da sua vontade.

De entre os múltiplos problemas a resolver constam os que se prendem com:

a) A constituição dos órgãos após a sua renovação (maxime após eleições) e a verificação dos poderes dos membros;

b) A distinção entre plenário, de uma parte, e comissões e secções, doutra parte;

c) O tempo de funcionamento em cada ano;

d) A sede física dos órgãos e o local das reuniões;

e) A presidência e a mesa dos órgãos (maxime das assembleias);

f) A realização das reuniões plenárias e das comissões e secções (por direito próprio ou a convocação de outros órgãos);

g) A ordem do dia ou objecto prefixado sobre que elas versam (ou, noutra acepção, o período, principal, da reunião que lhe é consagrado);141

h) A publicidade das reuniões (pelo menos, das reuniões plenárias);

i) O quorum ou número mínimo de titulares ou membros presentes para o órgão colegial reunir ou para deliberar, determinando a sua falta invalidade, quando não inexistência jurídica, de deliberação;

O quorum é uma garantia da instituição e, simultaneamente, do direito de participação dos titulares do órgão. E pode distinguir-se o quorum só para a discussão e para a deliberação, e antes e durante a ordem do dia. Assim como pode ser fixo (número predeterminado ou fracção do número constitucional, legal ou estatutário de membros do órgão colegial) ou variável (proporcional aos membros em efectividade de funções);142

j) As maiorias necessárias - absoluta e relativa, simples e qualificada - exigidas pelas normas reguladoras dos órgãos, consoante os diferentes casos.143

Entende-se por maioria absoluta a equivalente a mais de metade dos votos expressos ou dos votos validamente expressos; por maioria relativa a equivalente a mais votos em certo sentido do que em qualquer outro (designadamente, mais votos a favor de certo projecto de deliberação do que contra, não se contando as abstenções); por maioria simples a maioria prevista em regra geral; por maioria qualificada a maioria agravada, imposta para certa deliberação.

Por regra, adopta-se o princípio da maioria relativa: salvo nos casos previstos na Constituição, na lei e nos respectivos regimentos, as deliberações dos órgãos colegiais são tomadas à pluralidade de votos, não contando as abstenções para o apuramento da maioria;

l) As votações144 e as suas diversas formas - por escrutínio secreto, por votação nominal, por levantados e sentados, por divisão, etc. - e a exigência do escrutínio secreto em caso de eleições ou de deliberações relativas à apreciação do comportamento ou das qualidades de qualquer pessoa.

II - Na acepção mais geral, assembleia é qualquer reunião de pessoas, mais ou menos numerosa e estável, sempre predeterminada por normas jurídicas, com vista à prática de certos actos ou

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actividades.

As assembleias não são produto de liberdade de reunião. São expressão de poder (ou de liberdade de associação, quando se trate de assembleias de associações e formações análogas); e são expressões de poder público, quando se trate de assembleias de Direito constitucional e administrativo (ainda que ligadas a um princípio de participação); só o sentido imprimido pelas normas habilita a distinguir.

Mas, em segundo lugar, numa acepção restrita e específica, assembleia vem a ser uma categoria de órgãos colegiais definida não tanto pela sua extensão quanto pelo regime peculiar que preside à sua composição e pelas funções que lhe andam conexas.

Há assembleias que não chegam a ser órgãos, que não se elevam a centros institucionalizados de criação e manifestação de uma vontade jurídica imediata ou a se e há assembleias proprio sensu, as quais recebem, a par de outros órgãos competências dentro do Estado (ou, sendo caso disso, de outras entidades públicas ou privadas). Entre as primeiras contam-se as assembleias de voto nos sistemas representativos; entre as segundas, os Parlamentos e as demais assembleias políticas e administrativas.

III - Não são órgãos as assembleias de voto, porque, embora não despicienda a consideração das operações e dos resultados nelas verificados, esses resultados só adquirem relevância (ou relevância plena), no conjunto das assembleias, em face do sistema eleitoral consagrado pela lei.

IV - As assembleias-órgãos apresentam-se susceptíveis de diversas classificações (a acrescer às classificações de órgãos que já conhecemos): assembleias directas e representativas, unicamerais e pluricamerais, constituintes e ordinárias.145

Dizem-se directas as assembleias compostas por todos os titulares dos interesses a prosseguir, por todas as pessoas integrantes do povo (activo) ou de dado estrato ou classe - as compostas ou por todos os cidadãos activos (assembleias populares) ou por todos os membros da nobreza, ou de certo nível da nobreza, ou de qualquer outro grupo diferenciado (assembleias aristocráticas, como a Câmara dos Lordes britânica ou dos Pares portuguesa de 1826).

Dizem-se representativas as assembleias compostas por representantes, seja em moldes de representação política moderna (representação de todo o povo, baseada na eleição política), seja em moldes de representação estamental, corporativa ou de interesses (representação parcelada de fracções da comunidade política ou de instituições nela existentes), seja ainda em moldes de representação institucional (conexa, o mais das vezes, com a representação corporativa).

Unicamerais são as assembleias únicas, pluricamerais as que se desdobram em duas ou mais de duas câmaras para o exercício de funções idênticas ou complementares. Porém, uma assembleia política única ou principal pode não equivaler a unicameralismo, visto que, não obstante sem ligação orgânica, pode haver outra ou outras assembleias secundárias (v. g., os Conselhos Económicos e Sociais de vários países). As assembleias pluricamerais são, de regra, bicamerais (recortando-se, então, a segunda câmara ou pela sua composição aristocrática ou pelo diverso sufrágio ou pela estrutura federativa do Estado, designadamente); raríssimas são as assembleias multicamerais (como as da Constituição francesa do ano VIII e as da Constituição jugoslava de 1953).

São assembleias constituintes as que possuem poderes constituintes (originários), sejam instituídas só para isso, só para fazer a Constituição (como foi a Assembleia Constituinte portuguesa de 1975-1976), ou detenham também outros poderes ou até a plenitude da soberania (como as anteriores assembleias constituintes portuguesas). E são assembleias ordinárias as que apenas exercem poderes constituídos, maxime o de legislação ordinária e, outrossim, o de revisão constitucional (tertium genus só poderia admitir-se quanto a assembleias especiais de revisão ou convenções).

V - As denominações das assembleias estamentais eram bastante variadas; assim como o são as das

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assembleias representativas actuais. Quando existem duas câmaras, na maior parte dos casos uma designa-se por "câmara dos deputados" ou "dos representantes" e a segunda por "câmara dos senadores" ou "senado".

De todo o modo, em sentido estrito, verdadeiro e próprio, só é Parlamento a assembleia representativa política ordinária que seja "órgão de soberania" (na ordem interna) e colocada em interdependência, e não em dependência, frente aos restantes órgãos: Parlamento é órgão do Estado, e não das regiões autónomas; Parlamento implica separação de poderes, se bem que, não necessariamente, sistema de governo parlamentar (não há Parlamento em sistemas de concentração de poderes, como a monarquia constitucional alemã ou o governo representativo simples; nem tão pouco há em sistemas de concentração na assembleia como o sistema convencional francês de 1793-1795 ou o soviético).

VI - Na maior parte dos órgãos colegiais, elaboram-se regimentos ou corpos de normas relativos à sua organização e ao seu funcionamento, aprovados por esses mesmos órgãos. Particularíssima importância, todavia, assumem modernamente os regimentos das assembleias políticas, devido à sua natureza e aos problemas teóricos que suscita a sua qualificação dentre os actos jurídicos.

Resultantes muitas vezes de precedentes e convenções constitucionais, outras vezes formadas de novo, tais regras caracterizam-se pela permanência (destinam-se a ter duração indefinida ou, pelo menos, em certos países, a vigorar por toda a legislatura) e pela autonomia (nenhum outro órgão interfere na sua feitura).

Não se trata apenas de preceitos de ordem técnica tendentes à maior eficácia (por importante que seja a racionalização do trabalho parlamentar). Trata-se, sobretudo, de preceitos de cunho político, dos quais dependem quer a liberdade de acção dos membros do Parlamento (regras sobre o uso da palavra ou sobre a iniciativa legislativa ou fiscalizadora, por exemplo) quer a realização do princípio representativo (publicidade das deliberações, por exemplo), e daí a própria virtualidade de o Parlamento manifestar o seu poder em face dos demais órgãos do Estado.

Cada regimento reflecte, por conseguinte, tanto as tradições e a vida institucional da Câmara a que se aplica quanto a estrutura do sistema de governo em que esta se insere.

VII - As normas regimentais dirigem-se, antes de mais, ao próprio Parlamento (ou aos parlamentares). Todavia, também se dirigem - e nessa medida, obrigam - a outros órgãos, enquanto estes estejam, constitucionalmente, em relação com o Parlamento.146 Já não aos cidadãos (ou, doutra perspectiva, aos particulares): as relações com estes, ou as relações entre estes, requerem lei no sentido estrito da palavra - assim, desde logo, a imposição de restrições ou de deveres.147

Se o regimento traduz um princípio de auto-organização, traduz ainda um princípio de autovinculação. Não pode ser modificado senão nos termos por ele prescritos e ao Parlamento não é lícito afastá-lo ou derrogá-lo em qualquer votação ou discussão. As regras regimentais são verdadeiras regras jurídicas, obrigatórias e sancionatórias, ainda que a sua preterição, de ordinário - quando não possa consumir-se em inconstitucionalidade - não determine mais que mera irregularidade formal não sendo permitido, em nome da separação de poderes, aos tribunais apreciar a existência dos chamados vícios interna corporis acta.

146. Órgãos do Estado e colégios eleitoraisI - O conjunto de eleitores, das pessoas (singulares) com direito de sufrágio ou capacidade eleitoral activo constitui aquilo a que se chama, em termos gerais, eleitorado (activo) ou colégio eleitoral.148-149

Ora, qual é a natureza jurídica dos colégios eleitorais? Serão também eles órgãos - do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais? E que consequências advirão do nexo entre eleições políticas e referendos?

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Sem entrar numa análise pormenorizada do problema (extremamente difícil e também extremamente fascinante), reiteramos a opinião há muito por nós defendida de que a eleição é um acto político, quer como acto designativo quer, sobretudo, pelo seu significado de opção política fundamental. A maioria que se forme ou que resulte de cada eleição tem um indiscutível sentido político. Não só a eleição geral traz consigo a escolha da política que o povo pretende seguir como, em certos momentos (v. g., em caso de dissolução do Parlamento ou de renúncia do Presidente da República), equivale a uma verdadeira arbitragem ou decisão popular.150

Daqui não se deduz, porém forçosamente que o colégio eleitoral seja um órgão do Estado como o são o Presidente ou a Assembleia da República e que a eleição se revista das características de acto unitário próprias de um decreto daquele ou de uma lei desta. A conclusão afirmativa ou negativa dependerá dos conceitos com que se lidar e da subsunção que neles se estiver habilitado a fazer, embora possa vir a ter corolários decisivos, inclusive na interpretação das leis eleitorais.

II - Por um lado, falta ao colégio eleitoral autonomia diante do povo: o colégio eleitoral não é senão uma expressão jurídica qualificada do povo, seja qual for o modo de entender a relação entre um e outro termo (colégio eleitoral, idêntico ao povo; colégio eleitoral, órgão do povo; colégio eleitoral, representante do povo; colégio eleitoral, gestor de negócios do povo; etc.).

Por outro lado, alguns pontos de contraste entre o colégio eleitoral e os órgãos qua tale enunciados na Constituição parecem ser: 1º) o colégio eleitoral admite infixidez na sua composição efectiva; os órgãos do Estado, das regiões autónomas e de poder local postulam unidade e continuidade dos titulares, que são em número certo e, quando se trate de órgão colegial, devem estar presentes em número tal que permita ao órgão deliberar (quorum); 2º) o colégio eleitoral é de funcionamento intermitente; os órgãos são de funcionamento permanente ou prolongado durante um período extenso; 3º) nos eleitores são inseparáveis os interesses funcionais e os interesses pessoais ou de grupo a que pertençam; não nos titulares dos órgãos.

Se se entender que o colégio eleitoral é órgão, então apenas poderá ser tido por órgão mediato, de modo algum por órgão imediato ou por órgão governativo. Governar implica permanência de actividade. Mas isto não significa adesão à doutrina originada em Jellinek, segundo a qual os órgãos representativos constituem órgãos secundários e o povo representado órgão primário do Estado, e que poderia levar em linha recta à admissão da existência de órgãos de órgãos. O colégio eleitoral será órgão mediato tão só porque não participa directamente em nenhuma das actividades do Estado essenciais à prossecução dos seus fins.

Não há uma relação interorgânica; quando muito, uma fase do processo ou procedimento de formação da vontade do Estado. O colégio eleitoral não faz leis, mas faz um acto que pode ser considerado como um pressuposto da feitura das leis: elege os titulares de titulares dos órgãos que fazem as leis, de sorte que sem eleição esses órgãos não podem constituir-se.

147. Vicissitudes dos órgãosI - Resta referir as vicissitudes dos órgãos ou eventos que os afectam, uns de efeitos objectivos, outros de efeitos subjectivos.151

As vicissitudes objectivas respeitam quer à competência em geral, que à competência em concreto para a prática de certo e determinado acto. As primeiras podem ser normativas, circunstanciais e decorrentes de vicissitudes subjectivas.

As vicissitudes subjectivas concernem aos titulares dos órgãos.

Naturalmente, todas elas têm de estar contempladas em normas jurídicas - no caso de órgãos constitucionais, em normas constitucionais ou em normas legais por estas expressamente previstas.

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Reflectindo-se sobre os estatutos dos órgãos ou sobre os dos titulares, não poderiam ocorrer à sua margem, sob pena de se vulnerarem os princípios representativos e da separação de poderes.

Além disso, estão todas elas sujeitas, em medida variável, ao postulado da proporcionalidade na tríplice vertente de necessidade, adequação e racionalidade.

II - a) Vicissitudes normativas são modificações das normas que dispõem sobre o órgão, nomeadamente as normas reguladoras de competência. No extremo, podem traduzir-se na sua própria extinção.

b) Vicissitudes circunstanciais são modificações das condições em que o órgão deve funcionar e até da própria competência, em virtude de certas circunstâncias típicas, como as do estado de necessidade. Podem até conduzir à substituição de um órgão por outro órgão ou à entrada em funcionamento de órgão predisposto para tais emergências.152

Apesar de a declaração de estado de sítio ou de emergência não poder afectar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos do poder público, na prática são inelimináveis algumas adaptações.

c) Vicissitudes objectivas ditadas por vicissitudes subjectivas são as variações da competência do órgão ou do regime do seu exercício, em resultado de situações específicas ocorridas no titular ou nos titulares.

Era o que sucedia, em Portugal, com a regência na menoridade do Rei (por último, arts. 148º e seg. da Constituição de 1822, arts. 91º e seg. da Carta Constitucional e arts. 101º e seg. da Constituição de 1838).153 E o que sucede hoje, em caso de impedimento do Presidente da República ou de vagatura do cargo, com a substituição interina pelo Presidente da Assembleia da República, o qual sofre limitações ao exercício das competências presidenciais (art. 139º da Constituição).

É também deste tipo a situação do chamado "Governo de gestão" ou Governo antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República ou depois de demitido, o qual se limita à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos (art. 183º, nº 3, da Constituição portuguesa).154

III - Vicissitudes objectivas em concreto são as que se reportam a certo acto, em virtude das condições que a norma prevê para a sua prática. Além das autorizações ou delegações legislativas e das delegações de poderes em Direito administrativo, deparam-se várias.

a) Na substituição, um órgão pratica um acto que, em circunstâncias ou modos diferentes dos previstos na norma habilitante, seria da competência de outro órgão. Pratica-o, não no exercício de uma faculdade (como em Direito administrativo), mas por imposição constitucional (ou legal).

Enquanto que na delegação ou autorização legislativa, tem de haver um prévio acto do órgão delegante ou autorizante, na substituição tudo se passa ope legis; e enquanto que na autorização legislativa o Parlamento não fica privado do seu poder de legislar, abrindo-se um tempo de competência concorrencial, na substituição verifica-se uma verdadeira, embora transitória, transferência de competência.

b) Na avocação, um órgão assume a prática de um acto que lhe competiria em princípio, mas que tinha admitido que outro órgão praticasse, com prejuízo para a competência dele. Assim, no interior de um Parlamento, quando o Plenário avoca a aprovação de uma lei na especialidade que cometera à comissão especializada.

c) Na preclusão dá-se a extinção ou exaustão do poder para a prática de um acto em concreto, por força do seu exercício, ou não exercício, em certo prazo ou por força do exercício de poder com ele incompatível. A competência (em abstracto) queda intocada, apenas deixa de se manifestar relativamente a certa situação.155-156

IV - Entre as vicissitudes subjectivas avultam a sucessão - provocada por causa irremediável de vagatura do cargo - e a substituição temporária - derivada de acto ou facto de menor gravidade e

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que não atinge as condições fundamentais de titularidade; e nos órgãos colegiais, doutro prisma, a dissolução e a demissão.

a) A verificação superveniente de incapacidade (maxime, de inelegibilidade), a morte, o impedimento físico ou psíquico permanente, a renúncia (abdicação em monarquia), a efectivação de responsabilidade política ou criminal ou um dos factos tipificados como determinando perda do cargo abrem, necessariamente, sucessão.

A sucessão realiza-se através da designação de novo titular (imediata em monarquia, precedida da interinidade em república) ou por chamamento do suplente constitucional ou legal à titularidade do cargo (v. g., conversão, em sistemas presidenciais, do Vice-Presidente em Presidente da República ou em sistema de lista ou atribuição do mandato de Deputado ao candidato que se siga na ordem de precedência da candidatura).157

b) A substituição temporária pode dar-se por impedimento físico ou psíquico temporário, por ocorrência de incompatibilidade com outro cargo, por sujeição a processo criminal ou, quando admitida, por pedido ou declaração do próprio titular ou por ausência do país, e concretiza-se sempre por via de suplência (regência em monarquia).

c) Particularíssimo melindre oferece a dissolução do Parlamento ou de outras assembleias representativas pelo risco de vazio que comporta. Por isso, em Estado de Direito democrático não só depende de requisitos muito estreitos - no caso português, quanto à Assembleia da República (art. 172º), as assembleias legislativas regionais (art. 234º) e os órgãos das autarquias locais (art. 242º) - como implica a realização de novas eleições em prazo curto e pela lei eleitoral vigente ao tempo da dissolução (art. 113º, nº 6).158

V - Interessantes vicissitudes subjectivas são ainda o prolongamento e a prorogatio dos órgãos (ou melhor, dos titulares de órgãos). Elas consistem no exercício de funções correspondentes ao órgão por titulares que, em circunstâncias normais, já teriam cessado o desempenho dos seus cargos, ou por titulares que, tendo mesmo já cessado tal desempenho, o reassumem por motivos imperiosos.

Casos de prolongamento:

- Em estado de necessidade por impossibilidade de substituição dos titulares do órgão;

- No tocante aos órgãos electivos, até se proclamarem os resultados das novas eleições ou tomarem posse os novos titulares - e deve considerar-se princípio geral o que prescrevia o art. 26º, nº 25, da Constituição portuguesa de 1911, mandando o Congresso da República "continuar no exercício das suas funções legislativas, depois de terminada a respectiva legislatura, se por algum motivo as eleições não tiverem sido feitas nos prazos constitucionais".

Casos de prorogatio159 expressamente previstos eram, na Constituição portuguesa de 1838, a reassunção das funções dos Deputados e Senadores após dissolução da Câmara dos Deputados, verificando-se entretanto a morte do Rei (art. 111º) e, na Constituição de 1911, após 1919, a reunião ou convocação das Câmaras dissolvidas em todas as hipóteses em que o funcionamento do Poder Legislativo fosse considerado indispensável (art. 1º, § 11º, da Lei nº 891, de 22 de setembro de 1919).160

§ 3º Actos Jurídico-Constitucionais

148. Actos jurídico-públicos e actos jurídico-constitucionaisI - Conforme indicámos, às diversas funções do Estado correspondem diferentes categorias de actos - nomeadamente, leis (constitucionais e ordinárias), actos de governo, eleições e referendos,

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regulamentos, actos administrativos, contratos administrativos e outros contratos públicos, actos jurisdicionais ou sentenças latissimo sensu.

Todos estes actos integram um conjunto muito vasto, o dos actos jurídico-públicos - que são, portanto, os actos do Estado161 (ou do Estado e das demais entidades públicas) no exercício de um poder público e sujeitos a normas de Direito público.162

A eles se contrapõem quer os actos de gestão privada (ainda que conexos com o desenvolvimento da função administrativa),163 quer os actos dos particulares, inclusive os praticados no exercício ou no âmbito de direitos políticos (v. g., direitos de petição, de acção popular ou de propositura de candidatos a eleições). Mas, também aqui, nem sempre se apresentam suficientemente nítidas ou estáveis as fronteiras.

II - No conjunto dos actos jurídico-públicos avultam os actos jurídico-constitucionais.

Numa definição formal, actos jurídico-constitucionais dizem-se os actos cujo estatuto pertence, a título principal, ao Direito constitucional;164 os actos regulados (não apenas previstos, embora não necessariamente regulados até ao fim) por normas da Constituição; ou ainda, os actos provenientes de órgãos constitucionais e com a sua formação adstrita a normas constitucionais.

Mais difícil parece uma noção material. Não é incorrecto reconduzi-los a actos de relevância constitucional, ou a actos de concretização imediata da Constituição, ou a actos de realização e de garantia das normas constitucionais. Contudo, estas maneiras de os definir são talvez demasiado vagas e genéricas.

III - Conjugando as noções, tendo em conta o tratamento por lei quer dos actos da função administrativa quer dos actos da função jurisdicional e atendendo ainda à tradição científica de autonomização de diversas categorias em ligação com tais funções,165 ficam como actos jurídico-constitucionais os actos da função política-legislativa e governativa - e, em seu complemento, os actos de garantia jurisdicional da constitucionalidade (bem como da legalidade frente a leis de valor reforçado e a normas de Direito internacional).

E, com efeito, são tais actos os únicos que a Constituição especifica e visa disciplinar em articulação com as competências próprias dos órgãos e dos colégios eleitorais que institui; aqueles que à Constituição estão directa e imediatamente subordinados; aqueles através dos quais se projectam, desde logo, as opções político-constitucionais ou a ideia de Direito arrimada na Constituição; aqueles a respeito dos quais se suscitam fundamentalmente (não exclusivamente, porém) problemas de inconstitucionalidade.

149. Pressupostos, elementos, requisitosI - Tal como nos demais actos jurídicos, na análise de qualquer acto jurídico-constitucional podem ser considerados pressupostos, elementos e ainda requisitos.

Os pressupostos vêm a ser condições prévias e exteriores ao acto, de que depende a sua existência ou a sua formação. Os elementos são partes integrantes do acto, definidoras do seu modo de ser ou da sua estrutura. Os requisitos, finalmente, são os pressupostos e os elementos tomados não tanto da perspectiva da estrutura quanto dada sua conformidade com a norma jurídica e da apreciação que esta faz sobre eles.

Sabe-se bem, todavia, como se oferecem algo variáveis as terminologias e as próprias conceptologias quer em Direito privado quer em Direito público.166

II - O pressuposto de longe mais importante dos actos jurídico-constitucionais, e comum a todos eles, é a competência (configurada nos termos expostos no âmbito da teoria do órgão).

Implica as seguintes três exigências:

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a) Que o acto dimane de um órgão do Estado (ou das regiões autónomas);

b) Que o acto dimane de um órgão competente em razão da matéria;

c) Que o acto dimane de um órgão competente em razão dos outros factores de competência (tempo, lugar, pessoas).167

III - Qualquer acto jurídico é uma manifestação de vontade juridicamente relevante, e não há vontade sem objecto e sem forma (ou sem objecto, sem fim e sem forma).168

Daí que igualmente no acto jurídico-constitucional caiba referir três ou quatro elementos essenciais:

a) A vontade - uma vontade forçosamente funcional (insista-se), o que tem como consequência a necessidade de, pelo menos, eventuais vícios na sua formação (como o erro ou a coacção) não poderem desenhar-se em moldes idênticos aos dos vícios do negócio jurídico;169

b) O objecto - sendo objecto imediato ou conteúdo o efeito ou conjunto de efeitos a que o acto se dirige, a realidade jurídica sobre a qual o acto incide, a transformação da ordem jurídica objectiva ou a constituição, modificação ou extinção de relações ou situações jurídicas que determina: e objecto mediato a realidade de facto que lhe subjaz, o conjunto de situações que o acto conforma ou sobre que faz recair os seus efeitos;

c) O fim que o órgão prossegue através do acto - e sendo de distinguir entre a causa ou função típica objectiva e o fim assumido especificamente em relação a cada acto em concreto;

d) A forma, declaração ou exteriorização da vontade, de ordinário traduzido numa forma típica consoante o tipo de acto de que se trate e que comporta (ou pode comportar) as formalidades necessárias a prepará-lo ou a completá-lo.

A autonomia do terceiro elemento, o fim, afigura-se muito relativa, devido ao carácter funcional da vontade, e é sobretudo discutível nos actos normativos.170

IV - Quanto aos requisitos, eles aparecem no plano dos valores, interesses e finalidades que a ordem constitucional liga aos pressupostos e aos elementos do acto. Reportam-se tanto à garantia do interesse público como à protecção dos direitos e interesses dos cidadãos que por ele podem vir a ser atingidos. Correspondem à apreciação, variável de acto para acto, que a ordem constitucional faz da presença ou ausência desses pressupostos e elementos, às vezes também em graus variáveis.

Deste prisma, cabe então falar em:

a) Requisitos orgânicos - os que se prendem com a competência;

b) Requisitos materiais - os que se prendem com a vontade e o objecto (ou a vontade, o objecto e o fim);

c) Requisitos formais - os que se prendem com a forma.

É possível também agrupar os requisitos orgânicos e formais contrapondo-os aos requisitos materiais; e enquanto que estes têm que ver com o sentido e o conteúdo do acto, os primeiros têm que ver com a sua formação e a sua manifestação.

150. Requisitos e valores jurídicos dos actosI - A apreciação da ordem constitucional sobre qualquer acto jurídico-constitucional assenta na ponderação da maior ou menor relevância, dentro do seu contexto, dos requisitos enunciados. Essa ponderação envolve, no tocante a cada acto em concreto, uma maior ou menor virtualidade de subsistência ou de produção de efeitos.

Há, assim, por via descendente, três categorias de requisitos:

a) Requisitos de qualificação ou requisitos de recondução ou de subsunção do acto em qualquer dos

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tipos constitucionais de acto estabelecidos (lei de revisão constitucional, lei, decreto-lei, referenda, etc.);

b) Requisitos de validade ou requisitos de perfeição do acto ou de plena virtualidade de produção dos seus efeitos jurídicos típicos;

c) Requisitos de regularidade ou requisitos de adequação do acto às regras constitucionais (mormente, às regras formais), independentemente da produção dos seus efeitos.

Logicamente, os primeiros requisitos precedem os restantes. E, assim, a preterição dos requisitos de qualificação acarreta inexistência jurídica do acto (pelo menos, enquanto acto de certo tipo); a dos requisitos de validade invalidade; e a dos requisitos de regularidade mera irregularidade.

Num plano diferente, ficam os requisitos de eficácia ou requisitos de realização prática dos efeitos do acto, através da obtenção de condições positivas ou da superação de obstáculos.

II - Os valores jurídicos do acto jurídico-constitucional ou graus de apreciação ou de assimilação dele pela ordem constitucional não significam senão diferentes valorações, tomando os requisitos como critérios de conformidade com a Constituição.

O conceito abrange a inexistência jurídica, a invalidade e a irregularidade. Contudo, a invalidade desdobra-se classicamente em nulidade e anulabilidade, revestindo, não raro, ainda configurações mistas, poliédricas ou atípicas; assim como nada impede que a Constituição venha a considerar feridos de inexistência jurídica actos que, conquanto perfaçam os requisitos de qualificação, ofendam, de modo muito nítido, normas constitucionais de importância mais elevada.

Voltaremos ao tema a propósito da fiscalização da constitucionalidade.

151. Tipologias de actos jurídico-constitucionaisI - As classificações possíveis de actos jurídico-constitucionais reconduzem-se, antes de mais, às dos actos jurídico-públicos e decorrem das diferentes feições dos seus elementos estruturais.171

Desta sorte, atendendo à vontade, encontram-se:

- Actos livres e actos devidos;

- Actos unilaterais e actos plurilaterais;

- Actos simples e actos complexos, nestes sobressaindo os actos colegiais;

- Decisões e deliberações.

Quanto ao objecto:

- Actos de eficácia interna e actos de eficácia externa;

- Actos de eficácia geral e actos de eficácia individual;

- Actos normativos e actos não normativos;

- Actos imperativos e actos permissivos ou facultativos;

- Actos declarativos e actos constitutivos;

- Resoluções e pareceres.172

Quanto à forma:

- Actos de formação instantânea e actos de formação sucessiva, processual ou procedimental;

- Actos expressos e actos tácitos;

- Actos de fundamentação necessária e actos sem fundamentação necessária;

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- Actos solenes e actos não solenes.

II - Não há classificações de actos jurídico-constitucionais afora as que resultam da repartição das funções do Estado (como a que atrás sugerimos).

O que o Direito constitucional conhece, com maior relevo, é a previsão de formas típicas, ligadas quer a tradições mais ou menos antigas, quer à dinâmica do ordenamento, quer à forma e ao sistema de governo.173

152. Actos de produção sucessiva, processo, procedimentoI - Muitos dos actos jurídico-constitucionais surgem a partir de um iter mais ou menos longo e multifacetado, são actos complexos (ou complexos de actos) de produção sucessiva: antes de mais, as leis e também as eleições, os referendos e certos actos políticos stricto sensu ou de governo.

Cada um destes actos jurídico-constitucionais analisa-se em:

a) Uma pluralidade de actos simples e até, em certos casos, de actos simples e complexos;

b) Actos que se sucedem no tempo ou que se inserem numa sequência temporal;

c) Actos praticados por vários órgãos ou sujeitos ou em que interferem ou podem ser chamados a interferir diversos órgãos ou sujeitos;

d) Actos relativamente autónomos ou autonomizáveis (mormente, para apuramento da sua validade ou da sua regularidade);174

e) Actos interdependentes e coordenados entre si, mesmo se dotados (cada um visto de per si) de sentidos discrepantes;

f) Resultado traduzido num acto jurídico complexo que congloba ou substitui os sucessivos actos parcelares precedentes.

Numa fórmula sintética, a doutrina emprega para os designar as locuções processo e procedimento.175-176

II - O termo processo acha-se ligado estreitamente à função jurisdicional. Os tribunais desenvolvem a sua actividade através de processo, com interferência contraditória dos interessados ou partes, do Ministério Público, doutros sujeitos ou entidades. Ao processo corresponde o Direito processual (civil, penal, administrativo, tributário, constitucional).

Como, porém, não é apenas a função jurisdicional que implica actos de produção sucessiva, compreende-se que o termo tenha sido transposto para o âmbito da função administrativa: as decisões administrativas são precedidas de uma série de formalidades previstas na lei para garantia da prossecução do interesse público e dos direitos dos administrados.177 E, a par do processo jurisdicional (contencioso) e do administrativo (gracioso ou não contencioso), passou a falar-se outrossim em processo legislativo.178

Daí a distinção entre processo (em sentido restrito), o processo jurisdicional, e processo (em sentido amplo), susceptível de abranger qualquer das funções do Estado.

III - Tem-se observado, entretanto, que não são assimiláveis a forma da função jurisdicional e as das outras funções do Estado, em virtude de aquela se dirigir - ao contrário das outras - ao cumprimento ou à realização do Direito, com a consequente necessidade de uma regulamentação mais pormenorizada, densa, precisa, rígida e ritualizada.

Assim, por exemplo, Rogério Soares escreve que a prática de vários actos ao longo de um certo período, com a intenção de servirem a produção de um resultado único, pode assumir duas formas bem diferentes. Uma é aquela em que a gradual produção do acto final se desenvolve segundo uma tramitação, isto é, segundo um conjunto de actos necessários e minuciosamente fixados, segundo

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fórmulas rígidas de agir; e é para este modo que se usa a expressão processo. Já no procedimento, o resultado é um modelo mais fluido, há um desenvolvimento, uma sucessão que adquire sentido como uma unidade vista a partir do acto final. E, se o Direito é para o procedimento dos funcionários pressuposto e limite da sua actuação, para o processo do juiz é o fim primário.179

Por isso, para tornar mais claro o contraste, tende-se a adoptar o termo procedimento para descrever a formação dos actos da função administrativa, bem como a dos actos da função legislativa e da função governativa, deixando a palavra processo para a função jurisdicional. Ou adopta-se agora um conceito lato de procedimento aplicável a actos de qualquer função, independentemente dos fins, e contrapõe-se processo a procedimento em sentido estrito.180

Por outro lado, realça-se o significado do procedimento no contexto global do sistema. Para além de uma maior adequação à estrutura própria da vontade funcional,181 associa-se-lhe o reforço da transparência e da publicidade das decisões do Estado.182 Ele revela-se imprescindível para a participação e a democracia participativa, quando não (na linha de Niklas Luhmann) para a legitimação dos actos ou do próprio poder.183 E seria mesmo, doutro prisma, um instrumento para a conversão da Constituição (considerada, tradicionalmente, de uma forma estática, como ordem jurídica fundamental do Estado) na ordem dinâmica da comunidade.184

IV - Seja como for, um ponto afigura-se seguro: cada acto inserido no procedimento ou no processo legislativo ou político tem de ser apreciado, quanto à sua validade e à sua regularidade, de per si; não há que apreciar só o resultado final ou o acto em que este se traduz.

Importa, contudo, distinguir aqui entre os actos dos órgãos do Estado e os actos do colégio eleitoral ou do povo activo - eleição e referendo. Conforme resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional português, não pode ser a mesma a relevância da impugnação da validade num e noutro caso.

Uma ordem constitucional democrática, como diz o Tribunal, pressupõe a observância de todos os procedimentos previamente estabelecidos. No tocante aos actos legislativos do Parlamento, a votação na generalidade, a votação na especialidade e a votação final global não constituem um iter sucessivo de formação de vontade em que os momentos posteriores pudessem, sem mais, elidir os anteriores; e, por isso, não é de aceitar a possibilidade de sanação da votação da especialidade por força da votação final global.185

Pelo contrário, nas eleições e nos referendos - por envolverem múltiplos actos praticados por órgãos diversos em fases relativamente independentes ou em assembleias diversas em certa fase - já se verifica um fenómeno de preclusão. Qualquer acto é impugnável; mas, não o tendo sido ou tendo sido indeferida a reclamação ou não provido o recurso sobre ela, não mais poderá ser contestado no futuro.

O processo eleitoral, nota ainda o Tribunal Constitucional, desenvolve-se em cascata, de tal modo que nunca é possível passar à fase seguinte sem que a fase anterior esteja definitivamente consolidada. E daí decorre o princípio de aquisição progressiva dos actos, por forma que os diversos estágios, depois de consumados e não contestados no tempo útil para tal concedido, não possam ulteriormente, quando já se percorre uma fase diversa do iter eleitoral, vir a ser impugnados. A não ser assim, o processo eleitoral, delimitado por uma calendarização rigorosa, acabaria por ser subvertido mercê de decisões extemporâneas, que, em muitos casos, determinariam a impossibilidade de realização dos actos eleitorais.186

153. Actos tácitos e omissõesI - Os actos jurídico-constitucionais são, de regra, pela própria relevância que assumem, actos expressos.

São muito raros, em qualquer Constituição, os actos tácitos, os casos em que à abstenção, ao

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silêncio ou à inércia se ligam determinados efeitos e em que se lhe atribui, portanto, um sentido em face de um precedente acto (visto que acto tácito pressupõe sempre sucessão de actos, procedimento e dever de decidir). E o caso da promulgação ou sanção tácita das leis nos Estados Unidos (art. 1º, secção VII, nº 2) ou no Brasil (art. 66, § 3º, da Constituição de 1988).

Diferente do acto tácito é o fenómeno da preclusão há pouco referido (a propósito da promulgação ou do veto político ou do veto por inconstitucionalidade), em que, pelo decurso do tempo, se esgota ou deixa de poder ser exercido certo poder.

No acto tácito, a norma presume uma vontade ou, doutra perspectiva, liga à não manifestação de vontade certa consequência. Já na preclusão é a norma, de per si, que se impõe em face do decurso do tempo, porventura mesmo inviabilizando uma subsequente (tardia) manifestação de vontade do órgão: assim, o Presidente da República, passados oito dias após a recepção do diploma para promulgar, já não pode requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade ou, passados vinte dias, já não poder exercer o veto político. A vontade ainda é relevante, de certa maneira, no acto tácito; não na preclusão.

II - Mas há abstenções ou atitudes de non facere que o Direito trata doutro modo, valorando-as negativamente como comportamentos omissivos ou omissões. E aqui já não nos encontramos diante de actos jurídico-constitucionais,187 embora as omissões possam elas próprias provocar a produção de novos actos jurídico-constitucionais.

Com efeito, a existência de omissões juridicamente relevantes é um fenómeno que se encontra em diversos sectores do ordenamento e, em particular, no Direito constitucional. Ela verifica-se sempre que, mandando a norma reguladora de certa relação ou situação praticar certo acto ou certa actividade nas condições que estabelece, o destinatário não o faça, não o faça nos termos exigidos, não o faça em tempo útil, e a esse comportamento se liguem consequências mais ou menos adequadas.

Relativamente a quaisquer funções do Estado, não custa surpreender manifestações possíveis - e não apenas teóricas - de comportamentos omissivos, sejam omissões de actos normativos, sejam de actos de conteúdo não normativo ou individual e concreto. Sucede isto com a função legislativa e com a função governativa, e até com a revisão constitucional; sucede isto com a função administrativa e pode suceder até com a função jurisdicional. Tais comportamentos vêm, assim, a ser inconstitucionais ou ilegais, consoante os casos, e podem ainda tornar-se ilícitos.188

Pode haver inconstitucionalidade por omissão de actos legislativos (ou o que, para aqui, vale o mesmo, por omissão de normas legislativas): por exemplo, quando perante normas constitucionais não exequíveis por si mesmas, o legislador não edita as leis necessárias para lhes conferir concretização (art. 283º da Constituição portuguesa e arts. 5º, LXXI e 103, § 2º, da Constituição brasileira). E também pode haver inconstitucionalidade por omissão de actos políticos ou de governo.

Em suma, situações de facto, comportamentos aparentemente iguais adquirem sentidos jurídicos diferentes consoante os critérios das normas jurídicas, ora como actos tácitos ora como omissões inconstitucionais - o que mostra, mais uma vez, como o Estado e a sua actividade se movem no âmbito do Direito e têm de se compreender à sua luz.

154. O tempo em Direito constitucionalO tempo desempenha um importantíssimo papel em Direito constitucional.189

Em geral, a interpretação evolutiva das suas fontes, a formação do costume, sobretudo a sedimentação, o desenvolvimento e a transformação das instituições postulam períodos de tempo

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mais ou menos longos; no tempo se produzem os actos de formação procedimental; a aplicação das normas tem uma dimensão de âmbito temporal, produzindo efeitos quer em relação a normas ordinárias posteriores quer em relação a normas anteriores (donde, a distinção entre inconstitucionalidade originária e inconstitucionalidade superveniente); e também a inconstitucionalidade por omissão só se verifica passado certo tempo após a emanação da norma constitucional (sempre se a norma é programática, quase sempre se é preceptiva não exequível por si mesma).

Além disso, as Constituições outorgam uma relevância específica ao tempo em múltiplos domínios quer da estrutura da comunidade política quer da organização do poder - e aqui com reflexos imediatos sobre actos (e sobre factos)190 jurídico-constitucionais.191

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CAPÍTULO VI - O Território Do Estado

155. O território, condição de existência do EstadoI - O território é o espaço jurídico próprio do Estado, o que significa que:

a) Só existe poder do Estado quando ele consegue impor a sua autoridade, em nome próprio, sobre certo território;

b) A atribuição de personalidade jurídica internacional ao Estado ou o seu reconhecimento por outros Estados depende da efectividade desse poder;

c) Os órgãos do Estado encontram-se sempre sediados, salvo em situação de necessidade, no seu território;

d) No seu território cada Estado tem o direito de excluir poderes concorrentes de outros Estados (ou de preferir a eles);

e) No seu território, cada Estado só pode admitir o exercício de poderes doutro Estado sobre quaisquer pessoas com a sua autorização;

f) Os cidadãos só podem beneficiar da plenitude de protecção dos seus direitos pelo respectivo Estado no território deste.

Isto não prejudica a opinião atrás expendida de que o território não é elemento essencial do Estado, mas tão-somente condição de existência do Estado. O território não faz parte da comunidade estadual, nem do seu poder ou organização. É, sim, factor de identificação e integração da comunidade, objecto do poder do Estado e limite da sua autoridade em face dos restantes Estados.

Nem é o território que define o âmbito de validade do Direito próprio do Estado. A sua específica relevância não exclui o já referido postulado da personalidade das leis e, muito menos, o pluralismo de ordenamentos jurídicos.

II - Como se verifica, o território tem de ser encarado quer na perspectiva do Direito interno quer - ainda mais que a cidadania - na perspectiva do Direito internacional (que também apenas mencionaremos de relance).1-2

Somente no interior das suas fronteiras, o Estado exerce em plenitude o seu poder e nenhum Estado renuncia à faculdade de declarar qual o território que considera seu e de estabelecer as parcelas que o compõem. Mas a fixação dessas mesmas fronteiras cabe a normas de Direito internacional convencional (sem embargo de não poucas situações de facto à sua margem).

III - A configuração e a dimensão do território de qualquer Estado em concreto projectam-se, mais ou menos directa e intensamente, na sua forma política.

A história mostra como a República Romana não sobreviveu muito tempo à conquista de um vasto império para além da Itália;3 como, em contrapartida, as características de pequenas terras de montanha constituíram um dos factores de criação da Confederação Helvética; como para o Ancien Régime não foi indiferente a evolução da composição do território;4 como, na época moderna, uma larga extensão ou a descontiguidade geográfica têm contribuído para a adopção de estruturas federativas ou de descentralização política; ou ainda, como os espaços económicos se reflectem em diferentes formas de organização política-administrativa do território, em nível interno e em nível internacional.5-6

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156. O território e o Direito do EstadoI - Se o ordenamento jurídico estatal parece regular, antes de mais, factos que ocorrem dentro do território, ele não esgota aí a sua validade e eficácia. Criado em função das pessoas que compõem a comunidade política - os cidadãos - aplica-se-lhes, ou pode aplicar-se-lhes, onde quer que se encontrem.7

Sucede isto com a lei civil e com a lei constitucional, com a lei tributária e até com a lei penal.8 E há mesmo regras jurídicas estaduais editadas justamente tendo em vista a sua aplicação no estrangeiro ou por causa de situações ou relações que decorram no estrangeiro.

II - De igual modo, a consideração do papel do território do Estado não exclui o carácter positivo de outros Direitos, estaduais ou não, com as quais tem, portanto, o Direito do Estado de estabelecer relações intersistemáticas.9

O pluralismo das ordens jurídicas evidencia-se na observação da realidade. Em qualquer país, por exemplo, aplicam-se, como tais, não apenas o respectivo Direito português (Direito legislado pelo Estado português, e Direito regional, municipal e doutras entidades ou sociedades subordinadas ao Estado) mas também o Direito internacional (Direito da comunidade internacional), o Direito canónico (Direito da Igreja Católica) - este não adstrito a nenhuma base territorial - e leis ou algumas leis, de outros Estados (mercê de normas de remissão ou recepção, designadamente de recepção formal).10-11

Como escreve um Autor, a doutrina clássica (que remonta a Savigny) pronunciou-se decididamente a favor da territorialidade das normas de Direito público, entendida esta no sentido de que cada Estado aplicava tais normas indistintamente no seu território a nacionais e estrangeiros, independentemente do que determinasse, quanto a estes últimos, a respectiva lei do domicílio enquanto lei reguladora do estatuto pessoal.

A ideia da não aplicação do Direito público estrangeiro está hoje abandonada, com base na contestação ou no esbatimento da diferença entre Direito público e Direito privado, na necessidade de incrementar a cooperação internacional e na indispensabilidade de incrementar a harmonia internacional de soluções também no âmbito de matérias de Direito público (o que não significa que não haja graves problemas, como o da qualificação das regras de Direito público estrangeiro e o da sua autolimitação espacial).12

Mais ainda: se o poder do Estado sobre o território implica que toda a pessoa que aí se encontra está, nos limites do Direito internacional, sujeita à sua autoridade, isso não impede que possa ser exercida dentro do território uma autoridade que não derive do próprio Estado,13 desde que se trate de uma autoridade não estadual. É o que sucede com a autoridade da família e com a das Igrejas, as quais se exercem, decerto, em coordenação com a autoridade estadual, nuns planos, e em subordinação, noutros, mas nunca por mera derivação da vontade do Estado.

III - O princípio da territorialidade das leis - enquanto princípio geral, não enquanto critério desta ou daquela norma - deve entender-se como concernente à execução autoritária ou coerciva, aos modos de garantia da efectividade das normas.

A territorialidade das leis significa que as normas da ordem jurídica de um Estado ou as que ele receba só podem ser executadas, como tais, no território do mesmo Estado. E a sujeição das pessoas à autoridade do Estado depende, em cada caso, do modo que a execução deva revestir; o que importa, para que exista, é que se verifique uma conexão tal com o território (presença física, titularidade de direitos sobre coisas situadas nesse território...) que permita a execução da lei.14

Há, de resto, excepções a essa execução coerciva. São, classicamente, os privilégios de extraterritorialidade de que gozam os Chefes de Estado e os funcionários diplomáticos ou imunidades destinadas ao cabal exercício das suas funções;15 são também os privilégios de extraterritorialidade dos navios e aviões públicos; a renúncia a certas faculdades em favor doutros Estados - dando origem a direitos territoriais menores destes - ou a constituição, por exemplo, de

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zonas francas (para efeitos tributários) ou de zonas desmilitarizadas;16 e ainda, no âmbito do combate ao crime, a admissibilidade mesmo de actos de cooperação de autoridades e agentes de autoridade estrangeiras com autoridades e agentes de autoridade do Estado no seu território.

157. Território, poder e povoI - Da referência do território ao Estado através do seu Direito decorre o princípio da sua unidade jurídica. O território, ainda que geograficamente descontíguo, é sempre uno em virtude de ser território do Estado, sujeito ao mesmo poder e ao mesmo Direito.

Dá-se isto tanto em Estado unitário como em Estado composto (quando considerado todo o seu território, ou soma dos territórios dos Estados componentes, em relação ao poder político central).

II - À unidade do Estado, do povo e do território correspondem a universalidade e a igualdade dos direitos e deveres dos cidadãos, dos membros do Estado: todos eles gozam, em princípio, de todos os direitos e estão sujeitos a todos os deveres - e aos mesmos direitos e deveres - previstos na Constituição e nas leis (arts. 12º e 13º da Constituição).17

Nem isso é infirmado por diferenças geográficas ou outras, projectadas nas divisões ou circunscrições administrativas ou políticas do território, poderem conduzir a especialidades da lei (mas não a discriminações ou privilégios) ou de competências de órgãos legislativos e executivos.

III - O território é um limite para o poder político efectivo, não para o povo. Os cidadãos do Estado, sem perderem a cidadania, podem sair do território e viver no estrangeiro e aqui continuam a pertencer ao povo. Já o vimos atrás.

158. O direito do Estado sobre o seu territórioI - Problema diverso vem a ser o da natureza do poder ou do direito do Estado sobre o seu território (senhorio territorial). Bastante árduo e com numerosas implicações, apenas se torna possível aqui fazer-lhe uma brevíssima alusão.

II - As teses ou teorias mais importantes podem agrupar-se consoante tomam esse direito ou poder:

a) Como direito real, como direito sobre coisas - seja como espécie de propriedade de Direito internacional (tese clássica),18 como espécie de domínio eminente (Ugo Forti),19 ou como direito real institucional, direito que põe o bem do território ao serviço da instituição estadual (Dabin, Burdeau);20

b) Como mero reflexo do Direito do Estado sobre as pessoas (Jellinek)21 ou como Direito do Estado sobre a própria pessoa (Santi Romano) –22 coerentemente, num caso e noutro, como tomar-se o território como elemento constitutivo do Estado;

c) Como simples âmbito espacial de vigência da ordem jurídica estadual, pois Direito e Estado identificam-se (Kelsen);23

d) Como direito de jurisdição, direito que abrange simultaneamente o território e as pessoas no território ou, melhor, as pessoas através do território.24-25

III - Propendemos para esta última teoria, talvez hoje dominante, por nos parecer a mais idónea a explicar a complexidade de fenómeno e a salientar que o poder do Estado sobre o seu território releva não tanto por causa do espaço físico, em si, que abrange, ou das utilidades que ele daí retira, quanto por causa das pessoas que lá se encontram e que, então, de certa forma, ficam sujeitas ao seu ordenamento jurídico.

Esta teoria aproxima-se das teses do direito real, enquanto toma o território como objecto e, por

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isso, pode adoptar mutatis mutandis algumas das análises que elas propõem. Distingue-se dessas teses, por procurar ver para além da configuração estática e patrimonial26 e por dar todo o realce à relação, de natureza política, com as pessoas. O poder de mandar e a autoridade pública só podem ser exercidos sobre pessoas,27 O direito sobre o território não é fundamento do direito de senhorio, mas o contrário, e o direito à integridade do território não é senão o direito ao respeito do senhorio.28

Por outro lado, não deixa a teoria da jurisdição de colher alguns contributos das duas outras teorias, mas afasta-se, liminarmente, de ambas, em virtude das diferenças de visão global acerca do Estado.

IV - Quanto à sua estrutura, o direito de jurisdição territorial do Estado costuma ser apresentado como sendo um direito ou poder indivisível, inalienável e exclusivo.É indivisível: daí o princípio da unidade jurídica do território.

É inalienável: o Estado não pode alienar o seu território, embora algumas Constituições admitam a cessão ou alienação de algumas das suas parcelas.

É exclusivo: sobre o território do Estado só este pode ter senhorio, embora possa haver direitos de outra espécie de outros Estados e embora haja como que um desdobramento de tal senhorio no caso de se tratar de Estado composto.

159. Outros direitos territoriais do Estado e outras situações territoriaisI - O exame da vida jurídica internacional mostra a necessidade de atender a outros direitos sobre o território do Estado, além do senhorio territorial.

Aproveitando (até certo ponto apenas) o paralelismo com o que se passa em Direito civil, justifica-se discernir entre soberania territorial (titularidade do poder sobre o território) e supremacia territorial (efectividade do poder ou posse do território). E justifica-se ainda discernir entre direito territorial máximo ou supremacia territorial com soberania (em termos homólogos aos da propriedade, direito real máximo); e direitos territoriais menores ou poderes de um Estado sobre território de outro Estado ou de nenhum Estado, ou supremacia territorial sem soberania (homólogos dos direitos reais menores como o usufruto, o uso e habitação ou a superfície).29

II - Em regra, verifica-se a cumulação da soberania territorial com a supremacia territorial (posse do território): o Estado, senhor do território, exerce, de harmonia com o Direito internacional, um poder geral e efectivo sobre esse território. É o que se passa com os Estados soberanos (e até com os Estados exíguos e os Estados confederados).

Todavia, a experiência mostra situações de dissociação, ora em moldes de supremacia territorial geral, ora em moldes de supremacia territorial especial.São casos de supremacia territorial geral sem soberania as cessões de administração30 ou por arrendamento,31 os mandatos32 e os fideicomissos internacionais,33 os protectorados internacionais34 ou os direitos de ocupação militar.35

São casos de supremacia territorial especial as servidões estaduais36 ou a fiscalização de alfândegas ou de portos.37

E, se estas situações hoje se encontram ultrapassadas ou quase não existem, certo é que o Direito Internacional do Mar contemporâneo conhece duas figuras de significativa importância que se reconduzem ainda a poderes territoriais sem soberania: a zona contígua e a zona económica exclusiva.A zona contígua não pode estender-se para além de 24 milhas, contadas a partir das linhas de base

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que servem para medir a largura do mar territorial. Nele, o Estado costeiro pode tomar medidas de fiscalização necessárias a prevenir ou reprimir infracções – prevenir infracções das suas normas aduaneiras, fiscais, de imigração ou sanitárias, reprimir a infracção de quaisquer normas (art. 33º da Convenção de Montego Bay, de 1982).

A zona económica exclusiva, por seu lado, não pode estender-se para além de 200 milhas (art. 57º da mesma Convenção). Apesar de aí se falar em "direitos de soberania" (art. 56º), na realidade a ela liga-se um conjunto de poderes tipificados relativos aos recursos naturais, à exploração e ao aproveitamento económico e à jurisdição quanto a ilhas artificiais, investiganção científica e meio marinho (art. 56º). Ao mesmo tempo, implica determinadas obrigações (arts. 61º e segs.) e os demais Estados gozam da liberdade de navegação e de sobrevoo, bem como de outros usos internacionalmente lícitos (art. 58º).38

III - Em plano diverso situam-se os problemas de contitularidade territorial: haver dois ou mais Estados que sobre o mesmo território têm e exercem poderes de idêntico conteúdo e cuja hipótese mais importante é a de condomínio ou co-soberania.39 A contitularidade territorial não contraria, porém, a regra da exclusividade do direito de cada Estado sobre o território, visto que aqueles poderes se reconduzem a quotas ideais de um direito único de todos os contitulares.

Aliás, a regra da exclusividade da soberania só vale, em rigor, para território integrado no Estado (em que vive o povo do Estado, e onde assenta o seu poder político) e não para territórios dependentes, sem natureza de Estado. Numa colónia o poder político é estranho à comunidade que aí vive e pode pertencer a um ou mais Estados diferentes.

IV - Acrescente-se que há ou tem havido ainda territórios sobre os quais nenhum Estado exerce senhorio ou soberania, mas tão-só supremacia,40 e territórios sobre os quais nenhum poder se exerce (territórios neutros).41

Além disso, tem havido até territórios sob administração directa de organizações internacionais sem mediação de quaisquer Estados.42-43

O problema da aquisição de direitos sobre terras livres ou sem dono (ou tidas como sem dono) foi, como se sabe, da mais alta importância quando dos Descobrimentos e da expansão colonial.

Hoje, num momento inverso, é uma noção de "património comum da humanidade" que vai aparecendo. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, acolheu-a ao estabelecer que os fundos marinhos do alto-mar e os seus recursos são património comum da humanidade (arts. 136º e segs.).44 O mesmo poderá vir a acontecer, em futuro próximo, à Antárctida (sujeita desde 1959 a um tratado pelo qual não se reconhece sobre ela qualquer pretensão territorial).

Quanto ao alto-mar, ele é declarado, pelo costume e pela referida Convenção (art. 87º), aberto a todos os Estados, quer costeiros, quer desprovidos de litoral.

160. Referência ao domínio público e ao domínio privadoI - Os direitos do Estado sobre o território correspondentes a jurisdição distinguem-se dos direitos do Estado sobre parcelas do território correspondentes grosso modo a propriedade no sentido de direito real ou de estrutura próxima da propriedade, e estejam estes submetidos ao Direito público ou submetidos ao Direito privado.

Uma coisa é o senhorio territorial; outra coisa o domínio público, ou a propriedade pública, ou o domínio privado do Estado ou o património do Estado.

O Estado tem senhorio e exerce jurisdição tanto sobre os bens do domínio público e do domínio privado quanto sobre os bens de propriedade dos particulares. A única diferença está em que só atinge os segundos na medida em que exerce jurisdição sobre as pessoas suas proprietárias.

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II - Por domínio público entende-se o conjunto de coisas públicas ou de direitos sobre coisas públicas, sendo coisas públicas as que são submetidas por lei ao domínio de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado por causa da sua primacial utilidade colectiva.45

Do domínio público distingue-se o domínio privado. Este último abrange bens sujeitos, em princípio, a um regime de Direito privado e inseridos no comércio jurídico, sem embargo das excepções e especialidades introduzidas pelas leis administrativas.46

Por outro lado, nem todo o domínio público equivale a propriedade pública, pois o conceito de propriedade exige a possibilidade de apropriação:

Finalmente, por património do Estado entende-se o conjunto dos bens do seu domínio público e privado e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular, como pessoa colectiva de direito público.

161. O Estado e outras colectividades territoriaisI - Não pode considerar-se o Estado a única comunidade territorial. Dentro do Estado, e também acima e ao lado do Estado, existem outras colectividades cujos ordenamentos jurídicos adquirem, nuns casos mais vincadamente, noutros casos menos, carácter territorial. O que mostra ainda (assim como o facto de haver territórios não pertencentes a nenhum Estado) a dificuldade de sustentar que o território é elemento essencial do Estado.

II - Colectividades territoriais dentro do território do Estado são, antes de mais os municípios e, quando existam, as regiões ou províncias autónomas.

E relevância muito maior tem o território para os municípios, as restantes autarquias locais e as regiões autónomas do que para o Estado. O território, aí, mais do que limite espacial de competência dos órgãos, representa elemento definidor dos interesses municipais, locais e regionais.47 A circunscrição aparece como factor determinante da formação e da subsistência do agregado (o que, todavia, tão pouco quer dizer que seja da essência ou parte constitutiva da autarquia ou da comunidade regional).

Por conseguinte, nota básica do Direito municipal ou do Direito regional é a sua territorialidade. Em regra, nem um nem outro regula ou se aplica senão às pessoas residentes ou domiciliadas na respectiva área. Enquanto que as leis dimanadas dos órgãos do Estado tanto podem ser de âmbito geral (e, em Estado unitário, por princípio, são-no) como de âmbito local, as leis dimanadas de órgãos de regiões autónomas - assim como os regulamentos de autarquias locais - são sempre de âmbito estritamente local.

III - Os poderes territoriais dos Estados compostos são, em tudo, de natureza idêntica à dos poderes dos Estados simples ou unitários, com os problemas conexos.

Deles se aproximam até certo ponto os que se exercem em comunidades com autonomia sem integração, a que adiante iremos aludir.

Ao invés, oferecem-se de carácter limitado, porventura excepcional e relativamente precário os poderes territoriais das confederações. No entanto, o território desempenha um papel não despiciendo quer nas confederações clássicas, quer na Comunidade Europeia enquanto âmbito de vigência espacial do Direito emanado dos respectivos órgãos.

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CAPÍTULO VII - Formas De Estado

§ 1º As Formas De Estado Em Geral

162. Conceito de forma de EstadoI - O conceito de forma de Estado, dos mais trabalhados pelos tratadistas de Direito público, é conceito básico com que se tem de contar na configuração em concreto de cada Estado e dos seus diversos elementos ou condições de existência. E é, assim, também um conceito de síntese de toda a matéria atinente à estrutura constitucional do Estado ou à relação entre comunidade e poder político.

Dele se devem distinguir, naturalmente, outros conceitos de formas políticas (lato sensu), como tipos históricos de Estado, formas de governo, sistemas de governo e regimes políticos.

II - Formas de Estado não equivalem a tipos históricos de Estado, tal como, desde Jellinek, são enumerados (Estado oriental, Estado grego, Estado romano, Estado medieval ou pretenso Estado medieval e Estado moderno).

Os tipos históricos de Estado são formas de organização política correspondentes a concepções gerais sobre o Estado enquanto sociedade política ao lado de quaisquer outras sociedades humanas e, doutros prismas, a formas de civilização e a estádios históricos determinados. Já as formas de Estado apenas têm de ver com as concepções e os quadros de relacionamento entre poder, por uma parte, e comunidade política (bem como território), por outra parte.

O conceito de formas de Estado só se torna verdadeiramente operacional no interior de um mesmo tipo histórico de Estado. Em rigor, só interessa distinguir Estado unitário e Estado federal no âmbito do Estado moderno de tipo europeu e, especialmente a partir do despontar do constitucionalismo.

III - Formas de Estado não se confundem com formas de governo e com sistemas de governo, tal como, desde há muito, estes conceitos são propostos (como formas de governo dos últimos 200 anos, a monarquia absoluta, o governo representativo liberal, o governo jacobino, o governo cesarista, a monarquia constitucional propriamente dita ou limitada, a democracia representativa, o governo leninista, o governo fascista; e como sistemas de governo, designadamente, os sistemas parlamentar, presidencial, directorial, orleanista, semipresidencial, representativo simples, convencional).

Forma de Estado é o modo de o Estado dispor o seu poder em face de outros poderes de igual natureza (em termos de coordenação e subordinação) e quanto ao povo e ao território (que ficam sujeitos a um ou a mais de um poder político). Forma de governo é a forma de uma comunidade política organizar o seu poder ou estabelecer a diferenciação entre governantes e governados; e encontra-se a partir da resposta a alguns problemas básicos - o da legitimidade, o da participação dos cidadãos, o da liberdade política e o da unidade ou divisão do poder. Muito menos amplamente, sistema de governo é o sistema de órgãos de função política, apenas se reporta à organização interna do governo e aos poderes e estatutos dos governantes.1

Acentuando um pouco mais a distinção entre formas de Estado e formas e sistemas de governo, vale a pena citar alguns autores:

- As formas de Estado referem-se à composição geral do Estado, ao passo que as formas de governo se referem ao exercício do poder político.2

- As formas de Estado são os métodos possíveis de criação da ordem estadual, as formas políticas os conteúdos típicos das normas reguladoras da criação do Direito.3

- O problema da forma de Estado concerne o número de aparelhos governamentais e, se há vários, as suas relações; diz respeito à "extensão humana" da sua competência, à estrutura constitucional da

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própria colectividade, à sua unidade ou à sua divisão para efeito do poder governamental; já o problema das formas de governo concerne a organização de um dado aparelho de governo, independentemente da extensão do exercício dos seus poderes.4

- As formas de Estado são os vários processos de combinação jurídica dos seus elementos, as formas políticas os diferentes sistemas de organização e actuação do Governo.5

- As formas de Estado dizem respeito à estrutura do poder no Estado - poder político uno ou associação de poderes; os regimes políticos em sentido amplo ou formas políticas dizem respeito aos fins do poder (regimes políticos em sentido estrito) e às suas modalidades de exercício.6

- As formas de Estado reportam-se à configuração externa da sociedade política, que ora se apresenta como uma unidade, ora se mostra como uma combinação de diferentes unidades; as formas de governo referem-se à estrutura ou arranjo interno da sociedade política, à maneira como interiormente se revela organizado.7

IV - Tão pouco se identificam formas de Estado e regimes políticos, visto que estes não são senão expressões, objectivações ou concretizações das diferentes Constituições materiais,8 ainda quando se reconduzem a grandes tipos constitucionais (Estado liberal, Estado social do direito, Estado soviético, Estado fascista).

A forma de Estado é, simultaneamente, mais e menos que o regime político.

É mais, porque envolve uma permanência que o regime não tem ou pode não ter: um Estado é unitário ou composto ao longo da sua história ou subsiste muito mais tempo sob certa forma do que sob certo regime ou sob certa Constituição.

É menos, porque a forma de Estado não vai além dos aspectos políticos estruturais e o regime (que não é tanto o modo como o poder se rege quanto os fins a que se dirige) constrói-se a partir de todos os aspectos da vida política e social políticamente relevantes; no regime para lá da organização do poder, avultam o sistema de direitos fundamentais e o sistema económico.

No entanto, cada forma de Estado e cada regime político em concreto não são sem implicações; na experiência histórica desde ou daquele país condicionam-se ou interpenetram-se.

163. A contraposição fundamental: Estados simples e compostosI - A divisão fundamental, de há muito formulada pela doutrina e ainda hoje válida, dá-se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos.

Critérios de distinção são: unidade9 ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna) unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de Constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; e unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se.10 Apesar das diferenças de perspectivas, coincidem nos resultados.

II - O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional.

Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial - através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas -11 quer de âmbito institucional ou funcional - através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas - só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa.

Esta descentralização política é sempre em nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas, participarem ao lado dos órgãos estaduais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo.12 Daí que se fale em Estado regional.13

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III - Por sua vez, o Estado composto ora se configura como federação ou Estado federal14 ora se configura como união real. Num caso e noutro, a sua base de organização é também geográfica ou territorial.15

Quer na federação quer na união real regista-se uma associação ou união de Estados dando origem a um novo Estado que os vai englobar ou integrar. A diferença está em que na federação se criam órgãos completamente distintos dos órgãos dos Estados-Membros e todo um sistema jurídico e político-constitucional novo, enquanto que na união real se aproveitam alguns dos órgãos dos Estados-Membros elevando-os a comuns. A estrutura federativa é de sobreposição, a da união real de fusão ou de comunidade institucional.IV - A maior parte dos Estados do mundo, ontem e hoje, constituem-se em Estados unitários e centralizados. Isso não significa que a forma unitária seja a forma normal de existir dos Estados. Tão normais como o Estado centralizado são o Estado regional e o Estado federal.

O que pode dizer-se, entretanto, é que no seio dos Estados compostos existem sempre Estados unitários. Os Estados componentes são, em geral, com raríssimas excepções, imediatamente Estados unitários. E, claro está, qualquer Estado, mesmo o Estado federal, é unitário no sentido de que, em si, na respectiva estrutura interna, o seu poder é uno (ou, se se preferir, único).

164. O Estado unitário descentralizado ou regionalI - A concepção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Remontam à Constituição espanhola de 1931 e à italiana de 1947.

A doutrina dominante parece inclinar-se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar-se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais.16

II - Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados.

No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram-se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando-se pois, diversidade de condições jurídico-políticas de região para região.

E esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados).

No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial.17

Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem-se casos - ainda que de necessária relevância em nível de Constituição material - de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo Direito internacional (caso do Alândia).

Como exemplos de Estados regionais integrais apontem-se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha, agora (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996).

Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem-se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (quando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às Ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo, por causa de Honcongue desde 1997 e de

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Macau a partir de 1999) ou o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e 1999).

Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram-se a Itália, com regiões de estatuto especial - Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino - Alto Ádige18 e Friul - Venécia Júlia - e regiões de estatuto comum - as restantes - e a Espanha actual (com comunidades autónomas de regimes diversos).

III - O grau de descentralização varia muitíssimo; desde regiões que pouco mais parecem do que colectividades administrativas a regiões que parecem Estados-Membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são-lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos.19

A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá-se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto-organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir:

a) Porque o acto final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central;20 ou seja, as regiões não têm poder constituinte;

b) Porque as regiões tão pouco participam na elaboração e na revisão da Constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele; ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente.

Juridicamente o Estado federal dir-se-ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central, e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de Direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras colectividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um acto expecífico para obterem a soberania.21

Os recentes desmembramentos da União Soviética e da Jugoslávia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias,22 perdura um resíduo de estadualidade pronto a revivescer se as condições o permitem.

IV - Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais, a que aludimos em capítulo anterior.

Se a dimensão e alguns dos objectivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem-se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, afectam a forma do Estado.

165. Autonomia política com e sem integraçãoI - A par da autonomia regional, que é efeito de descentralização política ou político-administrativa, conhece-se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes doutros Estados ou em regimes especiais.

Trata-se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente23-24 ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte.

II - São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais:

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a) Autonomia derivada de antigos laços feudais (a Ilha de Man e as Anglo-Normandas em relação à Coroa Britânica);

b) Autonomia ligada a vínculos coloniais ou semicoloniais (as colónias autónomas e semi-autónomas britânicas, como foram antes de acederem à independência quase todos os países do Commonwealth e como ainda hoje são as Bermudas e Gibraltar; de certo modo, os territórios ultramarinos franceses como a Nova Caledónia ou a Polinésia; Guam, em relação aos Estados Unidos);25

c) Autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico e Marianas do Norte perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em face da Nova Zelândia);

d) Autonomia ligada a situações internacionais especiais (Macau em face de Portugal até 1999; e ainda Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Dânziga entre as duas guerras mundiais, Trieste durante alguns anos após a 2ª guerra; Berlim entre 1949 e 1990;26 numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela).

III - A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir-se-iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais.27 Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração.

A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia - sejam quais forem as razões em que se funde - de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado.

Pelo contrário, a autonomia sem integração - resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros - implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra-se numa condição particular frente à metrópole); e, por virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respectivo estatuto constitucional.

No seu estudo Über Staatsfragmente (trad. castelhana Fragmentos de Estado, Madrid, 1978), Jellinek faz distinção análoga (pág. 103) acerca das situações de que se ocupa: situações procedentes do Antigo Regime (por exemplo, no Império Austro-Húngaro), a Finlândia e a Alsácia-Lorena do seu tempo, colónias autónomas britânicas, etc. Mas a sua perspectiva é diversa, pois que, embora considere quatro graus de participação das comunidades na definição da sua própria organização (pág. 100), para ele trata-se essencialmente do conceito de "fragmentos de Estado" ou "País" (Land) como descritivo de situações em que se deparam algum ou alguns dos elementos do Estado, mas não todos - quer dizer - situações nas quais, em vez de povo, território e poder político aparecerem reunidos, aparecem dissociados uns dos outros (pág. 57). E naturalmente, por isso, Jellinek exclui deste conceito os Estados federados.28

Abundantes noutras épocas, as autonomias sem integração são hoje pouco numerosas, em consequência do princípio da autodeterminação dos povos levada às suas últimas consequências (de independência ou de integração de pleno direito noutros Estados). Mas não é seguro que se extingam por completo, porque algumas traduzem singularidades irredutíveis e outras são geradas por vicissitudes internacionais - que, sob vestes múltiplas, não deixam de se repetir em sucessivos momentos.

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166. Os Estados compostos. Federações e uniões reaisI - Passemos à análise do Estado composto ou complexo, nas duas grandes formas conhecidas, de união real e de federação - aquela surgida empiramente, esta em resultado de uma construção racional coeva do constitucionalismo moderno.

Precisando ainda a distinção: a federação repousa na sobreposição, porque um poder novo e distinto, o poder federal, surge acima dos poderes políticos dos Estados nela integrantes, os Estados federados; ao invés, a união real na fusão ou na colocação em comum de alguns dos órgãos dos Estado que a constituem, de tal modo que fica a haver, ao lado dos órgãos particulares de cada Estado, um ou mais órgãos comuns (pelo menos, o Chefe do Estado é comum) com os respectivos serviços de apoio e execução.

Complementarmente, o grau de integração dos Estados componentes e, portanto, a complexidade jurídica da organização são muito mais acentuados no Estado federal do que na união real. O poder central é mais forte naquele e maiores, por isso, quer a interpenetração no plano do Direito interno quer a identidade de sistemas políticos; pelo contrário, os Estados-Membros da união real - muitas vezes, uma formula de transição - conservam as suas peculiaridades e, não raro, mantêm uma limitada capacidade internacional.29

II - A união real distingue-se da união pessoal. Esta não é um Estado composto, mas, quando muito, uma associação de Estados: o Chefe do Estado é também aqui comum aos dois Estados, embora somente a título pessoal e não orgânico; o que é comum é o titular do órgão e não o próprio órgão. A união real é regulada por uma Constituição ou por outro acto jurídico específico; a união pessoal normalmente (embora nem sempre) resulta da mera coincidência de designação da pessoa do Chefe do Estado pelos Direitos próprios de dois ou mais países.

Distingue-se outrossim a união real da união incorporada. Esta já não é um Estado composto, mas um Estado simples ou unitário ou pelo menos, uma fase de transição de um Estado composto (sob a forma de união real) para um Estado simples. Como escreve um autor, os Estados incorporados deixam-se absorver pela união e, a par de certa autonomia administrativa, apenas conservam a reminiscência da designação honorífica de reinos ou repúblicas.30

III - As federações tendem a corresponder a repúblicas; as uniões reais, pessoais e incorporadas a monarquias. Mas com atenuações importantes, porque, logicamente, nem as federações têm de ser federações de repúblicas ou com forma de repúblicas, nem as uniões reais têm de ser uniões monárquicas.

Federações republicanas: os Estados Unidos, a Suíça ou o Brasil. Federações monárquicas: a Alemanha entre 1871 e 1918,31 a Malásia e os Emirados Árabes Unidos, por englobarem Estados monárquicos. Federações sob forma monárquica: além desses, o Canadá, a Austrália e a Bélgica. E há federações com diferentes sistemas de governo: com sistema presidencial (Estados Unidos, México), com sistema directorial (Suíça), com sistema parlamentar (Alemanha, Índia).

Uniões reais: a Inglaterra e a Escócia a seguir a 1707;32 a Rússia e a Finlândia de 1809 a 1917; Portugal e o Brasil de 1815 a 1822; a Suécia e a Noruega de 1815 a 1905; a Áustria e a Hungria de 1867 a 1918;33 a Dinamarca e a Islândia de 1918 a 1944. De união real, sob forma republicana, aproxima-se a união estabelecida entre Tanganica e Zanzibar desde 1964, sob o nome de Tanzânia.

Uniões pessoais: Espanha e Império Germânico no tempo de Carlos V; Portugal e a Espanha de 1580 a 1640;34 Inglaterra e a Escócia de 1603 a 1707; Inglaterra e Hanover de 1714 a 1837; Holanda e Luxemburgo de 1816 a 1890; Portugal e o Brasil em 1826 (D. Pedro IV);35 a Grã-Bretanha e os países da Commonwealth que mantêm fidelidade à Coroa britânica (Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Jamaica, etc.).36

Uniões incorporadas: a Grã-Bretanha ou união entre a Inglaterra e a Escócia, pelo menos, nos dois últimos séculos.

Por detrás das fórmulas jurídicas das uniões urge, porém, discernir fenómenos de supremacia ou

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domínio político de uns Estados sobre outros, como no caso de Portugal e Espanha em 1580-1640 ou da Inglaterra sobre os outros países das Ilhas Britânicas.37

IV - Estados compostos, as federações e as uniões reais são, do mesmo passo, associações de Estados cuja integração orgânica promovem. São as mais intensas das associações de Estado38 que é possível encontrar; as que conduzem ao aparecimento de novos Estados.

Delas se distinguem as confederações e as novas realidades jurídico-internacionais de integração económica e até política (reconduzíveis ou não àquelas),39 como as Comunidades Europeias e a União Europeia e a Mercosul (que liga o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai).

Do pacto confederativo resulta uma entidade a se, com órgãos próprios (pelo menos, uma assembleia ou dieta confederal). Não chega a emergir um novo poder político ou mesmo uma autoridade supraestadual com competência genérica. Tudo se passa ainda no campo do Direito internacional, e não já no do Direito interno como sucede nos Estados compostos.40

Acrescente-se uma nota interessante sobre as Comunidades Europeias: é que tendo surgido originariamente separadas - Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, Comunidade Económica Europeia e Comunidade Europeia de Energia Atómica - fundiram as suas instituições a partir de 1965, embora tenham mantido distintas as individualidades jurídicas e as competências dos respectivos órgãos à luz dos seus tratados constitutivos; o Acto Único Europeu confirmaria esta evolução, ao formalizar o Conselho Europeu e ao consagrar a cooperação em política externa; e mais ainda os tratados de Maastricht, Amesterdão e Nice.41 Dir-se-ia uma união real de organizações internacionais.

167. Os Estados federais em particularI - O Estado federal ou federação assenta, repetimos, numa estrutura de sobreposição, a qual recobre os poderes políticos locais (isto é, dos Estados federados), de modo a cada cidadão ficar simultaneamente sujeito a duas Constituições - a federal e a do Estado federado a que pertence - e ser destinatário de actos provenientes de dois aparelhos de órgãos legislativos, governativos, administrativos e jurisdicionais.

Assenta também numa estrutura de participação, em que o poder político central surge como resultante da agregação dos poderes políticos locais, independentemente do modo de formação:42 donde, a terminologia clássica de Estado de Estados. Se participação há igualmente na união real, não atinge nesta o desenvolvimento e a sistemática racionalização que atinge na federação.

Tal a nossa maneira de ver - como se verifica, uma maneira de ver dualista da organização federal. Naturalmente, não é original, nem é única: há os que negam ou diminuem o carácter de Estado do Estado federal (assimilando-o à confederação) ou o dos Estados federados (reduzidos a algo parecido com regiões autónomas) e há também os que tomam o Estado federal como a totalidade ou a soma dos Estados federados e da união (e só essa totalidade teria a soberania).43

II - De qualquer sorte, a dualidade de Estados não tem de significar separação ou polarização. A dupla estrutura de sobreposição e de participação só pode sobreviver com integração política e jurídica; e esse papel cabe à Constituição federal.

Em cada federação, se pode não ter havido historicamente um acto constitutivo, pelo menos ele tem de ser pressuposto (entenda-se ou não como acto-união). Mas, formada a federação, doravante é a Constituição federal - obra de um poder constituinte distinto do de cada um dos Estados federados, embora resultante da sua intervenção - que contém o fundamento de validade e de eficácia do ordenamento jurídico federativo; e é ele que define a competência das competências44 (ao passo que na confederação, subsiste sempre, e só, o respectivo pacto confederal).

Por outro lado, à confederação é inerente o direito de secessão dos Estados confederados. Já não à federação, em que tal direito ou não é reconhecido aos Estados-Membros ou depende da

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Constituição federal.

Do mesmo modo, em rigor só em Estado federal há cidadania comum e, na maior parte dos casos, a cidadania federal precede a de cada Estado federado.

III - Das duas características expostas - sobreposição e participação - procedem os seguintes princípios directivos:

1º) Dualidade de soberanias - a de cada um dos Estados federados e a do Estado federal, tendo cada um deles a sua Constituição (e Constituição emanada de um poder constituinte originário, exercido em nome próprio), bem como o correspondente sistema de funções e órgãos (legislativos, governativos, administrativos e jurisdicionais);

2º) Participação dos Estados federados na formação e na modificação da Constituição federal, seja a título constitutivo, seja a título de veto colectivo, seja por via representativa, seja por referendos parciais;45

3º) Garantia (em nível de Constituição federal) da existência e dos direitos dos Estados federados;

4º) Intervenção institucionalizada dos Estados federados na formação da vontade política e legislativa federal, através de órgãos federais com adequada representação dos Estados (senados ou conselhos federais, os primeiros com titulares eleitos e os segundos com titulares delegados dos Governos locais);

5º) Igualdade jurídica dos Estados federados, traduzida em igualdade de direitos dos seus cidadãos, em reconhecimento do valor dos actos jurídicos neles celebrados e em participação por igual (ou em base proporcional) nos órgãos federais ou em alguns deles;

6º) Limitação das atribuições federais, o que deriva da ideia de agregação dos Estados como hipótese explicativa da federação e possui o sentido (inverso do da descentralização política e administrativa) de que todas as matérias não reservadas ao Estado federal incumbem ou podem incumbir aos Estados federados.46-47

IV - Naturalmente, são diferentes as concretizações destes princípios. Porém, mais do que isso, nem sempre eles se verificam e, por isso, torna-se necessário considerar Estados federais de mais de um tipo ou grau: pelo menos, Estados federais perfeitos e imperfeitos.

Os primeiros são os que apresentam todas aquelas características (como os Estados Unidos ou a Suíça).

Os segundos são os que apresentam a maior parte delas, mas não todas, nomeadamente a intervenção dos Estados nas modificações da Constituição federal (como o Brasil ou a Rússia).

V - Refiram-se ainda outras distinções.

Todos os Estados federais actuais, são de um grau: abaixo do Estado federal apenas há um grau de Estados federados. Na U.R.S.S., pelo contrário, a Rússia - uma das repúblicas federadas - era, por seu turno, já por si um Estado federal, que agrupava Estados federados - repúblicas socialistas soviéticas autónomas.48

As uniões reais nunca agrupam mais de dois ou três Estados e a individualidade concreta de cada um conta sempre bastante. Mas a federação tanto pode ser apenas de dois Estados federados (por exemplo, a Checoslováquia entre 1969 e 1992), ou de meia dúzia (a Austrália, a ex-Jugoslávia) como de várias dezenas (os Estados Unidos, o México).

Há Estados federais igualitários e não igualitários (o que se prende, quase sempre, com diferenças de dimensão territorial, humana ou económica dos Estados federados) e pode haver hegemonia de um Estado federado sobre os demais (v. g., a Prússia na Alemanha imperial ou a Rússia na U.R.S.S.).

Há federalismos de largos espaços e de pequenos espaços. Os Estados federados, umas vezes, têm

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grande extensão populacional e territorial (como nos Estados Unidos, no Canadá, no Brasil); outras vezes, pouco mais são que cidades ou distritos (caso dos cantões suíços ou de alguns dos Länder alemães). Naqueles avulta a complexidade, nestes o carácter quase municipal, com implicações político-administrativas inerentes.

VI - Situação particularíssima vem a ser a do Brasil, onde se articulam federalismo em nível de Estados e regionalismo político em nível de Municípios.

Segundo a Constituição de 1988, a organização político-administrativa da República compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, "todos autónomos" (art. 18); compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e a estadual e instituir e arrecadar tributos (art. 30); e eles regem-se por leis orgânicas votadas pelas respectivas câmaras municipais (art. 29).

Os municípios são, pois, entidades políticas integrantes da estrutura do Estado, embora não propriamente entidades estatais de 2º grau.49-50

168. O sistema jurídico complexo dos Estados federaisI - A coexistência de várias ordens jurídicas no interior do Estado federal não se presta a uma fácil explicação dogmática.

Ela tem, contudo, de se procurar na relação entre a Constituição federal e as Constituições dos Estados federados; envolve supremacia, mas em termos de supracoordenação; e exige uma visão conjugada de normas e competências.

Esta supremacia traduz-se em:

a) Os princípios básicos do regime, tal como constam da Constituição federal, impõem-se às Constituições dos Estados federados (conforme estabelecem, v. g., o art. 5º, secção 3ª, nº 3, da Constituição dos Estados Unidos, o art. 28º da Constituição alemã ou os arts. 19 e 20 da Constituição brasileira);

b) As Constituições dos Estados federados não podem contrariar a Constituição federal, sob pena de inconstitucionalidade - que em rigor, envolve, porém, ineficácia e não invalidade, porque a Constituição federal não é o fundamento de validade das Constituições estaduais;

c) São órgãos federais, designadamente jurisdicionais, que decidem conflitos de competências;

d) O Estado federal pode adoptar medidas coercitivas para impor o seu Direito aos órgãos dos Estados federados;

e) A comunicação e a unidade inter-sistemática dos ordenamentos estaduais assentam no Direito federal.

Em contrapartida, o poder constituinte federal tem como limite absoluto o respeito do conteúdo essencial das soberanias locais; as leis dos Estados federados fundam-se nas respectivas Constituições, e não na Constituição federal; e à federação incumbe garantir o exercício efectivo da autoridade dos Estados federados.

II - Em quase todos os Estados federais, prevêem-se matérias reservadas aos Estados federados, matérias reservadas à União e matérias concorrentes, bem como diversas formas de intervenção relativamente a elas (por meio de competências legislativas e por meio de competências executivas).51

Há dois sistemas típicos. No federalismo clássico (Estados Unidos, Suíça), procede-se a uma repartição horizontal ou material: o dualismo de soberania envolve um dualismo legislativo e executivo (o Estado federal faz e executa as suas leis, e o mesmo fazem os Estados federados). No

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federalismo dito cooperativo (Alemanha), tende-se a uma repartição vertical: o Estado federal legisla ou define as bases gerais da legislação e os Estados federados executam ou desenvolvem as bases gerais.

169. Leis estaduais e leis regionaisSem embargo de aproximações impostas pela prática e de variantes e inflexões de país para país, há, contudo, no plano dos princípios, diferenças assinaláveis entre a lei proveniente de um Estado federado e a decretada por uma região autónoma:

a) A lei do Estado federado funda-se na respectiva Constituição (funcionando a Constituição federal apenas como limite); a lei regional funda-se na Constituição do Estado, mediatizada ou não pelo estatuto da região;

b) A lei do Estado federado pode versar sobre quaisquer matérias, menos as reservadas ao Estado federal; a lei regional versa sobre as matérias atribuídas (por cláusula geral ou específica) à região (inversamente, à lei federal podem ser vedadas certas matérias, ao contrário do que se passa com a lei do Estado unitário regional);

c) A lei do Estado pode, eventualmente, vir a ser supletiva da lei regional; não a lei federal em face da lei do Estado federado;

d) A lei do Estado federado dá origem a um ordenamento a se a integrar ou coordenar com o ordenamento jurídico-federal; a lei regional é parte de um ordenamento único, o do Estado;

e) A lei do Estado federado é (ou pode ser) uma lei pessoal, aplicável fora do seu território; a lei regional é sempre uma lei territorial, circunscrita ao espaço físico da região autónoma;

f) A execução (coerciva) da lei do Estado federado depende (ou depende em primeira linha) das autoridades locais; a da lei regional dos órgãos do Estado (pelo menos, quando se trate de órgãos jurisdicionais).

170. Os condicionalismos das formas de EstadoI - As formas de Estado não podem ser apercebidas isoladamente como produtos autónomos. Devem ser vistas nas suas raízes, no seu ambiente institucional, nos seus objectivos. As razões por que um país adopta forma unitária ou federativa são sempre peculiares a ele, conquanto propiciem generalizações.52

Não é, por acaso que à França revolucionária e jacobina, primeiro, e, depois, napoleónica se liga o modelo de Estado unitário centralizado, reforçando a obra do absolutismo monárquico; nem foi por acaso que a primeira união real surgiu nas Ilhas Britânicas ou o federalismo nos Estados Unidos - tudo no século XVIII.53

II - Fundamentalmente, o Estado unitário é prova ou expressão de homogeneidade nacional e social, de continuidade histórica, de contiguidade geográfica; e o Estado composto uma resultante de heterogeneidade, descontinuidade, descontiguidade. Mas pode o Estado unitário traduzir o desejo de fazer a unidade de regiões ou povos díspares através da centralização e o Estado federal representar um processo de melhor organização de um grande país homogéneo.

O factor técnico - distribuição do poder pelos órgãos centrais e locais para maior eficiência - o factor económico-financeiro - distribuição de receitas e despesas pela Administração central e pelas locais - e o factor político - papel do Estado perante os outros Estados e na satisfação de aspirações políticas, assim como aproximação dos cidadãos do poder - jogam aqui amplamente. Nuns casos, prevalecem as tendências centrífugas com a diminuição do poder central; noutros, as tendências

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centrípetas com o consequente engrandecimento.

Quer o federalismo quer o regionalismo político são tentativas de equilíbrio: o federalismo, entre a independência dos Estados federados e a centralização; o regionalismo entre o federalismo e o Estado unitário centralizado.

III - O factor político é, em cada país, determinado por pressupostos históricos - modo como o Estado se constituiu ou expandiu; pressupostos geográficos - afastamento entre as parcelas do mesmo Estado; pressupostos nacionais, culturais e étnicos - diferenciações no povo; pressupostos sociais e económicos - interesses a defender ou disfunções sociais e económicas a atender; pressupostos ideológicos - filosofias de centralização ou descentralização e movimentos partidários ou não, favoráveis ou desfavoráveis.

Há federalismo institucional (Estados Unidos, Suíça, Alemanha), geográfico (Canadá, Brasil, Austrália), multinacional (Rússia), linguístico (Índia), tribal ou étnico (Nigéria). Há federalismo de origem (Estados Unidos, Austrália), de tradição (Alemanha), de imitação (México, Brasil, Venezuela), de necessidade (Índia), etc. E algo de semelhante poderia dizer-se do Estado unitário descentralizado ou até do centralizado.

Hoje, a tendência parece ser para o empolamento do poder central, quer seja único quer seja federal. Ao mesmo tempo, assiste-se a um realçar de certos aspectos da descentralização política e administrativa, advogados segundo os diversos quadrantes (em nome de uma maior funcionalidade, ou dos particularismos locais, ou de um princípio de participação, ou do desenvolvimento ou do equilíbrio económico-social). E, não raro, sustenta-se mesmo a convergência na prática de Estados unitários e federais, através da descentralização e do federalismo cooperativo.54

IV - Não menos relevante vem a ser a relação entre formas de Estado e regimes políticos, realidades independentes só até certo. Um poder autocrático é um poder fortemente centralizado: daí a subsistência apenas do Estado unitário ou a redução do federalismo a mera fachada.55 Um poder democrático e liberal propenderá a acolher a descentralização ou o federalismo: o federalismo é uma espécie de separação de poderes de âmbito territorial (C. J. Friedrich),56 e o mesmo talvez se possa dizer do regionalismo.

Em Estado federal, o indivíduo está simultaneamente sujeito a dois poderes políticos - o federal e o do Estado federado. Todavia, o resultado pode não ser, ao contrário do que prima facie seria de supor, ter ele de suportar o peso redobrado da autoridade pública. Na realidade, esse peso pode ser menor, porque as atribuições políticas se dividem entre os dois Estados e os órgãos respectivos, defendendo a sua esfera própria da acção, se limitam reciprocamente.

Em contrapartida, o exercício do poder em comunidades políticas ou regionais de dimensão reduzida, com frequência, vem a degenerar em abusos ou em intromissões menos suportáveis pelas pessoas; certos localismos podem enfraquecer a liberdade política e a igualdade. E então há que contar com a garantia dos direitos a prestar pela autoridade federal ou central.

Mas a pluralidade de centros de decisão política propicia ou favorece o acesso ao poder de diversos partidos e forças políticas que, assim convivendo e concorrendo umas com as outras, impedem o monolitismo (inversamente, o federalismo fica diminuído, quando são sempre as mesmas forças e orientações que dominam a nível central e local).

Por causa dessa divisão de poder e da complexidade de que se revestem os ordenamentos jurídicos federais e regionais tornam-se então mais necessários e delicados os mecanismos de fiscalização - política e, sobretudo, jurisdicional - da constitucionalidade das leis. A experiência confirma-o.

170. Os condicionalismos das formas de EstadoI - As formas de Estado não podem ser apercebidas isoladamente como produtos autónomos.

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Devem ser vistas nas suas raízes, no seu ambiente institucional, nos seus objectivos. As razões por que um país adopta forma unitária ou federativa são sempre peculiares a ele, conquanto propiciem generalizações.52

Não é, por acaso que à França revolucionária e jacobina, primeiro, e, depois, napoleónica se liga o modelo de Estado unitário centralizado, reforçando a obra do absolutismo monárquico; nem foi por acaso que a primeira união real surgiu nas Ilhas Britânicas ou o federalismo nos Estados Unidos - tudo no século XVIII.53

II - Fundamentalmente, o Estado unitário é prova ou expressão de homogeneidade nacional e social, de continuidade histórica, de contiguidade geográfica; e o Estado composto uma resultante de heterogeneidade, descontinuidade, descontiguidade. Mas pode o Estado unitário traduzir o desejo de fazer a unidade de regiões ou povos díspares através da centralização e o Estado federal representar um processo de melhor organização de um grande país homogéneo.

O factor técnico - distribuição do poder pelos órgãos centrais e locais para maior eficiência - o factor económico-financeiro - distribuição de receitas e despesas pela Administração central e pelas locais - e o factor político - papel do Estado perante os outros Estados e na satisfação de aspirações políticas, assim como aproximação dos cidadãos do poder - jogam aqui amplamente. Nuns casos, prevalecem as tendências centrífugas com a diminuição do poder central; noutros, as tendências centrípetas com o consequente engrandecimento.

Quer o federalismo quer o regionalismo político são tentativas de equilíbrio: o federalismo, entre a independência dos Estados federados e a centralização; o regionalismo entre o federalismo e o Estado unitário centralizado.

III - O factor político é, em cada país, determinado por pressupostos históricos - modo como o Estado se constituiu ou expandiu; pressupostos geográficos - afastamento entre as parcelas do mesmo Estado; pressupostos nacionais, culturais e étnicos - diferenciações no povo; pressupostos sociais e económicos - interesses a defender ou disfunções sociais e económicas a atender; pressupostos ideológicos - filosofias de centralização ou descentralização e movimentos partidários ou não, favoráveis ou desfavoráveis.

Há federalismo institucional (Estados Unidos, Suíça, Alemanha), geográfico (Canadá, Brasil, Austrália), multinacional (Rússia), linguístico (Índia), tribal ou étnico (Nigéria). Há federalismo de origem (Estados Unidos, Austrália), de tradição (Alemanha), de imitação (México, Brasil, Venezuela), de necessidade (Índia), etc. E algo de semelhante poderia dizer-se do Estado unitário descentralizado ou até do centralizado.

Hoje, a tendência parece ser para o empolamento do poder central, quer seja único quer seja federal. Ao mesmo tempo, assiste-se a um realçar de certos aspectos da descentralização política e administrativa, advogados segundo os diversos quadrantes (em nome de uma maior funcionalidade, ou dos particularismos locais, ou de um princípio de participação, ou do desenvolvimento ou do equilíbrio económico-social). E, não raro, sustenta-se mesmo a convergência na prática de Estados unitários e federais, através da descentralização e do federalismo cooperativo.54

IV - Não menos relevante vem a ser a relação entre formas de Estado e regimes políticos, realidades independentes só até certo. Um poder autocrático é um poder fortemente centralizado: daí a subsistência apenas do Estado unitário ou a redução do federalismo a mera fachada.55 Um poder democrático e liberal propenderá a acolher a descentralização ou o federalismo: o federalismo é uma espécie de separação de poderes de âmbito territorial (C. J. Friedrich),56 e o mesmo talvez se possa dizer do regionalismo.

Em Estado federal, o indivíduo está simultaneamente sujeito a dois poderes políticos - o federal e o do Estado federado. Todavia, o resultado pode não ser, ao contrário do que prima facie seria de supor, ter ele de suportar o peso redobrado da autoridade pública. Na realidade, esse peso pode ser menor, porque as atribuições políticas se dividem entre os dois Estados e os órgãos respectivos,

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defendendo a sua esfera própria da acção, se limitam reciprocamente.

Em contrapartida, o exercício do poder em comunidades políticas ou regionais de dimensão reduzida, com frequência, vem a degenerar em abusos ou em intromissões menos suportáveis pelas pessoas; certos localismos podem enfraquecer a liberdade política e a igualdade. E então há que contar com a garantia dos direitos a prestar pela autoridade federal ou central.

Mas a pluralidade de centros de decisão política propicia ou favorece o acesso ao poder de diversos partidos e forças políticas que, assim convivendo e concorrendo umas com as outras, impedem o monolitismo (inversamente, o federalismo fica diminuído, quando são sempre as mesmas forças e orientações que dominam a nível central e local).

Por causa dessa divisão de poder e da complexidade de que se revestem os ordenamentos jurídicos federais e regionais tornam-se então mais necessários e delicados os mecanismos de fiscalização - política e, sobretudo, jurisdicional - da constitucionalidade das leis. A experiência confirma-o.

172. A perspectiva material e a perspectiva formal sobre a ConstituiçãoI - Há duas perspectivas por que pode ser considerada a Constituição: uma perspectiva material - em que se atende ao seu objecto, ao seu conteúdo ou à sua função; e uma perspectiva formal - em que se atende à posição das normas constitucionais em face das demais normas jurídicas e ao modo como se articulam e se recortam no plano sistemático do ordenamento jurídico.

A estas perspectivas vão corresponder diferentes sentidos, não isolados, mas interdependentes.

II - De uma perspectiva material, a Constituição consiste no estatuto jurídico do Estado ou, doutro prisma, no estatuto jurídico do político,4 estrutura o Estado e o Direito do Estado.

A ela corresponde um poder constituinte material como poder do Estado de se dotar de tal estatuto, como poder de auto-organização e auto-regulação do Estado. E este poder é, por definição, um poder originário, expressão da soberania do Estado na ordem interna ou perante o seu próprio ordenamento.

Tendo em atenção, contudo, as variações históricas registradas, justifica-se enumerar sucessivamente uma acepção ampla, uma acepção restrita e uma média.

A acepção ampla encontra-se presente em qualquer Estado; a restrita liga-se à Constituição definida em termos liberais, tal como surge na época moderna; o sentido médio é o resultante da evolução ocorrida no século XX, separando-se o conceito de qualquer direcção normativa pré-sugerida.

Para salientar mais claramente as diferenças entre a situação antes e após o advento do constitucionalismo, pode reservar-se o termo Constituição institucional para a Constituição no primeiro período e o termo Constituição material para a Constituição no segundo período; Constituição institucional ali, porque identificada com a necessária institucionalização jurídica do poder; Constituição material aqui, porque de conteúdo desenvolvido e reforçado e susceptível de ser trabalhado e aplicado pela jurisprudência.

Como hoje a Constituição material comporta (ou dir-se-ia comportar) qualquer conteúdo, torna-se possível tomá-la como o cerne dos princípios materiais adoptados por cada Estado em cada fase da sua história, à luz da ideia de Direito, dos valores e das grandes opções políticas que nele dominem. Ou seja: a Constituição em sentido material concretiza-se em tantas Constituições materiais quanto os regimes vigentes no mesmo país ao longo dos tempos ou em diversos países ao mesmo tempo. E são importantíssimas, em múltiplos aspectos, as implicações desta noção de Constituição material conexa com a de forma política.5

III - A perspectiva formal vem a ser a de disposição das normas constitucionais ou do seu sistema

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diante das demais normas ou do ordenamento jurídico em geral. Através dela, chega-se à Constituição em sentido formal como complexo de normas formalmente qualificadas de constitucionais e revestidas de força jurídica superior à de quaisquer outras normas.

A esta perspectiva corresponde, por seu turno, um poder constituinte formal como faculdade do Estado de atribuir tal forma e tal força jurídica a certas normas, como poder de erigir uma Constituição material em Constituição formal.

O conceito formal pressupõe uma especificação de certas normas no contexto da ordem jurídica; significa que a Constituição deve ser entendida com um sistema normativo merecedor de relativa autonomia; acarreta uma consideração hierárquica ou estruturada da ordem jurídica, ainda quando dela se não retirem todas as consequências.

Por vezes, nas normas formalmente constitucionais, ocorre uma distinção: entre as que o são primariamente, directa e imediatamente obra daquele poder; e outras, anteriores ou posteriores, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico ou, porventura, provenientes de outro ordenamento, as quais das primeiras recebem também força de normas constitucionais e que, por conseguinte, são por elas recebidas nessa qualidade. E poder-se-á então falar em Constituição formal nuclear e em Constituição formal complementar para descrever a contraposição.

IV - Um último sentido básico da Constituição a propor é o sentido instrumental: o documento onde se inserem ou depositam normas constitucionais diz-se Constituição em sentido instrumental.Se bem que pudesse (ou possa) ser extensivo a normas de origem consuetudinária quando recolhidas por escrito, o conceito é coevo das Constituições formais escritas. A reivindicação de que haja uma Constituição escrita equivale, antes de mais, à reivindicação de que as normas constitucionais se contenham num texto ou documento visível, com as inerentes vantagens de certeza e de prevenção de violações.

Cabe aqui, porém, fazer uma advertência. Por um lado, Constituição instrumental vem a ser todo e qualquer texto constitucional, seja ele definido material ou formalmente, seja único ou plúrimo. Por outro lado, mais circunscritamente, por Constituição instrumental pode entender-se o texto denominado Constituição ou elaborado como Constituição, naturalmente carregado da força jurídica específica da Constituição formal.

O interesse maior desta análise verifica-se quando o texto constitucional exibe e garante a Constituição nuclear em face de outros textos donde constem também normas formalmente constitucionais.

173. A Constituição (em sentido institucional) anterior ao constitucionalismoI - Em qualquer Estado, em qualquer época e lugar (repetimos), encontra-se sempre um conjunto de regras fundamentais, respeitantes à sua estrutura, à sua organização e à sua actividade - escritas ou não escritas, em maior ou menor número, mais ou menos simples ou complexas. Encontra-se sempre uma Constituição como expressão jurídica do enlace entre poder e comunidade política ou entre sujeitos e destinatários do poder.

Todo o Estado carece de uma Constituição como enquadramento da sua existência, base e sinal da sua unidade, esteio de legitimidade e de legalidade. Como surja e o que estatua, qual o apuramento dos seus preceitos ou as direcções para que apontem - eis o que, como se sabe, varia extraordinariamente; mas, sejam quais forem as grandes soluções adoptadas, a necessidade de tais regras é incontroversa.

Chamamos-lhe Constituição em sentido institucional, porque torna patente o Estado como instituição, como algo de permanente para lá das circunstâncias e dos detentores em concreto do poder; porque revela a prevalência dos elementos objectivos ou objectivados das relações políticas

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sobre as intenções subjectivas destes ou daqueles governantes ou governados; porque, sem princípios e preceitos normativos a regê-lo, o Estado não poderia subsistir; porque, em suma, é através desses princípios e preceitos que se opera a institucionalização do poder político.

II - Se a Constituição assim considerada se antolha de alcance universal, independentemente do conteúdo com que seja preenchida, o entendimento doutrinal sobre ela e a própria consciência que dela se forme têm de ser apreendidos historicamente. Os políticos e juristas da Antiguidade não a contemplaram ou não a contemplaram em termos comparáveis aos do Estado moderno,6 ao passo que dela se aproxima a concepção das "Leis Fundamentais" da Europa cristã.7

Na Grécia, por exemplo, se Aristóteles procede ao estudo de diferentes Constituições de Cidades-Estados, não avulta o sentido normativo de ordem de liberdade. As Constituições não se destrinçam dos sistemas políticos e sociais.8 Sem deixar de se afirmar que o nomos de cada Estado9 deve orientar-se para um fim ético, a Constituição é pensada como um sistema organizatório que se impõe quer a governantes quer a governados e que se destina não tanto a servir de fundamento do poder quanto a assinalar a identidade da comunidade política.10

Já no Estado estamental e no Estado absoluto está presente a ideia de um Direito do Estado, a ideia de normas jurídicas superiores à vontade dos príncipes; e, ainda quando se tenta, na fase final do absolutismo, enaltecer o poder monárquico, reconhece-se a inelutabilidade de "Leis Fundamentais", a que os reis devem obediência e que não podem modificar. A estas "Leis Fundamentais" cabe estabelecer a unidade da soberania e da religião do Estado, regular a forma de governo e a sucessão no trono, dispor sobre as garantias das instituições e dos grupos sociais e sobre os seus modos de representação.11

No caso português,12 tais seriam as normas relativas à sucessão do reino, à natureza e constituição, fins e privilégios das ordens, à natureza e representação das cortes; ao estabelecimento das leis e ordenações gerais, à imposição de tributos, à alienação de bens da Coroa, à cunhagem e alteração da moeda, à feitura da guerra. E, ou se creia ou não no ajuntamento das velhas cortes de Lamego a que a versão seiscentista atribui as leis de sucessão definidas como a verdadeira lei de instituição do reino - bem certo é que a leis tais como essas se referia João das Regras quando, na oração famosa nas cortes de Coimbra, arengou pelo Mestre de Aviz.13 Tratava-se sobretudo de disposições relativas à instituição da Coroa e que nada praticamente estabeleciam sobre os direitos e deveres recíprocos do rei e dos súbditos.14

174. A Constituição (em sentido material) do constitucionalismo liberalI - As "Leis Fundamentais" não regulavam senão muito esparsamente a actividades dos governantes e não traçavam com rigor as suas relações com os governados; eram difusas e vagas; vindas de longe, assentavam no costume e não estavam ou poucas estavam documentadas por escrito; apareciam como uma ordem susceptível de ser moldada à medida da evolução das sociedades.15 Não admira, por isso, que se revelassem inadaptadas ou insuportáveis ao iluminismo, ou que este as desejasse reconverter16 e que as queixas acerca do seu desconhecimento e do seu desprezo - formuladas na Declaração de 1789 ou no preâmbulo da nossa Constituição de 1822 - servissem apenas para sossegar espíritos inquietos perante as revoluções liberais e para criticar os excessos do absolutismo.

Diferentemente, o constitucionalismo tende a disciplinar toda a actividade dos governantes e todas as suas relações com os governados; pretende submeter à lei todas as manifestações da soberania e aí consignar os direitos dos cidadãos17 declara uma vontade autónoma de recriação da ordem jurídica.18 Não admira, por isso, que entre as Leis Fundamentais do Reino e a Constituição, apesar de não haver diferença de natureza (enquanto umas e outras conformam juridicamente o político), se produza uma ruptura histórica. Não admira que apenas nesta altura se comece a dilucidar, no plano científico, o conceito da Constituição.

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Mais do que o objecto das normas constitucionais são a sua extensão e a sua intenção que agora se realçam. Se a Constituição em sentido material abrange aquilo que sempre tinha cabido na Constituição em sentido institucional, vai muito para além disso: é o conjunto de regras que prescrevem a estrutura do Estado e a da sociedade perante o Estado, cingindo o poder político a normas tão precisas e tão minuciosas como aquelas que versam sobre quaisquer outras instituições ou entidades; e o que avulta é a adequação de meios com vista a esse fim, meios esses que, por seu turno, vêm a ser eles próprios fins em relação a outros meios que a ordem jurídica tem de prever.

II - O constitucionalismo - que não pode ser compreendido senão integrado com as grandes correntes filosóficas, ideológicas e sociais dos séculos XVIII e XIX - traduz exactamente certa ideia de Direito, a ideia de Direito liberal. A Constituição em sentido material não desponta como pura regulamentação jurídica do Estado; é a regulamentação do Estado conforme os princípios proclamados nos grandes textos revolucionários.

O Estado só é Estado constitucional, só é Estado racionalmente constituído, para os doutrinários e políticos do constitucionalismo liberal, desde que os indivíduos usufruam de liberdade, segurança e propriedade e desde que o poder esteja distribuído por diversos órgãos. Ou, relendo o art. 16º da Declaração de 1789: "Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição."Em vez de os indivíduos estarem à mercê do soberano, eles agora possuem direitos contra ele, imprescritíveis e invioláveis. Em vez de um órgão único, o Rei, passa a haver outros órgãos, tais como Assembleia ou Parlamento, Ministros e Tribunais independentes - para que, como preconiza Montesquieu, o poder limita o poder. Daí a necessidade duma Constituição desenvolvida e complexa: pois quando o poder é mero atributo do Rei e os indivíduos não são cidadãos, mas sim súbditos, não há grande necessidade de estabelecer em pormenor regras do poder; mas, quando o poder é decomposto em várias funções apelidadas de poderes do Estado, então é mister estabelecer certas regras para dizer quais são os órgãos a que competem essas funções, quais são as relações entre esses órgãos, qual o regime dos titulares dos órgãos, etc.

A ideia de Constituição é de uma garantia e, ainda mais, de uma direcção da garantia. Para o constitucionalismo, o fim está na protecção que se conquista em favor dos indivíduos, dos homens cidadãos, e a Constituição não passa de um meio para o atingir. O Estado constitucional é o que entrega à Constituição o prosseguir a salvaguarda da liberdade e dos direitos dos cidadãos, depositando as virtualidades de melhoramento na observância dos seus preceitos, por ela ser a primeira garantia desses direitos.19

Mas o constitucionalismo liberal tem ainda de buscar uma legitimidade que se contraponha à antiga legitimidade monárquica; e ela só pode ser democrática, ainda quando na prática e nas próprias leis constitucionais daí se não deduzam todos os corolários. A Constituição é então a auto-organização de um povo (de uma nação, na acepção revolucionária da palavra), o acto pelo qual um povo se obriga e obriga os seus representantes, o acto mais elevado de exercício da soberania (nacional ou popular, consoante a concepção que se perfilhe).

Ilustram esta concepção de um poder constituinte (democrático)20 que se afirma superior aos poderes constituídos duas das obras mais influentes do século XVIII, o Federalist e o Qu'est-ce que le tiers-état?Escreve Hamilton no primeiro: "Nenhum acto legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria como que sustentar que o procurador é maior que o mandante, que os representantes do povo são superiores a esse mesmo povo, que aqueles que agem em virtude de poderes concedidos podem fazer não só o que o que eles autorizam mas também aquilo que proíbem. O corpo legislativo não é o juiz constitucional das suas atribuições. Torna-se mais razoável admitir os tribunais como elementos colocados entre o povo e o corpo legislativo, a fim de manterem este dentro dos limites do seu poder. Portanto, a verificar-se uma inconciliável divergência entre a Constituição e uma lei deliberada pelo órgão legislativo, entre uma lei superior e

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uma lei inferior, tem de prevalecer a Constituição".21

Por seu lado, Sieyès referindo-se às leis constitucionais, diz que elas são fundamentais, não porque possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem e actuam com base nelas não as podem afectar. "A Constituição não é obra do poder constituído, mas sim do poder constituinte. Nenhum poder delegado pode alterar as condições da sua delegação.22

III - Levada às últimas consequências, esta concepção equivaleria a considerar a Constituição não apenas como limite mas também como fundamento do poder público, e não apenas como fundamento do poder mas também como fundamento da ordem jurídica. Porque é a Constituição que estabelece os poderes do Estado e que regula a formação das normas jurídicas estaduais, todos os actos e normas do Estado têm de estar em relação positiva com as normas constitucionais, para participarem também eles da sua legitimidade; têm de ser conformes com estas normas para serem válidos.

No entanto, a ideia de Constituição como fonte originária, em termos lógico-jurídicos, do ordenamento estadual, como fundamento de validade das demais normas jurídicas23 e como repositório de normas directamente invocáveis pelos cidadãos, não surgiu logo ou da mesma maneira em ambas as margens do Atlântico. Uma coisa é a verificação a posteriori que a doutrina possa fazer, outra coisa o processo histórico de formação ou de conscientização dos imperativos normativos e dos correspondentes instrumentos conceituais.

Nos Estados Unidos, até porque a Constituição de 1787 foi acto fundador da União, muito cedo se apercebeu que ela era também, por isso mesmo, a norma fundamentadora de todo o sistema jurídico. Daí o passo acabado de citar de Hamilton (assim como, de certo modo, o art. VI, nº 2, qualificando-a de "Direito supremo do País"); e daí o corolário retirado, a partir de 1803, pelo Supremo Tribunal de uma faculdade de apreciação da constitucionalidade das leis.

Já na Europa (onde as vicissitudes políticas e constitucionais, viriam a ser muito menos lineares e mais complexas que nos Estados Unidos) o caminho para o reconhecimento de um verdadeiro e pleno primado da Constituição foi mais longo, por duas razões principais: 1º) porque, tendo em conta o absolutismo precedente, toda a preocupação se reportava à reestruturação do poder político (em especial, do poder do Rei); 2º) e porque não se quis ou não se pôde instituir senão no século XX formas de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade.24

175. A Constituição (em sentido material) no século XXI - O conceito material de Constituição vai acusar no século XX as repercussões dos acontecimentos que o balizam, vai ser assumido ou utilizado por diferentes regimes e sistemas políticos e abrir-se, portanto, a uma pluralidade de conteúdos.

A Constituição em sentido material, ligada na sua origem ao jusracionalismo, ao contratualismo e ao individualismo liberal, desprende-se deles e acolhe outras inspirações filosóficas e ideológicas, sob pena de se reduzir muito significativamente o seu âmbito de aplicação. Desprende-se deles, relativiza-se e fica sendo um conceito neutro (o que não consente, porém, a indiferença valorativa). É o estatuto do Estado, seja este qual for, seja qual for o tipo constitucional de Estado.

Assim se compreende que, para além do objecto das normas, se preste, doravante, uma maior atenção à ideia de Direito ou de instituição, aos projectos distintivos dos diversos regimes políticos, aos princípios fundamentais com os quais têm de ser congruentes as disposições constitucionais avulsas.25 Assim se compreende o alcance do conceito (médio) de Constituição material indicado.

Nem por isso, contudo, se volta ao período de mera Constituição institucional, porquanto persiste o desígnio de uma estruturação racionalizada e exaustiva dos poderes do Estado, dos seus órgãos e dos seus processos de agir, bem como da organização social politicamente relevante. Nenhuma semelhança se justifica entre as Constituições não liberais do século XX e as Leis Fundamentais

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pré-liberais.

II - Sendo o Estado comunidade e poder, a Constituição material nunca é apenas a Constituição política, confinada à organização política. É também Constituição social, estatuto da comunidade perante o poder ou da sociedade politicamente conformada.26 Estatuto jurídico do Estado significa sempre estatuto do poder político e estatuto da sociedade - quer dizer, dos indivíduos e dos grupos que a compõem - posta em dialéctica com o poder e por ele unificada27 E, sendo Constituição do Estado (em si) e Constituição do Direito do Estado, necessariamente abarca tanto o poder quanto a sociedade sujeita a esse Direito.

Mesmo as Constituições liberais - mais distantes prima facie desse aspecto - não deixavam de ser sociais: eram-no ao cuidarem das liberdades e da propriedade. E as Constituições do século XX (todas ou quase todas) estendem o seu domínio a novas regiões, garantindo não só direitos do homem, do cidadão, do trabalhador, como princípios objectivos da vida social, permitindo ou impondo intervenções económicas, modelando ou remodelando instituições públicas e privadas. As nossas duas Leis Básicas de 1933 e de 1976, para lá de tudo quanto as distingue, possuem isso de comum.

Em suma, onde está o fenómeno político, aí está o fenómeno constitucional. Logo, se o político (por causas que não cabe agora inventariar) se alarga, o fenómeno constitucional alarga-se forçosamente.28-29

III - A dilatação do espaço da Constituição material e o número cada vez maior das têtes de chapitre de ramos de Direito que engloba têm conduzido a uma segmentação. Não por acaso a literatura jurídica refere-se a Constituição económica e a Constituição patrimonial privada, a Constituição laboral ou do trabalho e a Constituição da segurança social, a Constituição cultural e a Constituição administrativa, a Constituição tributária, a Constituição eleitoral ou a Constituição parlamentar.

Estas e outras diferenciações ou autonomizações mostram-se úteis, na tríplice medida em que propiciam uma mais nítida consciência do escopo da Constituição, em que permitem um aprofundamento da análise das diversas normas constitucionais e em que servem de apoio para a imprescindível ponte entre essas normas e as normas dos correspondentes ramos de Direito em especial. Não devem acarretar a pulverização, a perda da unidade sistemática da Constituição ou o retorno a uma exegese sem futuro.30

Não há uma Constituição dos direitos fundamentais independente da Constituição dos poderes31 e o Estado de Direito implica, precisamente, uma determinada conformação recíproca.32 Não existe uma Constituição económica independente da Constituição política ou uma Constituição penal contraposta à administrativa. E até quando os princípios respectivos tenham origens e formulações discrepantes (em Constituições compromissórias) não podem ser lidos e entendidos senão no contexto da mesma Constituição material.

176. Classificações materiais de ConstituiçõesI - A pluralidade de conteúdos possíveis da Constituição ou de Constituições materiais permite, e recomenda mesmo, algumas classificações.

Uma das mais representativas é a alvitrada por Karl Loewenstein33 e que toma por critério "a análise ontológica da concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder" e por ponto de apoio a tese de que uma Constituição é o que os detentores do poder dela fazem na prática - o que, por seu termo, depende, em larga medida, do meio social e político em que a Constituição deve ser aplicada.

Seguindo este critério, há Constituições normativas, nominais e semânticas. As primeiras são aquelas cujas normas dominam o processo político, aquelas em que o processo do poder se adapta às normas constitucionais e se lhes submete. As segundas são aquelas que não conseguem adaptar

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as suas normas à dinâmica do processo político, pelo que ficam sem realidade existencial. As terceiras são aquelas cuja realidade ontológica não é senão a formalização da situação do poder político existente em benefício exclusivo dos detentores de facto desse poder. Ao passo que as Constituições normativas limitam efectivamente o poder político e as Constituições nominais, embora o não limitem, ainda têm essa finalidade, as Constituições semânticas apenas servem para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores de facto na comunidade.

Poderá, não sem razão, observar-se que a taxonomia constitucional de Loewenstein é elaborada em face de uma Constituição ideal, e não da imbricação dialéctica Constituição-realidade constitucional, pelo que acaba por ser uma classificação axiológica ligada à concordância entre Constituição normativa e democracia constitucional ocidental.34 Mas, não sem menos razão, poderá igualmente observar-se que ela vem pôr em relevo as diferentes funções da Constituição por referência àquilo que foi o modelo inicial da Constituição material moderna - a Constituição limitativa e garantista liberal; assim como vem, por outro lado, ajudar a captar os diversos graus de efectividade de normas e institutos pertencentes a determinada Constituição.

Independentemente dos juízos de valor a formular sobre a realidade política e independentemente das funções que se reconheça exercerem, duma maneira ou doutra, todas as Constituições, é irrecusável que Constituições existem que se revelam fundamento (em concreto) da autoridade dos governantes e que outras se revelam, sobretudo, instrumento de que eles se munem para a sua acção; Constituições que consignam direitos e liberdades fundamentais perante ou contra o poder e Constituições que os funcionalizam aos objectivos do poder; Constituições que valem ou se impõem por si só e Constituições meramente simbólicas.35

III - De certa sorte, como contraponto à valorização ou sobrevalorização que, assim, se faz do factor jurídico-político têm sido propostas classificações inspiradas num critério diferente, o factor económico. Os grandes sistemas económicos exibir-se-iam em outros tantos tipos de Constituições.

Segundo uma dessas tipologias, haveria Constituições de Estados capitalistas, socialistas e do Terceiro-Mundo e as Constituições dos Estados capitalistas, subdividir-se-iam ainda em Constituições liberais, sociais-democratas (ou do Estado social) e, com contornos menos definidos, autoritário-fascistas e compromissórias.36

Não se põe em causa a importância da Constituição económica. Porque a economia é uma das dimensões da sociedade e porque o poder político não lhe pode ser estranho, não há Constituição que, explícita ou implicitamente, directa ou indirectamente, deixe de a considerar, seja para conservar, seja para transformar os seus condicionalismos ou a sua lógica própria. Não há Constituição em sentido material que não abranja uma Constituição económica (no âmbito que há pouco esboçámos).37

Não significa isto, porém, que possa alçar-se este critério a critério classificatório decisivo. O Direito pertence a uma esfera distinta da da economia, ainda que sofra o seu influxo; e não se exaure numa mera dualidade de sistemas económicos. Em segundo lugar, para lá do funcionamento efectivo dos sistemas económicos, há Constituições nas quais cabem ou podem caber soluções muito variadas - nomeadamente, as Constituições do Estado social de Direito podem englobar diferentes visões ou concretizações de capitalismo e de socialismo ou de sistemas mistos.

IV - Dicotomia muito corrente e que visa abarcar um ciclo longo ou diversos ciclos de conteúdos constitucionais é a contraposição Constituições estatutárias-Constituições programáticas.

Constituições estatutárias ou orgânicas dizem-se as que se ocupam do estatuto do poder, dos seus órgãos e da participação política dos cidadãos; as que se centram na forma e no sistema de governo, sem (na aparência, pelo menos) curarem do sistema económico e social. Constituições programáticas, directivas ou doutrinais são as que, além da organização política, estabelecem programas, directrizes e metas para a actividade do Estado no domínio económico, social e cultural.38

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A distinção tem de ser apreendida mitigadamente, visto que: 1º) ela não coincide com a distinção entre Constituição política e Constituição social;39 2º) se o factor ideológico transparece mais fortemente nas Constituições programáticas do que nas Constituições estatutárias, não deixa de estar nestas presente - a escolha entre uma ou outra forma de organização e a previsão ou não de certo direito ou de certa intervenção do Estado na economia indiciam, de per si, uma ideologia;40 3º) tão pouco existem Constituições neutras - o que existem são Constituições que, por consagrarem esta ou aquela forma de organização, são ou não pluralistas, enquanto admitem ou não a coexistência dinâmica de todos os grupos e ideologias, com a virtualidade de as modificarem pacificamente.

Na realidade, qualquer Constituição encerra elementos orgânicos e programáticos. Tudo está no grau em que aparecem, no modo como se conjugam, na efectividade que obtêm, no sentido que a jurisprudência e a doutrina lhes conferem. E não sofre dúvida de que as Constituições liberais são preferentemente estatutárias ou orgânicas, as Constituições marxistas-leninistas (assim como muitas das Constituições de regimes autoritários doutra índole e de países asiáticos e africanos) preferentemente programáticas, directivas ou doutrinais e as Constituições do Estado social de Direito Constituições que procuram um equilíbrio sistemático entre uns e outros elementos.

Em plano diverso desta contraposição situa-se a análise estrutural das normas constitucionais, discernindo normas de fundo, de competência e de processo, normas preceptivas e programáticas ou normas exequíveis e não exequíveis por si mesmas. Numa Constituição dita programática abundam as normas programáticas, mas não faltam as normas atinentes à vida económica e social, muito marcadas por considerações doutrinárias ou ideológicas, que possuem natureza de normas preceptivas (v. g., o art. 83º da Constituição portuguesa de 1976 até à revisão de 1989).

V - Classificação ainda relativa ao conteúdo é a das Constituições em simples e complexas ou compromissórias. Aqui não se tem em vista tanto a natureza das normas quanto a unidade ou pluralidade dos princípios materiais ou dos princípios fundamentais enformadores da Constituição material. E Constituições compromissórias vão desde as da monarquia constitucional do século XIX a Weimar, desde a Constituição portuguesa de 1933 à maior parte das Leis Fundamentais do 2º após-guerra.41

Em inteiro rigor, todavia, nenhuma Constituição é absolutamente simples; todas contém dois ou mais princípios que a priori poderão ou não ser compagináveis. O carácter simples ou compromissório de uma Constituição depende dos circunstancialismos da sua formação, da sua aplicação e das suas vicissitudes; depende da ausência ou da presença - não em abstracto para os juristas, mas em concreto para os sujeitos do contraditório político e para os cidadãos em geral - de um conflito de fundamentos de legitimidade ou de projectos de organização colectiva que as normas constitucionais tenham de ultrapassar, através de uma plataforma de entendimento; depende do modo como é encarada a integração política.

De igual sorte, nenhuma Constituição compromissória consiste num aglomerado de princípios sem virtualidade de harmonização prática a cargo da hermenêutica jurídica e sem base dinâmica de funcionamento das instituições; em qualquer Constituição os princípios dispõem-se ou articulam-se segundo certa orientação e, pelo menos, em nível de legitimidade há-de haver sempre (aquando da formação ou em momento ulterior de modificação, expressa ou tácita) um princípio que prevaleça sobre outros. As Constituições compromissórias permitem a coexixtência de ideias e correntes antagónicas, mas só podem subsistir se os protagonistas institucionais aceitam um determinado fio condutor do processo político (seja o princípio monárquico nas Constituições de monarquia constitucional alemã, seja o princípio democrático nas do Estado social de Direito).42

VI - Finalmente, merece alguma atenção o quadro classificativo global formulado por um autor olhando às relações entre Constituição e regime político.43

Regime Político Função de Constituição Tipo de Constituição

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Autoritário Legitimadora

Organizativa

Fictícia

Totalitário Legitimadora

Ideológica

Organizativa

Programática

Aproximativo Legitimadora

Organizativa

Jurídica

Udodemocrática

Democrático tradicional Legitimadora

Organizativa

Política

Jurídica

Aplicada

De democracia social Legitimadora

Organizativa

Jurídica

Política

Transformadora

Activa

177. A Constituição em sentido formalI - Se o constitucionalismo europeu, nos seus primórdios, não teve uma clara percepção de todas as dimensões e exigências da supremacia da Constituição, não deixou de lhe vincular uma forma e uma consistência tais que fosse possível e necessário distinguir as suas normas das demais normas do ordenamento jurídico.

Uma Constituição apenas institucionalizadora do Estado não careceria dessa força jurídica irredutível. Já não uma Constituição produto de uma vontade normativa particularizada em certo momento histórico (mormente quando criada por via revolucionária). Sem uma forma adequada, a Constituição em sentido material não poderia desempenhar, desde logo, a sua função organizatória da comunidade política.

Onde se encontra Constituição em sentido material moderno emerge, pois, Constituição em sentido formal. A única44 excepção é a Grã-Bretanha, mas a ausência aí de Constituição formal explica-se

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(como bem se sabe) pelas características peculiares do seu desenvolvimento constitucional e do seu sistema jurídico; é uma excepção que confirma a regra.

II - Três notas assinalam a Constituição em sentido formal:

a) Intencionalidade na formação;

b) Consideração sistemática a se;

c) Força jurídica própria.

As normas formalmente constitucionais são decretadas por um poder que se define com vista a esse fim; o que vale dizer que, na origem, são normas de fonte legal, não consuetudinárias ou jurisprudencial (mesmo se, depois, acompanhadas de normas destas origens) e são normas que exigem um processo específico de formação (conquanto não necessariamente um processo especial de modificação).

Há um Direito constitucional - formalmente constitucional - a par de um Direito não constitucional; uma legislação constitucional a par (e acima) de uma legislação ordinária. As normas formalmente constitucionais inserem-se num conjunto sistemático com uma unidade e uma coerência próprias, dentro da unidade e da coerência gerais do ordenamento jurídico positivo do Estado.

As normas formalmente constitucionais gozam, por isso mesmo, de um estatuto ou de um regime imposto por tais características e pela função material, genética ou conformadora que servem. Condicionado embora pelo legislador constituinte, tal regime exibe-se - consoante nos capítulos respectivos se verá - na sua aplicação e na sua garantia.

III - Na grande maioria dos casos, a Constituição formal resulta de um só acto constituinte, de um só exercício do poder constituinte. Seja unilateral ou plurilateral, todas as normas formalmente constitucionais decorrem daí.

Em algumas ocasiões, no entanto, não acontece assim. Em vez de uma Constituição formal unitária, emanam-se várias leis constitucionais, quer num lapso de tempo relativamente curto e homogéneo, quer num período prolongado ou breve, embora heterogéneo. A Constituição formal decompõe-se então em complexos normativos dispersos por mais de um texto ou documento, todos com a mesma ligação ao poder constituinte e a mesma força jurídica.

Leis constitucionais simultâneas ou decretadas num tempo curto homogéneo foram as três leis constitucionais francesas de 1875 (Constituição da 3ª república). Leis constitucionais sucessivas foram as sete Leis Fundamentais espanholas do regime autoritário feitas entre 1938 e 1967, os Actos Institucionais brasileiros subsequentes a 1964, ou as trinta e cinco leis constitucionais revolucionárias portuguesas de 1974 a 1976; e são as duas leis constitucionais do Canadá, de 1867 e 1982.

IV - Outros eventos, igualmente explicáveis por circunstancialismos históricos localizados, afiguram-se não menos interessantes. São as que se reconduzem às hipóteses de Constituição formal nuclear e de normas constitucionais complementares (ou de legislação constitucional extravagante) há pouco sugeridas.

Trata-se, sobretudo, daqueles casos em que uma Constituição, ao ser aprovada, mantém (ou repõe) em vigor normas constitucionais anteriores: assim, na Áustria, a Constituição de 1920 e a lei constitucional de 1867 (relativa a direitos individuais); em Portugal, a Constituição de 1933 e o Acto Colonial de 1930 (até 1951), a Lei nº 3/74, de 14 de maio, e a Constituição de 1933,45 e a Constituição de 1976 e certas leis constitucionais revolucionárias; na Alemanha, a Constituição de Bona e os arts. 136º a 139º e 141º da Constituição de Weimar; em França, a Constituição de 1958 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o preâmbulo da Constituição de 1946; no Brasil, os Actos Institucionais de 1964 a 1967 e a Constituição de 1946; na Suécia, a Constituição de 1974 e três leis fundamentais.

Nada impede, por outra parte, que a Constituição confira força de normas constitucionais a normas

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provindas doutros ordenamentos - do ordenamento jurídico internacional ou, porventura, em Estado federal ou em união real, do ordenamento jurídico central. Exemplos de atribuição de valor constitucional a normas de Direito Internacional encontram-se hoje, na Áustria em relação à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e em Portugal relativamente à Declaração Universal dos Direitos do Homem.

V - Esse nexo entre a Constituição e certas normas que, por virtude dela, adquirem categoria de normas formalmente constitucionais designa-se uma relação de recepção. Figura mais estudada a respeito das relações entre sistemas jurídicos estaduais distintos46 do que a respeito das relações entre normas do mesmo sistema jurídico estadual,47 dificilmente se vislumbra como sem ela possa encarar-se a conjugação do poder constituinte posto em acto através da Constituição com a subsistência de normas constitucionais anteriores ou com outorga de valor constitucional a normas de Direito internacional ou a normas de certos ordenamentos internos.

Por um lado, o núcleo operativo da Constituição formal reside na Constituição originária e primariamente criada pelo poder constituinte formal e material. Por outro lado, este poder é livre de, em face das condições em que se mova, da estrutura do sistema e da sua estratégia de normação, considerar como tendo valor constitucional normas já existentes ou normas que ele não queira ou não possa editar (ou editar de novo) e que com as primeiras vão ficar num nexo de complementaridade ou de acessoriedade.

Mas a recepção48 tanto pode ser uma recepção formal quanto uma recepção material, tanto pode ser a recepção de um acto normativo quanto a recepção apenas de uma norma.

A recepção formal pressupõe a conservação da identidade dos princípios ou preceitos (embora por força, insista-se, de uma norma constitucional que assim prescreve); pressupõe que os princípios ou preceitos valham com a qualidade que tinham; acarreta, por conseguinte, a sua interpretação, a sua integração e a sua aplicação nos exactos parâmetros da sua situação de origem (e, quando se trate de ordenamentos diferentes, a sua eventual modificação, a sua suspensão ou a sua revogação, se aí forem modificados, suspensos ou revogados).

Ao invés, a recepção material resume-se a expediente de preenchimento de zonas de regulamentação jurídica. As normas recebidas são incorporadas como normas do sistema que as recebe ou nele enxertadas com o mesmo espírito que a este preside; e a sua vigência, a sua interpretação e a sua integração ficam em tudo dependentes de outras normas do novo sistema ou subsistema a que ficam pertencendo.49

VI - Não se circunscrevem as normas constitucionais às decretadas pelo poder constituinte ou por ele recebidas. São também normas formalmente constitucionais, como é óbvio, as que venham a ser estabelecidas por revisão constitucional ou por outra vicissitude da Constituição.

Ora, têm sido experimentadas duas técnicas de articulação das normas constitucionais supervenientes com as normas constitucionais iniciais (ou precedentes, se já tiver havido uma revisão anterior). Consiste uma na introdução das novas normas nos lugares próprios do texto constitucional, mediante as substituições, as supressões e os aditamentos necessários: é a técnica mais frequentemente adoptada e a prevista no art. 287º, nº 1, da Constituição portuguesa. Consiste outra na publicação de uma lei constitucional que perdura à margem da Constituição,50 e que, de acordo com o princípio lex posterior…, vem modificar ou revogar alguns dos seus preceitos: é a técnica dos Aditamentos à Constituição dos Estados Unidos e foi a dos Actos Adicionais à Constituição brasileira de 1824 e à Carta Constitucional portuguesa de 1826.

Seja como for, saídas de revisão constitucional ou de qualquer outra vicissitude, as novas normas constitucionais inserem-se de pleno na Constituição formal nuclear. Mesmo que se siga o segundo método, não se confunde ele nunca com os aludidos fenómenos de recepção formal ou material.

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178. A Constituição em sentido instrumentalI - A distinção entre Constituição formal e Constituição instrumental é paralela à distinção entre fontes de Direito como processos de criação e fontes de Direito como modos de revelação de normas jurídicas.

As normas formalmente constitucionais51 depositam-se ou documentam-se em textos constitucionais (tenham ou não o nome de Constituições, leis constitucionais ou designações equivalentes). Só as que sejam criadas por costume - admitindo-se a relevância de costume constitucional - ficarão de fora.

A inscrição de uma norma na Constituição instrumental é critério seguro de que pertence à Constituição formal. Isso somente não se verifica na ocorrência - algo anómala - de autodesconstitucionalização, quando a própria Constituição dispõe que certa norma ou a norma sobre certa matéria não adquire ou já não tem valor de norma constitucional: terá sido o caso do art. 178 da Constituição brasileira de 1824 e do art. 144º da Carta Constitucional portuguesa.52

Rezava esse art. 178: "É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes políticos e aos Direitos políticos e individuais dos cidadãos. Tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas ordinárias."

O legislador constituinte, assentando numa determinada noção de matéria constitucional e parafraseando, de certa maneira, o art. 16 da Declaração de 1789, daí extraiu a consequência de não atribuir senão às normas atinentes à matéria tida por constitucional a garantia correspondente à forma constitucional. As demais normas, embora permanecendo na constituição instrumental eram, pois, relegadas para fora da Constituição ordinária.53

Por seu turno, num sistema em que se imponha atender a normas constitucionais nucleares ou primárias e a normas constitucionais recebidas ou subprimárias, vale a pena falar em Constituição instrumental na acepção restrita atrás enunciada, porquanto, através desta, melhor se captam, à vista desarmada, as relações entre umas e outras normas e melhor se apreendem as condições concretas em que a Constituição formal do Estado tenha surgido e esteja a vigorar.54

II - As duas técnicas de inserção de novas normas constitucionais em Constituição formal reconduzem-se, no fundo, a duas técnicas de inserção na Constituição instrumental.

A primeira técnica talvez seja mais económica. E esse é um dos motivos, a juntar ao das vantagens de mais nítida determinação das normas constitucionais vigentes em cada momento, por que ela domina na prática. Ao invés, a segunda leva a multiplicar os documentos constitucionais: cada lei de revisão fica num texto constitucional separado.

Adoptando-se o segundo processo, avulta, uma vez mais, a noção restrita de Constituição instrumental. Ela será agora a Constituição nominal, acompanhada por uma série maior ou menor de leis constitucionais posteriores. Em contrapartida, dar-se-á aí uma dissociação entre Constituição formal e Constituição instrumental, visto que algumas das normas nesta ainda depositadas já não estarão em vigor (ou já não estarão, tal como aí se apresentam) por novas normas constitucionais as terem vindo alterar.

III - Em breve, a propósito das chamadas heteroconstituições, dar-se-á conta de um curioso fenómeno de dissociação entre Constituição formal e Constituição instrumental: quando um Estado outorga uma Constituição a uma comunidade política, a qual depois adquire soberania, necessariamente, neste momento, mudando o princípio do poder constituinte, muda a Constituição formal, mas o texto constitucional perdura.

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179. Normas material e formalmente constitucionaisI - Definidos os conceitos de Constituição em sentido material e em sentido formal, cabe indagar como intercedem no plano das normas jurídicas presentes em qualquer sistema.55

A priori seria de supor ou a referência desses sentidos a uma só realidade normativa ou a sua independência recíproca (com sobreposição numas zonas e contraposição noutras) ou ainda a necessidade de, pelo menos, se verificar uma correlação entre eles. Parece, porém, mais indicado sustentar (até pelo exame das diferentes ordens jurídicas) que preferível é o terceiro entendimento.

Revertendo ao conceito de Direito constitucional e completando o que acaba de ser mostrado quanto ao enlace entre Constituição formal e Constituição instrumental, há que reiterar que as normas constantes da Constituição formal são (pelo menos, em princípio) normas materialmente constitucionais; mas que, para lá delas, muitas outras pode haver também materialmente constitucionais (de 2º grau), embora dispersas por diplomas de Direito ordinário.

II - A Constituição formal é, desde logo, Constituição material - porque, insista-se, ela serve (lógica e historicamente) de manifestação da Constituição material que, em concreto, lhe subjaz; porque a forma não pode valer por si, vale enquanto se reporta a certa substância.

Mesmo concedendo que esta ou aquela norma constante da Constituição formal (ou da instrumental), vista de per si, escapa a qualquer atinência significativa com a Constituição material, ela tem sempre de ser situada no contexto global da Constituição. E isso implica, por um lado, que a sua leitura tem de ser conjugada com a das outras normas, estas, à partida, materialmente constitucionais; e, por outro lado, que, por se inserir em tal contexto, qualquer preceito conta para a interpretação sistemática que recaia sobre os demais preceitos.56

Mas, sobretudo, nenhuma hesitação se justifica a respeito das regras de Direito civil, de Direito penal, de Direito administrativo ou de Direito tributário que se deparam, com mais ou menos abundância, na Constituição formal. Elas são, ao mesmo tempo, normas desses vários ramos e normas materialmente constitucionais, porque, no seu conjunto, emprestam expressão directa e imediata à ideia de Direito, aos valores, às escolhas políticas fundamentais da Constituição; elas são os princípios constitucionais do Direito civil, do Direito penal, do Direito administrativo ou do Direito fiscal.

III - Seja qual for o critério ou princípio teórico que se queira adoptar para definir o âmbito da Constituição material - e muitos têm sido propostos, desde a disciplina dos elementos do Estado à disciplina da actividade fundamental do Estado - é indiscutível que as normas materialmente constitucionais não cabem todas na Constituição formal. Não cabem hoje, como não cabiam já nas Constituições liberais.

Basta pensar no próprio domínio mais generalizadamente tido por pertencente à Constituição material: do estatuto dos órgãos e dos titulares dos órgãos governativos à regulamentação das eleições políticas, as respectivas normas não se esgotam (nem podem esgotar-se) na Constituição formal (ou na Constituição instrumental). E vários capítulos de Direito constitucional - o Direito parlamentar, o Direito eleitoral, o Direito constitucional da economia - incluem cada vez mais numerosas normas de Direito ordinário e até se entrelaçam, por vezes, com normas de Direito internacional.

Não há, nunca terá havido, nem, porventura, poderá vir a haver uma completa codificação das normas constitucionais, que seria o equivalente à coincidência da Constituição material, da Constituição formal e da Constituição instrumental. Nem mesmo quando a Constituição formal se alonga muito e muito no texto constitucional isso chega a verificar-se, porque a extensão da Constituição formal não é senão consequência e, simultaneamente, causa de nova extensão da Constituição material: o que se passa connosco e com outras Constituições (insista-se) revela-o bem.

Não há codificação em Direito constitucional comparável à do Direito civil. São os próprios

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factores políticos (prevalecentes sobre os factores estritamente técnico-jurídicos) que a impedem e que levam a que em cada Constituição formal apenas ingresse uma parte das normas em que consiste o estatuto jurídico do poder e da comunidade política.57

IV - Rasgados, assim, os horizontes das normas materialmente constitucionais, não pode, contudo, deixar de se distinguir entre as que se encerram na Constituição final e aqueloutras que pertencem ao Direito ordinário, produto de leis e outras fontes infraconstitucionais. Só as primeiras correspondem a poder constituinte, a uma opção ou valoração fundamental; as segundas definem-se por referência a elas e modeladas por elas (apesar da latitude da discricionariedade legislativa), sem as poderem contradizer.

Há dois graus de normas substancialmente constitucionais, portanto. Numa perspectiva sistemática e estática, elas todas formam uma unidade; numa perspectiva genética e de validação, separam-se pela interposição da Constituição formal.

O poder constituinte esgota-se na feitura da Constituição formal, não se exerce obviamente através da edição das normas ordinárias destinadas a dar-lhe desenvolvimento, concretização e execução (sob pena de se confundir com o poder normativo do Estado). E por aqui, mais uma vez, se compreende como a Constituição formal possui um sentido material.

§ 2º Concepções Gerais Sobre A Constituição

180. A teorização da ConstituiçãoImporta agora fazer referência - não tão alargada quanto seria possível ou necessário em obra doutra índole - à problemática da teorização da Constituição, ou seja, ao esforço de elaboração e aprofundamento do seu conceito e de equacionação das questões fundamentais da dogmática constitucional.

Para tanto, situar-se-ão as posições que sobre ela têm sido assumidas no âmbito das grandes concepções jurídicas ou jurídico-políticas contemporâneas do constitucionalismo. A seguir, mencionar-se-ão em particular algumas das tentativas de construção mais interessantes - as de Lassalle, Kelsen, Hauriou, Schmitt, Heller, Smend, Mortati, Burdeau, Hesse e Modugno -58 e as propostas por autores portugueses recentes. Por último, esboçar-se-á, em traços muito gerais, a nossa própria posição.

181. As grandes correntes doutrinaisNão surpreende que a Constituição surja com natureza, significação, características e funções diversas consoante as diferentes correntes doutrinais que atravessam os séculos XIX e XX:

a) Concepções jusnaturalistas (manifestadas segundo as premissas do jusracionalismo nas Constituições liberais e influenciadas depois por outras tendências) - a Constituição como expressão e reconhecimento, no plano de cada sistema jurídico, de princípios e regras de Direito natural (ou de Direito racional), sobretudo dos que exigem o respeito dos direitos fundamentais das pessoas; a Constituição como meio de subordinação do Estado a um Direito superior e, de tal sorte que, juridicamente, o poder político não existe senão em virtude da Constituição;

b) Concepções positivistas (prevalecentes de meados do século XIX ao fim da Primeira Guerra Mundial, tendo como representante, entre outros, Laband, Jellinek ou Carré de Malberg e em que se inclui ainda Kelsen) - a Constituição como lei, definida pela forma, independentemente de qualquer conteúdo axiológico, e havendo entre a lei constitucional e a lei ordinária apenas uma relação lógica de supra-ordenação; a Constituição como conjunto de normas decretadas pelo poder do Estado e

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definidoras do seu estatuto;

c) Concepções historicistas (Burke, de Maistre, Gierke) - a Constituição como expressão da estrutura histórica de cada povo e referente de legitimidade da sua organização política; a Constituição como lei que deve reger cada povo, tendo em conta as suas qualidades e tradições, a sua religião, a sua geografia, as suas relações políticas e económicas;

d) Concepções sociológicas (Lassalle, Sismondi, até certo ponto Lorenz von Stein) - a Constituição como conjunto ou consequência dos mutáveis factores sociais que condicionam o exercício do poder; a Constituição como lei que rege efectivamente o poder político em certo país, por virtude das condições sociais e políticas nele dominantes;

e) Concepções marxistas (estudadas supra, a propósito do sistema constitucional soviético) - a Constituição como superestrutura jurídica da organização económica que prevalece em qualquer país, um dos instrumentos da ideologia da classe dominante (e a Constituição socialista, em especial na linha leninista e estalinista, como Constituição-balança e Constituição-programa);

f) Concepções institucionalistas (Hauriou, Renard, Burdeau, Santi Romano, Mortati) - a Constituição como expressão da organização social, seja como expressão das ideias duradouras na comunidade política, seja como ordenamento resultante das instituições, das forças e dos fins políticos;

g) Concepção decisionista (Schmitt) - a Constituição como decisão política fundamental, válida só por força do acto do poder constituinte, e sendo a ordem jurídica essencialmente um sistema de actos preceptivos de vontade, um sistema de decisões;

h) Concepções decorrentes da filosofia dos valores (Maunz, Bachof) - a Constituição como expressão da ordem de valores, ordem que lhe é, portanto, anterior, por ela não criada e que vincula directamente todos os poderes do Estado;

i) Concepções estruturalistas (Spagna Musso, José Afonso da Silva) - a Constituição como expressão das estruturas sociais historicamente situadas ou ela própria como estrutura global do equilíbrio das relações políticas e da sua transformação.59

182. Algumas teorias da ConstituiçãoI - A primeira das teorias da Constituição em particular que interessa referir e resumir, por ser uma rejeição das doutrinas liberais ainda no século XIX, é a de Ferdinand Lassale.

Lassale afirma a necessidade de distinguir entre Constituições reais e Constituições escritas. A verdadeira Constituição de um país reside sempre e unicamente nos factores reais e efectivos de poder que dominem nessa sociedade; a Constituição escrita, quando não corresponda a tais factores, está condenada a ser por eles afastada; e, nessas condições, ou é reformada para ser posta em sintonia com os factores materiais de poder da sociedade organizada ou esta, com o seu poder inorgânico, levanta-se para demonstrar que é mais forte, deslocando os pilares em que repousa a Constituição. Os problemas constitucionais não são primariamente problemas de direito, mas de poder.60

II - Nos antípodas da construção de Lassale, situa-se a de Kelsen.

"Kelsen configura o Direito como ordem normativa, cuja unidade tem de assentar numa norma fundamental - pois o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de outra norma, de uma norma superior. Há uma estrutura hierárquica de diferentes graus do processo de criação do Direito, que desemboca numa norma fundamental."

Tal norma superior é a Constituição - mas esta tem de ser entendida em dois sentidos, em sentido

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jurídico-positivo e em sentido lógico-jurídico.

Em sentido positivo, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado. E a norma ou o conjunto de normas jurídicas através das quais se regula a produção de normas jurídicas gerais; e esta produção de normas jurídicas gerais reguladas pela Constituição tem, dentro da ordem jurídica estadual, o carácter da legislação.

Em sentido lógico-jurídico, a Constituição consiste na norma fundamental hipotética, pois, como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria ainda de se fundar numa norma ainda mais elevada.61

III - Para Maurice Hauriou, o regime constitucional - que é a ordem essencial da sociedade estadual no seu livre desenvolvimento - determina-se pela acção de quatro factores: o poder, a ordem, o Estado e a liberdade. O poder é, simultaneamente, o fundador e o organizador da ordem. O Estado é uma forma aperfeiçoada de ordem. A liberdade é tanto a causa como o fim dessas acções e da criação dessas formas.

Uma organização social torna-se duradoura, quando está instituída - ou seja, quando, por um lado, à ideia directriz que nela existe desde o momento da sua fundação pode subordinar-se o poder de governo, mercê do equilíbrio de órgãos e de poderes, e quando, por outro lado, esse sistema de ideias e de equilíbrio de poderes foi consagrado, na sua forma, pelo consentimento dos membros da instituição e do meio social.

As formas jurídicas empregadas na organização do Estado em vista da liberdade são, por ordem histórica: 1ª) as instituições costumeiras; 2ª) o reino da lei com valor constitucional, particularmente na Inglaterra; 3ª) as Constituições nacionais, que aparecem em finais do século XVIII, a par do princípio da soberania nacional. E uma Constituição nacional é o estatuto do Estado considerado como corporação e dos seus membros, estabelecido em nome da nação soberana por um poder constituinte e por uma operação legislativa de fundação segundo um processo especial.

A Constituição compreende a Constituição política e a Constituição social. A primeira versa sobre a forma geral do Estado e sobre os poderes públicos. A segunda, sob muitos aspectos mais importante que a Constituição política, tem por objecto primacial os direitos individuais, que também valem como instituições jurídicas objectivas.62

IV - A concepção decisionista no domínio constitucional tem em Carl Schmitt o seu maior expoente.

Schmitt distingue quatro conceitos básicos de Constituição: um conceito absoluto (a Constituição como um todo unitário) e um conceito relativo (a Constituição como uma pluralidade de leis particulares), um conceito positivo (a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim chamada em sentido distintivo e por causa de certo conteúdo).

Uma Constituição é válida enquanto emana de um poder constituinte e se estabelece por sua vontade (significando "vontade" uma magnitude do Ser como origem de um Dever Ser). Assim, é a vontade do Povo alemão que funda a sua unidade política e jurídica.

A Constituição (em sentido positivo) surge mediante um acto do poder constituinte. Este acto não contém, como tal, quaisquer normas, mas sim, e precisamente por ser um único momento de decisão, a totalidade da unidade política considerada na sua particular forma de existência; e ele constitui a forma e o modo da unidade política, cuja existência é anterior. A Constituição é uma decisão consciente que a unidade política, através do titular do poder constituinte, adopta por si própria e se dá a si própria.A essência da Constituição não reside, pois, numa lei ou numa norma; reside na decisão política do titular do poder constituinte (isto é, do povo em democracia e do monarca em monarquia).63

V - O específico da teoria de Heller consiste, em primeiro lugar, na definição da Constituição como

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totalidade, baseada numa relação dialéctica entre normalidade e normatividade e, em segundo lugar, na procura da conexão entre a Constituição enquanto ser e a Constituição enquanto Constituição jurídica normativa (superando, assim, as "unilateralidades" de Kelsen e Schmitt).

A Constituição do Estado não é processo, mas produto; não é actividade, mas forma de actividade; é uma forma aberta, através da qual passa a vida, vida em forma e forma nascida da vida.

A Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas, graças à probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera normalidade de facto conforme à Constituição do comportamento dos membros e, além disso, numa normalidade normada dos mesmos e no mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada e a normada e, dentro desta, a normada extrajuridicamente e a que o é juridicamente. A Constituição normada pelo Direito conscientemente estabelecido e assegurado é a Constituição organizada. E, assim como não podem considerar-se completamente separados o dinâmico e o estático, tão pouco podem ser separados a normalidade e a normatividade, o ser e o dever ser no conceito de Constituição.

O Estado é uma forma organizada de vida, cuja Constituição se caracteriza não só pelo comportamento normado e juridicamente organizado dos seus membros mas ainda pelo comportamento não normado, embora normalizado, deles. A normalidade tem de ser sempre reforçada e completada pela normatividade; a par da regra empírica de previsão, aparecerá a norma valorativa de juízo; e a normatividade não só se eleva consideravelmente a probabilidade de uma actuação conforme à Constituição como é ela que, em muitos casos, a torna possível.

Só poderá criar-se uma continuidade constitucional e um status, se o criador da norma se achar também vinculado por certas decisões normativamente objectivas dos seus predecessores. Só mediante o elemento normativo se normaliza uma situação de dominação actual e plenamente imprevisível, convertendo-a numa situação de dominação contínua e previsível, isto é, numa Constituição que dure para além do momento presente. Somente em virtude de uma norma o príncipe ou o povo podem adquirir a qualidade de sujeitos do poder constituinte. Uma Constituição precisa, para ser Constituição (ou seja, algo mais que uma relação fáctica e instável de domínio), de uma justificação segundo princípios éticos de direito.64

VI - Para Rudolf Smend, para quem a substância da vida política consiste numa integração dialéctica de indivíduo e colectividade e o Estado num "plebiscito que se repete todos os dias", a Constituição aparece como a ordem jurídica do processo - pessoal, funcional e real - de integração.

A Constituição é a ordenação jurídica do Estado, da dinâmica em que se desenvolve a sua vida, ou seja, do seu processo de integração.

A natureza da Constituição é de uma realidade integradora permanente e contínua. Mas esta finalidade depende da acção conjunta de todos os impulsos e motivações políticas da comunidade. Aliás, é por ser o Estado uma ordem integradora, fruto da eficácia integradora dos seus valores materiais próprios, que o seu estatuto se distingue dos estatutos das outras associações.65

VII - Costantino Mortati parte, por um lado, da existência de uma relação juridicamente relevante entre a ordem concreta de uma sociedade e o sistema constitucional positivo nela instaurado e, por outro lado, da necessidade de a organização social, para servir de base à Constituição, surgir já politicamente ordenada segundo a distribuição das forças nela operante. O Estado não é a soma de relações espontaneamente determinadas entre os pertencentes a um grupo social, mas sim a consciente vontade de uma ordem.

A sociedade de que emerge a Constituição e a que se prende qualquer formação social em particular possui uma intrínseca normatividade, que consiste em se ordenar em torno de forças e de fins políticos; e esta normatividade, que não pode exprimir-se numa única norma fundamental (como na concepção formalística de Kelsen), apresenta-se sem formas preconstituídas. A Constituição material é então o núcleo essencial de fins e de forças que regem qualquer ordenamento positivo.

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As forças políticas dominantes ordenadas em volta de uma finalidade - isto é, de valores políticos tidos por fundamentais - formam elas próprias uma entidade jurídica, dão vida à Constituição material, que fundamenta e sustenta a Constituição formal e que provoca as suas mutações e, ao mesmo tempo, determina os limites dentro dos quais estas podem efectivar-se. A Constituição formal adquirirá tanto maior capacidade vinculativa quanto mais o seu conteúdo corresponder à realidade social e quanto mais esta se configurar estabilizada num sistema harmónico de relações sociais.66

VIII - Segundo Georges Burdeau, a Constituição, acto determinante da ideia de Direito e regra de organização do exercício das funções estaduais, é, no pleno sentido do termo, o estatuto do poder.

Em sentido institucional e jurídico a Constituição estabelece no Estado a autoridade de um poder de Direito, qualificando-o por referência a uma ideia de Direito, origem integral e exclusiva da sua autoridade; a partir dela, não apenas os governantes só poderão agir regularmente utilizando, nas condições por ela estabelecidas, o poder como também é este poder que, na sua substancia, nas suas possibilidades e nos seus limites, fica subordinado à ideia de Direito oficialmente consagrada na Constituição. A Constituição é a regra pela qual o soberano legitima o poder aderindo à ideia de Direito que ele representa e pela qual, consequentemente, determina as condições do seu exercício.

Consagração da autoridade do soberano. A Constituição é politicamente um resultado. Vontade criadora e soberana é juridicamente um ponto de partida: o fundamento da totalidade da ordem jurídica do Estado. O Estado é um poder ao serviço de uma ideia, a Constituição o seu fundamento jurídico.

A superioridade da Constituição decorre de ser ela que funda juridicamente a ideia de Direito dominante, enunciando e sancionando o finalismo da instituição estadual, e que organiza competências. A Constituição não suprime as pretensões das concepções rivais, mas, pelo menos, constrange-as a utilizar as vias e os meios que a organização política constitucional oferece aos temas da oposição. Por outro lado, a institucionalização do poder realiza-se através da definição de uma situação jurídica dos governantes, cujo conteúdo é determinado pela Constituição.67

IX - Para Konrad Hesse, a Constituição é a ordem jurídica fundamental e aberta da comunidade. A sua função consiste em prosseguir a unidade do Estado e da ordem jurídica (não uma unidade preexistente, mas de actuação); a sua qualidade em constituir, estabilizar, racionalizar e limitar o poder e, assim, em assegurar a liberdade individual.

A Constituição tem de estar aberta ao tempo, o que não significa nem dissolução, nem diminuição de força normativa. Ela não se reduz a deixar em aberto. Estabelece também o que não deve ficar em aberto - os fundamentos da ordem da comunidade, a estrutura do Estado e os processos de decisão das questões deixadas em aberto.

A realização da Constituição releva da capacidade de operar na vida política, das circunstâncias da situação histórica e, especialmente, da vontade da Constituição. E esta procede de três factores: 1º) da consciência da necessidade e do valor específico de uma ordem objectiva e normativa que afaste o arbítrio; 2º) da convicção de que esta ordem é não só legítima mas também carecida de contínua legitimação; 3º) da convicção de que se trata de uma ordem a realizar, através de actos de vontade (dos implicados no processo constitucional).68

X - Franco Modugno adopta uma visão plural e complexa, em que a Constituição não é um dado, mas um processo, e em que distingue uma tríade de momentos - norma fundamental, forma real de governo e princípio de produção normativa.

A norma fundamental é a ideia mesma de Constituição considerada em si; o primum da consideração jurídica, o conjunto de todas as possibilidades do seu desenvolvimento. É já a Constituição, enquanto absolutamente condicionante e constituinte - sem a qual qualquer Constituição determinada, constituída, seria impensável - mas não é ainda toda a Constituição, visto que o Estado-ordenamento se vai constituindo quer através da organização do poder, quer através da

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emanação das normas.

O problema do fundamento do conceito (da Constituição) do Estado, ou seja, da soberania ou do poder surge como problema de reconhecimento da norma ou do princípio (normativo) que atribui valor normativo ao ordenamento positivo ou do Estado e que transforma a força do Estado em autoridade. Todavia para que tal valor possa aderir ao Estado é necessário que este se apresente não como mera força, mas com força ordenada e regulada pelo Direito, ou seja, como poder; e esta força ou poder é, ao mesmo tempo, regra e, principalmente, auto-regra. A Constituição do Estado traduz-se, assim, em primeiro lugar, em regra do poder (que tem como uma das suas expressões históricas a da divisão de poderes).

Se a organização do poder (dita também forma de Estado) é a realidade positiva da Constituição, a efectiva manifestação da sua existência objectiva - a capacidade normativa geral, o princípio da função normativa ut sic - é o seu conceito ou valor. E este conceito e valor, olhado no seu aspecto terminal (ou, como também se diz, em sentido substantivo ou material) configura-se como princípio da legislação ordinária, primária e geral; como feixe de limites de forma e subsistência dessa legislação; e com parâmetro da sua constitucionalidade.69

183. Algumas posições de autores portuguesesI - Entre os autores portugueses, que, nos últimos cinquenta anos, alguma atenção têm prestado à teoria da Constituição, o primeiro a considerar é António José Brandão.

Parece firmar a sua noção num postulado geral acerca da visão da vida e do mundo: a Constituição é uma visão da vida e do mundo e a Constituição demoliberal a imposição a todos, governantes e governados, da visão da vida e do mundo demoliberal. Mas a esta, que reputa um falso triunfo da razão sobre a história, contrapõe a Constituição política autêntica, que é a Constituição da Nação.

As Constituições nunca podem ser feitas pelos homens, pois quem possui uma Constituição é a Nação (porque vive sempre constituída). Só a Constituição da Nação se torna o limite objectivo da "Razão do Estado". E, para o seu conhecimento, há que recorrer à teoria da estrutura e à teoria das funções.70

II - Marcello Caetano insere a teoria da Constituição na teoria da limitação do poder político - limitação essa que deve ser jurídica e assentar no Direito natural. A Constituição é uma técnica de limitação, mas só quando a Constituição seja rígida é possível organizar processos jurídicos tendentes a conter os poderes constituídos dentro dos limites traçados pelo poder constituinte, visto este ser superior àqueles.

Como lei suprema, a Constituição impõe-se a todas as outras leis e esse carácter supremo vem-lhe de ser a própria e integral afirmação da soberania nacional. Uma sociedade política revela-se como soberana, na medida em que possui e pode exercer o Poder Constituinte. Este nasce com o Estado, mas, sendo o suporte da Constituição, é anterior a ela.

Há necessariamente uma certa configuração característica de cada Estado, resultante das condições peculiares do Povo e do território respectivos. Nenhuma Constituição pode pretender-se a palavra definitiva e a regra imutável da sociedade política; como mal andará o Estado cuja Constituição esteja a ser constantemente alterada, sem ao menos se conservarem os traços fundamentais da sua organização política. Mas, ao organizar o Estado, o legislador não tem de se limitar a observar as condições do Povo que vai reger e a estabelecer uma equação em que a certas condições corresponderão determinadas soluções. Não só há certos princípios de Justiça e Segurança que devem estar presentes na elaboração de todas as leis (e, portanto, com mais forte razão, na das constitucionais) como é dever dos constituintes procurar corrigir vícios, eliminar defeitos, aperfeiçoar condições, melhorar instituições.71

III - Para Rogério Ehrardt Soares, a Constituição é a ordenação fundamental de um Estado e

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representa um compromisso sobre o bem comum e uma pretensão de ligar o futuro ao presente.

Como a sociedade moderna só pode ser compreendida como um conjunto de forças políticas antagónicas, o compromisso tem uma dimensão plurilateral, aparece como uma tentativa de equilíbrio. A ideia de Constituição repele, todavia, que ela seja concebida apenas como a expressão fáctica desse equilíbrio temporal. Sempre lhe cabe uma intenção voltada para o futuro: ela supõe a crença de poder ordenar igualmente equilíbrios políticos vindouros.

Só a Constituição entendida como um equilíbrio realizado dos valores fundamentais duma comunidade pode fornecer o penhor da segurança do homem perante a tirania da nova socialidade assumida pelo Estado e, também, duma organização em grupos carregados duma ética totalitária. O que não significa a entrega inerme a uma teleologia política, mas a busca das conexões íntimas no sentido dos órgãos e instituições constitucionais a apontar para a unidade. O perigo da interpretação segundo a mundividência do agente fica excluído, para deixar falar os valores que a Constituição recebeu e na medida em que o consente a totalidade do sistema.

Este programa de harmonização e de equilíbrio de tensões contrapostas com uma dinâmica definida na construção do Estado vivo fornece um cânone de interpretação e garante que a Constituição se adeque às manifestações espirituais da sociedade que rege, mas simultaneamente assegura-a contra a dissolução na relatividade das ideias triunfantes - o que significaria a negação do valor normativo da Constituição.72

IV - Muito próximo deste pensamento antolha-se o de Francisco Lucas Pires na procura de uma "noção compreensiva de Constituição". Segundo escreve, é necessário incutir um sentido à existência política, é necessário que a limitação do poder se transforme em afirmação positiva e imperativa de valores. A superioridade da Constituição há-de proceder do facto de constituir a objectividade de certo ethos e não apenas da sua posição superior à das restantes normas.

A Constituição há-de ser o critério material de decisão entre o válido e o não válido. O núcleo da noção de Constituição apreende-se na conexão dialéctica das normas constitucionais com o projecto normativo donde extraem o fundamento e com a conjuntura política onde adquirem realidade.73

V - É a teoria de Constituição económica que Vital Moreira formula, pela primeira vez, entre nós. Mas, a propósito do conceito de Constituição da economia, afirma que a Constituição não é hoje apenas a Constituição do Estado, é também a Constituição da sociedade, isto é, da formação social tal como esta se traduz no plano da estrutura política.

A própria Constituição política como Constituição da estrutura política integra o estatuto do Estado, o estatuto de outras instâncias da formação social e a Constituição económica. E este conceito, o de Constituição económica, leva a discernir na Constituição, não um sistema unitário isento de tensões, mas sim um lugar em que também se traduzem, de certo modo, as principais contradições e conflitos da sociedade.74

VI - A contribuição mais interessante de Gomes Canotilho, em certa fase do seu pensamento, é o esforço de aprofundamento e de procura de efectividade da Constituição dirigente ao serviço do alargamento das tarefas do Estado e da incorporação de fins econónico-sociais positivamente vinculantes das instâncias de regulação jurídica.

A política não é um domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado e a vinculação jurídico-constitucional dos actos de direcção política não é apenas uma vinculação através de limites mas também uma verdadeira vinculação material que exige um fundamento constitucional para esses mesmos actos. E a Constituição não é só uma "abertura para o futuro" mas também um projecto material vinculativo, cuja concretização se "confia" aos órgãos constitucionalmente mandatados para o efeito.

Há que distinguir uma direcção político-constitucional (direcção política permanente) e uma direcção política de governo (direcção política contingente). O valor condicionante positivo da Constituição pressupõe a configuração normativa de "actividade de direcção política", cabendo a

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esta, por sua vez, um papel criativo, pelo menos na selecção e especificação dos fins constitucionais e na indicação dos meios ou instrumentos adequados para a sua realização.

Assim, não se trata de juridificar a actividade de governo; trata-se de evitar a substituição da normatividade constitucional pela economicização da política e a minimização da vinculação jurídica dos fins políticos.75

VII - Marcelo Rebelo de Sousa adopta uma visão complexa, segundo a qual as formas de criação e conteúdo de uma Constituição dependem das estruturas económicas, sociais, culturais e políticas dominantes em certas condições de tempo e de espaço, bem como dos valores que essas prosseguem.

A Constituição não é uma realidade independente do mundo do ser, já que na sua génese e no seu conteúdo se tendem a projectar aquelas estruturas. O conteúdo da Constituição integra quer os valores ideológicos das estruturas dominantes no momento da sua elaboração quer os valores correspondentes a outras estruturas, secundárias à partida e cuja aposta é a superação do status inicial. Tal conteúdo é assumido como um projecto ideológico querido, destinado a estabelecer um sistema regulador da vida colectiva. Mas, por seu turno, a Constituição actua sobre as estruturas, numa tensão permanente com a colectividade, tensão em que esta, em última análise, tende a prevalecer.76

VIII - Mais de um ângulo de Ciência política do que de Direito constitucional, o das formas de poder, é a referência de Adriano Moreira à noção de Constituição.

Distingue entre Constituição formal - que atende à definição normativa do regime político, à unidade estadual resultante de um ordenamento jurídico - e Constituição real - correspondente às vigências que se impuseram. Este duplo normativismo do Estado não deve confundir-se com a evolução do sentido das normas consubstanciada, por exemplo, na Constituição política, em resultado de uma interpretação jurídica actualizada. Não se trata de passar de um plano ao outro. Trata-se de dois planos separados, de tal modo que o poder normativo dos factos, impondo vigências normativas, deixa inoperantes as fontes formais do direito.

A insistência na Constituição formal, embora praticando a Constituição real, corresponde à importância política da imagem em todo o processo de poder, a qual tem a função de facilitar os relacionamentos internacionais e de contribuir para a consolidação da obediência (porque sempre definida em atenção aos juízos populares de legitimidade do poder).77

IX - Conforme escreve José Carlos Vieira de Andrade, a Constituição não é uma pura manifestação de poder que se perpetua. Na sua rigidez formal, ela tem uma intenção integradora e a sua função principal é a criação e a manutenção contínua da unidade política e da unidade do ordenamento jurídico-intenção e tarefa que só se cumprem através da ligação constante à realidade do momento presente.

Mas tal unidade política fundamental não poderá constituir-se se não tiver um significado material, e não poderá subsistir se não tiver uma razão-de-dever-ser-assim. No tocante, por exemplo, aos direitos fundamentais à face da Constituição portuguesa de 1976, encontra-se uma unidade de sentido, que é a dignidade da pessoa humana; e não se trata de uma unidade puramente lógica ou funcional, mecânica ou sistémica, mas uma unidade axiológico-normativa.

Por outro lado, as normas constitucionais - situadas no topo do ordenamento jurídico, desenquadradas das demais, dependentes intimamente da evolução social, política e cultural de cada país e resultantes, muitas vezes, de revoluções ou mutações bruscas - apresentam uma solidão e uma abertura estrutural que, somadas e multiplicadas entre si, determinam a insuficiência e a impropriedade das regras tradicionais de interpretação.

Ao contrário das normas de direito privado, elas não estão incluídas num "todo" história-dogmático.78

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184. Posição adoptadaI - Resta expor o essencial da nossa orientação, tentando sintetizar, clarificar e sublinhar aquilo que em vários passos já ficou escrito e tendo em conta aquilo que, a respeito de alguns problemas em especial, ainda havemos de dizer. Decorrente das concepções fundamentais sobre o Direito a que há muito aderimos79-80 beneficia, naturalmente (como não podia deixar de ser), das contribuições doutrinais acabadas de citar.

II - Assim, antes de mais, enquanto parcela do ordenamento jurídico do Estado, a Constituição é elemento conformado e elemento conformador de relações sociais, bem como resultado e factor de integração política. Ela reflecte a formação, as crenças, as atitudes mentais, a geografia e as condições económicas de uma sociedade e, simultaneamente, imprime-lhe carácter, funciona como princípio de organização, dispõe sobre os direitos e os deveres de indivíduos e dos grupos, rege os seus comportamentos, racionaliza as suas posições recíprocas e perante a vida colectiva como um todo, pode ser agente ora de conservação, ora de transformação.

Porém, por ser Constituição, Lei fundamental, Lei das leis, revela-se mais do que isso. Vem a ser a expressão imediata dos valores jurídicos básicos acolhidos ou dominantes na comunidade política, a sede da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de referência do poder político que se pretende ao serviço desta ideia, o instrumento último de reivindicação de segurança dos cidadãos frente ao poder. E, radicada na soberania do Estado, torna-se também ponte entre a sua ordem interna e a ordem internacional.

A interacção em que se move todo o Direito dito positivo - com os princípios éticos transcendentes, por um lado, e, por outro lado, com as estruturas, a situação concreta, o dinamismo da vida de um povo - mostra-se aqui muito mais forte, devido à tríplice função institucionalizadora, estabilizadora e prospectiva do sistema das normas constitucionais e à sua específica acção sobre as demais normas e sobre todos os actos do poder.

A Constituição tem de ser constantemente confrontada com os princípios e é por eles envolvida em grau variável; tem de ser sempre pensado em face da realidade política, económica, social e cultural que lhe está subjacente e que é uma realidade não apenas de factos como ainda de opiniões, de ideologias, de posturas políticas, de cultura cívica e constitucional;81 e esta cultura carrega-se, por seu turno, de remissões para princípios valorativos superiores (o que significa que se dá uma circulação entre valor, Constituição e realidade constitucional).82-83

III - A Constituição (ou, como conceito mais denso e rico, a ordem constitucional) não aglutina todos os valores, nem é, em si, valor supremo. Sofrendo o influxo dos valores, nem se dilui neles, nem os absorve. Uma relativa diferenciação de domínios exige-a a consideração quer dos valores humanos mais preciosos, quer do papel, no fim de contas, precário e transitório de cada sistema positivo; afigura-se ineliminável no mundo complexo, dividido e conflitual dos nossos dias; somente ela permite, no limite, contestar os comandos constitucionais quando seja irredutível a incompatibilidade.

Mas a procura dos valores não se confunde com qualquer subjectivismo; os valores só são eficazes, quando adquirem objectividade e duração. A ideia de Direito na qual assenta a Constituição material surge necessariamente como ideia comunitária, como representação que certa comunidade faz da sua ordenação e do seu destino à luz dos princípios jurídicos.84

Se toda a ideia de Direito se define por um sentido de justiça, também aparece situada e dependente do tempo e do lugar; e a refracção há-de ser tanto maior quanto maior for o activismo e a ostentação das ideologias. Num contexto de contrastes ideológicos e até de legitimidades (como tem sido o dos séculos XIX e XX) pode, por vezes, a ideia de Direito que consegue passar para a lei constitucional incluir disposições e formas organizatórias, cujo distanciamento deste ou daquele princípio ético seja evidente para boa parte da comunidade ou para a comunidade como um todo, nas suas camadas mais profundas de consciência; e pode ainda suceder que a própria ideia de Direito ou a legitimidade declarada pelos detentores do poder, apesar de se impor e obter o consentimento, acabe

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por não obter a adesão e venha a provocar, a prazo, a repulsa.

O conceito de Constituição converteu-se, na época actual, num conceito neutro, em que se enxertam conteúdos políticos, económicos e sociais divergentes e que se têm projectado em tipos constitucionais caracterizados. A Constituição concreta de cada povo, o estatuto da sua vida política, não é, porém - não pode ser - para o cidadão e para o jurista, neutra, indiferente, isenta ou insusceptível de apreciação.

Nem tudo que se apresenta como constitucional o merece ser (se bem que não seja pacífica a qualificação da eventual desconformidade e se bem que a recusa do cumprimento da norma tenha de ser sempre ponderada com outros valores e interesses) e nem tudo que se apresenta decretado como constitucional o consegue ser efectivamente, por inadequação, desequilíbrio, incapacidade de integração, contradição insanável com outras normas. Assim como o preceito constitucional pode padecer de inflexões de estatuição, em virtude da dinâmica política nascida da execução ou à margem da execução da Constituição.

Em último termo, uma Constituição só se torna viva, só permanece viva, quando o empenhamento em conferir-lhe realização está em consonância (não só intelectual mas sobretudo afectiva e existencial) com o sentido essencial dos seus princípios e preceitos; quando a vontade da Constituição (Konrad Hesse) vem a par do sentimento constitucional (Lucas Verdu).85

IV - Acrescente-se que, a despeito de todas as mutações do nosso século, se verifica, por toda a parte, uma sobrevivência ou uma interferência de alguns dos elementos com raiz no constitucionalismo liberal. Não é apenas nos sistemas democrático-pluralistas que se coloca o problema da repartição e limitação do poder;86 este problema não está ausente dos restantes sistemas e tipos constitucionais, quer por ser problema vital da estrutura organizatória do Estado, quer (pelo menos) pelo cotejo que na comunidade se vem a estabelecer entre um sistema ou regime político assente no postulado de divisão e limitação e outro procedente de princípio discrepante ou oposto.

Não é por acaso que as novas Constituições e as Constituições compromissórias somente logram garantir direitos individuais a institucionais, sem fracturas, e modelar o futuro comunitário, sem rupturas, se satisfazem três requisitos primordiais: a) máximo rigor possível nos preceitos atinentes a direitos e liberdades fundamentais do homem, do cidadão, do trabalhador, e dos grupos em que se inserem, não cabendo ao legislador e ao aplicador senão uma tarefa de interpretação e de regulamentação; b) abertura, nos limites da sua força normativa, dos preceitos atinentes à vida económica, social e cultural, sujeitos às sucessivas concretizações correspondentes às manifestações da vontade política constitucionalmente organizada; c) criação de mecanismos jurídicos e políticos, procedimentais e processuais, de garantia das normas constitucionais.

Deste prisma, observa-se, pois, ainda uma tensão dialéctica: uma tensão entre a noção ideal de Constituição (liberal) e todos os demais conteúdos da Constituição e entre o Estado de Direito e os demais tipos constitucionais de Estado.