Jornal Golpe D'Asa (versão em português)

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Engenho cénico do Trigo Limpo teatro ACERT sobrevoará o Mundo O sonho, já dizia o poeta, é uma constante da vida. A Companhia teatral portuguesa sonhou… e eis senão quando, fazendo jus às palavras de António Gedeão, levantou voo um “bichinho álacre e sedento de focinho pontiagudo”…

Transcript of Jornal Golpe D'Asa (versão em português)

Engenho cénico do Trigo Limpo teatro ACERT sobrevoará o Mundo

O sonho, já dizia o poeta, é uma constante da vida. A Companhia teatral portuguesa sonhou… e eis senão quando, fazendo jus às palavras de António Gedeão, levantou voo um “bichinho álacre e sedento de focinho pontiagudo”…

Embora o Golpe d’Asa só tenha levan-tado voo em 2008, já desde a sua cria-ção, em 1976, que o TRIGO LIMPO te-atro ACERT faz a cultura voar de boca em boca. Toda a sua história, ou melhor, as suas estórias, são perpassadas por uma busca de estratégias de comuni-cação e de intermediação com o públi-co. Esta vertente de actuação comu-nitária encontra, pois, expressão numa mão-cheia de activi-dades, valendo a Queima e Rebentamento do Judas, iniciada em 1986 e anualmente revisitada, como um poderoso símbolo dessas saborosas partilhas artísticas.A par deste gran-dioso espectáculo, muitos outros pro-jectos: Os Cavaleiros, de Aristófanes (1990); Brincando com o Fogo, de José Rui Martins (1993); Faldum, de Herman Hesse (1996); Augaciar, de Carlos Santiago e José Rui Martins (1999); Transviriato, de Jaime Rocha (2001); Num Abril e Fechar d’Olhos, uma co-produção com Teatrosfera e encena-ção de José Rui Martins (2004); ou Em

Paz, de Aristófanes (2006) – encheram de arte os cantos, recantos e encantos de Portugal e do mundo. Porém, o ponto alto deste esforço de abertura à comunidade e apelo à parti-cipação cidadã ocorreu quando, numa bela tarde estival pouco antes da vira-gem do milénio, um ciclista chamado Caramulo pedalou sem parar no des-

file diário da “Peregrinação” na Expo 98, seguindo,

dois anos mais tarde, para a Expo Hanover

2000. Tratava-se de um brinquedo tradi-cional agigantado que, transformado na máquina de cena “Memoriar”, marcou de forma ímpar o pa-

norama nacional com a sua mui bicicletan-

te arte. Apesar de hoje desfrutar do seu mereci-

do descanso num jardim de Tondela, este desportista único deu azo (e, sobretudo, asas!) ao desejo de uma viagem aérea capaz de prolongar afec-tos e diálogos com o público.Chocámos, assim, um outro elemen-to fortemente enraizado no imaginário popular – o passarinho – que, tal como

o Caramulo, representa muito mais do que um objecto de madeira de enormes dimensões: por terra ou por ar, ambos os engenhos se alimentam de uma pe-dalada transbordante de energias artís-ticas, sem recorrer a outro tipo de com-bustível que não o sonho de quem lhes deu vida. Deste modo, à semelhança do que acontecera com o seu antecessor, o Golpe tornou-se um namoro criativo acicatado pelas criações do nosso ima-ginário, para o qual arrastámos, de ime-diato, a asa. E então a ave – tal como a arte – saiu à rua, onde actualmente per-manece, pronta a encantar os que…

… não sabem que o sonhoé vinho, é espuma, é fermento,bichinho álacre e sedento,de focinho pontiagudo,que fossa através de tudonum perpétuo movimento.

António Gedeão, Pedra Filosofal

O sonho, já dizia o poeta, é uma constante da vida. A Companhia teatral da Associação Cultural e Recreativa de Tondela (ACERT) sonhou… e eis senão quando, fazendo jus às palavras de An-tónio Gedeão, levantou voo um “bichinho álacre e sedento de focinho pontiagudo”…

Será um avião? Será um pássaro? E, neste último caso, teremos um cor-vo, um pavão, uma pomba da paz, um dragão ou mesmo um ser huma-no? Independentemente da sua forma, estamos sem dúvida na presença de uma ave rara, que abana as asas pela transmissão do movimento das rodas e vai sofrendo modificações parciais ao longo do percurso. Estas metamorfoses artísticas inscrevem o Golpe d’Asa no contexto experimentalista que, hoje e sempre, se assume como o cartão-de-visita do TRIGO LIMPO teatro ACERT.Com efeito, a Companhia não se res-tringe à mera reprodução de rituais e tradições antigas, no sentido de garan-tir a sua continuidade, mas transporta essas impressões digitais da cultura lo-cal para a contemporaneidade, forne-cendo-lhes uma roupagem mais arroja-da e permeável aos principais debates

hodiernos. À luz desta readaptação, as típicas Festas de Santo António, espe-lho fiel das gentes e dos hábitos popula-res, deram lugar aos modernos Tons de Festa – Festival de Músicas do Mundo, enquanto o Judas primordial acabou por levantar fervura num caldeirão de dança, música e fogo-de-artifício, tem-perado com mensagens sociopolíticas e ideológicas.Este sentido de inovação, alicerçado na conjugação multidisciplinar das ar-tes do espectáculo, já estivera presen-te na bagagem do ciclista Caramulo, que mesclou os sinais regionais (o dia-lecto de Molelos) com uma reinvenção de influências musicais, estéticas e ce-nográficas. Por seu turno, o nosso jo-vem passarinho vai esboçando trajectos horizontais, planados, descendentes e, sobretudo, ascendentes e desafiadores:

um voo cruzado onde confluem as mais variadas linhas artísticas, entretecidas por animadores, actores e composito-res. Não existem, portanto, frontei-ras, numa criação em que a madei-ra casa com o ferro, o mecânico é o escultor/cenógrafo da engrenagem e a solda o parafuso luminoso. As ar-tes movem-se ao ritmo de um grupo de aves esvoaçando ao vento: cada uma com o seu potencial e existência pró-pria, mas bem coordenadas e articula-das num só bando harmonioso.

Difícil é quebrar os muros invisíveis de que os reais são feitos.

Eduardo Lourenço

DEscoLAGEm: A ArtE “sAiu à ruA num DiA Assim(…)”Prestes, larguei a velaE disse adeus ao cais, à paz tolhida.Desmedida,A revolta imensidãotransforma dia a dia a embarcaçãonuma errante e alada sepultura…mas corto as ondas sem desanimar.Em qualquer aventura,o que importa é partir, não é chegar.

miguel torga, Viagem

Escola Superior de Tecnologia de Viseu

A Escola Superior de Tecnologia de Viseu, ten-do estatutariamente assumida como uma das suas missões a cooperação com a sociedade empresarial e cultural, decidiu ser parceira da Acert no desen-volvimento do Protótipo Golpe d’Asa. Esta cooperação foi enquadrada por um protocolo de parceria entre a ESTV e a ACERT salvagardan-do assim como principal objectivo a valorização dos docentes, investigadores e alunos desta instituição;Assim, a encargo da ESTV ficou a elaboração dos estudos técnicos, a planificação e monitorização de produção e montagem final no Laboratorio de Tec-nologia de Madeiras.Os estudos, planificação e montagem final foram desenvolvidos e aplicados pelo ProtLab – Departa-mento de Engenharia de Madeiras, com a colabo-ração do Departamento de Engenharia Mecânica

no desenvolvimento da estrutura metálica, tendo a coordenação dos trabalhos ficado a cargo do Téc-nico do Laboratório de Maquetes e Protótipos, Pe-dro Pais de Brito.

Elementos da ESTV, envolvidos no pro-jecto: Adelino Trindade; Ângela Neves; António Costa; Bruno Esteves; Carlos Chaves da Silva; Carlos Santos; Carlos Vieira da Silva; Cristina Coelho; Daniel Gaspar; Edmundo Marques; Fernando Silva; Filipe Amaral; Hugo Ferreira; João Luís Pereira; Jorge Martins; José Salgueiro Marques; Marcelo Oliveira; Nelson Santos; Nuno Garrido; Pau-lo Figueiredo; Pedro Pais de Brito

Voos cruzados 1 José Afonso

CEARTE vestiu Golpe D’AsaCentro de Formação Profissional do Artesanato – Coimbra

Este projecto contou com a activa colaboração do CEARTE – Centro de Formação Profissio-nal do Artesanato que, planificou e desenvolveu acções de formação específicas que possibilita-ram a concepção e execução dos figurinos do espectáculo “Golpe d’Asa”.Numa primeira fase, os figurinos foram conce-bidos no âmbito do curso de “Artes Cénicas – Criação de Figurinos”, da responsabilidade do CEARTE, orientado pelo estilista Filipe Faísca e no qual participaram treze formandos. Foram estes que, em 56 horas de formação desenvolve-ram a proposta final dos modelos a executar.Numa segunda fase, o CEARTE planificou uma acção de formação de 100 horas em “Técnicas de Modelação e Confecção de Figurinos”, orientada pela formadora Sandra Moura dos Santos. Este curso foi frequentado por oito profissionais da área da moda e confecção têxtil que, durante a formação, desenvolveram competências técnicas ao nível da construção de figurinos, com a mais valia de ter como pano de fundo a inspiração temática deste espectáculo.A parceria do CEARTE com a companhia de Teatro Trigo Limpo ACERT, para além de tor-nar possível a concretização de todo este projec-to, justifica-se pela qualidade e pioneirismo da formação ministrada por este Centro na área das artes e ofícios e, neste caso específico, das artes cénicas. Esta feliz e útil parceria representa um exemplo e um estímulo para muitas outras a de-senvolver no futuro

CEARTE, Junho 2008

Figurinos: Concepção e realização em colabora-ção com o CEARTE – Centro de Formação Profis-sional do Artesanato - Coimbra, sob a direcção de Filipe Faísca (estilista)

Coordenação de Curso - Alzira FerreiraOrientação – Filipe Faísca (estilista)

Curso de Artes Cénicas – Criação de Figurinos;Formador: Filipe FaíscaAlexandra Cristina da Costa Matos; Alexandra Ma-ria de Melo Barreto Monteiro; Ana Margarida dos Santos Fernandes; Ana Maria Marques Loureiro; Estela Maria de Abreu Ribeiro de Melo; Fernanda Maria Gonzaga Tomás; Iria Kovacs; João Pedro Serafino de Deus Amaral; Maria do Rosário Rocha Pereira; Maria Manuela Braz Brito Ferreira ; Maria Margarida Alves dos Santos; Paula Cristina de Sousa Manhente; Silvania Valéria da Silva

Curso de Técnicas de Modelação e Confecção de Figurinos; Formador: Sandra Moura dos SantosCidália Maria Salgado Alves da Cruz ; Esperança Maria Dias dos Santos; Gracinda Fernandes de Moura Nunes; Maria Ascenção Farinha Lopes Ca-macho; Maria Cristina Costa da Câmara Pestana; Maria José da Silva Brito; Maria Salomé Ferreira Forte; Rui Jorge Borges Campeão dos Ramos;

Repleto de amizades e cumplicidades co-roadas pelo encan-tamento de artistas e pelo empenho voluntário de ac-tivistas culturais, o ninho da ACERT abre-se à comuni-

dade local. Aqui e ali debicam-se parce-rias com associações, organizações pú-blicas, empresas e marcas, sob o pano de fundo de uma forte intervenção co-munitária. Nesta linha de pensamento, eis um so-matório de talentos: Escola Superior de Tecnologia de Viseu, Tondagro, CEART e inúmeras empresas regionais e cola-boradores associados da ACERT. Todos acrescentaram, através da construção e pesquisa dos melhores mecanismos, diversas penas coloridas ao nosso pas-sarinho, para que este aguentasse voos longínquos e seguros.Realizaram-se, além disso, parcerias com diversas entidades locais (parti-cularmente, com a Câmara Municipal de Tondela) e organizações ligadas à

promoção turística regional (Portugal Centro), mediante as quais se potencia-ram valências concentradas no enge-nho cénico. Por fim, subjacente a todo este processo, esteve naturalmente o incontornável papel do Ministério da Cultura, ou não fosse o organismo go-vernamental que maior apoio concede à actividade global do TRIGO LIMPO teatro ACERT. Se esta ave valeu pelo desafio artísti-co para a Companhia ACERTina, teve igualmente a virtude de juntar um con-junto de progenitores (animadores,

actores, músicos, cons-trutores, escritores, me-cânicos, engenheiros, serralheiros, carpintei-ros e muitos colabora-dores voluntários) que,

ao longo da gestação, gravidez e parto, procura-

ram mimá-la e educá-la a cada momento.

Depois de sobrevoar a Expo Zaragoza 2008, na sequência de um convite do Comissariado de Portugal para integrar a embaixada artística na-cional, é favor apertar os cintos de segurança, porque o passarinho se prepara para aterrar noutras para-gens. Antes da partida para Espanha, um ensaio de vôo ainda em Viseu, na ESTV, e uma despedida sim-bólica com o público de Tondela na antes-treia de 5 de Julho, s e g u i n -do depois para o en-cerramento do Festival A n d A n ç A s , em Agosto — num espectácu-lo que tem o apoio da Região de Turismo Dão Lafões. Neste espec-táculo, que será a sua primeira apresentação nacional, partilhará com certeza um Golpe de satisfação com to-dos os companheiros que dançam, to-cam e festejam a vida. Mas como lon-ga é a migração de qualquer ave que se preze, que a aguardem também

todos os ninhos de todos os países que acolham a vontade de viajar até ao infinito, em jornadas sempre atri-buladas no grande aviário do mun-do. Um périplo onde, numa roda-viva, pode haver medos e hesitações antes da celebração da grande festa, mas

que serão certamente dissi-pados quando os via-

jantes aprenderem a deixar planar a

vida e a ver, na linha do hori-zonte, qual-quer coisa i n a t i n g í -vel... ou quase…

Ficha Artística e Técnica

Dramaturgia e Encenação José Rui Martins e Pompeu José

Direcção de ConstruçãoPompeu José Pedro Pais de Brito (Desenvolvimento e Produção)

Elenco Trigo Limpo teatro Acert Actores - Ilda Teixeira e Ruy Malheiro Técnico/Condutor/Actor - Cajó Viegas

Fanfarra Kaustika Músicos/Actores: Abílio Liberal – Sousafone Brian Carvalho - Trompete Bruno Abel - Saxofone Gabriel Caseiro - Bombo Júlio Morgado – Trombone Ricardo Oliveira – Tarola e Pratos Rui Bandeira - Trombone Tito Oliveira - Tuba

Cenografia Zétavares

Assistência de Cenografia e Coordenação PlásticaMarta Fernandes da Silva

Música Fran Pérez Figurinos Concepção e realização em colaboração com o CEARTE – Centro de Formação Profissional do Artesanato - Coimbra, sob a direcção de Filipe Faísca.Coordenação de Curso - Alzira Ferreira.Orientação – Filipe Faísca (estilista)

Acompanhamento de produçãoRuy Malheiro

Confecção dos fatos dos músicosSwetelana

Estudo técnico e construção em madeira ESTV - Escola Superior de Tecnologia de ViseuCoordenador – Pedro Pais de Brito Construção em metal TondagroJosé Carlos Coimbra; Amândio Silva; Carlos Henriques; Eduardo Vilareto; Hilário Vieira; Jorge Almeida;

Apoio técnico e acompanhamento de montagemAndré Silva (Néné); Eduardo Araújo; Ilda Teixeira; João Arede; Jorge Almeida; José Ernesto; José Rosa; Luís Viegas; Marta Fernandes da Silva; Miguel Torres; Pedro Santos; Paulo Neto; Rui Ribeiro; Ruy Malhei-ro; Sandra Santos; Sérgio Moras; Entidades que colaboraram na constru-ção Eixo: J. Tavares Costa & Filhos, S.A.Falanges: Garagem S.ta MariaHidráulicos: TojaltecOxicorte e calandragem: Calandra BasílioTondeltorno, Lda.

Desenho GráficoZétavares

FotografiaEduardo Araújo

VídeoZito Marques

Textos – criação e revisãoAna Martins e José Rui Martins

Tradução para espanhol Pepe Sendón

Produção e SecretariadoMarta Costa, Paula Coelho e Raquel Costa

Gestão FinanceiraRosa Marques e Rui Vale

Estagiários da Escola Profissional Maria-na SeixasJoão Pedro Gonçalves; Eduardo José Faro; Rui Sérgio Lemos Henriques

Estagiários da Escola Superior de Educa-ção de ViseuDaniela Leitão; Jenifer Marques

AgradecimentosBombeiros Voluntários de Tondela, EscolaEB 1 e 2 de Tondela, Guarda Nacional Republi-cana - Tondela, Adriana Ventura, CarlosArmando, Carlos Fernandes, Cláudia Barato,Irene Pais, João Gil, José Carlos Coimbra,Luís Correia, Miguel Valentim, Paula Cristina,Rita Costa, funcionários do Estaleiro da Câmara Municipal de Tondela e a todos os que, de for-ma anónima, voluntária e solidária, entregaram o seu talento e empenhamento nas fases de pesquisa, estudos e criação do engenho cénico.

78ª ProducciónTRIGO LIMPO teatro ACERT

Participação EXPO ZARAGOZA 2008Programação cultural do Dia de PortugalComissariado de Portugal – Parque Expo

TRIGO LIMPO teatro ACERT é uma Companhia financiada por:

Patrocinador Exclusivo

Futuras aterragens

Um pássaro, muitas penas

ARPT Centro de PortugalCasa Amarela - Largo de Santa Cristina3500 - 181 ViseuTel: +351 232 432 032 | Fax: +351 232 432 [email protected] | www.visitcentro.comwww.centrodeportugal.blogspot.com

um pouco mais de sol - eu era brasa,um pouco mais de azul - eu era além.Para atingir, faltou-me um golpe de asa...se ao menos eu permanecesse aquém...(…)

mário de sá-carneiro, Quase

CONtACtO (iNfOrMAçãO E CONtrAtAçãO)

uma história de AVEnturas

Desenganem-se os que esperam descobrir, por entre as camadas de penas do nosso passaroco, a res-posta àquela redondinha questão, quase tão velha como o mundo: quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha? Pois bem: permanecemos na incógnita! Contudo, mesmo desco-nhecendo qual dos dois inaugurou o ciclo da vida, sabemos que o nosso animal teve origem no ovário da rica inventiva popular. Aí se aconchegou, embebido num líquido amniótico ima-ginativo destinado a conservá-lo du-rante a incubação. Com tão intensos cuidados pré-na-tais, não é de estranhar que o bicho tenha desenvolvido um especial gosto por estórias, um sentido de aventura e uma sede de descoberta. Um pássa-ro inerte encontrado por um grupo de animadores, uma avalanche de ovos em catadupa, as estações do ano, a festa, a viagem errática, a normalidade e o andamento – to-dos estes ingredientes se escon-dem debaixo da asa do nosso pro-tagonista. (…) eu, que nunca voei, carrego as asas como duas saudades. E, no entanto, só piso felicidades.

mia couto, (moçambique) o Último Voo do Flamingo

O itinerário pauta-se ainda por uma dramaturgia insuflada de referências simbólicas a um passado partilhado por todos. Por um lado, o enredo sim-ples, do namoro ao ovo – ou do nasci-mento à cova – deixa entrever o bíblico dilúvio que precedeu a construção da arca de Noé, para o transformar numa fonte purificadora que evoca a nossa relação ancestral com a água. Por ou-tro, o percurso alado parece evocar o universo fantástico da ‘Passarola’ de Bartolomeu de Gusmão, que nos con-fronta com a eterna (im)possibilidade de voar. Perante este limite da condi-ção humana, a asa representa, mais do que um mero apêndice membra-noso passível de projectar as aves nos céus, uma utopia, uma meta impossí-vel. A ornitologia é uma ciência; o voo é um mistério…

Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bonda-de ou do ainda mais simples respeito.

José saramago, (Portugal) Discurso na entrega do Prémio nobel

A alusão a estes períodos históricos, revisitados por serem épocas em que todos sonhavam levantar os pés do chão, não invalida, contudo, que o Golpe d’Asa pisque o olho ao tempo presente. Se as interpretações – ainda que em ambiente colorido – remetem para o cinema a preto-e-branco (com a devida vénia a Chaplin, Buster Keaton e aos Irmãos Marx), a música singular (mistura de ritmos do mundo com a res-sonância do ‘rouxinol d’água’ em barro) imprime ao engenho cénico um pulsar de movimento, comunicação, medo, espanto, sedução… enfim, de celebra-ção da vida. O imaginário cultural do pássaro reflecte, desta forma, uma profunda ligação com a contempo-raneidade, explorando a dialéctica da relação do homem com a natu-reza, sem perder de vista um futuro centrado na preservação dos recur-sos naturais, na paz, na igualdade e na diversidade. Eu só tenho existência... física, embora quisesse ter uma espécie de existência angélica. o que eu queria mesmo era voar, voar!

ruben Alves (Brasil)

TRIGO LIMPO teatro ACERT Ap. 118; 3461-909 Tondela Portugal

tel. + 351 232 814400 [email protected]