Jornal plural agosto 2013

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Humanos são sempre humanos Carlos Magalhães Há algum tempo, uma socióloga estadunidense um tanto apocalíptica afirmou que a comunicação por meio de redes como o Twitter e o Facebook pode ser conside- rada uma forma de loucura moderna. Estaríamos sob o risco de nos tornarmos menos humanos por causa das novas tecnologias de comunicação. As pessoas estariam se isolando em uma ciber-realidade que não passaria de uma imitação do mundo real. Considero equivocada essa hipótese. De fato, é muito estranha a concepção de natureza humana que a socióloga revela. Que natureza humana é essa que se corrompe ao ser dominada pela tecnologia? Não é próprio do ser humano expandir suas possibilidades pela invenção e utilização de diversas tec- nologias? Quando algo – um martelo ou o Photoshop, por exemplo – é usado por pessoas, esse uso só pode ser humano. Ainda que alguém possa não gostar da “hu- manidade” que emerge de certas utilizações, o uso será inescapavelmente humano. Algumas pessoas racham as cabeças umas das outras com martelos; outras transfor- mam gente em monstrengos nas edições de Photoshop para as capas de revistas. Essas ferramentas estão nos desumanizando? Não. Nós é que estamos humanizando as ferramentas. Os seres humanos nascem condenados a serem humanos e espalham pelo mundo a sua huma- nidade. Para o bem e para o mal. A socióloga cita um exemplo de como somos dominados pela tecnologia da informação que beira o ridículo. Foi a enterros em que as pessoas se distraiam da tristeza e conferiam as novi- dades em seus smartphones. Desde sempre as pessoas vão a enterros para fazer de tudo. Vão para colocar a conversa em dia, para comer, beber, passar o tempo. Se conferem o telefone esperto, é porque têm o aparelho à mão. Antes faziam coisas equivalentes. Jornais e revistas que falaram dessa socióloga fizeram referência (como se fosse uma confirmação da hipótese proposta por ela) ao caso de uma moça que anunciou o próprio suicídio pelo Facebook sem que nenhum de seus 1082 “amigos” fizesse nada para ajudar. Os poucos que responderam acharam que ela queria apenas chamar a atenção. Colo- caram amigos entre aspas fazendo um juízo moral sobre a ausência da verdadeira amizade nas redes sociais. O fato é que só um idiota acreditaria que seus mil e tantos contatos numa rede social são amigos. Não raramente as pessoas são mais espertas do que os especialistas que analisam o comportamento delas. Não há absolutamen- te nada de novo em um anúncio de suicídio ignorado. Morei em um condomínio onde uma mulher morreu se jogando do sétimo andar. Dias antes disse aos familia- res: “Queria me matar, mas não quero estragar os car- ros que ficam estacionados lá embaixo”. Ninguém levou a sério. Acharam que ela só queria impressionar. Pulou pela janela no dia em que não havia carros no estacio- namento. Pode haver superficialidade, falsidade, ilusão nos contatos feitos pela internet? É óbvio que sim. Mas isso acontece também no mal chamado mundo real. Tal como no mal chamado mundo real, também pode haver profundidade, verdade e autenticidade nos contatos que se fazem pela rede. Enfim, duvido muito de análises apo- calípticas que veem tudo que é novo como mais um sinal da decadência humana. A humanidade desde sempre foi e não foi decadente, porque não pode ser outra coisa a não ser humana. CRôNICA DE UM TAL DE “HOMEM” JORNAL CULTURAL plural NÚMERO 2 | JULHO A AGOSTO 2013 | BH | MG

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JORNAL PLURAL realizado em parceria com o Centro Universitário Newton

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Humanos são sempre humanosCarlos Magalhães

Há algum tempo, uma socióloga estadunidense um tanto apocalíptica afi rmou que a comunicação por meio de redes como o Twitter e o Facebook pode ser conside-rada uma forma de loucura moderna. Estaríamos sob o risco de nos tornarmos menos humanos por causa das novas tecnologias de comunicação. As pessoas estariam se isolando em uma ciber-realidade que não passaria de uma imitação do mundo real. Considero equivocada essa hipótese. De fato, é muito estranha a concepção de natureza humana que a socióloga revela. Que natureza humana é essa que se corrompe ao ser dominada pela tecnologia? Não é próprio do ser humano expandir suas possibilidades pela invenção e utilização de diversas tec-nologias? Quando algo – um martelo ou o Photoshop, por exemplo – é usado por pessoas, esse uso só pode ser humano. Ainda que alguém possa não gostar da “hu-manidade” que emerge de certas utilizações, o uso será inescapavelmente humano. Algumas pessoas racham as cabeças umas das outras com martelos; outras transfor-mam gente em monstrengos nas edições de Photoshop para as capas de revistas. Essas ferramentas estão nos desumanizando? Não. Nós é que estamos humanizando as ferramentas. Os seres humanos nascem condenados a serem humanos e espalham pelo mundo a sua huma-nidade. Para o bem e para o mal. A socióloga cita um exemplo de como somos dominados pela tecnologia da informação que beira o ridículo. Foi a enterros em que as pessoas se distraiam da tristeza e conferiam as novi-dades em seus smartphones. Desde sempre as pessoas vão a enterros para fazer de tudo. Vão para colocar a

conversa em dia, para comer, beber, passar o tempo. Se conferem o telefone esperto, é porque têm o aparelho à mão. Antes faziam coisas equivalentes. Jornais e revistas que falaram dessa socióloga fi zeram referência (como se fosse uma confi rmação da hipótese proposta por ela) ao caso de uma moça que anunciou o próprio suicídio pelo Facebook sem que nenhum de seus 1082 “amigos” fi zesse nada para ajudar. Os poucos que responderam acharam que ela queria apenas chamar a atenção. Colo-caram amigos entre aspas fazendo um juízo moral sobre a ausência da verdadeira amizade nas redes sociais. O fato é que só um idiota acreditaria que seus mil e tantos contatos numa rede social são amigos. Não raramente as pessoas são mais espertas do que os especialistas que analisam o comportamento delas. Não há absolutamen-te nada de novo em um anúncio de suicídio ignorado. Morei em um condomínio onde uma mulher morreu se jogando do sétimo andar. Dias antes disse aos familia-res: “Queria me matar, mas não quero estragar os car-ros que fi cam estacionados lá embaixo”. Ninguém levou a sério. Acharam que ela só queria impressionar. Pulou pela janela no dia em que não havia carros no estacio-namento. Pode haver superfi cialidade, falsidade, ilusão nos contatos feitos pela internet? É óbvio que sim. Mas isso acontece também no mal chamado mundo real. Tal como no mal chamado mundo real, também pode haver profundidade, verdade e autenticidade nos contatos que se fazem pela rede. Enfi m, duvido muito de análises apo-calípticas que veem tudo que é novo como mais um sinal da decadência humana. A humanidade desde sempre foi e não foi decadente, porque não pode ser outra coisa a não ser humana.

CRôNiCA DE UM TAL DE “HOMEM”

JORNAL CULTURAL

pluralNÚMERO 2 | JULHO A AGOSTO 2013 | BH | MG

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 2 | JULHO A SETEMBRO DE 20132

Chacal é um feroz cão selvagem, de pelo amarelo-pardo, encontrado nos Bal-cãs, Ásia e África. Anda em bandos e tem hábitos noturnos. O apelido “Chacal” foi dado a um sexagenário “menino travesso”, falecido em 2012. Quando menino, com-pletou um álbum de figurinhas com a rara gravura do mamífero. Sortudo como ele só.

Nascido em São João del-Rei, era ba-tizado Murilo Chafy Hallak. Alguns anos mais velho do que eu, suponho ter sido arteiro na infância, porque arteiro foi até o fim de seus dias neste mundo de Deus. Trabalhou no Banco do Brasil e constituiu conhecida família, com esposa e filhas en-cantadoras.

Era boêmio da melhor categoria. Apre-ciava as esquinas e os botequins. Proseador sublime, mesclava realidade e ficção com arte e graça. Compositor de sambas, foi muito cantado nos saudosos carnavais do passado.

Era o “Forrest Gump” da Serra do Le-nheiro. “Os Trapalhões” vinham filmar em São João del-Rei? Lá estava o Chacal. Tra-vou boa camaradagem com o divertido Mussum. Dois bagunceiros, certamente aprontaram.

Vinícius de Morais e Toquinho deram um show no nosso Teatro Municipal? Cha-cal tomou doses generosas do bom uísque com o poeta. Deve ter concordado com Vi-

nícius: o uísque é o melhor amigo do ho-mem; é o cachorro engarrafado.

Autoridades políticas em visita à cida-de? No meio delas estava o Chacal. Saudava e, não raramente, polemizava. Atitudes do menino traquinas que sempre foi. Malda-de? Nenhuma.

Viajar? Chamassem o Chacal, era com ele mesmo. Automóvel, ônibus, navio ou avião. Tanto fazia. Foi assistir “in loco” à Copa da Espanha de 1982. O Brasil não venceu o torneio, apesar do mágico fute-bol-arte da equipe de Telê Santana. Mas Chacal trouxe na lembrança vários cane-cos de cerveja e vinho: coisa de campeão! Trouxe também a alegria incomensurável de narrar passagens inverossímeis, vividas ou imaginadas, em terras espanholas.

Chacal me alegrou muitas vezes. Era o seu jeito de ser. Imagino o conterrâneo em Madri, no centro da Plaza de España e numa tarde reluzente de céu azul. Diante da bela fonte Miguel de Cervantes, mira as es-culturas do Dom Quixote, Sancho Pança e suas montarias. Ouve o “Cavaleiro da Triste Figura” vociferar:

“Se me não queixo com a dor, é porque aos cavaleiros andantes não é dado lastima-rem-se de feridas, ainda que por elas lhes saiam as tripas”.

Assim era o Chacal: partiu sem despe-didas e sem chiar um ai. Deus o tem.

CRôNiCA DE UMA CERTA SãO JOãO DEL REi

Chacal

ExPEDiENTE

JORNAL CULTURAL PLURALEditor: Bernardo G.B Nogueira

Revisão: Raquel Abreu Aoki

APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton:

Cinthia Mara da Fonseca PachecoProjeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação:

Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOS, SUGESTõES E ANÚNCiOS: [email protected]

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

EDiTORiAL

Plural é ser para o outro

A ambivalência é uma característica que comparece como face do humano. Estamos sempre no limiar entre deuses e a contin-gência do existir enquanto homens. Nessa condição inescapável relacionamo-nos com o outro à procura do caminho perdido. Por certo ele não será encontrado. A nossa possi-bilidade esta encerrada mesmo no impossí-vel da certeza. Assim é que o Jornal Cultural Plural nasceu: Ambivalente. Entre o existir técnico de que nos fala Heidegger, e a ten-tativa de uma existência poética anunciada pelo poeta alemão Hölderlin. No entanto, dentre todas as dúvidas que conduzem nos-so caminho, já agora podemos nos acalen-tar, pois o Plural agora é dos seus leitores que trouxeram vida a ele. Leitores também ambivalentes, mas quando o humano dei-xar de titubear e possuir certeza no existir, não mais nos iremos desencontrar. Isso se-ria o fim da pluralidade e da incerteza que nasce toda vez que o outro nos acolhe com um olhar novo e que é só poesia, cheio de cheiros novos e ambivalências.

Por Bernardo G.B. Nogueira

“Marmota, marmotinha, vamos todos marmotar” (do são-joanense Chacal, em paródia à marchinha infantil “Ciranda, Cirandinha”).

Por Rogério Medeiros Garcia de LimaDesembargador do Tribunal de Justiça-MG e professor de Direito na Newton

Rua afonso Pena 375, Loja 10 - CentRo (31) 3761-8382 Rua MaReChaL fLoRiano Peixoto, 12 (31) 3763-5562

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 2 | JULHO A AGOSTO DE 2013 3

Do senso comum à audiência

POESiA DE POEiSA 2

Por Márcia Tiburi

Dizer que não lemos escritores brasileiros contemporâneos é uma daquelas verdades tristes que povoam o cenário do senso comum atual. Diz-se o mesmo do cinema brasileiro. Poderíamos dizer o mesmo de certa música brasileira contemporânea que não anda nos circuitos comercais. O mesmo ainda pode ser dito das artes em geral, pois parece que poucos se ocupam do trabalho de artistas que fazem carrei-ra na pintura ou nas artes visuais em geral. Pode-ríamos também falar da ciência. Afinal, sempre é bom perguntar o que sabe o senso comum sobre a pesquisa em física ou biomedicina?

Pode parecer repetitvo ler algo sobre o sen-so comum depois de tanto ter sido falado sobre ele nos manuais de filosofia que andam por aí, mas é um fato que o senso comum impõe ver-dades e elas atrapalham algumas coisas. Cha-mamos de senso comum justamente o conjunto dos discursos que valem como opiniões verda-deiras apenas porque são correntes. Platão e Aristóteles sabiam que não haveria filosofia que não partisse do senso comum.  Desmontar o senso comum,  desmanchar a mera opinião seria o único jeito de seguir no caminho de um pensamento mais cuidadoso sobre as coisas que poderia, em certo momento, ser chamado de “conhecimento.” Claro que podemos sempre dizer, mas quem se importacom isso? Afinal, quando ao mundo da filosofia também corre a “verdade” de que filosofia é algo difícil e que “não existem filósofos no Brasil”.

Estou falando tudo isso para colocar a questão sobre o fundo falso do chamado “senso comum”. Do que se trata quando acreditamos em tais “verdades”? Do fato de que o fundo do senso comum é a sua própria imposição como verdade.  Para falar em termos filosóficos é como se faltasse alguma verdade ao senso comum da qual ele mesmo depende para impor-se como verdade. É como se valesse por ser repetido e não questionado. Isso é o que se chama “petição de pincípio”. Assim, antigamente, para algo ser verdade, dependeria de uma autoridade, o rei, o imperador, o pai de família, o padre, o pastor.

Em nossos dias, desde a invenção dos meios de comunicação de massa, temos tam-bém a invenção das massas. As massas não existiam antes da igreja tê-las inventado. O ci-nema, o rádio, a televisão e, por fim, a Internet, existem por que existem massas.

  As massas, no entanto, estilhaçam-se a cada dia. Para que exista essa coisa chamada de massa é preciso que haja um quantidade imensa de pessoas que não pensam por conta própria e

alguém que pensa por elas. É uma questão geo-métrica. Um único pastor, um único guia, ou até mesmo um único “filósofo” e temos uma massa que, quanto mais compacta, mais é massa Em contexto chamados de “hegemônicos”, podemos dizer que os “guias” disputam servos teleguiados. No entanto, quando há mais pastores maior é a esponjosidade das massas e, podemos dizer tam-bém, que chegamos à fragmentação que implica um desfazimento do caráter compacto de uma massa. Em outras palavras, podemos dizer que quanto mais pastores, no extremo, não teremos mais pastores. A internet parece ter providencia-do isso, hoje cada um tem seu meio de comuni-cação, o seu pedacinho no latifúndio na rede, o seu espaço para fazer o seu jornal. A comunidade no seu sentido mais antigo é o que vai deixando de existir para dar lugar a outros sentidos, inclu-sive o de que vivemos hoje apenas simulacros de comunidades ou comunidades espectrais como dizem alguns filósofos.

  Persiste no novo território dos sentidos, aquilo que chamamos de audiência. A audiência é um conjunto de pessoas que pode ou não ser uma massa. Audiência pode ser o todo ou uma parte do todo. Os veículos de comunicação de massa gostariam que as audiências fossem sempre de massas, porque o poder faz a força e porque os patrocinadores que querem sempre “vender” alguma coisa, vender “mais” alguma coisa, precisam da quantidade. Mas a audiência pode ser pequena e ter alta qualidade.

  Coisa que falei no meu livro Olho de Vidro – a televisão e o estado de exceção da imagem (Record, 2011), é que o que está em jogo no contexto da cultura industrializada é a manipulação de um desejo curioso. Trata-se do desejo de fazer parte que anima a audiên-cia, que faz com que as pessoas queiram ver a mesma novela que está passando na televisão ou o que estiver sendo oferecido desde que haja a expectativa de que “todo mundo está vendo”. Como se o fato de que “todos estão vendo” me tornasse parte de uma coisa grandiosa. Difícil questionar este lugar porque nossa experiência contemporânea implica um certo desespero re-lativo ao lugar social que ocupamos. Quando não podemos fazer nada ou “ser” muita coisa só restam dois caminhos:  desmanchar-se no todo pensando igual e querendo a mesma coisa, ou buscar um caminho próprio.

Mas o que seria um caminho próprio que não se medisse simplesmente com a competiti-vidade vigente que parece imposta a todos to-dos os dias sob as mais diversas formas?

Texto originalmente publicado no blog da autora e gentilmente cedido

http://filosofiacinza.com/

FiLOSOFiA CONTEMPORâNEA

O segredo da florPor Bernardo G. B. Nogueira

Agora tens permissão pra ir dor-mir e deixar sair pelo mundo o seu cheiro de flor. Eu descobri porque você sabe de tudo. É porque à noi-te quando dorme você se relaciona sexualmente com o mundo através do seu cheiro, ai quando as pesso-as acordam daquilo que pra todos é um sonho e pra você não é, ficam todos querendo te dizer tudo - mal sabem eles que isso nunca irá se aca-bar, até o dia em que você viver. Por-que quando flor dorme ela transa, e quando ela acorda esta todo mundo fecundado por ela. Daí os olhares, as atenções, as idéias e os melhores cuidados vêm todos pra ela. Por-que ela é a mãe, o pai, a mulher e o homem de todas as espécies que só vivem porque a flor deixa-se transar com elas todas. Uma transa assim, de transe mesmo, sexual, metafísica, política e religiosa. Divina e profana. Pois quando uma flor dorme parece até a hora em que um anjo desce do céu. Ela fecha os olhos, abre seus po-ros, e o mundo flutua em sua cor, seu cheiro, sua pétala e todo o seu odor. Porque sem a flor no mundo a noi-te seria só hora de dormir. Mas com ela por ai  a noite é hora de parir, de sentir e de partir. Partir os corações de todos que passam perto dela, que sem se dar conta, acabam ficando apaixonados. Escrevem linhas intei-ras de adoração e depois prostram exaustos sem saber motivo, causa ou explicação. Então, toda vez que uma flor dormir é importante ter muito cuidado pra não acordá-la. Sua vida existe quando a maioria desaba. Ela concebe o mundo em instantes de fada. Fere o peito do cão viril e dei-ta plumas aos amantes. Na hora do seu sono nascem reis e derrubam-se castelos. A saudade invade e os dias são mais sinceros. Porque nem um suspiro de flor é em vão. Porque de-pois que ela dorme o mundo inteiro acorda, e quando ela pisca os olhos, todas as criaturas dançam e inven-tam acordes, pra dormir de novo e esperar mais uma visita da flor, que agora dorme...

bernardogbnogueira.blogspot.com

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CRôNiCA DE UM LEiTOR

Por Th alita Dittmaier

Muito se tem falado. Discutir política é a nova modinha brasileira. E cá estamos. Vozes. Gritos. Cartazes. Palavras. Manifestações em todo o país e um aparelho midiático atento. Uma profusão de amor à pátria em plena Copa das Confederações. E, encantadora e assustadora-mente, nada disso tem a ver com futebol.

O preço do transporte desencadeou uma revolta necessária à percepção do óbvio já defendido por Aristóteles: somos todos animais políticos. Somos todos construídos socialmen-te, em menor ou maior grau de alfabetização política. Você pode até não ter um partido, mas duvido de que não tenha uma ideologia para viver. Gostaria, portanto, de destacar o clamor daqueles intitulados “apartidários”, neutralizados ou não pela zona de conforto do sofá da sala.

Rejeitar os partidos políticos é querer fazer política numa espécie de vácuo social. Numa democracia, partidos e ideologias têm o direito de existir. Certa vez, presenciei, em solo alemão, uma manifestação dos radicais de direita, escoltados, aliás, pela polícia. Enquan-

to latino-americano, com ou sem dinheiro no banco, bem, enquanto brasileira, assistir a uma coisa dessas é mesmo de revirar o estômago. Nesse dia, porém, consegui perceber com mais clareza o que minha mãe sempre diz e, conse-quentemente, o raciocínio alemão: proibir é pior. Enfi m, democracia é isso.

De volta a terra brasilis, eis a grande impren-sa tentando maquiar o movimento em favor do conservadorismo. E é evidente, para quem não se fi nge de morto, que a direita brasileira, a qual sempre tratou o Estado como propriedade priva-da, está se aproveitando do que se passa nas ruas, inclusive dos ingenuamente sem-partido. Não tem sido fácil aceitar a perda do poder, ainda mais pela via democrática.

Eu não acredito em neutralidade discursiva. Somos humanos. Você tem todo o direito de não gostar do que eu digo ou do governo atual, já que as falhas petistas são muitas. Mas, na minha per-cepção de mundo, negar os avanços político-so-ciais alcançados nos últimos dez anos é ingratidão e burrice. E querer entregar (novamente!) a faca e o queijo às mãos de uma classe elitista que tanto nos freou e endividou é burrice ao quadrado.

Na verdade, atento-me, no momento, para uma multidão de vozes coloridas, de vários ta-manhos e idades, transformando-se num grito uníssono em recusa a um modelo de sociedade cansado de valores individualistas. Pode ser um tanto quanto utópico da minha parte, mas prefi ro assim. O que dá medo é a incerteza do rumo des-sa viagem, uma vez que a apropriação do movi-mento é real e a direitização camufl a-se, cada vez mais, sob a forma de discursos vazios e incoeren-tes. E não se pode deixar de mencionar o poder das redes sociais. Estas, como tudo na vida, têm seu lado bom e seu lado destrutivo. E o imedia-tismo da internet, aliado a uma preguiça de pen-sar, torna-nos, muitas vezes, reféns de milhares de bobagens (leia-se senso comum), diariamente compartilhadas no mundo virtual.

Não podemos deixar essa energia positiva de mudança esvair-se. Não podemos simplesmente disseminar ideias sem, ao menos, compreendê--las. Não podemos fechar os olhos diante dos fatos. A falta de informação é extremamente perigosa para a democracia. Como nos alenta a poesia drummondiana, “esse é tempo de par-tido, tempo de homens partidos”. Uns olhando a si próprio, outros querendo (apenas!) derrubar os muros berlinenses segregadores da riqueza e da pobreza, do centro e da periferia. E, por fi m, como humana que sou, acredito na força da cor daquilo que corre nas minhas veias.

Por Elenilson Nascimento Não tenho muita paciência com gente burra.

Pior ainda com gente preguiçosa. E em um desses meus acessos incuráveis de nostalgia, de querer consumi livros, cometi o crime inafi ançável de fi car tomando emprestados livros na Biblioteca Pública dos Barris. Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me infl uenciaram e emocionaram. Mas não se pode entrar na biblioteca para descobrir livros. Tem que ser na base da sorte ou na boa vontade dos funcionários em sugerir um título – coisa que nunca eles fazem. Mas já topei com al-guns volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu.  

A biblioteca – que seus funcionários têm o orgulho de dizer que tem 201 anos – é um imenso elefante branco inútil. Um lugar oco e cheio de gente de cabeças ocas. Normalmente as bibliotecárias que me atendiam com aquela suave descortesia típica dessa categoria profi s-sional, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido, parecia que-rer encravar na minha cara uns 100 mil tapas por ter interrompido o seu trabalho ocioso de contar moscas e/ou o joguinho de paciência no computador.

  Eu sei que as bibliotecárias, entre suas

muitas funções hoje em dia, sentem-se na obrigação de ocultar os volumes mais raros de suas respectivas bibliotecas por medo que algum doente, como eu, venha a danifi cá-los ou, na pior das hipóteses, roubá-los. Mas para que os pagodeiros dessa província vão querer roubar livros?   

  Bibliotecas mais escondem do que mos-tram. Mais discriminam do que educam. E isso é lamentável. Devem existir muitos depósitos ou estantes secretas vedadas aos visitantes. Essas devem ser as melhores – e, graças às bibliotecá-rias, você jamais chegará a elas. 

Já peguei muitos livros e nunca atrasei um único dia. Sempre fi z questão de entregá-los até mesmo antes do prazo. Até que me descui-dei e devolvi um exemplar com 01 dia de atra-so. Resultado: bloqueado!

 Mas não é só na Biblioteca dos Barris que a incompetência é uma força do hábito. Noutro dia, estando num shopping (*ando detestando shoppings), fi z um teste bem sacana, entran-do na Saraiva, que é considerada uma livraria por excelência pelos pseudo cults, disparei: “O Amor nos Tempos do Cólera” em  cinco volu-mes da autoria do cubano Elenilson Nasci-mento?”, perguntei a uma moçoila de óculos com o crachá de vendedora. Ela, de pronto, respondeu-me: “Os últimos volumes foram

vendidos ontem!”. Bem, como os bem infor-mados já perceberam o livro em questão é do Gabriel García Márques, que não é cubano e nem tão pouco eu escrevi tal livro. E quem me dera tê-lo escrito!

  Em tempos idos, eu encontrava nas bi-bliotecas públicas ou nas livrarias um abri-go para meditar, planejar e fugir do mundo. Passeava pelas estantes como quem viajasse por outros planetas, tempos e realidades, me-mórias, histórias, uma lição de vida aqui, uma descoberta da crueldade humana ali, fantasias inúteis acolá. Mas hoje, os tempos são outros. E a ignorância impera!

 Devo muito aos livros na minha forma-ção. Fiz Letras e “pós de lugar algum” enfur-nado na minha biblioteca particular, pois as bibliotecas públicas de Salvador são deprimen-tes. Anos atrás, elas costumavam ser lotadas de leitores ávidos. Os usuários se interessavam por cultura, e não apenas como uma ferramen-ta para subir na vida e destruir os concorren-tes. Lembro que nos anos 80 havia ofi cinas e debates. Os livros de poesia e os romances não paravam nas prateleiras. Agora os ácaros, os carunchos e toda sorte de inseto venceram os leitores. Para não falar da umidade – que, re-centemente, quase acabou com um exemplar de Nelson Rodrigues que eu encontrei por lá.

DiE RUBRiK

Licença Poé...Política!

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 2 | JULHO A AGOSTO DE 2013 5

FiLOSOFiA POLíTiCA

Por José Luiz Quadros de Magalhães

Estamos vivendo uma distopia? Uma questão interessante na referencia binária presente nas palavras distopia e utopia, é que a ideia de um futuro ruim é realizável e a ideia de um futuro ótimo é irrealizável. Porque será?

As palavras são significantes às quais são atribuídos sentidos (significados) que condicionam o pensar. Uma palavra pede outra, uma frase deve ter ordem para ser compreendida. A gramática condiciona o pensar, assim como as regras para se fazer um poema, um romance, uma dissertação, uma tese, um artigo cientifico. Formas. As formas, as regras, aprisionam. Há uma ideia livre aprisionada na gaiola da forma. Formas aprisionam, mas será possível falar de liber-dade dentro de uma gaiola? Para a liberda-de ter chance precisamos antes descobrir o quanto estamos presos.

Voltemos à nossa pergunta: porque a utopias são impossíveis e as distopias possí-veis? Vivemos uma distopia?

Talvez a resposta a esta pergunta passe pela resposta a outra pergunta: quem atribui sentido às palavras. O filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek nos lembra o imenso poder que detém aqueles que atribuem sen-tido às palavras utilizadas no cotidiano da maior parte das pessoas. Este poder interfere na construção do senso comum.

Porque no cinema e na cultura popu-lar contemporânea não encontramos mais utopias? Para onde elas foram. Além de transformarem as utopias em irrealizáveis agora não nos permitem pensar nelas. Pode ser muito perigoso para o poder as pessoas sonharem com uma outra vida, uma outra sociedade, cidade, planeta. Ora, a utopia como um futuro perfeito irrealizável cumpre um papel motor muito perigoso: as pessoas, para fugir da proibição de viver em uma so-ciedade perfeita podem se movimentar em busca de algo diferente, em direção a esta perfeição impossível. Este movimento que a utopia permite, de um horizonte que sempre se afasta do caminhante, mantém as pessoas caminhando para um outro lugar. Daí a proi-bição da utopia. Agora não basta dizer que a utopia é irrealizável, é necessário paralisar as pessoas, proibindo sonhar com algo irreali-zável. A ordem é: “sejamos pragmáticos, não

percamos tempo sonhando com isto”.As distopias do cinema (e nos outros

espaços da cultura popular) no lugar das utopias, trazem este recado: “estão vendo, se acham que a vida está ruim, pode ficar muito pior”. Assim, ao revés, transformaram a dis-topia em algo também irrealizável: sempre pode ficar pior, portanto, fique quietinho, qualquer movimento em busca de algo dife-rente pode fazer sua realidade piorar, “e olha que o buraco não tem fundo”.

Paralisando a história: distopia

Voltemos à nossa pergunta:

porque as utopias são impossíveis e as distopias possíveis?

Vivemos uma distopia?

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 2 | JULHO A SETEMBRO DE 20136

CONTO ETéREO

Por Tânia Cristina Dias* A mãe, na cozinha, lava os pratos. Flores azuis, listras rosas, qua-

drados verdes, ou totalmente brancos. Aquelas variações de pratos que restam dos que se quebram. A filha sentada à mesa, cabeça sus-pensa pelos braços, balança as pernas cruzadas, de cima da cadeira alta de madeira. Ora olha a mãe, ora a janela, um pouco aberta. Do pequeno espaço azul do céu, vê-se o desfile lento de algumas nuvens.

- Mãe, passou uma agora; parece um coelho gigante, agora um sapo... A mãe imita um coaxar. A filha sorri. A mão de mãe ensaboa,

lava, transforma coisas pegajosas em livres. A gordura escoa pelo cano. Estende o pano de prato à filha que, vagarosamente, recolhe os pratos do escorredor e seca-os. Empilha-os. Observa a mãe. “Tão bonita. Vou ser assim quando crescer?” O vestido que usa, assim solto, fino e colorido, parece com o da mãe. Um pouco rosa, um pouco azul, um pouco branco. Arrasta a borda no chão, pela insis-tência da filha de usá-lo sem bainha; na espera de perceber o próprio crescimento aos poucos. E vê-lo atingir a canela, a batata da perna os joelhos. “Vou saber com certeza, que já sou grande”.

O fogão parece agora estar vestido de sabão, pensa a filha.- Que carinha risonha é esta? A mãe pergunta.- Mãe, pro carnaval você faz pra mim uma roupa de espuma?- Pra você deslizar na passarela?- Não. Pra você passar a mão em mim. As duas riem. Encontro da ironia do desejo de crescer com a

essência do sonho irrefutável de criança, quando tudo é possível. As-sim, da mesma forma que se pode costurar água e sabão e dar forma à fantasia.

A menina olha de novo à janela: as cores da nuvens muda-ram. “Por que tudo muda? As cores e formatos das nuvens?”

- Aquela com formato de elefante, também tem células? A mãe, gentilmente, coloca uma pequena bola de espuma no nariz da filha.

- Não, minha filha, tem água, muito vaporzinho d’água. Parece um pouco com a espuma neste narizinho.

- E nuvem coça feito espuma? A mãe, em meio a seu próprio sorriso, pensa: “Como as idéias

fermentam nesta cabecinha”. A filha, um pouco indignada com o sorriso da mãe, pergunta o que disse de engraçado.

- Nada, minha filha. Só acho que não precisa tanta pressa para entender o mundo. Venha cá.

Senta-se, coloca a filha no colo, enquanto diz: - Um dia, quando o seu vestido estiver mais ou menos aqui na

altura da sua coxa, você vai saber o porquê. A vida muda, porque faz parte dela mudar. Você não quer tanto crescer? Existem coisas de todos os tamanhos, algumas grandes, de um tamanhão imenso, e outras pequenas, bem menores que as pequenas que você conhece.

- Igual célula de formiga?- É mais ou menos.- Aí, você falou de novo aquilo que não é nem uma coisa nem ou-

tra. Me fala, com certeza, qual é a maior coisa do mundo. De verdade.- A maior coisa que pode haver no mundo é o que cada pessoa traz dentro dela mesma. Se chama sentimento.

- Parece cimento! A filha enrola no dedo o cabelo da mãe. Solta o cacho, cai liso em sua mão.

- É mais forte que cimento.

- Maior que um dinossauro?-É.- Maior que um nimbo?- Também.- Maior que três planetas?- Muito maior. A mãe reflete um pouco aponta para o céu e diz:- É maior que o infinito.- Nossa... e como cabe aqui tudo dentro da gente?- Coração de gente é maior que o próprio tamanho. Quanto

mais amor se coloca, mais cabe. Assim feito o amor de uma mãe por uma filha infinitamente perguntadeira. É como uma casa muito grande com muitos cômodos.

- Com muitas portas?- Sim.- Em quantas portas tem o meu nome?- Em todas.- Gostei. Gosto desta palavra: todas.- E quais são as outras palavras que esta filhinha tanto gosta?A mãe abraça e balança a filha em seu colo.- Tudo, céu, balanço, paralelepípedo, amora e cimento. Ah.

Não...esqueci. Leva o dedo a boca enquanto lembra: - Sentimento infinito. A mãe olha pra fora. Começam a cair os primeiros pingos de

um sol com chuva, do tipo arco-íris à vista.A mãe, improvisadamente, convida a filha: - Vamos andar na chuva? A filha não entende. Já que chuva resfria. -Vamos filha, tire o chinelo. “Mamãe deve estar doida.” Mas o convite é tão surpreendentemente tresloucado e travesso

que a filha permite. A chuva desce já a ladeira, formando enxurradas dos lados, barquinhos de papel sem almirantes descem tortuosa-mente a rua. A mão grande da mãe se oferece a da filha. A música “dançando na chuva” não existe. Apenas o riso de mãe e filha giran-do, girando em companhia. Mãos dadas, pés descalços, água fria.

- Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol.

- Mamãe, quem casa hoje, viúva ou espanhol? - Não sei, minha filha.Algumas pessoas passam aflitas e não conseguem imaginar

o motivo de tanto riso.O motivo é tão simples. Tão claro feito folha verde de banho de água do céu. É um dia sem mais nem menos, sem comemoração, sem quê nem porquê. O arco-íris já se faz enfeite no céu. São mãe e filha rindo com o singelo da vida, pés na água fria, balé de pernas girando, entrelaçando-se, mãos segurando a quem ama. Comemoram sem nenhum preparo de festa. São mãe e filha.

A filha sempre girando, volta sua cabeça para o céu, caem peque-nas gotas de chuva em seu rosto. Sente o coração batendo forte no peito. Fecha os olhos para impedir a água da chuva, mas continua vendo a mãe. Começa a ficar tonta, enquanto imagina a mãe vestida de nuvem....é um cimento infinito....pensa....gira...

* Contista

Arco-íris

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ANÁLiSE D(O) REAL

Real, realidade e imaginação

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ANÁLiSE D(O) REAL

Real, realidade e imaginação

Por Tatiana Ribeiro de Souza1

A palavra imaginação exerce sobre mim um especial fascí-nio. Imagem, imagem, imagem, imagem... Muitas e conectadas. É assim

que eu penso a “imagem-ação”. Que coisa extraordinária é saber que até mesmo um fato não acontecido pode ser transformado em um conjunto de imagens. Pesso-

as desconhecidas, experiências vividas por outros, estórias que lemos ou escutamos e até os desejos podem ser convertidos em imaginação. Mas de onde vêm tantas imagens? Qual é

o repositório desse nosso infi nito imaginário? A resposta mais apressada seria que as imagens que cultivamos na mente são a reprodução de algo visto ou são invenções. A resposta mais elaborada nos diz

que é impossível que a nossa mente reproduza fi el e exclusivamente o que foi visto, bem como é impossível separar nossas invenções do que, de alguma forma, já vimos.

No sentido amplo, poderíamos chamar de imaginação toda sequência de imagens que estejam conectadas, tenham elas signifi cado ou não. Todavia, quando tais imagens reproduzem majoritariamente o que os olhos cap-

taram, damos a essa sequência o nome de realidade. Melhor seria dizer que o conjunto de imagens captadas daquilo que foi visto constitui a realidade. É evidente que a realidade não pode ser reduzida a imagens, uma vez que ela pode se

expressar sob as mais diversas formas de apreensão do real. Chegamos fi nalmente à proposição desse ensaio: discutir onde se situam e se relacionam o real, a realidade e a imaginação.

O que chamaremos de real, nesse ensaio, é a coisa em si, aquilo que é. Poderíamos até levantar a questão sobre a existência do real, mas partiremos de dois pressupostos: o primeiro é que o real existe e o segundo é que o real é inapreensível em sua inteireza. Usemos

como exemplo a leitura de um texto. Quando lemos um texto é comum encontrarmos palavras desconhecidas, ou melhor, ainda não in-serida no universo de signifi cados que dominamos. Nesse caso, podemos vivenciar diferentes experiências na apreensão do conteúdo do texto: podemos deduzir acertadamente o signifi cado desejado pelo autor; podemos entender o inverso do desejado pelo autor; podemos rejeitar o conteúdo do texto, abandonando inclusive o que foi apreendido; podemos inventar novo conteúdo ao texto etc.

A vida é esse texto. Tudo que conhecemos nos foi apresentado, por alguém ou por determinadas circunstâncias, e a partir desse momento atribuímos signifi cado a cada coisa. O que não tem signifi cado pra mim, eu não conheço. “Maria Lombarde Barbosa”. Acabo de inventar esse nome, que pra mim não tem qualquer signifi cado. Eu não conheço Maria Lombarde Barbosa. Mas, por exemplo, o nome “Carla Bruni” tem um signifi cado pra mim. Este nome foi registrado pelo meu universo de signifi cados como, entre outras coisas, a franco-italiana que se casou com o ex-presidente da França, Nicolas Sarkozy. Eu conheci “Carla Bruni”, ou melhor, a mim foi dado conhecimento sobre “Carla Bruni”, e quando leio qualquer notícia sobre a ex-primeira dama da França meu cérebro aciona o signifi cado construído sobre esse nome e, então, eu conheço outra vez, vale dizer: reconheço.

O único acesso que temos sobre o real é por meio do que já conhecemos. O que não é automaticamente explicado pelos meus pré--signifi cados eu não reconheço, e a minha postura sobre o novo pode ser ignorá-lo ou atribuir-lhe um novo signifi cado. A postura das pessoas diante do real varia conforme as combinações de signifi cados que vão lhe permitir acesso a esse real. E isso, que eu acabo de chamar de postura corresponde ao que classifi co nesse texto como realidade.

Quando escutei a canção “Você, você”2, do Chico Buarque, pela primeira vez, construí um signifi cado à narrativa da letra, uma vez que conheço as palavras que a compõe. A realidade daquela música era a interpelação de um homem, aparentemente enciuma-do, ou até traído, sobre os passos da mulher amada. Todavia, ignorava o fato de que o compositor havia escrito a letra inspirado na obsessão do seu neto pela mãe. Talvez tivesse chegado a essa conclusão se tivesse observado o subtítulo da música: “canção edipiana”. O fato é que da soma dessa informação aos outros tantos signifi cados já construídos na minha visão de mundo, sobre a relação entre mãe e fi lho, a sensibilidade do Chico Buarque para os sentimentos femininos e meu domínio sobre as palavras que compõem a letra da música, nasceu outra música. Certamente há fatos que me escapam na composição de “Você, você”, pelo Chico Buarque, de modo que eu não tenho completo acesso ao real. Mas a interpretação que hoje tenho da canção é

indubitavelmente uma realidade. Quanto àquilo que eu não tenho condições de saber, mas me povoou a mente, relati-vo às relações familiares do compositor, isso sim é imaginação.

A Carla Bruni existe, ela é real. Eu tenho minha própria versão de quem é a Carla Bruni, o que é realidade. Mas o que eu vejo como uma possível convivência matrimonial com um sujeito como o Sarkozy, sobre o quê

nunca li a respeito, é apenas imaginação. Meu argumento fi nal é que não existe “pura realidade” nem “pura imaginação”. O que existe é o real, o resto é um pouco de realidade e um pouco de imaginação e a me-

dida de cada uma é que vai determinar a que distância o observador está do real.

(Endnotes)1 Doutora em Direito Público mestre em Ciências Sociais. Professora do Centro Universitário Newton e apresentadora do

Programa Contraponto da TV Comunitária de Belo Horizonte.2 “Que roupa você veste, que anéis?/ Por quem você se troca?/ Que bicho feroz são seus cabelos/ Que à noite você solta?/ De que é que

você brinca?/ Que horas você volta?/ Seu beijo nos meus olhos, seus pés/ Que o chão sequer não tocam/ A seda a roçar no quarto escuro/ E a réstia sob a porta/ Onde é que você some?/ Que horas você volta?/ Quem é essa voz?/ Que assombração/ Seu corpo

carrega?/ Terá um capuz?/ Será o ladrão?/ Que horas você chega?/ Me sopre novamente as canções/ Com que você me engana/ Que blusa você, com o seu cheiro/ Deixou na minha cama?/ Você, quando não dorme/ Quem é que

você chama?/ Pra quem você tem olhos azuis/ E com as manhãs remoça/ E à noite, pra quem/ Você é uma luz/ Debaixo da porta?/ No sonho de quem/ Você vai e vem/ Com os cabelos/ Que você

solta?/ Que horas, me diga que horas, me diga/ Que horas você volta?”

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JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 2 | JULHO A SETEMBRO DE 20138

CRôNiCA DE UMA ViDA EM MOViMENTO

O testemunhoBarroso da Costa

- Ajeita a luz, Silveira. Isso... Pron-to! Testemunho 22, take 1. Gravando.

- Sim, meu nome é Mário de Sou-za Bittencourt, ex-ator de televisão. Tenho 26 anos. É... eu atuei naquela novela, sim. Falar sobre minha vida? Desde pequeno tenho manias, vícios. Lembro-me quando fi cava o dia intei-

ro trocando fi gurinhas. Colecionava de tudo, das caras dos jogadores de futebol a selos postais. Na adolescência começaram as apostas... Primeiro, as bolinhas de gude, depois o pife-pafe a valer e, por fi m, já brincava de roleta--russa. Era viciado naquela possibi-lidade de perda. Drogas? Fumei ma-conha minha vida inteira. Aos quinze comecei a cheirar e, aos dezessete, já estava totalmente fi ssurado no crack, sem contar o cigarro, que me fumava, e a cachaça, que consumia diariamente aos litros. Cheguei a transar com mais de três mulheres por dia. Depois que entrei para a Igreja? Não. Aí eu parei com tudo. Jesus me libertou, aleluia. Hoje já não sou viciado em mais nada. Frequento a Igreja de manhã, de tar-

de e de noite. Oro ao Senhor a cada segundo e assisto a, pelo menos, cin-co cultos por dia. Não paro nem para comer e chego a dormir no templo. Já não tenho mais vícios, nenhum vício. Como disse o Pastor Josias, hoje só há espaço para Jesus na minha vida.

- Excelente! Corta.

A língua de camões

1.mais amaríeis meu cortado canto

se mais soubésseis como sois amadae navegásseis pelo meu espanto.

2.se me amásseis tamanho eu vos diria

da dura solidão dos precipíciosda falsa imensidão dos sodalíciosda cortada razão dos meus ofícios

se me amásseis por certo eu vos diriae a minha voz em voz por todo cantodecerto iria quebrar-vos em espanto.

3.senhora, eu vos amei por tanto, em tudoque de camões busquei o meu primeiro

estado de um estado verdadeiroe vos cantei canções que são veludo.

4.se os arcabouços meus em vós levásseis

e se dormísseis no meu louco portoe mais amásseis o meu antro tortoe se acordásseis meu poema morto

faríeis meus duelos bem mais fáceis.romério rômulo

http://romerioromulo.wordpress.com/

Ser-ia Várias são as escolhas da vida, verdade.Inúmeras, também, as dúvidas e angústias.Ser hedonista, cultivar o prazer, talvez

fosse a saídaE, ao mesmo tempo, a entrada em mais

uma dúvida da vida.Mais por quê? Perguntar-me ei, ia

Ora, o que é o prazer?Alguns sofrem com a dor, alegram-se

também.Outros sobrevivem com pouca:

Cultura, informação, dinheiro e ódio.Esses últimos, quem mais instiga.Mais por que? Perguntar-me ei, ia

Ora, como não sentir ódio daqueles queAmam odiar?

Prazer, enfi m, palavra vagaO vento frio no rosto pela manhã

O afago carinhoso da mulher amada!Amar, ei, ia ...Viver,ei, ia ...

Prazer, Ser,

Serei,Seria!

Th iago Augusto de Freitas

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