JORNALISMO E PRECONCEITO: UM DIAGNÓSTICO … · Atualmente, o movimento homossexual encontra-se...
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
JORNALISMO E PRECONCEITO: UM DIAGNÓSTICO DO SILENCIAMENTO DAS
DEMANDAS DO UNIVERSO LGBT NA ESCOLHA DAS NOTÍCIAS
Ingrid Pereira de Assis1
Resumo: Este artigo é resultado de uma pesquisa que observou a divulgação das notícias
relacionadas ao universo LGBT dentro de um veículo de comunicação, e mais especificamente,
notícias relacionadas à violência cometida contra este grupo social para, a partir desta observação,
compreender que há um silenciamento das notícias com relação a este universo. Tal ocultação acaba
funcionando como uma segunda violência, eclipsando as demandas da comunidade LGBT em
busca de melhores condições sociais e colocando em cheque a função humana e social do
jornalismo.
Palavras-chave: Jornalismo. LGBT. Preconceito.
Introdução
A rotina de produção jornalística tem características próprias, nas quais pesam alguns
fatores, tais como: público-alvo, canal e intenção comunicativa etc. Várias teorias foram elaboradas
com o objetivo de tentar compreender o que transforma um fato em notícia e quais são os critérios
utilizados pelos profissionais da impressa para avaliar o que deve ou não ser noticiado.
No livro Teorias da Comunicação, Mauro Wolf enumera alguns fatores que ampliam os
critérios de noticiabilidade, tais como: importância dos envolvidos, quantidade de pessoas atingidas,
interesse nacional, feitos excepcionais, atualidade, novidade, brevidade etc.
No dia a dia de uma redação, percebe-se a influência de outros fatores ligados, sobretudo, à
manutenção das crenças e interesses dos hierarquicamente melhor posicionados. Observando
reuniões de pauta, percebe-se que concepções de gênero, etnia, cultura e religião, são consideradas
por aqueles que têm o poder na hora de decidir qual pauta será produzida, como será o enfoque da
matéria e que destaque determinado assunto terá no jornal.
O último relatório divulgado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência
da República, intitulado “Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2012”, revelou
que o Maranhão é o quarto Estado brasileiro com o maior número de denúncias de violência contra
a população LGBT2 apresentadas ao poder público. A capital, São Luís, concentra o maior número
de ocorrências de casos de homofobia no Estado. De acordo com a pesquisa, são 358 casos por 100
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - Brasil); mestre em
Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA - Brasil); e bacharel em Comunicação Social – Hab. Jornalismo,
também pela UFMA, Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Esta sigla designa lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Em alguns locais do país, o T, que representa a
presença de travestis e transexuais no movimento, também, refere-se à transgêneros, ou seja, pessoas cuja identidade de
gênero não se alinha de modo contínuo ao sexo que foi designado no nascimento (crossdressers, drag queens,
transformistas, entre outros).
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mil habitantes no Maranhão, o que equivale a 5,44%. Em primeiro lugar está o Piauí, com 9,23% e
em segundo o Distrito Federal, com 8,75% e em terceiro o Ceará, com a taxa de 5,63%.
Outro dado significativo deste relatório é de que o Maranhão, mesmo apresentando este
índice alto de violência, é o segundo Estado com menor divulgação pela mídia dos casos de crimes
cometidos contra homossexuais. Considerando este contexto, o objetivo principal desta análise foi
identificar se, passados alguns anos da pesquisa da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República, ainda há um baixo número de matérias relacionadas as demandas da
comunidade LGBT, sobretudo, no que concerne a violências sofridas. Posteriormente, a partir deste
diagnóstico, que mescla observação dos telejornais e observação participante, tal estudo poderá ser
aprofundado tentando identificar o porquê de a violência contra os diferentes grupos pertencentes à
comunidade LGBT ser tão pouco pautada entre os veículos de comunicação maranhenses
considerando a formação dos agentes envolvidos.
Dado o grande número de veículos de pequeno (principalmente), médio e grande porte no
Maranhão e a intensa oscilação de surgimento e desaparecimento destes, optou-se nesta pesquisa
por focar no veículo de comunicação de maior alcance no Estado, a Rede Mirante de Televisão, ou
TV Mirante. A Rede Mirante de Televisão abrange 216 municípios maranhenses e mais de cinco
milhões de telespectadores potenciais, com sedes localizadas nas cidades de São Luís, Imperatriz,
Santa Inês, Região dos Cocais e Açailândia. Em todas, é líder de audiência. Estas particularidades
tornam o veículo um objeto de observação do foco da pesquisa adequado e relevante. Para chegar às
conclusões expostas mais a frente, foram analisados os três principais telejornais da emissora: o
Bom Dia Mirante, JMTV 1ª edição e JMTV 2ª Edição, do dia 1º de janeiro de 2015 ao dia 31 de
dezembro de 2015, portanto, um ano de cada telejornal.
1 Qual a importância de tais notícias?
O jornalismo está intimamente relacionado à prestação de serviço social. Sua base deve ser,
sobretudo, legalista, ou seja, a mídia enquanto Quarto Poder, tem como função fiscalizar a atuação
dos outros três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e denunciar tudo que atente contra a
dignidade humana, principalmente, em sentido jurídico.
Segundo o Art. 3º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: “O exercício da profissão
de jornalista é uma atividade de natureza social, estando sempre subordinado ao presente Código de
Ética”. E é o Art. 6º, deste mesmo código, que determina que é dever do jornalista se opor ao
arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
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Tal Declaração destaca, em seu Art. 1º, que: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade”. E em seu Art. 2º que: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.
Considerando tudo isto, percebe-se, então, que o jornalismo deve denunciar qualquer que
seja a prática discriminatória. O apagamento de práticas de violência contra indivíduos que se
identificam com a comunidade LGBT, ou das suas demandas em um veículo de comunicação,
acaba sendo um segundo tipo de violência. Isto se torna ainda mais complicado quanto se fala em
uma televisão, por ser uma concessão pública.
Trata-se de um problema que, diariamente, entra nas casas dos telespectadores por meio dos
jornais locais, que, em primeira instância, deveriam colaborar para o incentivo do respeito mútuo e
diminuição do preconceito, e não incentivá-lo ou abafar qualquer discussão sobre o assunto.
Portanto, uma pesquisa como esta se fez necessária por levantar a discussão acerca da conduta
jornalística, do impacto da mídia no fortalecimento dos preconceitos estimulados ou não
combatidos via telinha. Espera-se que este tipo de discussão possa, em longo prazo, contribuir para
o ideal de respeito entre as diversidades.
2 Comunidade LGBT e Jornalismo
O movimento LGBT passou por muitas transformações nas últimas décadas. Ao longo desse
período, organizações não-governamentais trabalharam para estabelecer uma identidade para o
grupo e intensificar os diálogos com a sociedade, respaldadas, sobretudo, por redes de defesa dos
direitos humanos.
A tarefa não é fácil. Trata-se de uma tentativa de unificação em uma sigla (LGBT)
conceitos, conflitos e disputas sociais extremamente diversificados. Alguns autores pontuam que o
grupo das lésbicas, por exemplo, é eclipsado nas discussões a respeito do universo homossexual por
sofrer um duplo processo de preconceito, tanto pela sexualidade quanto pelo próprio fato de serem
mulheres. Os travestis, por sua vez, vivenciam um processo de estigmatização pelo estranhamento
da modificação corporal e pela relação com a prostituição.
Os pesquisadores Bruno Souza Leal e Carlos Alberto Carvalho, da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), em artigo intitulado “A grande mídia brasileira e identidades LGBT: um
retrato em 2008”, frisam que:
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Dessa forma, é fundamental observar que as identidades LGBT organizam-se diversamente
em meio não só às tensões de gênero, às práticas sexuais, mas também de uma vasta gama
de outros fatores, entre eles as diferentes conformações econômicas, culturais, regionais e
políticas (LEAL; CARVALHO, 2012, p. 7)
A pesquisadora Glaucia da Silva Destro de Oliveira avalia que, mesmo com todas essas
diferenças, o movimento LGBT se estabeleceu e conseguiu avanços significativos com relação ao
debate contra a homofobia. Segundo ela:
Atualmente, o movimento homossexual encontra-se sob nova estrutura social: forte
presença da mídia e de outros movimentos sociais, diálogo com redes internacionais de
defesa de direitos humanos, atuação junto às agências estatais, respostas diante das
organizações religiosas, manifestações de dia do Orgulho Gay. Seu formato institucional é
regido pelo modelo das organizações não-governamentais (ONGs) em que certa
infraestrutura e organização são exigidas pela necessidade do financiamento e
institucionalização. Os autores apresentam a identidade homossexual atual, denominada
LGBT, sobre bases mais porosas, cujas fronteiras estão entre a diversão, o comércio e a
militância. A mobilização em torno do combate à homofobia tem estado no centro da busca
por conquistas no campo dos direitos e da política, num movimento homossexual tão
multifacetado, aglutinando demandas e reivindicações (OLIVEIRA, 2010, p.380).
Tais ONGs que trabalham em prol da defesa do orgulho gay conseguiram, por meio de
eventos (passeatas, por exemplo), marcados pela grande participação popular, visibilidade na
grande mídia. Esse passo inicial, no entanto, ainda não permitiu que muitos veículos atribuíssem a
devida importância aos materiais relativos ao universo LGBT, tanto em matérias do cotidiano (de
comportamento como do Dia dos Namorados, por exemplo, nas quais casais homossexuais
raramente aparecem), como em materiais sobre a violência contra homossexuais.
Michel Foucault apontou a que história da sexualidade, em si, já é marcada por momentos
de repressão. O autor destaca que no século XVII surgem as grandes proibições além da
“valorização exclusiva da sexualidade adulta e matrimonial, imperativos de decência, esquiva
obrigatória do corpo, contenção e pudores imperativos da linguagem” (FOUCAULT, 1988, p. 109).
Tal repressão sexual tem uma função apontada pelo autor: “...a repressão funciona, decerto, como
condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência
e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem
para saber” (FOUCAULT, 1988, p. 10).
Mais do que simplesmente eclipsar o discurso sobre o sexo, as diferentes instituições
(educacionais ou mesmo religiosas, e por que não midiáticas?!) criam modos de abordar e de se
falar sobre a sexualidade. Para Foucault, cria-se um discurso polimorfo e regulado:
Em vez da preocupação uniforme em esconder o sexo, em lugar do recato geral da
linguagem, a característica de nossos três últimos séculos é a variedade, a larga dispersão
dos aparelhos inventados para dele falar, para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo,
para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que dele se diz (FOUCAULT, 1988, p.
35).
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A partir do século XIX, pode-se dizer que as sociedades são perpassadas pelos meios de
comunicação de massa. José Marques de Melo aponta que a atuação desses meios de comunicação
coletiva influencia comunidades. Segundo o autor:
Entendemos que os meios de comunicação coletiva, através dos quais as mensagens
jornalísticas penetram na sociedade, bem como os demais meios de reprodução simbólica,
são ‘aparatos ideológicos’, funcionando, se não monoliticamente atrelados ao Estado, como
dá entender Althusser, pelo menos atuando como uma ‘indústria da consciência’, de acordo
com a perspectiva que lhes atribui Enzensberger, influenciando pessoas, comovendo
grupos, mobilizando comunidades, dentro das contradições que marcam as sociedades”
(MELO, 2003, p. 73).
Tendo isso em vista, torna-se importante compreender o discurso produzido pelos veículos
de comunicação a respeito do grupo LGBT. Para entender de que forma ele se estabelece na
atualidade, faz-se necessário questionar a relação entre o Jornalismo, em ideal, e a prática cotidiana
da profissão. Muitas teorias foram elaboradas para responder a intrigante pergunta: o que faz um
fato se tornar notícia? As teorias a respeito do fazer jornalístico evoluíram ao longo dos anos. Se por
volta da década de 40, o lead americano e o modelo de pirâmide invertida fortaleceram um ilusório
ideal de objetividade, com o passar dos anos a visão a respeito dos critérios de escolha das
publicações nos veículos de comunicação se tornou mais crítica.
A Teoria do Espelho defendia a premissa de que as notícias eram um reflexo da realidade.
Tal concepção foi, mais tarde, questionada pela abordagem construtivista da Teoria do
Newsmaking, que defendia a ideia de que as notícias ajudavam a construir a realidade.
Estudos posteriores fortalecem a concepção de que o jornalista seria um gatekeeper e a
escolha do que passaria ou não pelo “portão” estaria vinculada às rotinas de produção da notícia e à
eficiência e velocidade do que, necessariamente, a uma avaliação individual da noticiabilidade.
Mais recentemente, alguns autores de teorias do jornalismo passaram a defender a
concepção de que as notícias servem objetivamente a determinados interesses. Esse
instrumentalismo está baseado em análises de parcialidade, cujo objetivo é verificar se existem, ou
não, distorções nos textos noticiosos. Chomsky é um dos grandes representantes da teoria
instrumentalista de esquerda. Para ele, a imprensa está submetida aos interesses da elite política e
econômica. Já os autores de direita (Efron, Kristol, Lichter e Rothman), defendem que os jornalistas
formam uma classe social e distorcem as notícias com o objetivo de veicular ideias anticapitalista,
usando assim da mesma lógica, mas, às avessas.
Perseu Abramo (2003), no livro “Padrões de manipulação na grande imprensa”, relaciona
cinco estratégias para distorcer a notícia, dentre elas: padrão de ocultação – ausência de fatos reais;
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padrão de fragmentação – o real é dividido e desconectado dos fatos anteriores, não permitindo uma
consciência crítica do contexto; e padrão de inversão – há troca de lugares e de importância dos
fatos.
Felipe Pena resume da seguinte forma o desenvolvimento de teorias a respeito das práticas
jornalísticas:
De forma sintética, a teoria do jornalismo ocupa-se de duas questões básicas: 1) Por que as
notícias são como são? 2) Quais são os efeitos que essas notícias geram? A primeira parte
preocupa-se fundamentalmente com a produção jornalística, mas também envereda pelo
estudo da circulação do produto, a notícia. Esta, por sua vez, é resultado da interação
histórica e da combinação de uma série de vetores: pessoal, cultural, ideológico, social,
tecnológico e midiático (PENA, 2012, p. 17 e 18).
Com esse pequeno recorte histórico das teorias que se propuseram a compreender o fazer
jornalístico, percebe-se que, não é de hoje, que é realizado um esforço para compreender que
critérios são utilizados para desvendar o que pode ser ou não notícia. E o que se têm é um padrão
mercadológico que se afasta paulatinamente dos ideais estabelecidos na academia sobre o savoir-
faire da profissão. Segundo Bruno Souza Leal e Carlos Alberto Carvalho:
Visto dessa forma, ‘quebrado’ em sua aparente inteireza, o jornalismo é concebido como
uma rede de tensões peculiar, se inserindo como sujeito nas tramas de força e fuga da vida
social. Capaz de ação, o jornalismo é também conformado por tais relações. Nesse sentido,
observa-se que as identidades LGBT surgem como particularmente desafiadoras dos modos
de falar do jornalismo brasileiro, não apenas por se inscreverem de modo peculiar nos
regimes de poder, de luz e sombra, voz e silêncio que constituem a vida social, como por
sua diversidade interna. Qualquer abordagem às identidades LGBT tem como pano de
fundo as tensões que envolvem, por exemplo, a necessidade de evitar a essencialização e/ou
naturalização de realidades cristalizadas, seja a partir de uma concepção biologizante do
sexo, seja de concepções de gênero como algo fixo, não cambiante (LEAL; CARVALHO,
2012, p. 5 e 6).
Portanto, tal diagnóstico de silenciamento das informações relativas aos crimes de
homofobia, e ao universo LGBT como um todo, evidencia uma violência simbólica tão perigosa
quanto a efetivação física da mesma. Afinal, como os greco-romanos já afirmavam, a violência é a
violação do equilíbrio por meio do uso de uma força. Na violência há o dano, a perda, o
desequilíbrio. Para Michaud:
Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira,
direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos há uma ou várias pessoas em graus
variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou
em suas participações simbólicas e culturais (MICHAUD, 1989, p. 11).
Ao silenciar uma demanda, um grupo, uma voz que necessita ser ouvida para ser respeitada,
para ter seus direitos garantidos, para obter uma equidade legal, o jornalismo está praticando um
tipo de violência.
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Hannah Arendt (p. 37, 1994) pontua que a violência não deve ser confundida com o mero
emprego da força. Para esta autora, a força pode ser empregada de forma propiciar movimentos
físicos e sociais. No entanto, quando está relacionada ao poder e a autoridade, a força pode ser um
gatilho para a violência e, posterior, dominação do homem. E existem várias violências:
De acordo com Sodré (2002: 12), a primeira é a violência anômica, dotada de crueldade e
está cada vez mais perceptível no cotidiano da sociedade. A segunda é a violência
representada, alimentada especialmente pelo jornalismo, ‘que tende a visibilizar
publicamente a agressão recorrente na vida cotidiana’, e pela indústria do entretenimento,
que explora a questão em filmes, programas televisivos em busca de uma maior audiência.
A terceira é a violência sociocultural, composta, por exemplo, pela violência racial e contra
homossexuais. Já a quarta é a violência sociopolítica, constituída, geralmente, pela
repressão imposta pelo Estado. Para Sodré (2002), tal modalidade inclui a violência
anômica, originando, por exemplo, o etnocídio (PERUZZOLO; CASAGRANDE, 2012, p.
241).
Aqui, nesta investigação, a preocupação é tanto com a violência sociocultural, quanto com à
violência representada, pois, indo além do que Muniz Sodré pontua, a violência alimentada pelos
jornalistas não está apenas na divulgação da agressão na vida cotidiana, mas, também, está no
silenciamento da violência sofrida por certos grupos sociais e na indução do receptor da mensagem
a colocar em cheque as reinvindicações desses agentes. Regina Facchini e Isadora Lins França
analisam uma pesquisa de opinião aplicada pela Fundação Perseu Abramo e chegam à conclusão de
que tal violência é legitimada socialmente. Segundo elas:
O que essa pesquisa parece indicar é que, além da legitimidade social que a violência contra
LGBT possui, há a ação importante de convenções sociais acerca do caráter natural da
heterossexualidade e que apontam para a homossexualidade como escolha individual - que
deve ser mantida no âmbito do privado. A força de tais convenções se expressa na
compreensão de que dificuldades decorrentes dessa ‘escolha’ (a violência é encarada nesse
sentido) devem ser manejadas pelo próprio sujeito (70% dos entrevistados pela Fundação
Perseu Abramo acreditavam que ‘a discriminação contra homossexuais, bissexuais,
travestis e transexuais é uma questão que as pessoas devem resolver entre elas’ ao invés de
ser objeto de políticas governamentais) (FACCHINI; FRANÇA, 2013, p. 15).
A pergunta que fica é: estaria o jornalismo intimamente relacionado à legitimação da
violência praticada contra a comunidade LGBT? Este é o foco desta investigação.
3 Metodologia
Para identificar se há um silenciamento das notícias com relação a este universo. Foram
utilizadas metodologias qualitativas e quantitativas. Trabalhar com aspectos sociais exige do
pesquisador uma maleabilidade com relação aos recursos metodológicos utilizados. Segundo Martin
W. Bauer, George Gaskell e Nicholas C. Allum:
Uma cobertura adequada dos acontecimentos sociais exige muitos métodos e dados: um
pluralismo metodológico se origina como uma necessidade metodológica. A investigação
da ação empírica exige: a) a observação sistemática dos acontecimentos; inferir os sentidos
desses acontecimentos das (auto-)observações dos atores e dos expectadores exige b)
técnicas de entrevista; e a interpretação dos vestígios materiais que foram deixados pelos
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atores e expectadores exige c) uma análise sistemática (BAUER; GASKELL; ALLUM,
2002, p. 18 e 19).
Portanto, esta investigação se dividiu em três momentos distintos, porém, complementares.
O primeiro consistiu na coleta e análise dos três telejornais do canal já mencionado. Posteriormente,
tais impressões foram confrontadas com dados fornecidos em uma entrevista com o Airton Ferreira
da Silva, superintendente de Promoção e Educação em Direitos Humanos da Secretaria dos Direitos
Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP). E o terceiro momento foi o de observação
participante neste um ano de produção jornalística dentro do veículo de comunicação analisado.
Estes diferentes métodos permitiram chegar aos dados quantitativos e de conteúdo, ambos
importantes para que se chegasse ao objetivo desta análise. Os dados sozinhos não ajudarão na
compreensão do objeto de estudo aqui detalhado. Conforme frisam Bauer, Gaskell e Allum: os
dados “não falam por si mesmos” (p. 24, 2002).
Esta estreita relação entre o enfoque qualitativo e o aspecto quantitativo ajudou quando a
tarefa foi corroborar algo pouco claro, seja por parte dos dados, do material coletado ou da
entrevista. Vale ressaltar que foi a partir da entrevista que conseguiu-se identificar fatores externos,
e ao mesmo tempo imprescindíveis ao fazer jornalístico, e que influenciam no silenciamento com
relação ao tema violência contra comunidade LGBT.
4 Resultados
Após observação dos três telejornais, ao longo de um ano, percebeu-se que as temáticas
relativas à comunidade LGBT, como um todo ou segmentada pelos diferentes grupos que a
integram, apareceram nas seguintes edições:
- Um debate realizado no JMTV 1ª Edição, em junho de 2015, com dois entrevistados em
estúdio extra, abordando o caso da transexual Stheffany Pereira, de 23 anos, que foi proibida de usar o
banheiro feminino na escola pública Liceu Maranhense.
- Uma nota seca, no JMTV 2ª Edição do dia 19/08/2015. Com o seguinte texto: “Foi aberta
hoje em São Luís, a 12ª edição da Semana do Orgulho LGBT. Na programação deste evento, o
destaque é para as discussões acerca da homofobia. No G1 Maranhão você encontra a programação
completa da semana, que termina no domingo, com a Parada do Orgulho LGBT, na Avenida
Litorânea”.
- Três matérias veiculadas no dia 24/08/2015, uma em cada telejornal, com a cobertura da
Parada do Orgulho LGBT, referida acima.
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Percebe-se com isto, que, poucas vezes, a comunidade LGBT entra na pauta do grande
veículo e, quando entra, em sua maioria, é pela organização de eventos de defesa dos direitos, tal
como a Parada do Orgulho LGBT, que já se institucionalizou nacionalmente e no âmbito local,
também. Eventos como este, são difíceis de ignorar dado, principalmente, o número de pessoas
envolvidas. No ano de 2015, por exemplo, acompanharam a Parada realizada em São Luís (MA)
mais de 50 mil pessoas, segundo estimativa da organização do evento.
Ao mesmo tempo, é possível perceber que há um espaço para que temas relativos à
comunidade LGBT sejam discutidos pela impressa, sobretudo, quando se trata de violência. Nota-se
isto pela abordagem dada ao caso da transexual Stheffany Pereira, que ocupou um bloco inteiro da
programação do telejornal e, além da matéria, trouxe ainda dois entrevistados para debater sobre o
assunto. Entretanto, é válido notar que a emissora só pautou o assunto depois que ele já havia sido
pautado há dias por outros veículos (O Imparcial e O Estado do Maranhão, por exemplo), e tais matérias
estavam repercutindo muito na internet. Só então, a emissora tomou a decisão de transformar o fato em
notícia. Houve, durante as primeiras reuniões de pauta na qual o assunto foi mencionado, resistência da
chefia de redação em permitir que se fizesse uma matéria sobre o assunto.
Ou seja, quando se trata de um caso de preconceito sofrido por uma transexual, este só passa a
valer enquanto pauta para a grande mídia a partir do momento que os concorrentes o abordam,
invertendo a máxima jornalística de correr atrás do “furo jornalístico”. Mesmo que tal debate represente
uma quebra no padrão de silenciamento, ainda é permeado por situações que evidenciam a dificuldade de
inserção da comunidade LGBT na mídia tradicional, até em casos extremos, como são os de violência e
preconceito.
Vale relatar, também, que no dia do debate, vários jornalistas reunidos na redação faziam
comentários jocosos sobre o caso, alguns, insistindo em nomear a Stheffany Pereira com seu nome
masculino de nascença. Isto demonstra, claramente, a falta de preparo para lidar com o assunto e os
preconceitos enraizados na figura do jornalista, que, de tão profundos, o agente já nem faz uma
autorreflexão sobre suas ações no ambiente de trabalho. Trata-se de algo tão comum, naturalizado e
socialmente aprovado que não há necessidade de esconder tais preconceitos no ambiente coletivo e
formal do trabalho. Mesmo com esse tipo de discurso, o jornalista recebe acolhimento entre seus pares.
Em entrevista concedida a esta pesquisadora, o representante da Secretaria dos Direitos
Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP), Airton Ferreira da Silva, informou que, no ano de
2015 foram registrados oficialmente seis casos de homicídio no Estado do Maranhão. Sobre os
demais tipos de violência, ele aponta que não há registro em virtude da ausência de um banco de
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dados. Ainda assim, ele destaca que as principais violências sofridas por integrantes da comunidade
LGBT são: violência física e psicológica, extorsões de dinheiro e homicídios. Tal dado foi obtido
pelo acompanhamento de meios de comunicações, TV, noticiários e jornais locais.
De acordo com o superintendente, é possível falar em sub-registro de casos de violência.
“Não há uma institucionalização do monitoramento e avaliação da violência que possa contribuir
para análise e produção de relatório que aponte um diagnóstico mais preciso sobre a violência
contra a população LGBT”, afirmou na entrevista.
Cruzando essas informações repassadas por Airton Ferreira da Silva com os dados da
observação dos telejornais da maior emissora de televisão do Estado, percebe-se que os seis
homicídios de pessoas que foram identificadas como pertencentes à comunidade LGBT não foram
noticiados. Isto comprova a hipótese de apagamento aqui defendida, bem como reforça a ideia de
dupla violência sofrida pela vítima: a violência física, que culmina na morte, e a violência
simbólica, com o desmerecimento do valor notícia deste crime perante as demais pautas.
Um futuro desdobramento desta pesquisa poderá focar em identificar em qual instância se
formam as concepções dos agentes envolvidos na produção jornalística do veículo pesquisado
acerca do universo LGBT, que influenciam na seleção do que vai ser veiculado e, mais
especificamente, na abordagem que será dada ao assunto. Partindo dos resultados aqui expostos
com relação aos preconceitos dos jornalistas influenciando na abordagem ou no silenciamento de
assuntos que abordam a comunidade LGBT, questiona-se: aprendizados dentro do ambiente
familiar pesam mais que as concepções profissionais? Os critérios de noticiabilidade são esquecidos
frente aos preconceitos? É possível reverter isto? Estas são algumas perguntas que poderão ser
respondidas com a realização de entrevistas em profundidade com os jornalistas envolvidos no
processo de produção da notícia no veículo pesquisado. Algo semelhante ao que foi feito pela
pesquisadora Marcia Veiga ao analisar as rotinas produtivas de um programa jornalístico da RBS
TV Porto Alegre e identificar que as concepções sobre gênero perpassam as produções noticiosas e
acabam colaborando na reprodução, ressignificação e manutenção dos padrões desiguais com
relação aos diferentes gêneros, ou seja, é produzido nesta emissora um conteúdo heteronormativo.
A autora observou que: “Os valores e a hierarquização de profissionais, de notícias e as demais
escolhas durante a produção equiparavam-se à normatividade social vigente revelando que os
valores-notícias estavam permeados de valores socais e pessoais dos jornalistas” (p. 216).
Conclui-se, assim, que esta pesquisa pode ter uma continuidade colaborando para as
discussões acerca do fazer jornalístico, reforçando a busca por um jornalismo mais ético, melhor
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realizado e que siga os preceitos de defensor dos direitos humanos. Um jornalismo mais preocupado
com esses aspectos não ficará refém da alimentação de uma secretaria de governo com relação às
pautas que abordem o universo LGBT e conseguirá perceber que a ausência de dados devidamente
organizados e o sub-registro de casos de violência são dados, e podem inspirar pautas jornalísticas,
e não servir de impeditivo para que ocorra o processo de produção da notícia, por exemplo.
Referências
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Journalism and preconception: a diagnosis of the silence of the lgbt's universe on news
Abstract: This article is the result of a research that has observed the dissemination of news related
to the LGBT universe within a vehicle of communication, and more specifically, news related to the
violence committed against this social group to, from this observation, understand that there is a
silencing of the News about this universe. Such concealment works as a second violence, eclipsing
the demands of the LGBT community in search of better social conditions and putting in check the
human and social function of journalism.
Keywords: Journalism. LGBT. Preconception.