JOSÉ GOMES FERREIRA, O Homem e o seu eco
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JOSÉ GOMES FERREIRA
(1900-1985)
A.A. ~ 2010-2011
Prof.ª eli
José Gomes Ferreira: aqui
O homem e o seu eco
Há perto de meia hora que o meu companheiro não pronuncia
palavra. Por fortuna, surge ao longe o cortejo dum casamento e vou
aproveitar a ocasião para alargar a faúlha dum comentário qualquer.
Talvez a conversa pegue e possa enfim descansar deste esforço
contínuo de só contar comigo mesmo para me distrair.
Estou farto da minha imaginação, ouviste? Estou cansado dos
meus pensamentos, dos meus problemas, dos meus calos
metafísicos! Quero encher-me de musgo por dentro e assistir ao
espectáculo gratuito dos teus gestos, das tuas frases, das tuas
preocupações, que, por enquanto, só te luzem nos olhos e ainda não
te desceram à boca. Fala, pá! Anda, fala.
Felizmente, o cortejo aproxima-se. Aglomeram-se vários
mirones: a eterna costureirinha pálida que leva as calças ao freguês;
o soldado de boca aberta em continência diante da vida como diante
do general; aquele pequeno sardento com o cesto das compras às
costas…
Interrompe-se o trânsito. Desfila o «casamento»… Automóveis,
calças de fantasia, vinte pares de sapatos novos, três chapéus altos
nos joelhos, e, por fim, o triunfal carro dos noivos com jarrinhas de
flores de pano, trintanário, alguns metros de véu e uma gravata
cinzenta.
Espreito os recém-casados. Ela: um triste bicho de carne
insignificante. Ele: obeso, de pele lívida soprada. Bom, vou dizer
qualquer coisa. O que me vier à cabeça. Quanto mais lugar-comum,
melhor:
- Outro infeliz!
O meu companheiro, depois de lançar um olhar rápido aos
noivos, respondeu-me apenas com um sorriso vago. Um sorriso
extraordinário, desaprovador, que me animou. Ah, se aquele sorriso
principiasse a falar. Mas não. Silêncio. Estamos no meio da Avenida e
resolvemos sentar-nos. Toca a procurar qualquer coisa para não me
esquecer de que existo.
E preparava-me para decorar os números dos automóveis –
tarefa de eleição para um português de 40 anos com a sorte invejável
de viver em Lisboa no século XX -, quando, de súbito, a voz do meu
amigo, ressoou, em réplica atrasada:
- Infeliz, porquê?
Que bom falar, mergulhar no provisório, entreter de qualquer
maneira estes 50 anos de vida num planeta de pedras e de pássaros!
- Porquê? Então, não reparaste na cara da noiva? Feia e grotesca
como uma árvore onde se enforcou um homem de chapéu alto.
Ajeitei-me no banco, no regalo de aquecer melhor as palavras na
boca:
- Não, um bicho daqueles não justifica a perda da liberdade. O
casamento é uma prisão, dizem. Óptimo! Pois que seja, ao menos,
uma prisão confortável, forrada de pele de seda, com grades de oiro
e postigos de veludo tentador…
O meu camarada encolheu os ombros. Pois encolhe à tua
vontade, filho! Que me importa? Se quiseres posso afirmar-te o
contrário. As sentenças sobre o casamento, sobre o amor, sobre as
mulheres, sempre erradas e sempre às avessas. Nevoeiro de palavras
a fazerem o pino… Mas, espera, ele já começou um discurso. Toca a
ouvi-lo, pá. Volta à superfície!
Por desgraça só apanho o fim da frase, de sabor paradoxal:
- … porque a verdade é esta: aquele homem, chegado agora
mesmo do Registo Civil…, continua solteiro. Percebeste?
Não percebi, mas refilo com veemência. Preciso entusiasmá-lo,
para cair depois na modorra passiva do espectador manso. O pior são
os pássaros! Podíamos ter escolhido outro banco.
- Repito-te: casar, quase sempre, é uma maneira de iludir a
solidão. Um homem que liga o seu destino ao de uma mulher
parvinha, estúpida, inexistente, continua, de facto, a viver só. Limita-
se, quando muito, a acrescentar ao corpo mais duas pernas, dois
braços, um coração, um estômago, e dois esboços de pestanas.
Transforma-se num estranho animal de quatro pernas – e às vezes
de seis, quando há sogra -, mas tão solteiro como dantes, porque
não pode chamar-se casamento ao contrato dum homem com o seu
eco.
- Com o seu eco?! – exclamei, para exclamar.
- Pois claro… A maior parte dos lares que conheço lembram-me
certas cavernas onde uma pessoa se sente feliz e acompanhada só
porque, quando grita, ouve o eco da sua voz.
- Isso não me parece mau como literatura – tornei eu,
preocupado com os pássaros que não chilreiam apenas. – Mas como
explicas então que os maridos passem a existência a discutir com os
próprios ecos… e a irem-lhe aos fagotes?
O meu companheiro encolheu outra vez os ombros, absorto num
raciocínio longo (ou seria eu a pensar?):
- Bem se vê que nunca meditaste cinco minutos no problema. E,
no entanto, basta coleccionar meia dúzia de observações banais,
banalíssimas até… Esta, por exemplo, que é a mais comum: as
mulheres, quando casam, perdem as opiniões dos pais e adquirem
logo as dos maridos, como bonecas às ordens de novos ventríloquos.
Tudo isto mecanicamente, exactamente como mudam de nome. Nos
lares bem organizados quem pensa, quem fala, quem discute é o
marido. A esposa contenta-se em servir de aplauso às habilidades
verdadeiras ou falsas do seu homem. E ai dela se pretende pôr o
cérebro em acção! O marido sorri, escuta distraído e acaba por
mandá-la lavar a loiça: «Oh filha, essas coisas não são para as
mulheres!» Nesse ponto é uma fera. Reservou para si a parte de leão
e sente-se capaz de todos os crimes para a conservar. Em regra,
porém, recorre a um dos dois métodos já clássicos: o do trabalho ou
o da preguiça. Quando falta dinheiro ou a cara-metade é de facto
duma mesquinhez absoluta, o trabalho apresenta-se como a solução
ideal. Não há marido algum que vacile em carregar a esposa legítima
de canseiras e de elogios. E esses seres delicados, débeis, tão
cantados pelos poetas e pelos espiritualistas, arcam heroicamente
com a parte mais grosseira da vida em toda a hediondez: a roupa
suja, as goelas do peixe, o caixote do lixo, as panelas, as rodilhas, os
penicos… Quando o dinheiro abunda ou a companheira manifesta
alguma tendência para perturbar a solidão intelectual do marido –
este socorre-se então invariavelmente do processo cómodo da
preguiça e das suas qualidades activas: o luxo, a moda, o bridge, os
«chás das cinco»…
- Mas, às vezes, vão-lhe aos fagotes – insistia eu, a teimar na
minha, cada vez mais alheado do problema.
- Vão-lhes aos fagotes, como há quem se belisque, quem se
insulte ao espelho e quem dê, de súbito, patadas de raiva, zangado
com os próprios pensamentos! – redarguiu ele, furioso, já em plena
imaginação.
Um céu de pássaros negros prendia-se nas árvores. Anoitecia.
Comecei a sentir fome.
- O verdadeiro casamento é o diálogo – monologava o meu
amigo com voz nervosa. – O duelo. Um misto de luta e de
solidariedade entre duas resignações a transigirem… O verdadeiro
casamento…
Baixou a voz para completar a frase.
- … é o meu, por exemplo.
Alto! Toquei-lhe na ferida, pensei encantado.
- Antes de casar, perguntei a minha mulher: «Queres ser
infeliz?» E ela aceitou: «Quero.» Casámo-nos. Os nossos nomes
ficaram juntos num livro burocrático qualquer. E até hoje não tivemos
ocasião de nos arrepender…
- Foram felizes?
- Infelicíssimos na opinião do vulgo que desadora a discussão, a
polémica e o desacordo da vida diária – ao passo que considera a
guerra como um fenómeno inevitável e até mesmo necessário no
convívio humano. Normais – em meu entender. Como queres tu que
duas pessoas autênticas de carne e sonho vivam juntas sem choques
e sem divergir? Discutimos, zangamo-nos, ela gosta do branco e eu
do preto… O costume. Mas isso que tem? Casei com uma pessoa e
não com o meu eco vivo.
Calou-se. Quase noite. As árvores com os ramos forrados de
pássaros pareciam roubadas a uma paisagem de conto milagroso.
Oito horas. Tenho fome. Vou jantar. O meu amigo mora para os
meus lados.
- Vens?
- Não, não vou. Hoje não janto em casa.
E em voz de confidência:
- Vou jantar com uma pêssega.
Ah malandro! Tens um eco clandestino!
José Gomes Ferreira, O Mundo dos Outros
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