JUSTIÇA RESTAURATIVA NA PRÁTICA - Ciranda · to penal ou infracional, e não apenas no ofensor....

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Fernando Gonzaga Jayme Mayara de Carvalho Fernanda Valladares Andrade Neves Flávia Vieira de Resende Aline Ferreira Gomes de Almeida Lívia Vilela Bernardes Elisa Barroso Fernandes Tamantini Rafaella Rodrigues Malta Apresentação: Danielle de Guimarães Germano Arlé JUSTIÇA RESTAURATIVA NA PRÁTICA: NO COMPASSO DO CIRANDA

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Fernando Gonzaga JaymeMayara de CarvalhoFernanda Valladares Andrade NevesFlávia Vieira de ResendeAline Ferreira Gomes de AlmeidaLívia Vilela BernardesElisa Barroso Fernandes Tamantini

Rafaella Rodrigues Malta

Apresentação:Danielle de Guimarães Germano Arlé

JUSTIÇARESTAURATIVANA PRÁTICA: NO COMPASSO DO CIRANDA

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Produção: Del Rey Editora

Editoração: Alfstudio

J96 Justiça restaurativa na prática [recurso eletrônico]: no compasso do Ciranda / Fernando Gonzaga Jayme, Mayara de Carvalho (coord.). – Belo Horizonte: Del Rey, 2018. 130 p.: il. – Inclui bibliografias.

ISBN: 978-85-384-0525-2

1. Direito penal 2. Justiça restaurativa 3. Direitos das crianças 4. Direitos dos adolescentes 5. Delito 6. Acesso à justiça I. Jayme, Fernando Gonzaga II. Carvalho, Mayara de IV. Título

CDU(1976) 343.9

Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Junio Martins Lourenço CRB 6/3167.

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Sumário

A JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL NACOMARCA DE BELO HORIZONTE – MINAS GERAIS

Danielle de Guimarães Germano Arlé ...............................................................4

HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA:UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NOSISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE

Fernando Gonzaga Jayme ..............................................................................32

JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EM BELO HORIZONTE:RELATO DE EXPERIÊNCIA DO PRIMEIRO ANO DE ATUAÇÃODO CIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOSRESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Mayara de Carvalho .......................................................................................43

JUSTIÇA RESTAURATIVA:UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL

Fernanda Valladares Andrade NevesFlávia Vieira de Resende .................................................................................83

UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO– A CASE OF TRANSFORMATION

Aline Ferreira Gomes de AlmeidaLívia Vilela Bernardes .....................................................................................97

EXORTANDO O PRÓXIMO

Elisa Barroso Fernandes Tamantini

Rafaella Rodrigues Malta .............................................................................115

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A JUSTIÇA RESTAURATIVAJUVENIL NA COMARCA DE

BELO HORIZONTE-MINAS GERAIS

Danielle de Guimarães Germano Arlé1

1. INTRODUÇÃONo dia 28 de julho de 2017, recebi um convite do Projeto Ciranda, da Faculdade de

Direito da UFMG-Universidade Federal do Estado de Minas Gerais, para contribuir com uma obra coletiva que estava sendo produzida por seus participantes. O final do convite continha uma pergunta desafiadora: “gostarias de fazer parte disso?”. À per-gunta respondi: “gosto imensamente de fazer parte disso”. Me sinto parte dessa Ciranda, cujo trabalho tanto admiro e que torna ainda maior minha crença no mundo mais digno, pois este tem como fundamento inafastável a efetiva priorização da garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Assim, foi com renovada esperança e com enorme honra que aceitei escrever este capítulo, que tem o objetivo de apresentar o trabalho que está sendo feito no Estado de Minas Gerais, no município e comarca de Belo Horizonte, pela Comissão de Justiça Restaurativa2 (integrada pela UFMG, através do seu Projeto Ciranda), para a efetivação dos direitos da infância e juventude.

Tal efetivação passa, necessariamente, pela restauração de diversas relações rompi-das, dentre elas a relação do Estado e de todos nós, sociedade, com as crianças e adoles-centes como sujeitos de direitos. A justiça, enquanto valor, deve ser buscada por meio da restauração dessas relações esgarçadas. Da Justiça Restaurativa Juvenil na comarca de Belo Horizonte tratará este capítulo.

1 A autora é bacharel em Direito pela UERJ, formada em 1991; promotora de Justiça do Estado de Minas Gerais desde 1992, titular da promotoria de justiça de defesa da infância e juventude da comarca de Belo Horizonte-MG; mestranda em Sistema de Solução de Conflitos da Universidade Nacional de Lomas de Zamora, na Argentina; Coordenadora da Comissão de Justiça Restaurativa do Fórum Permanente de Atendimento Socioeducativo do município de Belo Horizonte-MG.

2 Comissão de Justiça Restaurativa do Fórum Permanente de Atendimento Socioeducativo do Município de Belo Horizonte.

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2. AFINAL, O QUE SÃO JUSTIÇA RESTAURATIVA, PROGRAMA DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, PROCESSOS RESTAURATIVOS, PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS E PRÁTICAS RESTAURATIVAS?

O conceito de Justiça Restaurativa não é fácil de ser encontrado de forma unânime, seja porque, como diz Howard Zehr, ela é “um campo que começou na prática e não na teoria”3, seja porque muitas pessoas costumam confundi-la com os seus programas, processos e práticas ou com um de seus possíveis processos, a mediação vítima-ofensor.

É importante deixar claro, assim, quais os conceitos são usados no presente capítulo.A Justiça Restaurativa, também chamada de justiça restauradora, justiça reparativa,

justiça reintegrativa ou justiça restitutiva, é conceituada por Highton, Álvarez e Gregorio como “uma filosofía, uma atitude, um modo de pensar e um novo paradigma da forma de enfrentar o delito, desde a perspectiva da vítima, do infrator e da comunidade”4.

A Resolução CNJ n.225, de 31 de maio de 2016, a define como

um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e ati-vidades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado...(tendo) como foco a satisfação das necessidades de todos os envolvidos, a responsabilização ativa daqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a ocorrência do fato danoso e o empodera-mento da comunidade, destacando a necessidade da reparação do dano e da recomposição do tecido social rompido pelo conflito e as suas implicações para o futuro5.

O Conselho Econômico e Social da ONU, em 2002, através da Resolução 12, a con-ceituou como uma “resposta ao crime que respeita a dignidade e a igualdade das pes-soas, constrói o entendimento e promove harmonia social mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades”6.

3 ZEHR, 2016.4 HIGHTON; ÁLVAREZ; GREGORIO, 1998, p. 77. Tradução livre da autora.5 CNJ, 2016, art.1º.6 ONU, ECOSOC, 2002, Preâmbulo.

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Quando pensamos em justiça como um valor, notamos que se trata de um valor sub-jetivo, que varia no tempo e no espaço. Ainda que variável, contudo, a ideia de justiça está sempre associada à satisfação dos envolvidos num conflito e a Justiça Restaurativa tem o foco, justamente, na satisfação das necessidades de todos os envolvidos no confli-to penal ou infracional, e não apenas no ofensor. Ela visa à satisfação das necessidades da vítima, do infrator e da comunidade à qual pertencem.

Programa de Justiça Restaurativa é qualquer programa que utilize processos res-taurativos para atingir os objetivos da Justiça Restaurativa. Esta é a definição dada pela Resolução 12 de 2002 do Conselho Econômico e Social da ONU7.

Conforme Carlucci8, em 2004 existiam no mundo mais de 1.300 programas de Justiça Restaurativa.

Processo restaurativo (ou, conforme chamado pelo CNJ, procedimento restaura-tivo9) é toda forma de processo, como conjunto ordenado de atos, no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comu-nidade afetados por um crime ou ato infracional, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime ou do ato infracional, com a ajuda de um facilitador. Conforme a Resolução 12 de 2002 do Conselho Econômico e Social da ONU, os pro-cessos restaurativos podem incluir a mediação (no caso da Justiça Restaurativa, a me-diação será a mediação vítima-ofensor- MVO), a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e os círculos decisórios (sentencing circles)10.

O resultado restaurativo buscado pelo processo restaurativo é atender às necessidades individuais e coletivas, levar responsabilidade às partes do conflito penal ou infracional- que, de maneira mais profunda, são a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime ou ato infracional- e promover a reintegração da vítima e do ofensor na comunidade, corresponsável pela existência e pela manutenção de laços sadios entre todos os seus integrantes.

7 ONU, ECOSOC, 2002, I.1.8 CARLUCCI, 2004.9 CNJ, 2016, art. 1º, parágrafo 1º. Esta resolução utiliza a expressão procedimento restaurativo ao invés de

processo restaurativo.10 ONU, ECOSOC, 2002, I.2.

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Prática restaurativa, nos termos da Resolução CNJ n. 225/2016, é qualquer forma diferenciada de tratar, de maneira estruturada, o conflito que gera dano concreto ou abstrato11. A prática restaurativa, assim, parece ser menos ampla que o processo restau-rativo12, podendo ser qualquer técnica ou ferramenta que seja utilizada num processo restaurativo ou até mesmo fora dele, para buscar os resultados da Justiça Restaurativa.

3. DESFAZENDO MITOS

Hodiernamente, experimentamos, nas nossas vidas, altos índices de criminalidade e infracionalidade. Tais índices geram, em grande parte da sociedade, uma reação linear de expectativa de maior rigor retributivo, ou seja, é comum que, numa sociedade com elevados índices de violência, estes sejam atribuídos à falta de punição dos infratores, por parte do Estado.

Para ilustrar o alto índice de criminalidade e de infracionalidade violentas, vale men-cionar a notícia divulgada no dia 21.08.2017, no site Época Negócios13, que informa o aumento, no Brasil, do número de mortes decorrentes de homicídios, lesões corporais seguidas de morte e de latrocínios. De acordo com referida notícia, este número é 6,79% maior do que no mesmo período do ano de 2016.

Como asseverado por Márcio Elias Rosa, Secretário de Justiça e diretor da Fundação Casa, do Estado de São Paulo, há, na sociedade, “um sentimento de vingança travestido na ideia de justiça” e todas as vezes em que alguém grita “justiça, justiça, justiça”, frente a um crime ou ato infracional grave que foi cometido, pode-se ler “vingança, vingança, vingança”14.

Nessa linha de raciocínio, como a maioria das pessoas costuma associar a Justiça Restaurativa à ideia de não punir o infrator, de não “prendê-lo” e de que ela beneficia

11 CNJ, 2016, art.1º, parágrafo 1º, I.12 Já a resolução CNMP n. 118 de 2014, na Seção IV, usa a expressão práticas restaurativas como sendo

aquelas que têm por finalidade a formulação de um plano restaurativo para a reparação ou minoração do dano, a reintegração do infrator e a harmonização social.

13 ÉPOCA, 2017.14 ROSA, 2017.

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unicamente o infrator, a Justiça Restaurativa acaba por ser mal recebida na sociedade que clama por menos violência.

Desta forma, a fim de proporcionar uma clara compreensão do que é a Justiça Restaurativa, é relevante ressaltar que:

3.1 A Justiça Restaurativa não significa abolicionismo ou impunidade e não é subs-titutiva ou excludente da justiça tradicional.

Como exposto no item anterior, a Justiça Restaurativa é um novo paradigma de visão do conflito penal e infracional.

O novo paradigma, contudo, não exclui de vez o anterior e com ele pode conviver, no tempo e no espaço.

Toda mudança paradigmática é lenta e, no dizer de Einstein,

[…] criar uma nova teoria não é o mesmo que destruir um velho celeiro e erigir um arranha-céu em seu lugar. Assemelha-se mais a galgar uma mon-tanha, alcançando vistas novas e mais amplas, descobrindo conexões ines-peradas entre o nosso ponto de partida e seu rico meio. Mas o ponto de que partimos ainda existe e pode ser visto, embora pareça menor e forme parte diminuta de nosso amplo panorama alcançado pela conquista dos obstácu-los em nossa aventureira escalada15.

É possível, assim, falarmos em Justiça Restaurativa existente em complementação à justiça tradicional hoje majoritariamente aplicada, sem excluí-la ou afastá-la.

3.2 A Justiça Restaurativa não é uma alternativa ao Direito Penal, e sim uma alter-nativa a mais, dentro do Direito Penal e do Direito Juvenil Infracional16.

A esse respeito, são dignos de menção os itens 5 e 6 da Declaração de Brasília, que contém as conclusões do III Seminário Internacional de Soluções Alternativas no Processo Penal, promovido pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 19 e 20 de junho de 2017, com o seguinte teor:

15 EINSTEIN; INFELD, 1966, p. 126.16 A ideia é defendida por Carlucci (CARLUCCI, 2004, p.169 ) e Nordenstahl (NORDENSTAHL, 2005, p.

38.)

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5. Deve-se procurar uma solução justa e duradoura às consequências do crime, inserindo, inclusive, a sociedade na busca da solução dos conflitos e da pacificação social, em especial a justiça restaurativa.

6. O projeto do novo Código de Processo Penal deve incorporar mecanis-mos de justiça restaurativa e os acordos penais17.

Também a Resolução 12 de 2002 do Conselho Econômico e Social da ONU é clara nesse sentido, em especial nos seus itens 20, 21 e 2218.

3.3 A Justiça Restaurativa é benéfica não só para o infrator, mas também para a ví-tima e para a comunidade como um todo.

Ao operar com processos tradicionais e processos restaurativos, o sistema de justiça abre o leque de opções para o tratamento adequado do conflito penal ou infracional.

Quando for adequada a aplicação de processos restaurativos, a vítima será brindada com o fato de poder ver satisfeitas suas necessidades, sejam elas de reparação do dano sofrido, sejam de restabelecimento de um equilíbrio rompido pela prática delitiva ou infracional.

A ideia de que as vítimas desejam a apenação pura e simples do infrator não corres-ponde à real vontade delas. Quando as vítimas se preocupam com a pena do infrator, costumam fazê-lo por falta de opção, pois esta é a única forma que a maioria delas conhece de ver o infrator ser responsabilizado por seu ato. O que as vítimas parecem querer, obviamente com exceções, não é vingança, e sim terem voz, serem escutadas, reparadas e verem o infrator assumir, ativamente, sua responsabilidade.

O infrator terá a oportunidade de se responsabilizar ativamente pelas consequências de seu ato e de encontrar novas formas de agir diferente, dali em diante, com o apoio fundamental da sua comunidade.

Em um processo restaurativo, o infrator pode diminuir o mal que ele causou frente à vítima, podendo, também, restaurar sua imagem e passar a agir de outra forma, o que tem relevância singular nas infrações juvenis. Transformar as ações dos adolescentes

17 http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Carta_Seminário.pdf18 ONU, ECOSOC, 2002.

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em ações mais construtivas de um futuro melhor para eles é essencial, quando se trata de pessoas em formação.

A comunidade, como um todo, será beneficiada pelo fato de um infrator ter, efetiva-mente, se responsabilizado por seus atos e poder, com o processo restaurativo, construir maneiras de produzir novos resultados. O simples sancionar não significa que aquele que recebeu a sanção poderá, após passado o tempo da punição, agir de maneira dife-rente. Daí o valor da Justiça Restaurativa para qualificar a necessária convivência social entre todas as pessoas da comunidade, tenham elas ou não, algum dia, praticado atos contrários à lei.

O envolvimento de membros da comunidade em processos restaurativos capacita aquela comunidade a solucionar os conflitos penais e infracionais nela ocorrentes, a re-fletir sobre o contexto em que ocorreram e a promover mudanças, que serão vantajosas para a comunidade inteira.

Como exposto por Paul McCold e Ted Wachtel19, considerando os fatores controle (punição) e apoio (cuidado, encorajamento, proteção e assistência), e colocando-os em interação, é possível construir uma janela onde se apresentam quatro quadros de abor-dagem: a abordagem punitiva, que consiste no alto controle e baixo apoio aos envolvi-dos na infração, também chamada de “retributiva”, tende a estigmatizar os infratores; a abordagem permissiva, com baixo controle e alto apoio, conhecida como “reabilitadora”, tende a proteger as pessoas das consequências de suas ações erradas; a abordagem negli-gente consiste no baixo controle e baixo apoio; já a abordagem restaurativa, que consiste na coexistência de alto controle e alto apoio, ao mesmo tempo em que confronta e de-saprova as transgressões, procura enfatizar e focar no valor intrínseco de cada infrator e na capacidade de solucionar aquele problema de forma colaborativa. Para os aludidos autores, a abordagem restaurativa é a mais benéfica das quatro.

Há que se considerar que, quanto mais conectados estejam os membros de uma co-munidade, mais eficazmente poderão limitar atitudes que aquela mesma comunidade desaprova. Assim, conexões fracas entre os membros de uma comunidade geram mais dificuldade de controle e conexões mais fortes permitem um controle social mais eficaz.

19 MACCOLD; WATCHEL, 2003.

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Além disso, econômica e financeiramente, reintegrar uma pessoa que praticou uma infração penal ou ato infracional, quando possível, é muito menos custoso do que ex-cluí-la da sociedade, como conclui Carlucci20.

3.4 A Justiça Restaurativa não se opõe à lei penal sancionatória e ao sistema de me-didas socioeducativas.

A sanção penal e as medidas socioeducativas, dentre elas as medidas socioeducati-vas de internação e de semiliberdade, continuam a ser aplicadas pelo juiz de direito, como deve ser, quando se mostrarem necessárias e adequadas.

A Justiça Restaurativa, como complementar à justiça tradicional, permite, inclusive, que a medida socioeducativa seja aplicada e que, além dela, se instaure um processo restaurativo que, de alguma forma, poderá fazer com que os eixos da medida socioe-ducativa sejam cumpridos de maneira muito mais eficaz e satisfatória.

A Justiça Restaurativa é aplicável todas as vezes em que seja identificado um po-tencial restaurativo no caso concreto em análise. Assim, mesmo que seja necessária uma medida socioeducativa em meio fechado (internação ou semiliberdade de um adolescente que praticou ato infracional), ainda assim pode ser instaurado um proces-so restaurativo, paralelo e complementar ao cumprimento da medida socioeducativa. Nesse sentido, a Lei 12.594, de 2012, é um importante marco legislativo que prevê a prioridade, na execução da medida socioeducativa, das práticas ou medidas que sejam restaurativas21.

3.5 A Justiça Restaurativa não é dissonante e nem está acima ou abaixo da lei pe-nal e infracional. Ela se encontra dentro do mesmo sistema de acesso à justiça.

O direito de acesso à justiça não garante o acesso apenas ao processo judicial, mas sim a um amplo sistema em que cada conflito, com suas singularidades, deve ser tratado da maneira mais adequada. Assim, quando se fala em acesso à justiça, não se pode usar a o pensamento restritivo de acesso ao Poder Judiciário e à sentença com caráter de decisão heterocompositiva.

20 CARLUCCI, 2004, p.116.21 BRASIL, 2012, art.35, III.

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Nesse sentido, a Justiça Restaurativa, ao apresentar sua nova visão sobre o conflito pe-nal ou infracional, é um novo olhar sobre o próprio valor de justiça e se insere, é claro, no sistema de amplo acesso à justiça, enquanto valor de satisfação de todos.

3.6 A Justiça Restaurativa não fere o princípio da legalidade. Ao contrário, ela vem sen-do cada vez mais prevista em leis e atos normativos nacionais e internacionais.

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil22, lei maior do nosso país, prevê vários princípios e garantias nos quais se fundamenta a Justiça Restaurativa.

O preâmbulo da Constituição Federal, que, ainda que não tenha eficácia normativa, serve de vetor interpretativo de toda a carta, prevê a solução pacífica de conflitos. Já no texto constitucional com eficácia normativa se incluem vários princípios que embasam a Justiça Restaurativa, dentre eles o princípio democrático- art.1º; o princípio da digni-dade da pessoa humana- art.1º; o princípio do amplo acesso à justiça- princípio implí-cito que não se confunde com o acesso ao Poder Judiciário do art.5º, XXXV; o princípio da proporcionalidade- princípio implícito; o princípio da não exclusão dos tratados- art.5º, parágrafo 2º; e o princípio da eficiência da Administração, art.37.

Não bastasse a carta fundamental a guiar a legalidade da Justiça Restaurativa, a Infância e Juventude foi a área em que surgiu uma das primeiras referências expressas à Justiça Restaurativa, quando, em 2012, a Lei 12.594, conhecida como lei do Sinase, estabeleceu que

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: ...III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas23. 

Os atos normativos que se destacam e nos quais se apoia, também, a Justiça Restaurativa são a Resolução CNJ n.125/201024, a Resolução CNMP n.118/201425 e a Resolução CNJ n.225/201626.

22 BRASIL, 1988.23 BRASIL, 2012, art.35, III.24 CNJ, 2010.25 CNMP, 2014.26 CNJ, 2016.

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A aplicação da Justiça Restaurativa na Infância e Juventude no Brasil, de outro lado, se apoia na Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada internamente pelo Decreto 99.710, de 1990, que prevê ser dever dos Estados-partes contemplar, sempre que possível, medidas não judiciais para tratar de conflitos que envolvam crianças e adolescentes27.

Dos atos normativos internacionais, merece destaque a Resolução 12, de 2002, do Conselho Econômico e Social da ONU28, aplicável ao Brasil como signatário da Convenção da ONU.

3.7 A Justiça Restaurativa não implica necessariamente perdão do infrator e reconciliação.

Embora o perdão do infrator e a reconciliação possam ocorrer num processo restau-rativo, como consequência do processo, eles não são o objetivo da Justiça Restaurativa.

Um processo restaurativo, conduzido por facilitador qualificado, pode auxiliar a víti-ma da infração ou ato infracional a alcançar o perdão, que deve ser entendido e vivido como benefício para a própria vítima e não como um favor para o infrator29.

Não é raro que, no processo criminal ou infracional tradicional, a vítima do crime ou do ato infracional se sinta afastada e não pertencente. O seu constrangimento de estar presente no locus da justiça tradicional decorre do medo (natural num ambiente onde a vítima não teve a oportunidade de se sentir, ainda, segura, física e emocionalmente) e faz com que, na maioria das vezes, ela prefira ser ouvida sem jamais encontrar o acu-sado (no processo criminal) ou representado (no processo infracional), ficando desa-tendida, muitas vezes, assim, sua necessidade de expor àqueles as sérias consequências, materiais e morais, que decorreram do seus atos.

A Justiça Restaurativa proporciona à vítima um espaço onde ela pode falar de seus sentimentos decorridos daquela infração, pode sentir-se ouvida, pode entender que, algumas vezes, ela foi escolhida como vítima apenas aleatoriamente e poder voltar a ser

27 BRASIL, 1990b, artigo 40, item 3, “b”.28 ONU, ECOSOC, 2002.29 Na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, Frederic Luskin, PHD e Diretor do Instituto do

Perdão, estudou o tema e concluiu que perdoar é essencial à saúde das pessoas e que perdoar não quer dizer esquecer, aceitar, desculpar ou negar as coisas ruins ocorridas. LUSKIN, 2006, p. XIX.

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empoderada nos seus sentimentos e na sua forma de conduzir sua própria vida a partir do crime ou do ato infracional que a atingiu.

A algumas vítimas não bastam o processo penal ou o processo infracional judicial, tradicional, onde costumam ser os “convidados de pedra”, como referidos por Highton, Álvarez e Gregorio30.

3.8 A Justiça Restaurativa não é mediação e a mediação penal é apenas um de seus processos31.

A mediação, como processo de tratamento adequado de conflitos que integra o siste-ma de amplo acesso à justiça, é um dos métodos do referido sistema.

A Justiça Restaurativa, como exposto no item 2 deste capítulo, é um novo paradigma da própria visão da justiça.

A mediação de conflitos civis, expressão aqui utilizada para identificar conflitos não--penais ou não-infracionais, é um dos métodos do sistema de acesso à Justiça.

Já a mediação penal, ou mediação vítima-ofensor, é um dos métodos, ou processos, de Justiça Restaurativa e, ainda que guarde semelhanças com a mediação de conflitos civis, dele diverge em vários aspectos, como, por exemplo, a possibilidade de ser aplica-da entre pessoas que não têm relação continuada, a mais clara identificação de vítima e ofensor e o diferente conceito de neutralidade do mediador, que devem pautar a me-diação penal.

A mediação penal é apenas um dos processos ou métodos restaurativos. No dizer de Highton, Álvarez e Gregorio, “a mediação penal não é mais do que uma das aproxima-ções à justiça restitutiva, ainda que seja certo que esta não se restrinja aos programas de mediação vítima-vitimário”32.

30 HIGHTON; ÁLVAREZ; GREGORIO, 1998, p. 41.31 O tema também é abordado no item 5, abaixo.32 HIGHTON; ÁLVAREZ; GREGORIO, 1998, p.77. Tradução livre da autora.

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3.9 A Justiça Restaurativa não é destinada apenas a crimes e contravenções penais de menor potencial ofensivo ou atos infracionais que a eles correspondam (ainda que, em alguns países que adotam processos restaurativos, eles sejam aplicados somente em casos tais).

O Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP) con-duziu uma pesquisa sobre as novas metodologias de Justiça Restaurativa, tendo como recorte adolescentes e jovens em conflito com a lei. Em 2014, o relatório final da aludida pesquisa ressaltou que quanto mais grave o delito, mais há o que ser reparado33.

Assim, partindo do pressuposto de que, quanto maior o dano causado, mais espaço há de restauração, a Justiça Restaurativa é aplicável a qualquer tipo de conflito penal ou infracional.

Especialmente no que diz respeito aos atos infracionais praticados por adolescentes, deve ser destacada a Declaração de Lima, resultante do I Congresso Mundial de Justiça Juvenil Restaurativa, que previu que

A Justiça Juvenil Restaurativa não deve limitar-se somente a delitos menores ou a agressores primários. A experiência mostra que a Justiça Juvenil Res-taurativa também pode desempenhar um papel importante na abordagem de delitos graves. Por exemplo, em diversos conflitos armados as crianças são utilizadas como meninos soldados e obrigados a cometer delitos indes-critíveis especialmente contra os membros de suas próprias famílias, seus vizinhos e suas comunidades. A Justiça Restaurativa é, com frequência, a ú-nica forma de gerar a reconciliação entre as vítimas e os agressores em uma sociedade castigada pela guerra nas quais as vítimas das agressões sofrem tanto quanto as crianças agressoras, que são forçadas a cometer as agressões. Sem dita reconciliação, a reintegração dos meninos soldados a suas comu-nidades não será possível, em prejuízo em muitos casos do menino que foi excluído bem como da comunidade que é privada de sua força trabalhista, e com a ameaça de um comportamento criminoso por parte do menino que foi excluído34.

33 CDHEP, 2014, p.47.34 https://sistemas.tjam.jus.br/coij/wp-content/uploads/2014/07/declaracao_lima_2009.pdf. Acessado em

21.08.2017.

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3.10 A Justiça Restaurativa não tem por finalidade reduzir a reincidência (embora a redução da reincidência em regra ocorra, ela não é a razão de ser da Justiça Restaurativa).

Como ressaltado por Howard Zehr35, a redução do recidivismo pode ser um produto consequente da Justiça Restaurativa e os resultados até agora obtidos nos programas existentes no mundo demonstram isso. Contudo, a Justiça Restaurativa é feita tendo em vista outras finalidades, que serão melhor analisadas no item 4, abaixo.

3.11 A Justiça Restaurativa não é algo novo ou criado na América do Norte. Embora da América do Norte do sec. XX venham as primeiras experiências do uso

sistematizado de processos restaurativos36, a Justiça Restaurativa se baseia em funda-mentos que permeiam diversas comunidades desde a origem da humanidade.

Referidas experiências no Canadá e nos EUA deram origem aos programas então chamados de Victim Ofender Reconciliation Program (VORP), que usavam, inicialmen-te, a mediação vítima-ofensor (victim ofender mediation), ou MVO, como método, sur-gindo, posteriormente, os termos “restauração” e “restaurativa”.

3.12 A Justiça Restaurativa não é a panaceia e não poderá ser aplicada em todo e qualquer caso.

Para que um caso decorrente de um conflito penal ou infracional seja encaminha-do à Justiça Restaurativa, é preciso que seu potencial restaurativo seja identificado; que seja checado o prévio reconhecimento da prática prevista como infração penal ou ato

35 ZEHR, 2002, pp.10 e 11.36 O uso intencional e programado de um processo restaurativo costuma ter, como marco inicial, o “Caso

Elmira”, no Canadá, identificado como o primeiro caso de mediação penal vítima-ofensor-MVO. Trata--se de caso acontecido em 1974, no pequeno povoado de Elmira, em Kitchener, na província de Ontário, no Canadá, quando dois adolescentes saíram às ruas e, com atos de vandalismo, danificaram mais de vinte carros, além de casas e lojas. Mark Yantzi, membro de uma igreja menonita e voluntário no progra-ma de probation daquela localidade, cansado da ausência de resposta efetiva do Estado para a infração juvenil, sugeriu ao diretor de probation e ao juiz do caso que, ao invés de uma sanção, aqueles infrato-res assumissem suas responsabilidades perante as vítimas. Quando as autoridades, enfim, aceitaram a sugestão, os jovens, sob a supervisão do próprio Mark Yantzi, com apoio da comunidade, foram até as residências e locais de trabalho das vítimas, admitiram a responsabilidade pelos danos e fizeram um acordo para restituir todas as perdas, acordo este que, em poucos meses, foi cumprido. O caso “Elmira” é narrado por Mark Yantzi, em YANTZI, 2011.

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infracional (para que o processo restaurativo possa ser instaurado e seja eficaz, é neces-sário que o ofensor seja identificado como sendo o infrator e reconheça sua responsa-bilidade sobre o resultado produzido. Para que este pressuposto possa ser observado, é preciso que algum tipo de procedimento já tenha ocorrido, no qual tenha sido apurada a suposta autoria de uma infração penal ou juvenil); e que haja a livre adesão de todos os envolvidos (infrator, vítima e comunidade), que devem ser bem esclarecidos sobre o que é o processo restaurativo, quais os seus propósitos e quais as consequências que o processo restaurativo poderá ter sobre o processo judicial tradicional, seja de conheci-mento, seja de execução de pena ou de medida socioeducativa.

Como asseverado por Elías Neuman37, muitos conflitos penais podem ser resolvidos com processos restaurativos, mas a condição inescusável de todo processo restaurativo é que ele conte com a aquiescência e a vontade de quem dele irá participar. Na seara da Justiça Restaurativa, nada pode ser forçado e a anuência ou o pedido das partes dos processos restaurativos é sua pedra fundamental.

4. OS “Rs” DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

São três os “Rs” que fundamentam a justiça restaurativa: reparação da vítima; que deve ser reparada e empoderada, com espaço para ser ouvida (um dos focos da Justiça Restaurativa reside no dano sofrido pela vítima e nas suas necessidades); responsabili-dade ativa do autor do fato, que deve ocorrer após o reconhecimento da prática delitiva ou infracional, sendo buscada a responsabilidade efetiva e real sobre o resultado causa-do na vítima (a responsabilização ativa consiste no responsabilizar-se do autor do fato, que difere do ser responsabilizado, que é o que ocorre, em regra, no processo judicial criminal ou infracional tradicional); e a reintegração do autor do fato à comunidade, que também é lesada pela prática da infração penal.

Esses “Rs” são conhecidos como fundamentos, princípios, propósitos, finalidades, fins, objetivos ou pilares da Justiça Restaurativa38.

37 NEUMAN, 2005, pp. 128-129.38 Para Carlucci, estes fundamentos são propósitos da Justiça Restaurativa, que não deixará de ter sido

cumprida caso apenas um deles seja atingido. CARLUCCI, 2004.

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De acordo com a lente da Justiça Restaurativa, o crime ou o ato infracional, mais do que uma violação à norma constituída (e, logo, ao Estado), atinge a vítima pessoalmen-te e também a comunidade no seio da qual foi praticada. E, desde este ponto de vista, a pena e a medida socioeducativa tradicionais não solucionam o problema da vítima, nem o da comunidade, que são as atingidas pela prática da infração.

5. OS TIPOS DE PROCESSOS RESTAURATIVOS

Na esteira do que ocorre com a própria definição de Justiça Restaurativa, não há con-senso na doutrina sobre quais são os tipos de processos restaurativos.

A Resolução 12 de 2002 do Conselho Económico e Social da ONU prevê, de maneira não taxativa39, que os processos restaurativos incluem a mediação (no caso da Justiça Restaurativa a mediação é a chamada mediação penal), a conciliação40, as conferências e os círculos decisórios.

Para alguns autores, a mediação penal (ou mediação vítima-ofensor- MVO) não é propriamente um processo restaurativo, pois a ele faltariam elementos essenciais da Justiça Restaurativa, como a aliança formada no tecido social. Para outros, contudo, a mediação penal, além de ser o marco a partir do qual a justiça restaurativa passou a ser aplicada sistematizadamente no sec. XX, é, sim, um processo restaurativo.

Para os fins deste trabalho, a mediação penal é considerada um dos processos res-taurativos, pois, como já apontado acima, assim prevê a Resolução 12 do Conselho Econômico e Social da ONU e, da mesma forma, este parece ser o entendimento do CNJ, até o momento. Na obra publicada pelo próprio CNJ, após a Resolução n.225, afir-ma-se que “a mediação vítima-ofensor (MVO) é apenas um dos diversos processos da Justiça Restaurativa”41.

39 Uma das características dos processos restaurativos é sua flexibilidade, pois é necessário que os processos ou práticas vão se adaptando às condições de cada país e lugar em que são aplicados e às circunstâncias de cada conflito penal.

40 Trata-se de processo restaurativo que, na legislação brasileira, tem expressa previsão na Lei n. 9.099/1995, art.73.

41 CRUZ, 2016, p.123.

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Há que se ressaltar, porém, que o fato de a mediação vítima-ofensor estar prevista como um dos tipos de processos restaurativos, isto não quer dizer que ele seja o mais restaurativo de todos.

Acredita-se que quanto maior o envolvimento de todos os envolvidos e atingidos pelo conflito penal ou infracional (ofensor, vítima e comunidade), mais integralmente res-taurativo poderá ser o resultado do processo.

Quando se trata de ato infracional, em especial, há que se considerar que a mediação vítima-ofensor pode não ser o processo mais adequado, pois, como aponta a realidade do perfil dos adolescentes que infracionam, a maioria deles é vítima de muitas viola-ções de direitos. Assim, para que haja uma efetiva restauração, para que os resultados pretendidos pela Justiça Restaurativa sejam mais amplamente atingidos, é preciso um real engajamento das comunidades às quais eles pertencem, de forma a transformar a realidade e permitir que, a partir do ato infracional, eles possam agir diferente.

O processo restaurativo que conta com a participação da comunidade parece ser o mais adequado à realidade da Justiça Juvenil Infracional. A inclusão da comunidade no processo restaurativo faz com que seja ultrapassada a noção de responsabilidade apenas individual para ser atingida a noção de corresponsabilidade de todos, família, Estado e sociedade, em cumprimento ao preceito constitucional do artigo 227 da nossa Carta Magna42.

6 A REALIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NA JUSTIÇA JUVENIL DA COMARCA DE BELO HORIZONTE-MG, O FÓRUM PERMANENTE DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCA-

TIVO E A COMISSÃO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA

Em 24.02.2014, sob o trabalho aglutinador da 23ª Promotoria de Justiça de Belo Horizonte e em atenção ao fato de que, conforme o disposto na Constituição Federal43, é dever de todos, família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao

42 BRASIL, 1988, art.227, caput.43 BRASIL, 1988, artigo 227, caput.

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jovem, com absoluta prioridade, os seus direitos fundamentais, foi criado o Fórum Permanente do Sistema de Atendimento Socioeducativo do município de Belo Horizonte44.

O aludido fórum é um espaço criado para debater questões do sistema de atendimen-to socioeducativo em Belo Horizonte, que busca promover uma política de atendimen-to socioeducativo humana e transparente, reunindo instituições governamentais e não governamentais envolvidas no trabalho com adolescentes autores de ato infracional.

O trabalho do fórum foi dividido em comissões temáticas45, sendo uma delas a Comissão de Justiça e Praticas Restaurativas, conhecida simplesmente por Comissão de Justiça Restaurativa, que, desde a data de sua instituição até a data do presente trabalho, vem sendo coordenada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A Comissão de Justiça Restaurativa conta com aproximadamente 90 integrantes46, pessoas físicas e instituições, dentre elas a UFMG, que dela participa ativamente através de seu Projeto Ciranda.

A aplicação da Justiça Restaurativa na Justiça Juvenil Infracional da comarca de Belo Horizonte e sua realidade estão, assim, intimamente relacionadas à aludida comissão, que, de maneira articulada e em rede, vem tecendo o atingimento dos objetivos da Justiça Restaurativa no município.

7. OS DIFERENTES RAMOS DE TRABALHO DA COMISSÃO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA DO FÓRUM PERMANENTE DO SISTEMA DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE.

Desde sua implantação, a Comissão de Justiça Restaurativa tem trabalhado com dife-rentes vieses ou ramos de aplicação da Justiça Restaurativa na Justiça Juvenil Infracional em Belo Horizonte.

44 http://simasebh.org.45 Inicialmente em número de 11, as comissões temáticas passaram a ser 12 e voltaram, recentemente, a ser

11.46 Conforme consulta feita em 24.08.2017.

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Tais ramos de trabalho podem ser agrupados em 6, sendo eles: Justiça Restaurativa no CIA, Justiça Restaurativa nas unidades de internação e de semiliberdade, Justiça Restaurativa nas medidas socioeducativas de meio aberto, Justiça Restaurativa nas uni-dades de acolhimento, Justiça Restaurativa na Polícia Civil e Justiça Restaurativa nas escolas, a seguir detalhados.

7.1 A Justiça Restaurativa no CIA

Na comarca de Belo Horizonte, em cumprimento ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente47, o atendimento ao adolescente autor de ato infracional se dá de ma-neira concentrada, no Centro Integrado de Atendimento ao Autor de Ato Infracional, criado em 2008, para o pronto e efetivo atendimento ao adolescente autor de ato in-fracional, num mesmo espaço físico,  por uma equipe interinstitucional, composta por Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, Polícia Militar e funcionários da Subsecretaria de Estado de Atendimento às Medidas Socioeducativas e da Prefeitura Municipal.

Seguindo o procedimento aplicável ao adolescente autor de ato infracional, este, quando apreendido de flagrante, é encaminhado ao CIA, onde, após ser feito o auto de apreensão em flagrante de ato infracional pela Polícia Civil, é apresentado em audiên-cia preliminar, na presença do promotor de justiça, do juiz e do defensor. Fluxo similar ocorre na investigação de ato infracional sem apreensão em flagrante, pois a Polícia Civil instaura um procedimento de apuração de ato infracional, e, uma vez recebido pelo Ministério Público o procedimento de investigação, é requerida a designação de audiência preliminar.

Na audiência preliminar, cabe ao Ministério Público avaliar o caso, formar seu con-vencimento sobre o que foi apurado até aquele momento e adotar uma das seguintes providências: requerer o arquivamento do procedimento de investigação (instaurado por auto de apreensão em flagrante ou portaria inicial), oferecer representação (peça inaugural da ação socioeducativa) ou conceder remissão exclusiva (que exclui o início da ação socioeducativa).

47 BRASIL, 1990, art.88, VI.

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O início da ação socioeducativa, com o oferecimento da representação, levará o pro-cesso judicial socioeducativo à instrução e, após as fases próprias, a sentença poderá acolher a representação para aplicar medida socioeducativa ou julgá-la improcedente e não aplicar nenhuma medida. Além disso, contudo, após ofertada a representação, poderá, a pedido das partes ou de ofício pelo juiz, ser concedida ao adolescente remis-são suspensiva do processo (quando cumulada com alguma medida não privativa de liberdade que requer acompanhamento, como a prestação de serviços à comunidade e a liberdade assistida) ou extintiva (que, neste caso, pode ser simples ou cumulada com a aplicação da medida de advertência).

Em 2011, a Portaria Conjunta 221 do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais48

previu a criação de projetos-piloto de Justiça Restaurativa na Comarca de Belo Horizonte, nos feitos de competência criminal e infracional, conforme acordo de cooperação téc-nica a ser firmado com o Ministério Público, Defensoria Pública e demais entidades interessadas.

Em 29.06.2012, foi firmado entre Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e Prefeitura Municipal de Belo Horizonte um TCT (Termo de Cooperação Técnica), publicado no MG de 11.07.2012, que, cumprindo a portaria-conjunta men-cionada no parágrafo acima, teve como objeto a criação de projetos-piloto de Justiça Restaurativa na comarca de Belo Horizonte, no Juizado Especial Criminal e na Justiça Infracional. Referido TCT encontra-se, no momento em que este capítulo é escrito, em fase de renovação pelos partícipes, que já estão em tratativas para, ao invés de renová-lo tout court, substitui-lo por outro.

Em 12.05.2016, visando executar o disposto na Portaria Conjunta 221 e no TCT, fir-mou-se o Protocolo de cooperação interinstitucional no âmbito do sistema de atendimen-to socioeducativo de Belo Horizonte, cujos parceiros atuais são a Faculdade de Direito da UFMG (que dele participa através do Projeto Ciranda), o Centro de Defesa Zilah Spósito, o Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH, o Centro Universitário

48 TJMG, 2011.

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Newton Paiva, a Faculdade Batista de Minas Gerais, e a Universidade Salgado de Oliveira – Universo/BH.

O objeto deste protocolo foi a criação, pelos parceiros, de Núcleos de Justiça Restaurativa, para onde são encaminhados casos pela Vara Infracional de Belo Horizonte.

Por previsão do aludido protocolo, somente mediante decisão do Juiz da Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte podem os casos do CIA ser encaminhados a um dos Núcleos de Justiça Restaurativa dos parceiros.

Conforme o fluxo previsto e atualmente especificado no próprio protocolo e em ou-tros documentos, o potencial restaurativo de um caso atendido no CIA pode ser identi-ficado no momento da audiência preliminar, no momento da audiência de apresentação, na execução da medida socioeducativa ou em qualquer outro. Uma vez identificado o potencial restaurativo, é pedido ao Juiz o encaminhamento à Justiça Restaurativa e este, via serviços da Vara Infracional, envia o caso a alguma das instituições parceiras, con-forme vagas existentes.

Se o encaminhamento à Justiça Restaurativa se der antes do oferecimento da repre-sentação, o procedimento de apuração de ato infracional ficará suspenso. Se tal encami-nhamento se der depois de oferecida a representação, a ação socioeducativa ficará sus-pensa. A suspensão prevista é de inicialmente 30 dias, podendo ser prorrogada. Quando finalizado o processo restaurativo conduzido pela instituição parceira, seu resultado é comunicado ao CIA, para análise das partes e decisão judicial sobre o deslinde do pro-cedimento (no caso de ainda não ter sido oferecida representação) ou processo socioe-ducativo (no caso de já ter sido oferecida representação). Já nos encaminhamentos feitos na execução de medidas socioeducativas, o processo de execução não fica suspenso e o processo restaurativo conduzido pelo parceiro se dá paralelamente, podendo seus resul-tados serem considerados pelo juiz na reavaliação das medidas.

Desde a vigência do Protocolo de cooperação interinstitucional até o momento, já foram encaminhados para a Justiça Restaurativa 36 casos49.

49 Conforme dado obtidos perante a Vara da Infância e Juventude Infracional de Belo Horizonte, em 05.09.2017.

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7.2 Justiça Restaurativa nas unidades de internação e de semiliberdadeOs adolescentes que têm a si aplicadas, por sentença judicial, medidas socioeducati-

vas que impliquem privação de liberdade cumprirão a medida de internação ou de se-miliberdade em unidades próprias, que, no caso do Estado de Minas Gerais, são geridas pela SUASE- Subsecretaria de Atendimento Socioeducativo, atualmente integrante da Secretaria Estadual de Segurança Pública.

Considerando que os socioeducandos passam a pertencer às comunidades das uni-dades de internação e de semiliberdade, é muito importante que as próprias comuni-dades estejam aptas a abordar os conflitos que dentro dela ocorrem de maneira mais integrativa, com a corresponsabilização de todos, ofensor, vítima e comunidade, corres-ponsabilização esta que é um dos fundamentos da Justiça Restaurativa.

Acredita-se, ao serem capazes de abordar os conflitos de maneira restaurativa, as uni-dades de socioeducação poderão contribuir para o maior respeito às regras da própria unidade e para uma convivência mais harmônica entre todos, facilitando o atingimento dos eixos das medidas socioeducativas impostas por sentença.

Pertencimento e sentido são necessidades básicas de todos os seres humanos e de todo e qualquer adolescente, tenha ele infracionado ou não. Não foi por outro motivo que a Lei do SINASE previu a priorização das práticas restaurativas na execução das medidas socioeducativas50, já que a Justiça Restaurativa é apta a atender, mais profun-damente, as necessidades de pertencimento e de sentido.

Desta forma, através da articulação de diferentes participantes da Comissão de Justiça Restaurativa, e, em especial, neste viés, da Escola Integrada de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais- EISP, da SUASE- Subsecretaria de Atendimento Socioeducativo e da UFMG- Universidade do Estado de Minas Gerais, por seu Projeto Ciranda, têm sido promovidos cursos de Justiça Restaurativa para as equipes de dire-ção, atendimento e segurança das unidades de internação e de semiliberdade. Os cur-sos, iniciados no ano de 2017, até o momento alcançaram, em 03 turmas distintas, 146 diretores, técnicos e agentes socioeducativos de todas as unidades de internação e de semiliberdade de Belo Horizonte.

50 BRASIL, 1990, art.35, III.

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O reflexo de tal formação já é sentido por aqueles que atuam no CIA, onde, em sede de execução de medidas socioeducativas em meio fechado, têm sido identificados ca-sos com potencial restaurativo e relatados ao Ministério Público, para análise e for-mulação de pedido de encaminhamento a algum parceiro do protocolo de cooperacão interinstitucional.

Além disso, práticas restaurativas vêm sendo adotadas pelas próprias equipes das unidades no dia a dia da administração de conflitos com os socioeducandos.

7.3 Justiça Restaurativa nas medidas socioeducativas de meio aberto

Dentre as possíveis medidas que podem ser aplicadas ao adolescente autor de ato infracional, por sentença judicial, estão as medidas de prestação de serviços à comuni-dade e de liberdade assistida, ambas medidas em meio aberto e geridas pelo Município (diferentemente das medidas em meio fechado, internação e semiliberdade, que são administradas pelo Estado).

Na execução dessas medidas, são formulados um PIA- Plano Individual de Atendimento e relatórios de acompanhamento, no seio dos quais acredita-se que é possível o empre-go de práticas restaurativas, que muito podem qualificar a execução de tais medidas.

Baseada nesta crença, a Comissão de Justiça Restaurativa pretende desenvolver proje-to que possa levar a Justiça Restaurativa também para os serviços municipais de acom-panhamento de medidas de prestação de serviços à comunidade e de liberdade assistida.

7.4 Justiça Restaurativa nas unidades de acolhimento

A realidade da infracionalidade no Brasil está, como se sabe, muito associada à vul-nerabilidade dos adolescentes que praticam os atos infracionais. Assim, é comum que um adolescente em trajetória de rua ou acolhido em alguma instituição venha a praticar atos infracionais.

Quanto aos adolescentes acolhidos, existe considerável incidência de atos infracionais cometidos dentro das próprias unidades de acolhimento, que acabam sendo remetidos, em sua grande maioria, ao CIA.

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Atenta a este fato, a Comissão de Justiça Restaurativa está desenvolvendo um projeto de aplicação de Justiça Restaurativa nas próprias unidades de acolhimento. Por serem estas as comunidades às quais os adolescentes pertencem (ou em relação às quais de-veriam ter, no plano ideal, um verdadeiro sentido de pertencimento), o projeto que a Comissão pretende desenvolver permitirá que agentes educacionais das unidades de acolhimento identifiquem potencial restaurativo de alguns casos, apliquem processos restaurativos e práticas restaurativas e tratem os conflitos ocorridos no interior das ca-sas de acolhimento de maneira mais apropriada.

7.5 Justiça Restaurativa na Polícia Civil

Visando à identificação do potencial restaurativo de um caso antes que ele seja en-caminhado ao CIA, a Polícia Civil, que é um dos integrantes da Comissão de Justiça Restaurativa, por sua DOPCAD- Divisão de Orientação e Apoio à Criança e ao Adolescente, está trabalhando com a análise de um projeto que permitirá que alguns casos sejam encaminhados à Justiça Restaurativa antes mesmo de aportarem ao CIA.

De acordo com o que tem sido estudado e coconstruído, tal projeto permitirá que, ainda na fase de apuração policial do ato infracional, alguns casos sejam tratados através de processo restaurativos facilitados pela própria Polícia Civil, para que, uma vez apor-tados ao CIA (para onde devem ser remetidos todos os procedimentos de apuração de ato infracional, tenha ou não havido apreensão em flagrante), possam ser analisados já com o resultado do processo restaurativo, sendo que a eventual construção de um plano ou acordo restaurativo poderá ser homologada judicialmente.

7.6 Justiça Restaurativa nas escolas

A teoria do conflito demonstra que este é um processo natural e inevitável na socieda-de, contendo, todos os conflitos, aspectos não só destrutivos, mas também construtivos.

Como os conflitos se movem em escalada e em espiral, sabe-se que, no tratamento dos conflitos, é possível evitar a escalada destrutiva e violenta e, para tanto, é necessá-rio que sobre eles as intervenções sejam as mais precoces possíveis. Quanto mais cedo houver a intervenção sobre um conflito, maior se torna a chance de que ele escale de

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maneira construtiva. Marinés Suares lembra que quanto antes se comece a operar para deter a carreira destrutiva de um conflito, mais fácil será lograr êxito neste objetivo51.

A escola, como segunda comunidade que, após a família, é integrada por grande par-te das pessoas, é, assim, um importante espaço de socialização e de convivência. Sendo um espaço de convivência, é um espaço onde inevitável e naturalmente haverá conflitos. De inigualável importância torna-se, desta forma, a função da escola na administração dos conflitos nela surgidos.

Atualmente, a realidade demonstra que, no município de Belo Horizonte, a maioria dos conflitos escolares é tratado da seguinte maneira: a Guarda Municipal ou a Polícia Militar é acionada, é lavrado um boletim de intervenção (no caso da Guarda Municipal) ou de ocorrência (no caso da Polícia Militar), o adolescente é encaminhado ao CIA e o conflito escolar se torna, assim, judicializado.

Com a judicialização, pode ocorrer de o adolescente receber remissão simples, remissão com advertência ou remissão cumulada com outras medidas, conforme a natureza do ato e os registros de atos anteriores do envolvido no conflito escolar. O adolescente envolvido em um conflito escolar acaba sendo tratado como autor de ato infracional, já que, em tese, a maior parte dos atos que decorrem do conflito escolar pode ser enquadrada, também, em algum tipo penal.

Conclui-se, dessa forma, que, uma vez tendo dado entrada no sistema judicial juvenil, o conflito escolar não mais será solucionado diretamente pelos que nele estão envolvi-dos (partes e comunidades escolar), pois aqueles com poder legítimo de iniciar, excluir, suspender ou extinguir um processo judicial são o promotor de Justiça e o juiz de direi-to, que, por garantia legal, são imparciais e estranhos ao conflito que chega até o CIA.

O conflito escolar, por sua natureza, costuma surgir entre pessoas que mantêm rela-ção continuada, bem como afetar toda a comunidade escolar. Por essa mesma razão, em grande parte das vezes, a decisão heterocompositiva (aquela que é dada por alguém de fora do conflito), como a decisão de um juiz ou promotor, não é satisfatória para manter construtivamente a relação ou para restaurar a comunidade escolar atingida.

51 SUARES, 2011, p.53.

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Mesmo que o conflito escolar possa, em tese, caracterizar um ato infracional, ele tem características próprias que indicam a necessidade de soluções mais complexas, tecidas em conjunto e construídas por todos os envolvidos.

O atual modo costumeiro de agir quando da ocorrência de um conflito escolar (po-licialização e judicialização) tem gerado resultados que não são satisfatórios para os adolescentes, suas famílias, as eventuais vítimas, suas famílias e a comunidade escolar.

Ao constatar este fenômeno, a Comissão de Justiça Restaurativa formulou o Programa JR nas Escolas de Belo Horizonte, para implementar o tratamento adequado e satisfató-rio do conflito escolar, permitindo que, antes de ser levado ao CIA e ao sistema

judicial juvenil, o caso possa ser abordado, de maneira técnica, no âmbito da própria escola e que haja oportunidade de ser encontrada uma solução mais eficaz para todos.

O objetivo deste programa é estabelecer, nas escolas municipais e estaduais da rede pú-blica de ensino de Belo Horizonte que a ele aderirem, Núcleos de Orientação e Solução de Conflitos Escolares (Nós), que funcionarão sob coordenação da escola e sob orien-tação de um comitê gestor interinstitucional, coordenado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais.

No momento em que este capítulo foi escrito, o Programa Nós está em fase de implan-tação e de construção, entre os parceiros, de calendário que capacitará agentes de Justiça Restaurativa das escolas municipais e estaduais com sede na capital de Belo Horizonte.

8. DE ONDE PARTIU E ONDE QUER CHEGAR A JUSTIÇA RES-TAURATIVA JUVENIL NA COMARCA DE BELO HORIZONTE

A aplicação da Justiça Restaurativa Juvenil na comarca de Belo Horizonte nasceu com a vontade de várias pessoas e instituições de produzir uma maior satisfação de todos os envolvidos e afetados por um conflito infracional, autor, vítima e comunidade. A Justiça Restaurativa Juvenil de Belo Horizonte foi cogestada por diversos genitores, sendo pro-duto, assim, de um fenômeno de “multiparentalidade”.

Às vontades desses diversos pais e mães, pessoais e institucionais, que antecedem a implantação do Fórum Permanente de Atendimento Socioeducativo, foram sendo

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somadas ações e essas vontades e ações individuais, que, por sua vez, foram se encon-trando e construindo, no encontro, uma vontade coletiva, que hoje move os trabalhos da Comissão de Justiça Restaurativa.

Movida pela vontade e pelo saber coletivo, a Justiça Restaurativa Juvenil na comar-ca de Belo Horizonte quer chegar em resultados cada vez mais restitutivos da dignida-de dos adolescentes que infracionam, das vítimas atingidas pelas consequências desses atos e da comunidade como um todo.

Quer, a Justiça Restaurativa Juvenil da capital mineira, comprovar que é possível construir mais belos horizontes para todos os envolvidos num conflito infracional e resgatar necessários entremeios que sustentam a vida em sociedade.

Os primeiros povos dos quais se tem notícia praticavam a coletividade e a responsa-bilidade comungada. Desde mesmo os antecessores do homosapiens, como o homona-lendi, até as sobreviventes comunidades tradicionais canadenses, sabe-se que o valor que permitiu a sobrevivência do homem sobre o planeta foi o da comunhão, ou vida baseada no real sentido de comunidade. Esta necessidade de restaurarmos a colabora-ção e de vivermos em comunidade é cada vez mais reconhecida por todos os campos da ciência, inclusive da Física, cujo representante exponencial, Fritjop Capra alerta para a mudança do foco da evolução para a co-evolução52.

O que quer a Justiça Restaurativa Juvenil de Belo Horizonte é poder contribuir na construção do caminho da co-evolução da sociedade.

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52 CAPRA, 2006, p.182.

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HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA:UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA

RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE

Fernando Gonzaga Jayme1

INTRODUÇÃO:A CONSTRUÇÃO DO PROJETO CIRANDA

A justiça restaurativa assumiu há pouco mais de uma década incorporou-se à minha vida pessoal, profissional e acadêmica. Em 2006 iniciei meu percurso em práticas res-taurativas ao participar do Curso Perdão e Reconciliação oferecido pelo Centro Loyola. A ética do cuidado e o poder da empatia produziram, em mim, um efeito transfor-mador com repercussões comportamentais sensivelmente benéficas para melhora dos meus relacionamentos interpessoais.

No ano seguinte, em 2007, realizou-se em Belo Horizonte o Seminário Internacional de Justiça Restaurativa - Análise Das Perspectivas de implantação no Brasil, ocasião em que me aproximei dos fundamentos teóricos da Justiça Restaurativa e iniciei estudos sobre o tema. À medida em que aprofundava meus conhecimentos e observava a apli-cação concreta de práticas restaurativas em países estrangeiros com significativos resul-tados, a Justiça Restaurativa também se tornou objeto de meus estudos. Nessa época, a comunidade acadêmica engajada no tema ainda era diminuta e muito difusa. Com efeito, instalou-se um estado letárgico do qual despertei cinco anos mais tarde.

A partir de 2012, a Justiça Restaurativa incorporou-se de forma contínua em minha vida após os cursos de Justiça Restaurativa ministrados pela psicóloga Mônica Mumme, uma das precursoras do tema no Brasil.

1 Fernando Gonzaga Jayme é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Advogado. Professor Associado e Diretor da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenador do Projeto Ciranda.

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No mesmo ano, foi celebrado Termo de Cooperação Técnica entre o Estado de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Município de Belo Horizonte para implantar a metodologia da Justiça Restaurativa. A convite do Juiz de Direito Carlos Frederico Braga da Silva integrei a comissão constituída para a implementação da Justiça Restaurativa em Belo Horizonte. Mais uma vez, tive a opor-tunidade de estar junto com Mônica Mumme, que foi a consultora e instrutora de im-plementação do projeto teórico e técnico da Justiça Restaurativa.

No ano de 2015, sob a minha coordenação foi aprovado o Projeto de Extensão JUSTIÇA RESTAURATIVA: Paz Social, Prevenção à Violência e Promoção de Direitos da Juventude. Trata-se de um projeto de pesquisa-ação, na medida em que atua nas vertentes da prática e da pesquisa, assumindo características tanto da prática rotineira quanto da pesquisa científica. As ações previstas no Projeto compreendiam atendimen-to de adolescentes, formação de grupos de estudo, trabalho de campo, elaboração de artigos e desenvolvimento de pesquisas.

O Projeto objetivava garantir os direitos da criança, do adolescente e do jovem, atra-vés da instalação de ciclos de justiça restaurativa nos processos que tramitam junto ao Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional CIA/BH. A ideia é a de construir um modelo, para expansão dos ciclos de justiça restaurativa nas varas de infância e juventude de outras comarcas, escolas da rede pública de ensino e outras instituições para que estrategicamente utilizem essa importante ferramenta de efetiva prevenção da violência juvenil.

O conceito de Justiça Restaurativa adotado é o de que se trata de proposta metodoló-gica, por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade voltadas a estimular: I) a adequada responsabilização por atos lesivos; II) a assistência material e moral de vitimas; III) a inclusão de ofensores na comunidade; IV) o empoderamento das partes; V) a solidariedade; VI) o respeito mútuo entre vítima e ofensor; VII) a humanização das relações processuais em lides penais; e VIII) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventual-mente preexistentes ao conflito

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Fernando Gonzaga Jayme

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A relevância social da proposta evidencia-se pelo fato de o município de Belo Horizonte, estar ranqueado em 10º lugar entre as cidades brasileiras com maior taxa de homicídios de jovens negros. Esse dado demonstra que: a) a violência provoca prejuízos materiais consideráveis; b) há frustração na efetivação de direitos fundamentais das vítimas e autores dos atos infracionais; c) que o atual modelo de punição pouco contribui para reduzir a violência, apesar do grande dispêndio de recursos.

Em análise, divulgada no Mapa da Violência de 2013, a taxa total de mortalidade da população brasileira caiu de 631 por 100 mil habitantes em 1980, para 608 em 2011, fato bem evidente na melhoria da expectativa de vida da população. Esse é um dos indicadores cuja progressiva melhora possibilitou significativos avanços no Índice de Desenvolvimento Humano dos últimos anos. Entretanto, apesar dos ganhos globais, a taxa de mortalidade juvenil ao longo do mesmo período aumentou, passando de 127 em 1980, para 136 por 100 mil jovens em 2011. É de se lamentar a causa do aumento da mortalidade entre os jovens; enquanto epidemias e doenças infecciosas eram as prin-cipais causas de morte entre os jovens cinco ou seis décadas atrás, atualmente foram sucedidas pelas denominadas causas externas: acidentes de trânsito e homicídios. Em 1980 as causas externas eram responsáveis por pouco mais da metade - 52,9% - do to-tal de mortes dos jovens do país. Já em 2011, dos 46.920 óbitos juvenis registrados pelo SIM, 34.336 tiveram sua origem nas causas externas, fazendo esse percentual se elevar drasticamente: em 2011 quase 3/4 de nossos jovens - 73,2% - morreram por causas ex-ternas. A evolução histórica da mortalidade violenta no Brasil impressiona pelos quan-titativos implicados, segundo os registros do Sistema de Informações de Mortalidade, entre os anos 1980 e 2011, morreram no país: 1.145.908 vítimas de homicídio, 995.284 vítimas de acidentes de trânsito e 205.890 pessoas suicidaram-se, totalizando 2.347.082 óbitos. Conforme o Mapa da Violência de 2013 é possível constatar que as mortes por causas externas aumentaram 28,5%, impulsionadas, principalmente pelos homicídios que cresceram 132,1%. Observa-se também que neste mesmo período houve uma ver-tiginosa escalada das despesas com segurança pública. De acordo com os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2011-2012, os gastos saltaram de aproxi-madamente R$ 17 bilhões de reais em 1986 para mais de R$ 45 bilhões de reais em 2011.

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Levantamento feito pelo Instituto Avante Brasil, com dados do InfoPen, do Ministério da Justiça, apontou um crescimento de 508,8% na população carcerária brasileira no período de 1990 a 2012, registrando 548.003 presos em 2012, uma taxa de 287,31 para cada 100 mil habitantes.

Esses dados demonstram que a criminalidade e a mortalidade, em especial dos jo-vens, tem aumentado consideravelmente nas ultimas décadas. Os investimentos em repressão e punição implicaram aumentos dos gastos com segurança pública e da po-pulação carcerária, sem contudo, repercutir na redução dos indicadores de violência. Percebe-se, assim, de forma muito clara o esgotamento do atual sistema jurídico.

A justiça restaurativa, ainda que não seja panaceia para todos os males, pode ser um instrumento paradigmático de tratamento dos conflitos conforme se pode infe-rir das experiências positivas que acontecem nos Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Finlândia, Noruega, França, Inglaterra, Áustria, Bélgica, Portugal, Escócia, Austrália. É importante ressaltar que as práticas restaurativas são recomendadas pela ONU, confor-me expressão as Resoluções números 1999/26, de 28.09.1999, 2000/14, de 27.07.2000, 2002/12, de 24.07.2002.

Existem muitas diferenças entre o processo judicial tradicional e a justiça restaurati-va, como o tempo, o dispêndio de recursos, o treinamento dos envolvidos, os ritos e até mesmo a linguagem utilizada. Mas a maior diferença entre ambos é de enfoque, trata-se na verdade de concepções diametralmente opostas. A criminologia tradicional possui seu foco no réu, todo o procedimento penal, princípios e a própria hermenêutica crimi-nalista orbitam está figura, a fim de evitar quaisquer abusos e violações a seus direitos e garantias fundamentais. Interessa ao processo penal apurar a existência do elemento subjetivo da conduta do réu, se este agiu com dolo direto, ou com dolo eventual, ou com culpa consciente, ou inconsciente. A justiça restaurativa, por sua vez, foca na vitima e nos danos por ela sofridos. Busca-se o retorno ao status quoi ante, isso é, a restauração do efetivo dano (material e moral) causado pelo ofensor e não o mero acionamento normativo de um determinado tipo penal. Uma consequência imediata deste enfoque é a incompatibilidade da justiça restaurativa com uma decisão imposta por um terceiro. O juiz pode dirigir um processo respeitando os princípios e garantias do réu, valorar as

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provas, estabelecer uma dosimetria de pena de acordo com os limites estabelecidos pela legislação vigente; mas é incapaz de efetivamente restaurar o dano causado pelo delito, visto que esse dano pertence à comunidade e às partes, em especial, à vitima. Todavia, a justiça restaurativa tem capacidade de restaurar as relações afetadas pelo ato danoso e reparar os danos dele decorrentes ao reconhecer o seguinte:

a) o delito constitui, em primeiro lugar, uma ofensa contra as relações humanas; em segundo, uma violação à lei;

b) o delito é pernicioso e não deve ocorrer; porém, admite também que, depois de ocorrido, existem não somente riscos, como também oportunidades;

c) a justiça restaurativa é um processo que permite emendar as coisas tanto quanto seja possível, e inclui a atenção das necessidades criadas pelo ato delituoso, tais como segurança, reparação dos prejuízos, restabelecimento das relações ou dano físico resultante;

d) tão pronto como as condições de segurança da vítima imediata, da sociedade e do infrator fiquem satisfeitas, a justiça restaurativa percebe a situação como um tempo de aprendizagem e como uma oportunidade para inculcar no autor do ato danoso novas maneiras de atuar na comunidade;

e) a justiça restaurativa tende a responder ante o delito com a maior antecipação possível, com a máxima vontade de cooperação e a mínima coerção aos fins do restabelecimento das relações humanas;

f) a justiça restaurativa dá preferência a que a maioria dos atos delituosos sejam tra-tados com uma estrutura cooperativa que inclua os mais impactados pelo delito como grupo que provê apoio e faça assumir responsabilidades;

g) a justiça restaurativa reconhece que nem todas as vítimas serão cooperadoras;

h) a justiça restaurativa não é branda com o crime; ao contrário, mantém, em expec-tativa, os infratores e submete-os a grandes exigências, algumas vezes até maiores que as do sistema punitivo tradicional.

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O Projeto JUSTIÇA RESTAURATIVA: Paz Social, Prevenção à Violência e Promoção de Direitos da Juventude foi aprovado e iniciou sua execução no primeiro semestre de 2015.

A primeira ação realizada foi selecionar os 10 alunos que constituiriam a equipe do Projeto todos estudantes do curso de Direito. Em seguida, os coordenadores e os alunos selecionados foram formados em Justiça Restaurativa, em curso de 40 h/a ministradas pelo RECAJ/UFMG.

A partir do encerramento do curso de formação, foram realizados encontros do grupo de estudos com reuniões quinzenais e a participação no Fórum Permanente do Sistema Socioeducativo de Belo Horizonte e na Comissão Temática de Justiça Restaurativa do referido Fórum.

O atendimento de casos somente teve início o final do primeiro semestre de 2016, após a celebração do Protocolo de cooperação interinstitucional no âmbito do siste-ma de atendimento socioeducativo de Belo Horizonte, em 12 de maio. Firmaram o Protocolo, além da Faculdade de Direito da UFMG, o Tribunal de Justiça, o Ministério Público, o Centro de Defesa Zilah Spósito, o Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), o Centro Universitário Newton Paiva, a Faculdade Batista de Minas Gerais, e a Universidade Salgado de Oliveira.

Uma atividade que merecer ser destacada é a oferta da disciplina de Justiça Restaurativa como optativa no Curso de Direito da UFMG. A primeira oferta acontece no segundo semestre de 2017 com os encargos compartilhados pelos Coordenadores do Projeto Ciranda, Professor Fernando Jayme, a co-coordenadora do Projeto, doutoranda Mayara de Carvalho e a mestranda Rafaella Malta. A disciplina, apesar de optativa, terá oferta permanente.

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UM ANO DE ATUAÇÃO DO PROJETO CIRANDA

A partir de junho de 2016, a equipe do Projeto Ciranda passou a realizar procedi-mentos restaurativos em casos encaminhados pelo CIA, envolvendo adolescentes em conflito com a lei.

A experiência com os casos judicializados possibilitou extrair algumas conclusões que conferem especificidade às práticas restaurativas realizadas pela equipe do Projeto Ciranda.

Sob o aspecto jurídico dogmático, foi possível constatar a existência de uma distinção entre a prática da Justiça Restaurativa no Brasil em relação aos países estrangeiros.

A Constituição da República no art. 227 assegura prioridade absoluta em garantir o respeito e efetivação dos direitos fundamentais de crianças, adolescentes e jovens. A concretização desses direitos é responsabilidade solidária da família, da sociedade e do Estado. O texto constitucional impõe, ainda, o dever de resguarda-los de qualquer for-ma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Por fim, a Constituição estabelece a inimputabilidade de crianças e adolescentes.    

Por sua vez, as disposições preliminares do Estatuto da Criança e do Adolescente re-conhecendo que crianças e adolescentes ostentam uma condição especial, a de pessoas em formação, reafirma a prioridade absoluta na concretização, efetivação e garantia de seus direitos fundamentais. Devem lhes ser asseguradas todas as oportunidades e facili-dades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. A negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão aos direitos fundamentais dessas pessoas serão punidas.

Com efeito, da interpretação dessas normas, a primeira constatação possível que re-conhece a peculiaridade do sistema de justiça infanto-juvenil brasileiro em relação aos demais é o fato de que qualquer medida punitiva é incompatível com o ordenamento constitucional.

Nesse aspecto, todavia, se faz necessária uma verdadeira sensibilização do Poder Judiciário para uma mudança de cultura. Pesquisa substanciosa realizada por Elisa Tamantini demonstra que a prática punitiva se faz presente nas decisões no âmbito do CIA, como se vê a seguir:

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Ainda foi possível encontrar com alguma frequência nas sentenças que apli-caram internação argumentos que apresentam o adolescente como alguém inadequado ao convívio social, inapto a gozar a liberdade, o que permite, tendo em vista as situações de risco que ele imprime a si e à sociedade, im-por-lhe a medida mais gravosa.

O representado não está apto a gozar da plena liberdade, posta a gravidade dos atos praticados e o risco que demonstra oferecer a si mesmo e à sociedade, por meio desse tipo de conduta.

A reiteração em ações típicas e antijurídicas já nos dá a dimensão da sua completa inadequação para o convívio em família e sociedade.

Considerando a gravidade da conduta, o insucesso das providências levadas a efeito até então junto ao representado e sua incapacidade de gozar da plena liberdade sem trazer riscos a terceiros, entendo adequada a aplicação da medida de Semiliberdade2.

A Justiça Restaurativa deve ser prioritariamente adotada no sistema de justiça in-fanto-juvenil no Brasil porque, como visto, é solidário o dever do Estado, da família e da sociedade de proteger integralmente crianças e adolescentes. Desta maneira, o ato infracional praticado decorre da negligência do dever de proteção integral. Com efeito, não é adequado submeter o adolescente a um processo judicial pela prática de ato infra-cional do qual não se admite a participação e consequente corresponsabilização da co-munidade, família ou agentes do Estado. A Justiça Restaurativa, por sua vez, ao ampliar a possibilidade de participação daqueles que são direta e indiretamente afetados pelo ato danoso tem condições de construir planos de ação adequados à adoção de medidas pedagógicas que fortaleçam os vínculos familiares e comunitários, como preconizado no art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

No plano prático operacional, o atendimento com dois facilitadores, ainda que não seja imprescindível e condição capaz de inviabilizar a prática restaurativa. Entretanto, recomenda-se a atuação em duplas por possibilitar o apoio recíproco do facilitador,

2 TAMANTINI, Elisa Barroso Fernandes. O discurso normatização e da proteção nos dispositivos de sentenças que restringem ou privam a liberdade de adolescentes. Monografia de Conclusão de Curso. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2017, p. 17

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contribuindo para que o ambiente da prática restaurativa seja resguardado e efetiva-mente seguro.

Por fim, uma constatação empírica, que ainda carece de pesquisa mais aprofundada, é a importância da família, como instituição fundamental, para a prevenção de violên-cia praticada pelos adolescentes e para o processo de responsabilização daqueles que porventura se envolveram com a prática de atos infracionais.

PERSPECTIVAS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA: A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

A Justiça Restaurativa atualmente tem no ambiente judiciário o seu ambiente predo-minante. Ainda são incipientes as práticas restaurativas nas comunidades, nas escolas, nas relações familiares.

Há de se considerar, no entanto, que as práticas restaurativas remontam a eras ime-moriais da história da humanidade e que foram parte integrante dos costumes das so-ciedades e comunidades ancestrais para solucionar os conflitos e tratar suas consequên-cias, o que evidencia sua vocação comunitária.

O princípio da comunidade é valorizado como o lugar que recorda as so-ciedades tradicionais nas quais os conflitos são menos numerosos, melhor administrados e onde reina a regra da negociação3.

Além disso, há de salientar-se que as práticas consensuais de resolução de conflitos, dentre as quais a Justiça Restaurativa, valorizam a autonomia dos indivíduos, reconhe-cendo-os como seres humanos na acepção plena do termo, livre, iguais, dotados de ra-zão e consciência, nos termos do art. 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse caso, a autonomia dos indivíduos para solucionar seus conflitos é reconhecer-lhes cidadania plena tornando desnecessária a prestação de tutela jurisdicional pelo Estado que deve ser destinada apenas aos incapazes de dialógica e consensualmente solucio-narem os conflitos.

3 JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In, Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. p. 165.

HISTÓRIA DO PROJETO CIRANDA: UM ANO CONSTRUINDO JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE

Fernando Gonzaga Jayme

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Outro aspecto a ser destacado é o das práticas restaurativas como poderoso instru-mento para contribuir para a cultura de paz, o que, naturalmente, permite inferir que sua apropriação pela comunidade é um processo natural de empoderamento da cidadania.

Tem-se, pois, em resumo, a justificativa ético-filosófica para o proceder segundo a justiça restaurativa em face do proceder pelo sistema acusatório da tradição retribu-tiva. Justifica-se o proceder pela Justiça Restaurativa porque forma de procefder em que se inaugura, na simplicidade do encontro, a responsabilidade por outrem, uma responsabilidade ativa, pela não-indiferença ao Outro, modalidade de positivação da diferença, modo primeiro para a instalação do justo na convivência entre humanos. Responsabilidade por outrem com o sentido de responsabilidade ética4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta obra é o meio pelo qual o Projeto Ciranda escolheu para celebrar um ano de prá-tica de Justiça Restaurativa no âmbito do CIA de Belo Horizonte por ser a melhor forma de demonstrar sua atuação e prestar contas à sociedade das atividades desenvolvidas.

Esse registro temporal é apenas para demarcar o início de uma trajetória que per-mite prenunciar voos mais distantes tendo em vista o comprometimento, o esforço, a dedicação, a identidade de valores e princípios e a fraternidade que congregam toda a equipe do Projeto Ciranda.

A consciência de que podemos, nos limites das possibilidades de cada um, contri-buirmos para formar cidadãos responsáveis parceiros na construção de uma sociedade justa, fraterna, solidária, liberta de discriminação e pacífica é a centelha que mantém aceso o entusiasmo, alimenta nossa alma e nos fortalece para seguirmos adiante.

Muito há por fazer, mas os frutos do nosso trabalho já começam a ser compartilha-dos; a Justiça Restaurativa já integra a realidade do sistema de ensino público, dos pro-fissionais do sistema socioeducativo.

4 KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.144.

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Gostaria de registrar minha gratidão a vocês que fazem o Projeto Ciranda realidade, sigamos sonhando juntos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASTAMANTINI, Elisa Barroso Fernandes. O discurso normatização e da proteção nos dispositivos de sentenças que restringem ou privam a liberdade de adolescentes. Monografia de Conclusão de Curso. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2017, p. 17.

JACCOUD, Mylène. Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiça Restaurativa. In, Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça, 2004. p. 165.

KONZEN, Afonso Armando. Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerá-rio da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.144.

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JUSTIÇA RESTAURATIVA JUVENIL EMBELO HORIZONTE: RELATO DE EXPERIÊNCIA

DO PRIMEIRO ANO DE ATUAÇÃO DOCIRANDA-UFMG COM PROCEDIMENTOS

RESTAURATIVOS NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Mayara de Carvalho1

A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele termina.ALVES, 20--)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os Estados Liberal e Social tentaram, cada qual a seu modo, regular a sociedade a par-tir da figura do Estado (AGUIRRE, [20--], p. 116). O Estado Democrático de Direito, em contraponto, exige que as noções de democracia e cidadania sejam pensadas a par-tir da sociedade, e não mais sob o paradigma da estadania2 (CARVALHO, 2004).

Por essa razão, desde o Estado Democrático de Direito, todas as instituições estatais passaram a sustentar certo ônus de dialogicidade (HABERMAS, 2012). Contudo, mes-mo no modelo democrático de processo como exercício de procedimento em contra-ditório ampliado (FAZZALARI, 1966; FAZZALARI, 2006), os conflitos são compreen-didos a partir de recortes de complexidade e é necessário aguardar e operar dentro dos

1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB; advogada, com bacharelado em Direito pela UFRN. É co-coordenadora do Projeto Ciranda-UFMG e facilitadora de círculos restaurativos. Contato: [email protected].

2 Com o termo estadania, José Murilo de Carvalho (2004), refere-se à compreensão do conteúdo e extensão dos direitos de cidadania a partir dos interesses e da atuação do Estado, em contraposição à construção participada e dialógica da cidadania.

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limites de toda uma estrutura burocrática previamente imposta, que não condiz com a dinamicidade social.

O Estado Democrático de Direito demanda a garantia de espaços de protagonismo cidadão, o que, no acesso à justiça, reflete a necessidade de uma nova compreensão de jurisdição (CARVALHO; SILVA, 2013), que passa a abranger um sem número de métodos adequados para a satisfação dos interessados na solução e transformação dos conflitos.

É próprio do viver democrático que se assegure experiências de diálogo, alteridade e diversidade (MATURANA; VERDEN-ZOLLER, 2004). Nesse contexto, a Constituição processual surge como garantia de espaços de atuação autônoma e respeitosa dos in-divíduos nas conversações constitucionais. Isso porque “na constituição processual, o diálogo é constante, os consensos, todavia, são temporários, construídos no presen-te, frutos do viver democrático, visando atender a necessidades e interesses diversos” (CARVALHO; CRUZ, 2017, pp. 291-292).

Nesse espaço diferenciado, os métodos adequados de solução de conflitos despontam como meios possíveis para constituir consensos provisórios que possam transformar e construir (CHASE, 2014) novas possibilidades democráticas.

Nesse movimento, o potencial transformador da justiça restaurativa desponta em ra-zão da característica narratividade e do protagonismo dos participantes no procedi-mento. Isso se torna ainda mais significativo em casos envolvendo direitos de crianças e adolescentes, enquanto sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento (arts. 6o e 100, parágrafo único, I, Lei 8.069/1990) que gozam de direito à socioedução (arts. 18-A e 18-B, Lei 8.069/1990; arts. 1o e 60, Lei 12.594/2012; art. 227, CRFB/1988), à proteção integral (arts. 1o, 3o, 100, parágrafo único, II, Lei 8.069/1990) e de garantia de prioridade absoluta (art. 227, CRFB/1988, art. 100, parágrafo único, II, Lei 8.069/1990) (CARVALHO; SILVA, 2015).

“Eu sei que ler, ouvir, dizer poesia hoje, neste tempo de tanto desapego, tan-ta correria, é uma tarefa ‘quixotesca’. É como provocar o mundo, ofender o mundo, pois vivemos como se não coubesse mais o silencio as delicadezas, mas cabem e isso me comove e me atrai” (VELOSO, 2011).

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Nesse contexto, foi assinado o “Protocolo de cooperação interinstitucional no âmbito do sistema de atendimento socioeducativo de Belo Horizonte”, em 12 de maio de 2016, que firmou parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e seis instituições3 para realiza-ção de procedimentos restaurativos em casos do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Atos Infracionais4(CIA/BH).

A partir de então, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (FD-UFMG), por meio do Projeto Ciranda5, passou a atuar com procedimentos restau-rativos em casos envolvendo atos infracionais.

De início, foi dada prioridade de encaminhamento para os casos em que as situações conflitivas ocorriam a nível familiar. Aqui, família foi compreendida em sentido amplo, abarcando desde a família nuclear e extensa às escolas, às unidades de acolhimento e aos centros de internação, por exemplo.

A opção se deu por privilegiar relações continuadas, em que o vínculo entre os en-volvidos garantia certa permanência do contato e, por isso, da situação conflituosa.

3 As instituições parceiras que firmaram o protocolo foram o Centro de Defesa Zilah Spósito, o Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), o Centro Universitário Newton Paiva, a Faculdade Batista de Minas Gerais, a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Salgado de Oliveira (Universo/BH).

4 O Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional (CIA/BH) foi instituído pela Resolução-Conjunta nº 68/2008 com vistas a cumprir a determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 88, V, Lei 8.069/1990) de pronto e efetivo atendimento ao adolescente autor de ato infracional. O CIA-BH dispõe, no mesmo espaço físico, de equipe interinstitucional da qual fazem parte Juízes de Direito, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Delegados de Polícia, Polícia Militar e funcionários da Subsecretaria de Estado de Atendimento as Medidas Socioeducativas e da Prefeitura Municipal. Para mais informações, cf. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Centro de Atendimento Integrado ao Adolescente Autor de Ato Infracional. Disponível em: < http://ftp.tjmg.jus.br/ciabh/cartilha_cia.pdf>. Acesso em 3 ago. 2016.

5 O Ciranda é um projeto de extensão e pesquisa vinculado à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Teve início em 2015, à época apenas como projeto de extensão, sob coordenação do professor doutor Fernando Gonzaga Jayme e da doutoranda Mayara de Carvalho Araújo. Registrado no Sistema de Informação da Extensão (SIEX-UFMG) como “Justiça Restaurativa: Paz Social, Prevenção à Violência e Promoção de Direitos da Juventude” (Projeto 402467), o Ciranda estendeu sua atuação em abril de 2017 e passou a ser também grupo de pesquisa. Atualmente, conta com oito membros, além dos dois coordenadores, são eles: Aline Ferreira, Ana Carolina Jorge, Elisa Tamanti, Fernanda Valladares, Flavia Resende, Gabriel Rodrigues, Lívia Vilela e Rafaella Malta.

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Entendeu-se que, nesses casos, o potencial restaurativo contribuiria para materializar a socioeducação, compreendida como

[...] conjunto articulado de programas, serviços e ações desenvolvidos a par-tir da inter-relação entre práticas educativas, demandas sociais e direitos humanos, com os objetivos de promover o desenvolvimento de potencia-lidades humanas, da autonomia e da emancipação, bem como fortalecer princípios da vida social. (BISINOTO et al., 2015, p. 584).

Além disso, também foi definido que os atos infracionais que deram origem ao pro-cedimento deveriam ser análogos a contravenções penais ou crimes de menor potencial ofensivo6. Todavia, com poucos meses de atuação, surgiu a demanda por ampliação dos casos, que passaram a abarcar qualquer ato infracional7.

Essa segunda etapa foi essencial, uma vez que foi a partir dos pré-círculos com um adolescente cumprindo medida socioeducativa de internação que se deu início à

6 A opção por atos infracionais análogos a delitos considerados mais leves adveio mais da necessidade de se começar por algum lugar do que propriamente de um critério que indicasse a maior viabilidade da justiça restaurativa nesses casos. Foi uma opção política do CIA-BH que talvez indicasse, inclusive, alguma desconfiança ou desconforto com o procedimento restaurativo. Como se verá adiante, a delimitação, contudo, atinge somente a lide, o recorte cognoscível mais iminente do conflito reconhecido pelo processo judicial. Isso porque mesmo nos casos tidos como “mais simples”, em que o ato infracional era análogo a crime de menor potencial ofensivo, a situação conflitiva costuma expor tamanha vulnerabilidade e violação de direitos que acaba por compreender outros crimes ou atos infracionais que escapam do recorte apresentado na lide. Basta dizer que quase todos os casos atendidos pelo Ciranda tinham por base alguma forma de violência doméstica ou discriminação de gênero. Além disso, elementos característicos de situações de vulnerabilidade costumam permear narrativas de quase todos os participantes dos procedimentos restaurativos realizados pelo Projeto, a exemplo de passagens por instituições de acolhimento. Não só, a situação de vulnerabilidade tem sido tão extrema que as pessoas atendidas pelo Ciranda costumam narrar a dificuldade ou mesmo impossibilidade de comparecer à Faculdade de Direito por impossibilidade de pagar pelo bilhete de ônibus. Em alguns casos, inclusive, adolescentes relataram querer tanto participar do procedimento que haviam ido à Faculdade usando o vale social recebido para comparecer ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), em detrimento de seu acompanhamento pelo serviço de assistência social. Recentemente, o Ciranda adquiriu cerca de 1000 bilhetes de ônibus para disponibilizar aos participantes dos procedimentos restaurativos que se encontrem em condição de vulnerabilidade econômica.

7 Aqui, é importante frisar o papel e a confiança da Promotora Danielle Arlé que, ao ouvir a mãe de uma vítima fatal narrar que gostaria de ouvir de quem tirou a vida de seu filho o porquê de ter agido dessa maneira, entrou em contato com o adolescente autor do ato, que à época cumpria medida socioeducativa de internação, explicou os valores e finalidades da justiça restaurativa e perguntou se gostaria de participar de procedimento restaurativo. O caso foi encaminhado ao Ciranda no primeiro semestre de 2017.

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articulação e parceria do Ciranda com as unidades socioeducativas. O vínculo, inclusi-ve, tem resultado em ampla parceria, que compreende o oferecimento, pelo Projeto, de cursos de justiça restaurativa e comunicação não-violenta para agentes de segurança, corpo técnico e gestoras8 de todas as unidades socioeducativas da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Em quaisquer das situações, os casos são encaminhados por intermédio de ordem judicial9, a pedido do Ministério Público ou da Defensoria Pública, e são repassados à Faculdade pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação Especial (SAASE) ou pelo Setor de Acompanhamento das Medidas Privativas de Liberdade (SAMRE), conforme trate de caso em fase pré-processual ou de adolescente em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade.

Encaminhados os casos, os processos judiciais ficam suspensos por até 30 dias, a contar da data do primeiro pré-círculo, renovável por igual período, conforme pedido justificado da instituição parceira. Ao final, os facilitadores remetem à Vara de Atos Infracionais da Infância e da Juventude de Belo Horizonte o relatório qualitativo a res-peito da prática restaurativa. O Judiciário, por sua vez, fica encarregado de informar

8 No decorrer deste trabalho, será utilizado alternadamente feminino e masculino quando os substantivos estiverem no plural ou indicarem um coletivo que admite flexão de gênero. Embora a língua portuguesa padronize a opção pela flexão no gênero masculino sempre que o substantivo compreender homens e mulheres, entende-se que o exercício da língua é também uma demarcação de posição política. Diante da histórica invisibilidade de mulheres em nossa cultura, optou-se por falar ora no feminino, ora no masculino, sem que isso corresponda necessariamente a uma totalidade de mulheres e homens nesses grupos.

9 A necessidade de ordem judicial para encaminhamento dos casos de adolescentes autores de atos infracionais, seja em fase pré-processual, seja em cumprimento de medida socioeducativa, tem sido um ponto sensível do protocolo interinstitucional. A concentração da decisão no Judiciário afasta a autonomia e a celeridade para a condução de práticas restaurativas pelas instituições parceiras em situações de conflitos nas unidades socioeducativas, por exemplo. As dificuldades de comunicação direta e ágil entre esses centros e o Judiciário ou mesmo os setores de acompanhamento das medidas socioeducativas foram pontuadas por alguns dos técnicos dessas instituições. Por vezes, profissionais das unidades socioeducativas também relataram desconhecimento sobre a parceria e desconsideração dos conflitos internos quando dos encaminhamentos dos casos. Recentemente, a Comissão de Justiça Restaurativa, na pessoa de sua presidente, a Promotora Danielle Arlé, atendeu a demanda do Ciranda para aproximação do contato entre as unidades socioeducativas e o CIA-BH. Em oficio recente, as unidades foram estimuladas a identificar e apresentar casos de conflitos internos nos quais identificavam potencial restaurativo.

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à instituição de ensino o impacto jurídico do procedimento restaurativo no processo judicial.

Completado um ano desde o primeiro caso recebido pelo Projeto para atuação com processos restaurativos, surge o interesse de fazer um apanhado das atividades no pe-ríodo. Dessa forma, esse trabalho se propõe a apresentar relato de experiência do pri-meiro ano de prática do Ciranda, preocupando-se tanto em caracterizar, do ponto de vista quantitativo, o perfil dos casos recebidos, quanto em apresentar as opções meto-dológicas e o aprendizado produzido com a materialização dos processos circulares.

Com isso, pretende estimular a multiplicação e o aprimoramento das práticas restau-rativas por meio da exposição do conhecimento construído pelo Ciranda na sua ma-terialização, com a consequente abertura para debate e sugestões que possam advir da publicação desse trabalho.

Essa é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reco-nhece. E por reconhecer, salva. (BRUM, 2006).

2. DOS ADOLESCENTES AUTORES DE ATOS INFRACIONAIS ATENDIDOS NO PRIMEIRO ANO DA PARCERIA INTERINSTITUCIONAL

De início, é importante frisar que, no primeiro ano da parceria, o Ciranda-UFMG não produziu dados próprios quanto ao perfil socioeconômico das pessoas participan-tes dos processos restaurativos. Isso se deveu principalmente ao estágio incipiente da atuação do Projeto no sistema socioeducativo. Por essa razão, os dados referentes ao período são os de controle interno do CIA-BH, disponibilizados pelo SAASE.

Paulatinamente, o Ciranda foi identificando quais dados seriam efetivamente rele-vantes para caracterização do perfil dos participantes e só então construiu seu próprio documento para coleta de informação. A partir de agosto de 2017, passou a adotar, dentre outros documentos para identificação estatística de sua atuação, questionário socioeconômico (Anexo III) e questionário qualitativo (Anexo IV), ambos aplicados a cada um dos participantes das práticas restaurativas.

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Na primeira sessão com cada participante, o Ciranda também entrega um termo de assentimento para participação no procedimento restaurativo (Anexo I) e um docu-mento com orientações de conduta (Anexo II).

De 15/06/2016, quando o primeiro processo foi suspenso para encaminhamento, até 26/07/2017, o CIA-BH repassou 26 casos para as instituições parceiras facilitarem por meio de procedimentos restaurativos. Desses, 14 foram encaminhados ao Ciranda.

A distribuição e condução dos processos restaurativos aconteceu da seguinte manei-ra: o Ciranda-UFMG atuou em 14 casos, o que corresponde a 53,85% dos processos encaminhados; o Centro Universitário Newton de Paiva e a Faculdade Batista de Minas Gerais receberam 4 casos cada, atuando em 15,38% dos casos encaminhados; a UniBH recebeu 3 casos, todos facilitados pelo Centro de Defesa Zilah Spósito; e 1 adolescente foi encaminhado diretamente para o Centro de Defesa Zilah Spósito que, somando aos outros 3 casos em cooperação à UniBH, atuou em 15,38% dos casos encaminhados. A Universo e a UniBH, embora tenham celebrado o protocolo interinstitucional, não ti-veram práticas restaurativas vinculadas ao CIA-BH.

Dezessete dos 26 processos (65,38%) eram referentes a adolescentes que não cumpriam qualquer medida socioeducativa no momento do encaminhamento. Três dos adolescen-tes receberam advertência (11,54%); um recebeu medida de liberdade assistida (3,85%); um recebeu advertência e liberdade assistida cumulativamente (3,85%); um estava em cumprimento de prestação de serviço à comunidade (3,85%); e um outro cumpria medi-da socioeducativa de internação (3.85%). O SAASE não informou se dois desses adoles-centes (7,69%) cumpriam alguma medida no período e, em caso afirmativo, qual seria.

Dos 14 casos recebidos pelo Ciranda-UFMG no período, um era referente a adoles-cente cumprindo medida socioeducativa de internação (7,14%); um a aplicação cumu-lativa de advertência e liberdade assistida (7,14%); um a adolescente que recebeu exclu-sivamente advertência (7,14%); nove de pessoas que não cumpriam qualquer medida socioeducativa (64,29%); e dois casos em que não foi informado se os adolescentes cumpriam alguma medida (14,29%).

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Adolescente x Medida Socioeducativa

0Sem medida

socioeducativaAdvertência Internação Não informadoLiberdade

AssistidaAdvertênciaLiberdadeAssistida

Prestação deserviço à

comunidade

+

2

46

8

10

12

1416

18

CIA-BH Ciranda

A maioria dos casos recebidos eram de atos infracionais contra a liberdade de auto-determinação (sete casos envolvendo ameaça), contrários à incolumidade pessoal (três casos de vias de fato e dois de agressão) ou contra a integridade corporal (dois casos com lesões corporais). Além desses, o Projeto recebeu um caso de ato infracional aná-logo a homicídio.

Dos casos encaminhados pelo CIA-BH às instituições parceiras, 14 eram de meninos autores de atos infracionais (53,85%), enquanto 12 eram referentes a meninas que in-fracionaram (46,15%). Desse total, só um caso envolvia adolescente transexual, no caso, uma adolescente do gênero feminino que nasceu homem (3,85%). A distribuição de gênero dos casos recebidos pelo Ciranda foi de nove garotos (64,29%) e cinco garotas (35,71%), incluindo a adolescente transexual.

Isso contrasta com os dados do CIA-BH, que indicam que 84,4% dos atos infracionais do ano de 2010 foram cometidos por adolescentes do sexo masculino (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2010).

Nesse aspecto, tem-se algumas hipóteses como possíveis: se a presença propor-cionamente mais substancial das adolescentes advém do fato dos atos infracionais

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encaminhados serem, em sua maioria, análogos a contravenções ou crimes de menor potencial ofensivo10; e se o encaminhamento proporcionalmente menor de adolescen-tes do sexo masculino advém do fato de esses meninos serem o estereótipo de “outro” enquanto inimigo imaginado. Isto é, de serem eles as vítimas prioritárias do genocí-dio institucionalizado no Brasil11. Sendo assim, o imaginário social sobre esses garotos pode estar interferindo na capacidade de identificar o potencial restaurativo dos casos em que figuram como autores de atos infracionais.

O CIA-BH não soube informar se quatro dos 26 adolescentes estavam regularmen-te matriculados em instituição de ensino no momento do encaminhamento (15,38%). Segundo o SAASE, 19 deles estavam estudando no período (73,08%), frente a três sem vínculo escolar (11,54%). Dos três que sabidamente não iam a escola, um é do sexo masculino (33,3%) e duas são do feminino (66,7%).

A realidade dos adolescentes atendidos pelo Ciranda foi de nove pessoas com vínculo escolar (64,29%), frente a duas que não estavam matriculadas em instituição de ensino (14,29%) e três sobre os quais não se teve acesso à informação (11,54%).

Nesse quesito, é relevante fazer algumas observações sobre as adolescentes dos casos encaminhados ao Projeto. Uma das pessoas tidas como matriculadas em instituição de ensino estava nessa condição apenas em virtude do cumprimento de medida socioedu-cativa de internação. Nesse caso, o adolescente narrou que estava afastado há seis anos de qualquer instituição de ensino formal, tendo interrompido os estudos aos doze anos de idade.

10 Nos casos recebidos pelo Projeto, as adolescentes do sexo feminino estavam envolvidas em atos infracionais análogos a ameaça (duas), vias de fato, lesão corporal e furto.

11 Segundo o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) referente ao ano de 2014, nos 300 municípios com população acima de 100 mil habitantes, a cada 1.000 adolescentes que completaram 12 anos, 3,65 morrem vítimas de homicídio antes de completarem os 19. Numa sociedade sem guerra, é de se supor que esse número não seja muito distante de zero, devendo ser inferior a um. Segundo o IHA, a distribuição da violência não é homogênea. Ao analisar o impacto de dimensões como sexo, cor de pele e idade, observou-se que pessoas do sexo masculino têm um risco 13,52 vezes maior de serem vítimas de homicídio em relação às do sexo masculino. Os negros, por sua vez, sofrem 2,88 vezes mais homicídios. Além disso, mais violência tem sido perpetrada contra adolescentes, tendo se agravado tanto em números absolutos, quanto em termos relativos. (OBSERVATÓRIO DAS FAVELAS, 2017, p. 13).

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O adolescente atribuía a retomada da trajetória escolar como um ponto positivo do cumprimento da medida socioeducativa. Segundo seu relato, gostava de frequentar a escola, tendo interrompido os estudos por questões de saúde, somadas a situação de vulnerabilidade social.

Conforme conta, passou por intermitentes períodos de internação hospitalar e, quan-do desinternado, a escola não oferecia condições materiais para construção de um am-biente de pertencimento e conexão capaz de garantir sua reintegração. O adolescente conta que, por ser vítima de bullying e por não contar com acolhimento satisfatório diante de sua condição especial de saúde, abandonou o ensino formal e que, pouco de-pois desse período, passou a infracionar; naquele momento, por meio de ato análogo ao tráfico de drogas.

Nesse caso, o despreparo da escola para acolhê-lo fica evidente tanto no discurso do adolescente, quanto nas falas da comunidade de afeto. Antes desse fato, o adolescente já vivia em situação de vulnerabilidade por diversas outras questões, como o fato de morar em periferia, numa região em que a atuação criminosa é mais presente do que a prestação de serviços essenciais e a garantia de direitos pelo Estado.

Contudo, quando um outro direito social dessa criança12 é ainda mais ameaçado - nesse momento, o direito à saúde -, a rede que deveria garantir a proteção integral de seus direi-tos se mostra despreparada para atendê-lo e acaba por negar-lhe acesso adequado a outro direito social - agora o direito à educação.

O fato da intensificação das condições de vulnerabilidade coincidirem com o primei-ro envolvimento desse adolescente em ato infracional nos coloca em uma situação ex-tremamente constrangedora: é chegado o momento de refletirmos sobre nossa parcela de responsabilidade na violação de seus direitos e no seu envolvimento com atos infra-cionais. Qual o nosso papel na escalada da violência e na criminalização e extermínio da nossa juventude pobre?

12 Embora no Brasil se utilize os termos criança e adolescente para diferenciar pessoas com até doze anos de idade e dos doze aos dezoito anos incompletos, respectivamente (art. 2o, Lei Federal 8.069/90), por vezes esse trabalho usa indistintamente o termo criança, no sentido atribuído em normativas internacionais, que chamam de criança os seres humanos de até 18 anos (art. 1, Convenção sobre os Direitos da Criança).

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O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reco-nhece. Salva. (BRUM, 2006).

Ainda sobre a relação entre vulnerabilidade social, interrupção do ensino formal e autoria de ato infracional, é importante pontuar que as duas pessoas que não estavam estudando no momento do repasse dos casos para o Projeto são do gênero feminino, sendo que uma delas é transexual e a outra tem histórico de infração vinculado à nega-ção do acesso a sua filha.

A adolescente transexual é oriunda de um município do norte de Minas Gerais, há mais de quatrocentos quilômetros de distância de Belo Horizonte. Ela não tem vínculo com o pai e sua mãe, analfabeta funcional, continua vivendo na cidade natal, separada por cerca de dez horas de ônibus de sua filha. A adolescente veio sozinha para a capital de Minas Gerais, onde passou a morar com outras travestis num hotel próximo à rodo-viária, no centro da cidade.

Ela relata trabalhar na rua como prostituta, das 21h às 5h da manhã, em situação de extrema vulnerabilidade. Inclusive, em várias ocasiões chegou a justificar a sua ausência aos pré-círculos em razão de ter sido vítima de agressão nas ruas de Belo Horizonte. A mãe da adolescente narrou situações análogas acontecidas no passado, quando homens agrediram sua filha motivados exclusivamente pelo fato dela ser travesti.

É importante contextualizar que o Brasil é o país que mais mata travestis e transe-xuais no mundo13. Esse dado somado à prostituição da adolescente e à interrupção da formação escolar são indícios da situação de vulnerabilidade em que está inserida.

13 Como a homofobia não é conduta penal típica no Brasil, nem há legislação específica que trate do homicídio de pessoas transexuais, os dados e estatísticas a respeito são escassos, colhidos por organizações da sociedade civil, sendo reconhecido o papel do Grupo Gay da Bahia nesse sentido. Cf. PROFISSAO REPORTER. Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, diz pesquisa. Disponível em: <http://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2017/04/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-travestis-e-transexuais-no-mundo-diz-pesquisa.html>. Acesso em: 15 jul. 2017.; GRUPO GAY DA BAHIA. Direitos humanos para todos e todas! Disponível em: <http://www.ggb.org.br/direitos.html>. Acesso em 19 jul. 2017.

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Em relação à outra adolescente que interrompeu a trajetória escolar, também é possí-vel perceber associação entre violação de direitos e autoria de atos infracionais. A ado-lescente foi separada de sua filha por ser usuária de drogas. A situação foi parcialmente revertida quando a guarda da criança é assumida pela tia da adolescente, garantindo o direito da mãe e da neném de convívio familiar. Ocorre que, após uma discussão entre a adolescente e sua prima, a tia nega o acesso para a visitação da criança. Nesse contexto, ocorre o ato infracional.

Aqui, é importante fazer uma observação: desde 2014, há a prática regular de reti-rada compulsória de bebês de mães usuárias de drogas ou com trajetória de rua em Belo Horizonte. A origem dessa medida, que afronta direitos das mães e dos recém--nascidos e se agrava quando se trata de mãe adolescente, são as Recomendações no 005 e 006, de 2014, da 23a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte (MPMG), e a Portaria no 03/2016, da Vara Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte (TJMG).

De acordo com o estabelecido nesses atos normativos, é feito encaminhamento dos bebês recém-nascidos para acolhimento institucional, ainda que contrário à vontade das mães e da família extensa, quando a mãe está em situação de rua ou apresenta de-pendência química. Esses atos não só presumem a incapacidade dessas famílias para cuidar dos bebês, como violam direitos humanos das mães, crianças e famílias em si-tuação de vulnerabilidade social e econômica.

Essa adolescente, que também foi privada do contato com sua mãe, mora num muni-cípio da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Pobre, toxicodependente, com traje-tória escolar interrompida, privada do convívio com sua mãe e, agora, também com sua filha, essa menina de 16 anos praticou ato infracional.

É difícil esperar que uma pessoa que cresceu em contexto de violência e sistemática violação de direitos aja de outra maneira, que não com violência, diante de mais uma interferência estatal para negar-lhe direitos. Ao presumir a incompetência da mãe toxi-codependente para criar o bebê, o Estado aposta na violência que julga legítima e priva a criança e a adolescente do convívio familiar. Dessa maneira, em nome de infração de direito suposta, institucionaliza uma violação de direito certa contra duas crianças.

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Outro ponto a ser considerado sobre a trajetória escolar dos adolescentes atendidos é que, não raro, mesmo os matriculados em instituição de ensino formal são analfabe-tos funcionais. Em alguns casos, inclusive, notou-se desinteresse e histórico de evasão da sala de aula associados à incompreensão e incapacidade para realizar as atividades propostas na classe. Nessas situações, uma saída possível é assumir a postura de “durão” para evitar o constrangimento do analfabetismo.

Assim, mais uma vez o ato infracional pode ser associado à condição de vulnerabili-dade e de sistemática negação de direitos dessas crianças, em claro desrespeito ao prin-cípio da prioridade absoluta do direito da criança e do adolescente que estabelece que, em razão da situação de desenvolvimento dessas pessoas, crianças e adolescentes devem ter primazia de atendimento nos serviços públicos, bem como destinação privilegiada de recursos para a sua proteção (art. 4o, Lei 8.069/1990; art. 3, Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança).

Mesmo nesse cenário de extrema vulnerabilidade, é importante frisar que em ape-nas três dos 14 casos recebidos pelo Projeto foi aplicada alguma medida protetiva aos participantes (21,43%). Segundo as informações repassadas pelo SAASE, a dois adoles-centes foi requisitado tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico (art. 101, V, Lei 8.069/1990) e a outro foi determinado o mesmo tratamento somado à matrícula e fre-quência em estabelecimento oficial de ensino fundamental (art. 101, III, Lei 8.069/1990).

Quando analisado o panorama de todos os casos encaminhados para processos res-taurativos pelo CIA-BR, o número de adolescentes que receberam medida protetiva cresce em apenas mais dois casos, totalizando cinco das 26 crianças (19,23%).

Embora o rol das medidas protetivas do artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente seja meramente exemplificativo, o SAASE não informou sobre a aplicação de qualquer outra medida não prevista no dispositivo.

Ao considerar as relações entre vulnerabilidade e autoria de ato infracional supra mencionadas, é relevante questionar a atuação do Estado que não só descumpre seu dever de garantir direitos às crianças, como aparece apenas para aplicação de medidas socioeducativas e o faz frequentemente segundo o paradigma punitivo.

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3. PANORAMA DO PRIMEIRO ANO DE ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO EM BELO HORIZONTE

No primeiro ano de prática do Ciranda junto ao CIA-BH, o Projeto facilitou 14 casos vinculados ao sistema socioeducativo. Além desses, atuou em dois casos de conflitos em instituições de ensino, sendo um na Escola Municipal Anne Frank, escola transformadora14

de Belo Horizonte, e outro na Faculdade de Direito da UFMG.

Dos casos recebidos do CIA-BH, onze diziam respeito a conflitos familiares (78,57%), dois eram conflitos escolares (14,29%) e um era de outra natureza (7,14%), no caso, ato infracional análogo a homicídio. Com os outros dois conflitos em instituições de en-sino, o número de conflitos escolares sobe para quatro dos dezesseis casos conduzidos no período (25%).

Por entender que a situação de vulnerabilidade dos atendidos repercute na escalada de violência dos conflitos e também com o intuito de contribuir para a garantia da pro-teção integral das crianças e adolescentes, o Projeto passou a buscar articulação direta com parceiros da rede de garantia dos direitos das crianças e adolescentes.

Dessa maneira, tem sido possível identificar oportunidades de socioeducação dispo-níveis aos atendidos vinculados ao CIA-BH. As atuações nesse sentido visaram garantir,

14 O selo de escola transformadora é conferido por uma organização global de empreendedores sociais de diferentes países, a Ashoka. Desde 2009, 280 instituições de ensino compõe a rede de escolas pautadas no poder transformador de cada participante da sociedade. Atualmente, há 18 escolas transformadoras no Brasil, a maioria delas da rede privada de ensino. Belo Horizonte conta com duas escolas transformadoras, ambas da rede pública municipal. “[...] o programa enxerga a escola como espaço privilegiado para proporcionar experiências capazes de formar sujeitos com senso de responsabilidade pelo mundo: crianças e jovens aptos a assumir papel ativo diante das mudanças necessárias, em diferentes realidades sociais e amparados por valores e ferramentas como a empatia, o trabalho em equipe, a criatividade e o protagonismo”. O programa vincula-se ao direito à socioeducação à medida em que relaciona estudantes e comunidade ativadora, que compreende a criança e o adolescente segundo “uma perspectiva integral do desenvolvimento, em que corpo, emoção e razão não se separam e todos são essenciais para a constituição de pessoas livres, independentes e capazes de se relacionar e agir sobre o mundo de maneira mais empática. As experiências e trajetórias das escolas e dos demais integrantes da comunidade do programa Escolas Transformadoras inspiram e ajudam a ampliar a demanda social por esse tipo de educação”. Cf. ASHOKA BRASIL; ALANA. Escolas transformadoras: Sobre. Disponível em: <http://escolastransformadoras.com.br/o-programa/sobre/>. Acesso em: 10 set. 2017.

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prioritariamente, acompanhamento psicológico e psiquiátrico; oportunidades de em-prego para jovem aprendiz; esporte e lazer; oportunidades de aperfeiçoamento e for-mação. Essas ações têm sido direcionadas tanto aos adolescentes autores de atos infra-cionais e à sua comunidade de afeto, quanto às pessoas que sofreram os danos com as ofensas.

Nesse sentido, foi feita parceria com o Programa Já É15, do Curso de Psicologia da UFMG, para garantir atendimento psicossocial aos participantes dos procedimentos restaurativos facilitados pelo Ciranda. Pela parceria, a Professora Andréa Guerra, tam-bém do Curso de Psicologia da UFMG, passou a, quando solicitada, auxiliar a supervi-são da facilitação dos casos.

Além disso, foi feito mapeamento e contato com instituições da sociedade civil que prestavam algum tipo de assistência e inclusão para pessoas em situação de vulnerabi-lidade, a exemplo do projeto Desembola na Ideia, vinculado à Associação de Imagem Comunitária16.

O Ciranda também auxiliou o MPMG e a Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais na identificação de necessidades e mapeamento de conflitos para intervenção pedagógica nas escolas estaduais Pedro Aleixo e Doutor Lucas Machado Monteiro.

Ao identificar que parte considerável dos conflitos encaminhados pelo CIA-BH ti-nha origem ou, ao menos, era intensificada por problemas na comunicação, o Ciranda passou a oferecer oficinas de Comunicação Não-Violenta (CNV) aos participantes dos processos restaurativos.

“O inferno é não confiar” (DOSTOIEVSKI, 2008).

A comunicação não-violenta é uma técnica que auxilia a comunicação compassiva e o exercício de alteridade na fala e na escuta ativa, qualificando a inter-relação da comu-nidade de falantes. Por isso, é mecanismo relevante para a prevenção à violência.

15 Cf. PSICANÁLISE E LAÇO SOCIAL NO CONTEMPORÂNEO. Programa Já É! Disponível em: < http://www.fafich.ufmg.br/psilacs/jae/>. Acesso em: 26 ago. 2017.

16 Cf. ASSOCIAÇAO DE IMAGEM COMUNITÁRIA. Ações: Desembola na Ideia. Disponível em: < http://aic.org.br/acoes/desembola-na-ideia/>. Acesso em: 12 jul. 2017.

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Para tanto, demanda observação sem julgamento; responsabilização pelos próprios atos e sentimentos, sem buscar culpar a si ou aos outros; identificação das necessidades humanas em conflito; expressão dos sentimentos – e não de pensamentos – a respeito da necessidade humana violada; formulação de um pedido específico, claro e positivo que seja capaz de contemplar as necessidades humanas afetadas; escuta empática e res-peitosa; e conexão com o outro por meio de compaixão.

Dessa forma, auxilia a justiça restaurativa, em específico, e a autocomposição de con-flitos, de modo geral, à medida em que contribui para a humanização dos relaciona-mentos e transformação de conflitos.

Essas oficinas foram abertas para o público interno e externo à Universidade, sem custo, para que alcançassem um maior número de pessoas. Cerca de 90 (noventa) pes-soas participaram das três primeiras oficinas teórico-práticas oferecidas.

Após a primeira atuação em caso de adolescente cumprindo medida socioeducativa de internação, o Ciranda firmou parceria com a Secretaria Estadual de Segurança Pública e ofereceu gratuitamente três turmas de curso introdutório à Justiça Restaurativa, com 10h de duração, para 180 profissionais do sistema socioeducativo de Minas Gerais.

Profissionais de todas as unidades socioeducativas da Região Metropolitana de Belo Horizonte tiveram a oportunidade de fazer o curso, o que incluiu unidades de semili-berdade, de internação provisória e de privação de liberdade. O público da formação contemplou Diretores Gerais, Diretores de Atendimento e Diretores de Segurança das unidades, assim como Analistas Técnico-Jurídico, representantes da Equipe Técnica e representantes da Equipe de Segurança.

Com essa atuação, espera ter contribuído para a multiplicação da justiça restaurativa, assim como para a humanização das relações, a transformação dos conflitos e a prote-ção integral das crianças e adolescentes.

Após esse primeiro contato com profissionais do sistema socioeducativo, o Centro de Internação Horto e o Cento Socioeducativo São Jerônimo solicitaram o oferecimento de oficinas de CNV nas unidades. Diante disso, o Projeto se comprometeu a ofertar voluntariamente cinco oficinas no primeiro centro e uma no segundo, totalizando 210 cursistas.

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Até então, todas as oficinas foram oferecidas ao corpo técnico e à equipe de segurança dessas unidades, mas há o interesse de, num segundo momento, estender a abrangência aos adolescentes que estão cumprindo medida socioeducativa.

Com essas oficinas, o Ciranda pretende contribuir para a transformação de conflitos interpessoais, para o desenvolvimento do diálogo nas relações de trabalho e para a ga-rantia da proteção integral.

No mesmo sentido, foi firmado termo de cooperação com a Prefeitura de Contagem-MG para oferecimento gratuito de oficinas de CNV para cerca de 250 servidores mu-nicipais vinculados a saúde, educação e assistência. A proposta é de apresentar a CNV como forma de prevenir a violência no ambiente de trabalho (interpessoal) e também com o público atendido pela rede de programas e serviços públicos municipais. Essas oficinas foram estruturadas em oito encontros, conforme a distribuição de regionais do município.

O Ciranda tem participado das reuniões do Fórum Permanente do Sistema Socioeducativo de Belo Horizonte, assim como das reuniões mensais da sua Comissão de Justiça Restaurativa. Como membro da Comissão, participou da formulação do pla-no pedagógico do curso de capacitação em Justiça Restaurativa no ambiente escolar para os educadores de escolas públicas localizadas em Belo Horizonte.

Com isso, foi um dos criadores do Programa Justiça Restaurativa na Escola para im-plementação dos Núcleos para Orientação e Solução de Conflitos Escolares (NÓS) nas escolas públicas municipais e estaduais com base territorial em Belo Horizonte.

Para esse Programa, assumiu o papel de conteudista, tendo os seus co-coordenado-res elaborado um livreto sobre justiça restaurativa na escola, bem como todo o mate-rial de apoio para os cursos de capacitação de educadores e estudantes que atuarão no NÓS. Atualmente, os conteudistas estão produzindo um manual de justiça restaurati-va17. Os livros produzidos serão distribuídos nas 411 escolas públicas sediadas em Belo Horizonte.

Para esse mesmo projeto, os co-coordenadores do Ciranda se comprometeram a ofe-recer um curso de 20 horas para alinhamento de todos os tutores que capacitarão os 17 O presente capítulo foi escrito em setembro de 2017.

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multiplicadores de justiça restaurativa que atuarão no NÓS. Essa formação está marca-da para novembro de 2017.

Parte dos membros do Projeto comporá o grupo de tutores que capacitarão os mul-tiplicadores e supervisionarão a implementação do NÓS nas escolas municipais e es-taduais localizadas em Belo Horizonte. Cada escola interessada terá direito a cinco va-gas para seus membros. Por enquanto, 160 escolas já aderiram ao Programa, sendo 40 delas municipais e 120 da rede estadual, totalizando a previsão de formação de 800 multiplicadores.

Em paralelo, o Ciranda auxiliou a criação e passou a compor o Comitê Gestor do Programa Justiça Restaurativa nas Escolas de Belo Horizonte, com o intuito de contri-buir para seu planejamento e implementação.

Desde 2015, o Ciranda tem mantido grupo de estudos em Justiça Restaurativa e Processos Circulares, vinculado à Faculdade de Direito da UFMG, mas aberto ao público interno e externo à Universidade. O grupo tem encontros quinzenais, aos sábados. A participa-ção nos encontros não demanda inscrição prévia ou seleção. Com ele, o Projeto pretende difundir noções críticas de justiça restaurativa para a maior quantidade e o mais variado perfil de interessados.

Por fim, o Ciranda criou uma disciplina optativa de 30 horas em Justiça Restaurativa para estudantes de graduação. O componente curricular “Tópicos em Direito Processual Civil C – Justiça Restaurativa”, vinculado ao Departamento de Direito e Processo Civil e Comercial da Faculdade de Direito da UFMG, apresenta a justiça restaurativa enquanto método adequado de resolução/transformação de conflitos.

A condução da disciplina é estruturada em círculos, com abordagem teórico-prática, e contempla as seguintes unidades de ensino:

1. Paradigma retributivo, punição e violência

a. O perigo da história única

b. Comparação entre modelos restaurativo e retributivo de justiça

2. Trocando as lentes: introdução à justiça restaurativa

a. Práticas restaurativas: breve histórico

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b. Mudança paradigmática

c. Conceitos fundamentais

d. Princípios básicos

e. Procedimentos para execução

f. Pressupostos materiais

g. Extensão e aplicabilidade

h. Transformação de conflitos

3. Elementos fundamentais da comunicação não-violenta

a. Expressão

b. Escuta empática

4. Processos circulares

a. Elementos essenciais

b. Procedimento

c. Hipóteses de utilização

d. Espécies de círculos restaurativos

e. Perguntas norteadoras

Para a matéria, foi feita parceira com a Secretaria Estadual de Segurança Pública, sendo ofertadas 13 vagas para profissionais do sistema socioeducativo. Além disso, pro-fissionais vinculados à Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte também participam da primeira turma da disciplina.

Com o componente curricular optativo, espera-se difundir a justiça restaurativa na Faculdade de Direito da UFMG e proporcionar interações e construção coletiva de co-nhecimento no tema pelos estudantes de graduação e os profissionais da educação e segurança pública matriculados, de forma a unir a necessidade de densidade teórica aos desafios práticos no tema.

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4. METODOLOGIAS ADEQUADAS PARA AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS E DEFINIÇÃO DA IDENTIDADE DE ATUAÇÃO DO CIRANDA-UFMG

Existem diferentes maneiras de materializar a justiça restaurativa. Desde que contemple seus princípios e valores, é possível que práticas distintas a operacionalizem, diferindo apenas quanto à intensidade da adequação do procedimento aos valores da justiça restau-rativa, podendo ser um procedimento total ou parcialmente restaurativo. Parafraseando Nise da Silveira, “há dez mil modos de pertencer à vida e lutar pela sua época”.

O Ciranda oportuniza a participação de quem praticou o ato, de quem sofreu os da-nos e da microcomunidade, isto é, da rede de pessoas de referência e apoiadores de cada um dos envolvidos diretamente no conflito. Embora a participação de cada uma dessas pessoas no processo restaurativo seja possibilitada, ela demanda voluntariedade. Por isso, é possível desistir do procedimento a qualquer tempo. Caso alguma dessas pessoas não tenha interesse em participar, a prática restaurativa pode ocorrer sem sua presença.

São os procedimentos que devem adequar-se às necessidades das pessoas e das rela-ções, e não a vida que deve ser encaixada na técnica. Por essa razão, o Ciranda não adota método único. Afinal, “a justiça restaurativa é uma bússola, não um mapa” (ZEHR, 2014, 21).

Todavia, o Projeto se propõe a perquirir práticas totalmente restaurativas, o que o leva a dar prioridade de condução dos casos por meio de processos circulares, conforme método da Carolyn Boyes-Watson e da Kay Pranis (2011). Subsidiariamente, caso seja mais adequado ao caso, utiliza a reunião restaurativa (WACHTEL, 2010; O’CONNELL; WACHTEL; WACHTEL, 2010).

Em qualquer das situações, estrutura o procedimento em três fases: pré-círculo, círcu-lo restaurativo e pós-círculo. Em raras ocasiões em que a vulnerabilidade e o isolamen-to dos participantes é tão acentuada que não é possível identificar a microcomunidade de apoio, utiliza outras metodologias que sejam apenas parcialmente restaurativas.

Embora reconheça a possibilidade da utilização da mediação vítima-ofensor (MVO) como prática restaurativa, o Projeto entende que parte significativa do potencial

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transformador da justiça restaurativa advém da participação direta de todos os envolvi-dos no conflito. Por essa razão, acredita que a microcomunidade representa papel impor-tantíssimo para que a prática seja totalmente restaurativa.

Tem-se em mente que a justiça restaurativa deve ser, prioritariamente, uma justiça de base comunitária. Não só, se possível deve ser conduzida na, para e pela comunidade. Ao tratarmos de conflitos envolvendo crianças e adolescentes isso se acentua, uma vez que não só a comunidade deve estar diretamente envolvida na consecução de seus di-reitos (art. 227, CRFB/88), como a materialização do direito à socioeducação reflete na impossibilidade de trabalhar o adolescente autor de ato infracional na posição estanque de “ofensor”. Ao contrário, o cometimento de ato infracional indica, ao menos, situação de vulnerabilidade e alguma ameaça a direito fundamental desse adolescente.

Por essa razão, a mediação vítima-ofensor (MVO) parece inapropriada no contexto da justiça juvenil restaurativa brasileira. A especificidade do direito à socioeducação nos faz repensar o que é possível importar das normativas internacionais sobre o tema. Se a MVO pode ser usada como prática restaurativa em conflitos envolvendo adultos, nem por isso é recomendada quando os conflitos contam com crianças e adolescentes.

Inclusive, tem-se como entendimento que, nestes casos, a justiça restaurativa é garan-tidora de um outro direito inerente à socioeducação: a participação ativa e co-respon-sável dos adolescentes nos atos da própria vida e na reparação de eventuais danos deles decorrentes.

Dessa forma, justifica sua opção pelos processos circulares (círculos de conflito) e reuniões restaurativas por entender que a disposição em roda é propícia para materia-lização dos valores da justiça restaurativa, uma vez que confere igual possibilidade de fala a todos e equilibra eventuais diferenças de poder entre os participantes.

A opção de priorizar a metodologia dos processos circulares se dá em virtude da apos-ta na inclusão e isonomia pelo uso do bastão de fala. Um dos elementos centrais dos processos circulares, o bastão de fala consiste em objeto escolhido especificamente para o caso, com alguma representatividade para os envolvidos. Feita a pergunta condutora, o bastão de fala circula de pessoa para pessoa. Apenas quem está portando o objeto fica

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autorizado a falar. Todos os demais devem exercer seu direito de escuta. Ordenada e sequencialmente, o bastão passa de uma pessoa para a outra, dando voltas pelo círculo.

Dessa maneira, garante que todas as pessoas terão, em momento oportuno, a possibi-lidade de se expressarem sobre os temas propostos. O facilitador, que é um participante como qualquer outro, também pode falar de si ao receber o bastão. É importante frisar que ninguém deve ficar constrangido a falar: o bastão oferece a oportunidade de se ex-pressar, não a obrigação de fazê-lo. O círculo restaurativo também valoriza e acolhe os silêncios, que por vezes falam tanto ou mais que as palavras verbalizadas.

Assim, ao receber o bastão, o participante pode falar, segurá-lo sem nada dizer até que entenda que seu silêncio foi devidamente expressado ou simplesmente passar para a pessoa seguinte. Quando não está segurando o bastão, a pessoa tem o direito de es-cutar ativamente o que está sendo dito. Se alguém interrompe a fala, cabe ao facilitador retomar as regras de conduta. Caso haja insistência nesse comportamento, o círculo deve ser interrompido ou suspenso. Isso se justifica pelo fato de que todos terão opor-tunidade de fala sobre cada um dos temas, basta aguardar o bastão circular.

Como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se. (BRUM, 2015).

A orientação do círculo pelo objeto é importante para que todos possam se escutar, controlar suas ansiedades de resposta imediata e aprender com o conhecimento que tem sido construído a partir das falas antecedentes. Ouvir e compreender as várias nar-rativas sobre a mesma história é fundamental para que se possa identificar maneiras criativas e adequadas capazes de transformar a situação. O uso do bastão pressupõe que todos têm algo a contribuir para o grupo (PRANIS, 2010).

Independentemente do método adotado, as práticas são conduzidas necessariamente por uma dupla de facilitadores. O mapeamento do conflito acompanha todos os encon-tros, havendo reuniões ordinárias quinzenais para supervisão e discussão coletiva das intervenções em cada um dos casos.

Participam da reunião ordinária os dez facilitadores do projeto, o que garante tanto o envolvimento e acompanhamento dos extensionistas em todos os casos conduzidos

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pelo Ciranda; quanto a discussão cuidadosa sobre aspectos centrais de cada um dos casos, pautando as intervenções e a definição de perguntas norteadoras a partir do co-nhecimento coletivo.

Nessas reuniões, são feitos autoquestionamentos para definir qual o procedimento mais adequado ao caso. É imprescindível que a opção metodológica seja suficiente para trabalhar os danos, as necessidades e os valores dos participantes; incluir a vítima; en-corajar os autores do ato a assumir responsabilidades; envolver todos os interessados; oportunizar o diálogo e, eventualmente, o processo de decisão participativo (ZEHR, 2014). Além disso, o método escolhido deve ser respeitoso com todos os participantes.

Há também as reuniões extraordinárias, das quais participam, ao menos, os co-coor-denadores do projeto e a dupla de facilitadoras que demandar por supervisão antes do encontro quinzenal.

Além do espaço das reuniões, o grupo de estudo funciona como espaço qualificado para discussão de aparato teórico e técnicas para os casos atendidos. Embora o crono-grama, os textos e temas sejam previamente calendarizados, a condução dos encontros é flexível, podendo ser adaptada para contemplar demanda de formação e debate de temas centrais para os casos que estão sendo facilitados.

O fato do grupo de estudos ser um espaço aberto para pessoas de diferentes forma-ções, inclusive, faz desses encontros excelentes oportunidades para oxigenação da atua-ção do Projeto.

O Ciranda só admite que participe do círculo restaurativo quem anteriormente foi escutado em pré-círculo. Isso porque compreende que a presença de alguém que não entende o procedimento ou que não teve a oportunidade de falar sobre seus danos, sen-timentos, responsabilidades e de exercitar empatia pode levar a revitimização, trauma e escalada do conflito.

Os pré-círculos são sempre individuais. Embora não haja uma duração precisa, a prá-tica do Projeto tem sido de que cada pré-círculo se estende de 40 minutos a uma hora. Por vezes, o primeiro pré-círculo com cada um dos participantes demanda mais tempo, durando cerca de uma hora e trinta minutos. Em situações pontuais, as facilitadoras já chegaram a passar três horas num mesmo pré-círculo.

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Não há uma quantidade definida de pré-círculos para cada pessoa. Inclusive, esse número varia de caso a caso e, ainda no mesmo caso, de indivíduo a indivíduo. Aqui, novamente, vale a máxima de que é o procedimento que deve ser adequado às necessi-dades dos participantes.

De uma forma geral, o Ciranda tem feito de dois a quatro pré-círculos com cada uma das pessoas diretamente envolvidas no conflito, e de um ou dois com cada um dos membros da rede de apoiadores dessas pessoas.

O Projeto optou por manter um intervalo máximo de quinze dias entre os encontros com a mesma pessoa. Um período maior poderia causar prejuízos como perda da con-fiança, interferência de terceiros ou escalada do conflito.

Ao final de cada pré-círculo com quem praticou o ato ou com quem sofreu seus da-nos, as facilitadoras agendam o encontro seguinte, oferecendo ao menos três opções de datas disponíveis.

Mesmo não havendo um número máximo de pré-círculos estabelecido, é impor-tante tomar cuidado quanto a extensão do procedimento. Ainda que possa configurar uma prática terapêutica, o processo restaurativo não se confunde com terapia. Por isso, um bom mapeamento garante o foco nos elementos centrais do conflito, sem que a con-dução do caso se perca nas várias relações e conflitos da microcomunidade. Se é certo que a justiça restaurativa não se prende à lide, é também relevante ter em mente que nem por isso ela deixa de ter um foco preciso.

No caso dos apoiadores, o Projeto tenta identifica-los no primeiro pré-círculo com cada um dos diretamente envolvidos no conflito e tem o hábito de contata-los imedia-tamente após o atendimento para agendar o pré-círculo com brevidade.

É possível que as pessoas de referência passem mais de 15 dias sem pré-círculo. Nessas situações, retoma-se os elementos principais em um último pré-círculo na se-mana anterior ao círculo restaurativo.

Caso entenda positivo, o indivíduo pode participar parcialmente, até o momento que entendem ser conveniente. Também é possível que sua presença no círculo restaurati-vo não seja física. Embora isso deva ser excepcional, pode acontecer quando um dos participantes não se sentir à vontade na presença dos demais, como em alguns casos de vítimas de crimes violentos.

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A voluntariedade é essencial, devendo ser aferida a cada novo encontro. Outro ele-mento fundamental é o sigilo: ao menos que expressamente autorizado, o facilitador não pode comentar algo que foi falado em pré-círculo com outros participantes. Os fa-cilitadores que conduzem o círculo devem ser os mesmos que estiveram presentes nos pré-círculos. Isso garante a manutenção do elo de confiança e a segurança no processo.

O Ciranda realiza os encontros restaurativos em espaço próprio, na Sala 509 do Edifício Villas-Boas, na Faculdade de Direito da UFMG, no centro de Belo Horizonte. O local é de fácil acesso, interligado a outros pontos da cidade por várias linhas de transporte público. Na sala, tem-se privacidade para a condução dos casos. O ambiente conta com cadeiras, mesa circular18, computador, impressora e armário. Além disso, mesmo com as limitações de uma universidade pública, as extensionistas têm garantido elementos importantes para o atendimento, como lenços de papel, água, café e lanche.

Embora já tenha realizado pré-círculos fora da Sala 509, o Ciranda entende que essa deve ser uma prática excepcional. Isso aconteceu diante da impossibilidade de desloca-mento por doença grave, mas foi constatado prejuízo na condução do caso, principal-mente pelo sigilo e segurança que a justiça restaurativa exige.

O círculo restaurativo pode ser fragmentado em mais de um encontro, conforme ne-cessidade do caso. Nele, as pessoas são convidadas a assumir co-responsabilidade para melhorar as relações e a situação conflituosa, o que podem fazer por meio da elabora-ção de um plano de ação.

No modelo dos processos circulares, o círculo restaurativo conta com os seguintes momentos: cerimônia de abertura, elaboração dos valores que conduzirão o encontro, contação de histórias, discussão dos pontos centrais do conflito, eventual elaboração de plano de ação e cerimonia de encerramento (PRANIS, 2010).

Nas reuniões restaurativas, por sua vez, há um rol estabelecido de perguntas para cada um dos participantes. O círculo começa com as perguntas dirigidas a quem co-meteu o ato danoso, seguidas das voltadas às pessoas que sofreram os danos e de sua rede de apoiadores (do relacionamento mais próximo ao mais distante). Após, são feitas

18 Embora os círculos restaurativos sejam conduzidos sem o uso da mesa, para que as pessoas possam enxergar totalmente umas às outras, a mesa é utilizada nos pré-círculos e nas reuniões de supervisão.

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as perguntas à microcomunidade de quem praticou o ato, do vínculo mais positivo ao mais distante, e depois volta-se a interrogar quem praticou o ato se há algo que deseja dizer diante de todo o exposto. É também conferida a oportunidade de quem sofreu os danos se manifestar sobre o que gostaria que resultasse da reunião restaurativa e, em seguida, de quem causou o dano falar sobre o que pensa a respeito da alternativa venti-lada (O’CONNELL, WACHTEL, WACHTEL, 2010).

A quem praticou o ato, é dirigido questionamentos sobre o que aconteceu, o que estava pensando no momento, o que pensa agora sobre o ocorrido, quem imagina que foi afetado com a ação e como acredita que essas pessoas foram afetadas.

Ao iniciar o procedimento pela fala de quem praticou o ato danoso, descarta-se even-tuais ideias preconcebidas dos demais participantes sobre as atitudes dessa pessoa, o que permite afastar rótulos. Além disso, também evita que a comunidade de apoio do autor do ato fique em posição defensiva, já que terá ouvido o que o próprio autor tem a relatar sobre o que fez (O’CONNELL, WACHTEL, WACHTEL, 2010)..

A quem sofreu os danos, questiona-se qual a reação no momento do incidente, como se sente diante do ocorrido, o que tem sido mais difícil desde então e como os familiares e amigos reagiram quando souberam.

A cada um dos participantes pertencentes às microcomunidades de apoio, pergunta--se o que pensou quando soube do incidente, como se sente pelo ocorrido, o que tem sido mais difícil para ele desde então e quais parecem ser os temas principais para se-rem trabalhados no caso.

No decorrer do círculo, é importante que fique clara a distinção entre a ofensa e o “ofensor”, evitando a confusão entre os dinamismos próprios dos sujeitos e a determi-nação estática do predicado (SOARES, 2004). Esse cuidado também visa evita o perigo da história única, isto é, a determinação do sentido de uma história por começar a con-tá-la pelo que ocorreu “em segundo lugar” (SOARES, 2011; ADICHIE, ----), conforme uma versão parcial e, por isso, limitada da narrativa.

Nas reuniões restaurativas, o rol de perguntas elencado é o mínimo necessário para o círculo, sendo possível que novas questões sejam trazidas pelos próprios participantes. Aqui, não se usa o bastão de fala, bastando observar a ordem da disposição dos partici-pantes e de direcionamento das perguntas.

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Em qualquer dos casos, o Ciranda opta por não conduzir os encontros, seja de pré--círculo, seja de círculo restaurativo ou de pós-círculo, quando está diante de alguma alteração física ou emocional dos participantes, como doença ou uso de alguma subs-tância psicotrópica. A prática do projeto releva que, nesses casos, ainda que a pessoa insista em participar, não há total envolvimento.

Essa diretriz é, por vezes, relativizada em caso de pré-círculo, quando a alteração emocional se dá em virtude de conflito interpessoal recente entre os envolvidos, o que se justifica em função do atendimento ser individual. Nesses casos, falar sobre senti-mentos, necessidades, responsabilidades e danos pode ser uma forma importante de evitar novos traumas e escalonar o conflito.

Os encontros da justiça restaurativa são guiados por perguntas abertas, que devem ser respondidas na primeira pessoa do singular, com as pessoas assumindo responsabi-lidade direta sobre os sentimentos e necessidades.

Cerca de 30 dias após o último círculo, acontece pós-círculo para acompanhamento. Nessa oportunidade, verifica-se eventual cumprimento do plano de ação, assunção de responsabilidade, reparação dos danos e relacionamento respeitoso entre os participan-tes. Quando alguma das ações estipuladas exigir prazo superior, o pós-círculo pode ser feito outro momento que não 30 dias após o círculo restaurativo. Todos os encontros são presenciais.

O Ciranda tolera 15 minutos de atraso dos participantes. Se não há o comparecimento após esse prazo, as facilitadoras ligam para a pessoa ausente para confirmar a desistên-cia. Não conseguindo manter contato, aguardam por mais 15 minutos. Em caso de não comparecimento, sem contato prévio ou posterior, presume-se perda da voluntariedade após uma semana, sendo o caso devolvido ao CIA/BH. O mesmo acontece quando a pessoa tem falta injustificada por três vezes consecutivas.

Desde o segundo semestre de 2017, o Ciranda tem coletado dados dos casos em que tem atuado. Por isso, a cada primeiro pré-círculo com algum dos participantes, além de apresentar as orientações para os atendimentos (Anexo II), solicita o preenchimento de questionário socioeconômico com questões de múltipla escolha (Anexo III).

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No último encontro com cada um dos interessados, seja por desistência, seja pela finalização do caso, solicita o preenchimento de questionário avaliativo com questões subjetivas (Anexo IV).

Nos casos encaminhados pelo CIA-BH, o Projeto compromete-se a peticionar no processo no intervalo máximo de 30 dias. Encerrado os casos, é produzido relatório da prática restaurativa, destinado à Vara de Atos Infracionais da Infância e da Juventude de Belo Horizonte.

Embora o protocolo interinstitucional não tenha definido os elementos básicos que devem estar presentes no relatório, o Ciranda-UFMG adotou a prática de relatar, ao menos: a quantidade de pré-círculos, de círculos restaurativos e de pós-círculos, acom-panhada da especificação de suas datas, da duração de cada encontro e de seus partici-pantes; elementos identificados no mapeamento do conflito, preservado o sigilo ineren-te ao espaço de segurança da justiça restaurativa19; qual o método adotado no processo restaurativo e porquê foi feita essa opção; o conteúdo do plano de ação, quando for o caso20; a impressão qualitativa das facilitadoras sobre o envolvimento e a co-responsabi-lização de cada um dos participantes; a impressão fundamentada das facilitadoras sobre o atingimento dos fins do processo restaurativo no caso concreto.

19 Como o processo restaurativo é sigiloso, as facilitadoras relatam apenas os elementos essenciais para identificação dos elementos e tipologias do conflito, sem comprometimento do espaço de segurança construído no círculo restaurativo. O mapeamento dos conflitos se presta a perceber casuisticamente como os elementos do conflito estão conformados para definir a intervenção e estabelecer uma melhor compreensão do conflito e de como ele se apresenta para cada uma das partes. O mapeamento inclui uma série de reflexões, descrições e reconstruções a partir das quais o facilitador pode planejar sua atuação e as perguntas norteadoras. Com ele, é possível entender melhor o que fazer, além de pautar a intervenção do facilitador sobre o por quê de fazê-lo, para que fazer, como e quando. (CALVO, 2014)

20 O sucesso do processo restaurativo não está diretamente relacionado à existência ou não de plano de ação. Inclusive, é possível alcançar a finalidade da justiça restaurativa sem que sequer tenha havido círculo.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAISEu preparo uma cançãoEm que minha mãe se reconheça,Todas as mães se reconheçam,e que fale como dois olhos

Eu distribuo um segredocomo quem ama ou sorri.No jeito mais naturaldois carinhos se procuram.Minha vida, nossas vidasForma um só diamanteAprendi novas palavrasE tornei outras mais belas

Eu preparo uma cançãoque faça acordar os homense adormecer as crianças

(DRUMMOND, 1948).

A justiça restaurativa trabalha a justiça e a democracia como experiência de satis-fação dos participantes. Justiça e democracia não são ideais a serem defendidos, mas experiências que só se constroem com a prática. Ao defender genericamente a justiça e a democracia, estamos negando-as (MATURANA,VERDEN-ZOLLER, 2004), já que não há uma única maneira de exercê-las: podem ser tão diversas quanto o são as formas de vida.

Dessa forma, a justiça demanda oportunidade de participação de todos os interessa-dos, que devem ser informados, consultados e envolvidos de forma que, a um só tempo, a prática traga significado e o sentido de justiça qualifique a experiência.

É chegada a hora de superar a desconfiança do Estado e do Direito modernos em re-lação à autonomia dos mais diversos cidadãos. A justiça restaurativa não é apenas uma proposta de protagonismo decisório, mas uma mudança de paradigma que convida a

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olhar as pessoas e relações com novas lentes. O Ciranda acredita na justiça juvenil res-taurativa como uma lente possível para garantir a socioeducação e a proteção integral das nossas crianças.

O poema é ser: de outra forma é impossível.(TSVETÁIEVA apud CASTRO, 2010)

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ANEXO&I&

TERMO&DE&COMPROMISSO!

INQUÉRITO/PROCESSO:!

ADOLESCENTE:!

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Eu,! ________________________________________________,! aceito! o! convite! para!participar! de! procedimento! restaurativo! perante! a! Vara! Infracional! da! Infância! e!Juventude!de!Belo!Horizonte,!conduzido!de!acordo!com!o!projeto!de!Justiça!Restaurativa!da!Universidade!Federal!de!Minas!Gerais!(UFMG)!e!firmo!o!presente!termo!para!fazer!constar!o!seguinte:!

!

1)! Toda! e! qualquer! informação! compartilhada! no! curso! do! procedimento! será!confidencial,!não!podendo!ser!revelada!em!nenhuma!situação,!nem!mesmo!em!processo!judicial,!salvo!se!os!participantes!expressamente!decidirem!renunciar!ao! sigilo,! ou! quando! sua! divulgação! for! exigida! por! lei! ou! necessária! para! o!cumprimento!de!acordo!obtido!pela!prática!restaurativa;!!

2)! O!procedimento!é! voluntário!e,! por! isso,! depende!do! livre! consentimento!de!todas!as!partes!diretamente!envolvidas!no!conflito,!respeitando]lhes!o!direito!de!desistir!a!qualquer!momento;!!

3)! Todos!os!participantes!serão!tratados!de!forma!justa!e!digna,!sendo!assegurado!o!mútuo!respeito!entre!as!partes,!as!quais!serão!auxiliadas!a!construir,!a!partir!da!reflexão!e!da!assunção!de!responsabilidades,!uma!solução!adequada!e!eficaz!visando!sempre!o!futuro;!!

4)! Os! facilitadores! têm! o! dever! de! resguardar! o! ambiente! dialógico,! mantendo!sempre!a!imparcialidade!e!o!respeito;!!

!Belo!Horizonte,!_____!de!__________________!de!2017!!!Participante:!!________________________________________________!!

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ANEXO&II&

ORIENTAÇÕES&SOBRE&O&PROCEDIMENTO&

Facilitadoras/es:!___________________________!

! ! !!___________________________!

Telefones!para!contato:!340988682!(sala!do!projeto)!

! ! !!!!!!!!!!!!!!!_______________________!

! ! !!!!!!!!!!!!!!!_______________________!

•! Os!encontros!são!realizados!na!sala!do!Projeto!Ciranda,!que!fica!localizada!na!Av.!João!Pinheiro,!nº!100,!Centro,!Ed.!Vilas!Boas,!Sala!509;!!!

•! A!tolerância!de!atraso!é!de!15!minutos,!tanto!para!os!encontros!individuais,!como!para!os!encontros!conjuntos;!!!

•! Em!caso!de! imprevistos,!avisar!sobre!o!cancelamento!do!encontro!com!antecedência!mínima! de! 1! hora,! para! evitar! deslocamentos! desnecessários! por! parte! das/os!facilitadoras/es;!!!

•! Em!caso!de!não!comparecimento,!sem!contato!prévio!ou!posterior,!presume8se!perda!da!voluntariedade!após!1!semana,!sendo!o!caso!devolvido!ao!CIA/BH;!!!

•! Após! três! faltas,! injustificadas,! presume8se! desistência,! sendo! o! caso! devolvido! ao!CIA/BH.!!

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ANEXO III

QUESTIONÁRIO SOCIOECONÔMICO NOME:

DATA:

DATA DE NASCIMENTO:

1) Quantas pessoas moram com você? (incluindo você, filhos, irmãos, parentes e amigos)

(A) Moro sozinho (B) Uma a três (C) Quatro a sete (D) Oito a dez (E) Mais de dez 2) A casa onde você mora é?

(A) Própria (B) Alugada (C) Cedida 3) Você mora em qual região de Belo Horizonte?

(A) Barreiro

(B) Centro-Sul (C) Leste (D) Nordeste (E) Noroeste (F) Norte (G) Oeste (H) Pampulha (I) Venda Nova 4) Caso não more em Belo Horizonte, sua casa está localizada em:

(A) Zona rural (B) Zona urbana (C) Comunidade indígena (D) Comunidade quilombola 5) Qual é o nível de escolaridade do seu pai?

(A) Da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental (B) Da 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental (C) Ensino Médio (D) Ensino Superior (E) Pós-graduação

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(F) Não estudou (G) Não sei 6) Qual é o nível de escolaridade da sua mãe?

(A) Da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental (B) Da 5ª à 8ª série do Ensino Fundamental (C) Ensino Médio (D) Ensino Superior (E) Pós-graduação (F) Não estudou (G) Não sei 7) Você está estudando?

(A) Sim (B) Não 8) Qual sua escolaridade?

(A) Ensino Fundamental incompleto (B) Ensino Fundamental completo (C) Ensino Médio incompleto (D) Ensino Médio completo (E) Ensino Superior incompleto (F) Ensino Superior completo (G) Pós-graduação

9) Seu percurso escolar é regular? (Se aplica apenas ao/à adolescente)

(A) Sim (B) Não, por evasão. (C) Não, por reprovação. 10) Somando a sua renda com a renda das pessoas que moram com você, quanto é, aproximadamente, a renda familiar mensal?

(A) Nenhuma renda (B) Até 1 salário mínimo (C) De 1 a 3 salários mínimos (D) De 3 a 6 salários mínimos (E) De 6 a 9 salários mínimos (F) De 9 a 12 salários mínimos (G) De 12 a 15 salários mínimos (H) Mais de 15 salários mínimos 11) Você trabalha ou já trabalhou?

(A) Sim Ocupação:

_______________________________________________________

(B) Não 12) Qual a sua renda mensal, aproximadamente?

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(A) Nenhuma renda (B) Até 1 salário mínimo (C) De 1 a 3 salários mínimos (D) De 3 a 6 salários mínimos (E) De 6 a 9 salários mínimos (F) De 9 a 12 salários mínimos (G) De 12 a 15 salários mínimos (H) Mais de 15 salários mínimos 13) Indique o grau de importância de cada um dos motivos abaixo na sua decisão de trabalhar: (Atenção: 0 indica nenhuma importância e 5 maior importância.)

Ajudar nas despesas com a casa (0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5) Sustentar minha família (esposo/a, filhos/as etc.) (0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5) Ser independente (ganhar meu próprio dinheiro) (0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5) Adquirir experiência (0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5) Custear/ pagar meus estudos (0 – 1 – 2 – 3 – 4 – 5) 14) Quantas horas semanais você trabalha?

(A) Sem jornada fixa, até 10 horas semanais

(B) De 11 a 20 horas semanais (C) De 21 a 30 horas semanais (D) De 31 a 40 horas semanais (E) Mais de 40 horas semanais 15) Com que idade você começou a trabalhar?

(A) Antes dos 14 anos (B) Entre 14 e 16 anos (C) Entre 17 e 18 anos (D) Após 18 anos !

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!!!

ANEXO&IV&

QUESTIONÁRIO&AVALIATIVO&&

Este&questionário&pretende&nos&ajudar&a&melhorar&o&procedimento&restaurativo.&

Não&é&necessário&informar&seu&nome,&mas&gostaríamos&de&saber&um&pouco&sobre&você.&Te&pedimos&para&responder&da&forma&mais&sincera&e&completa&possível.&

&

Nome!(caso!queira!especificar):!

!

Como!você!avalia!o!procedimento?!Nota!de!1!a!10!e!comente.!

Notas!1!–!péssimo!/!Notas!2!e!3!–!ruim!/!Notas!4!e!5!–!regular!/!Notas!6!e!7!–!bom!/!Notas!8!e!9!J!muito!bom!/!Nota!10!J!ótimo!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

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Como!você!avalia!a!atuação!das!facilitadoras?!Nota!de!1!a!10!!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

Como! você! avalia! seu! nível! de! participação! e! envolvimento! no! procedimento!restaurativo?!Nota!de!1!a!10!!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

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Como!você!avalia!o!espaço!onde!são!realizados!os!encontros?!Nota!de!1!a!10!!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

O!que!foi!bom!?!

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_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

O!que!faltou?!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

O!que!pode!melhorar?!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

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Este!procedimento!trouxe!mudanças!(repercussões)!na!sua!vida?!

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(!)!Sim!(!)Não!

!

!

Se!sim,!como!esse!procedimento!modificou!sua!vida?!

_______________________________________________________________________

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_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

Você!já!conhecia!ou!tinha!ouvido!falar!da!Justiça!Restaurativa?!

(!!)!Sim!!!!!(!!)!Não!

!

O!que!você!pensa!que!é!Justiça!Restaurativa?!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

Você!indicaria!o!procedimento!para!que!pessoas!trabalhem!conflitos?!

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________!

!

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Obrigado!por!compartilhar!suas!impressões!conosco!e!nos!ajudar!a!melhorar!!

Sua!opinião!é!importante!para!nós!!

!!

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JUSTIÇA RESTAURATIVA: UM OLHAR PARA ALÉM DO ATO INFRACIONAL

Fernanda Valladares Andrade Neves1

Flávia Vieira de Resende2

1. INTRODUÇÃO

Este artigo pretende estudar um caso encaminhado ao Projeto Ciranda, no dia 29 de junho de 2016, pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação Especial – SAASE – do Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional – CIA. O desfecho do caso objeto de estudo foi considerado exitoso pelas facilitadoras e por todas as partes envolvidas, motivo pelo qual este foi escolhido para compor o pre-sente livro.

O conflito envolvia um adolescente e seu pai. O jovem de nome Juliano3 foi conduzido ao CIA devido a uma agressão física cometida contra seu genitor Nelson que chamou a polícia militar no momento do ato infracional, esse tipificado como vias de fato4. O pai, conforme narrado no Boletim de Ocorrência, alegou que o rapaz não seguia suas orien-tações e que, quando tentava colocar limites no filho, esse reagia de forma agressiva:

Em contato com o solicitante, sr: Nelson segundo sua versão toda vez que seu filho faz algo errado, o corrigi (sic) orientando explicando o certo e o

1 A autora é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em 2016, advogada e facilitadora no Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

2 A autora é graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MINAS), formada em 1999; Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em 1999; e Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formada em 2008. Possui Mestrado em Filosofia, em que pesquisou a ideia de justiça através do diálogo por esta mesma Universidade (2014). É advogada, mediadora de conflitos e facilitadora no Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

3 Os nomes presentes neste artigo são todos fictícios para a preservação da identidade das partes. 4 Conceitua-se vias de fato como contravenção penal que ameaça a integridade física através da prática

de atos de ataque ou violência contra pessoa, desde que não resulte em lesões corporais. Está prevista no artigo 21 da Lei de Contravenções Penais- Decreto-Lei nº3688.

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errado, mas quando acontece isso o seu filho de nome Juliano não aceita, e que no dia de hoje não foi diferente ao corrigir seu filho, o mesmo não gos-tou começou a xingar com várias palavras de baixo calão e ainda foi para cima dele dando chutes e socos, e ele só se defendendo e logo depois o seu filho não satisfeito estava pegando qualquer coisa no lote para fazer o arre-messo contra ele. E segundo informação do menor é o pai que agride e não ele, e nega os fatos narrado (sic) pelo pai, o menor e o seu pai não quis ser medicado (sic) por que não sofreu nenhuma lesão aparente, registro para o vosso conhecimento.

Apesar de o adolescente ter negado os fatos narrados pelo pai no relato do Boletim de Ocorrência, durante os pré-círculos de justiça restaurativa, não houve divergências na narrativa de ambos ao caracterizar a ofensa, tendo o filho assumido a sua autoria, como veremos no decorrer do artigo. As partes ratificaram o interesse em participar do procedimento restaurativo. 

Inicialmente, o caso foi atendido nas sessões individuais, também chamadas de pré--círculos restaurativos. Na data de 06/07, foram ouvidos separadamente o adolescente e o pai, tendo sido esse o marco da suspensão processual. Para entender a dinâmica fa-miliar, a equipe achou necessário ouvir a mãe do rapaz, que compareceu para o pré-cír-culo no dia 13/07. A partir dos relatos trazidos pela mãe do adolescente, as facilitadoras marcaram, na data de 03/08, mais um pré-círculo com o pai e o jovem, separadamente. Cada pré-círculo teve duração média de uma hora.

Nas datas de 10/08 e 25/08, foram realizados dois círculos restaurativos, com média de três horas de duração cada, contando com a presença dos três membros da famí-lia. Posteriormente, foram realizados mais dois pós-círculos para o acompanhamento do Plano de Ação construído pelas partes, esses acontecidos nas datas de 06/10/16 e 27/10/16, conforme a disponibilidade da família. Assim, contabilizaram-se nove aten-dimentos, incluindo todas as sessões facilitadas.

2. MAPEAMENTO DO CONFLITO E PROCESSO RESTAURATIVO

No primeiro pré-círculo, foi ouvido o pai, vítima das vias de fato, que reiterou os fa-tos contidos na ocorrência policial, dizendo que o filho é muito nervoso e que ele não

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consegue colocar limite no seu comportamento. Completou dizendo que mora sozinho com Juliano e mais dois outros filhos adolescentes, tendo a ex-esposa, mãe dos jovens, saído de casa há algum tempo, possuindo, atualmente, nova família. Após a separação, o pai ficou com a guarda dos três filhos menores de idade, sendo responsável também pelo sustento da casa. Sr. Nelson é padeiro e produz pães em sua própria residência para vendê-los no bairro posteriormente.

A vida de responsável pela casa e provedor da família o faz necessitar da ajuda dos filhos nas tarefas domésticas e na fabricação do pão. Segundo ele, os outros dois filhos adolescentes não colocam problemas na divisão das tarefas do lar e da fábrica, sendo mais colaborativos. O mesmo não acontece em relação a Juliano, que apesar de ser o mais tímido dos irmãos, “não dando trabalho fora de casa”, de acordo com suas pala-vras, não ajuda a família em nada. Conforme o pai, Juliano passa a tarde inteira jogando vídeo-game, saindo somente por um curto período de tempo para estudar durante a noite. Ao chegar da escola, no fim da noite, novamente o jovem retorna aos jogos, que lhe consumem por toda a madrugada. Assim, o rapaz acaba acordando muito tarde, não conseguindo colaborar com a produção de pães e com os afazeres domésticos, de forma que o pai fica extremamente sobrecarregado, segundo o seu relato.

De acordo com o Sr. Nelson, Juliano não lhe obedece quando tenta colocar limite nos horários de jogos, sendo fortemente rechaçado pelo filho, que inclusive o agride fisica-mente. Suas preocupações também giram em torno dos estudos do rapaz, que, apesar de comparecer às aulas, frequentando a escola na modalidade da Educação de Jovens e Adultos – EJA5, já foi reprovado anteriormente.

No segundo pré-círculo, foi ouvido o adolescente, que relatou a sua versão dos fa-tos. Juliano compareceu de forma muito tímida, com dificuldade de se expressar e de construir um relacionamento de confiança com as facilitadoras. No entanto, ao longo

5 A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino que nasceu da clara necessidade de oferecer uma melhor chance para pessoas que, por qualquer motivo, não concluíram o ensino fundamental e/ou o médio na idade apropriada. Surge como uma ação de estímulo aos jovens e adultos, proporcionando seu regresso à sala de aula. Esta modalidade respeita às características desse alunado, dando oportunidades educacionais adequadas em relação a seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames próprios. Disponível em: http://ejabrasil.com.br/?page_id=98. Acesso em: 19 de setembro de 2017.

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do atendimento, o rapaz sentiu-se mais confortável, relatando que realmente praticou a conduta contida no Boletim de Ocorrência Policial, pois é muito nervoso e não conse-gue se controlar quando está com raiva, arrependendo-se da sua conduta todas as vezes em que perde o controle.

Por outro lado, o adolescente contou que o pai é muito rude no trato com as palavras sempre que vai chamar a sua atenção. Segundo Juliano, no episódio que o levou ao CIA, o pai, além de tê-lo ofendido verbalmente, chutou o seu vídeo-game, presente dado pela sua mãe. De acordo com o jovem, sua mãe não mora mais em casa, tendo se separado de seu pai para ir morar com o namorado. Ele contou que a separação dos pais foi re-pentina, tendo acontecido de forma conflituosa, pois sua mãe saiu de casa para assumir o relacionamento com o até então ajudante da padaria da família, dezenove anos mais novo do que ela, tendo engravidado logo após a separação. Na ocasião, segundo o rela-to do jovem, seu pai ficou extremamente revoltado e proibiu os filhos de verem a mãe durante um ano, o que aparentou ser fonte de sofrimento para Juliano, uma vez que a mãe é uma das poucas pessoas com a qual ele consegue se abrir.

No que tange aos irmãos, o adolescente contou possuir bom relacionamento, mas por ser muito tímido, diz preferir ter contato com outras pessoas através dos jogos de computador, quando joga campeonatos, conversa e compartilha os mesmos interesses e estilo de vida. Diferentemente do irmão mais velho, Juliano não gosta de frequentar festas, fica muito em casa e diz não entender tamanha preocupação do seu pai em rela-ção a ele, pois vai à escola e tem o sonho de tornar-se mecânico futuramente.

Diante dos relatos, as facilitadoras perceberam a necessidade de escutar a mãe do adolescente, vez que esse demonstrou muita angústia ao falar da separação dos pais, sendo tudo muito obscuro para ele. A necessidade de ouvi-la ficou ainda mais latente devido ao modo como Juliano a retrata, demonstrando intensa admiração, carinho, confiança e proximidade em relação à mãe, apesar deles morarem em casas separadas.

No pré-círculo com a mãe de nome Cássia, ela relatou se sentir extremamente cul-pada por ter tido um relacionamento com um funcionário da empresa familiar, con-denando-se através de falas tais como: “eu tinha que ter me controlado”, “que sabia que tinha agido errado e cometido um pecado”, “que agora não tinha mais jeito de voltar

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atrás”, “que o correto seria ficar com o ex-marido”. As facilitadoras investigaram o senti-mento de culpa que ela trouxe e perguntaram sobre a sua relação com o atual compa-nheiro. Cássia contou que ele é um ótimo parceiro, que conversa com ela, ao contrário do ex-marido, que, nas suas palavras, era “extremamente focado no trabalhado e muito fechado”. Relatou, ainda, que o atual companheiro compartilha das obrigações da casa, do trabalho e assume a sua responsabilidade de pai.

Em relação aos seus filhos do primeiro casamento, Cássia disse que, por se sentir mui-to culpada durante a separação, achou melhor respeitar a vontade do Sr. Nelson de ficar com a guarda dos filhos, alegando que “seria muita sacanagem sair de casa e ainda levar os meninos embora, deixando ele sozinho”. Afirmou ter sentido muita falta dos filhos e sofrido demais, mas que hoje, felizmente, as coisas estão mais tranquilas, de forma que os filhos, muitas vezes, vão passar as férias na sua casa e existe um bom diálogo com o ex-marido.

Ao longo do pré-círculo com a mãe, as facilitadoras perceberam que ela foi se abrin-do à medida em que se despia do peso da culpa que carregava e passou a demons-trar claramente a sua preocupação, amor e zelo em relação a Juliano. Perguntada sobre o vídeo-game, presente que ela havia dado ao filho, ela disse que ele gostava muito. Acrescentou, ainda, que possui personalidade muito parecida com a de Juliano, que sempre foi extremamente tímida e que, na infância e adolescência, sua atividade prefe-rida era jogar fliperama.

Diante dos relatos da mãe, as facilitadoras perceberam que, a despeito da separação dos genitores, havia uma relação próxima, de conexão e identificação entre mãe e filho, de forma que a mãe poderia atuar como apoiadora do jovem no seu dissenso vivido com o pai. A presença de Cássia no procedimento também seria fundamental, porque ela reconheceu e disse compartilhar a demanda trazida por Nelson, preocupando-se com o número excessivo de horas que Juliano passa no vídeo-game e com a sua agres-sividade quando contrariado em relação aos seus desejos.

Mais um pré-círculo foi realizado, separadamente, com Juliano e Nelson, oportuni-dade em que foram trabalhadas técnicas para mostrar os pontos positivos do sistema familiar, pois, apesar de existirem conflitos e dificuldade de diálogo entre as partes,

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as facilitadoras perceberam que havia forte cooperação dos pais na criação dos filhos. Ambos os genitores mostraram-se dedicados e preocupados com a formação e o futuro do adolescente, o que foi bastante ressaltado, principalmente, no atendimento para com o jovem.

Nesse atendimento de Juliano, as facilitadoras falaram sobre a presença da mãe no procedimento e em seu interesse de colaborar para a resolução do conflito familiar, tendo essa se mostrado disposta a participar do Círculo Restaurativo para apoiar o ado-lescente, bem como para auxiliar pai e filho na construção e implementação de novos caminhos. Assim, foi mostrado para o adolescente, que, embora separados, ambos os pais estavam, de fato, presentes para ele.

As facilitadoras trabalharam ainda a responsabilização do adolescente pelo fato ocor-rido, fazendo-o “trocar de lugar” com o seu pai. O jovem reconheceu o excesso de tem-po que fica no vídeo-game, compreendeu a preocupação do pai com o seu futuro e se mostrou arrependido por agir de forma agressiva com o Sr. Nelson, repensando como poderia lidar de maneira mais benéfica com a raiva que sente em alguns momentos.

Em relação ao atendimento do pai, foi trabalhada a sua co-responsabilização no con-flito vivido. A partir do que foi trazido pelo jovem e a mãe, as facilitadoras o questiona-ram sobre a função do vídeo-game na vida do rapaz, vez que Juliano não gosta de so-cializar fora de casa como os demais irmãos; perguntaram se Nelson sabia quem havia dado o aparelho para o jovem e em que momento, e se ele já havia pensado na função/significado desse na vida de Juliano.

Além disso, foi questionada a forma com que Nelson se dirige ao jovem, tendo aquele reconhecido que fica muito nervoso com o filho quando é contrariado pelos excessos dele e que, na maioria das vezes, o xinga e conversa de maneira rude. Nesse senti-do, as facilitadoras trabalharam pontos da comunicação não violenta,6 explicando ao

6 A comunicação não violenta (CNV) é uma metodologia, desenvolvida por Marshall Rosenberg, que apoia o estabelecimento de relações de parceria e cooperação, em que predomina a comunicação eficaz e com empatia. Nessa metodologia, as pessoas devem se expressar sem a utilização de julgamentos, críticas e juízos de valor, mas exprimindo os seus reais sentimentos e necessidades não atendidas. Busca-se a satisfação das necessidades dos indivíduos através da empatia, do “dar natural” que cada ser humano possui, e não pelo uso do medo, da vergonha, da acusação ou das ameaças.

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Sr.Nelson a importância dessa linguagem na construção de conexão e empatia entre as pessoas e, consequentemente, na facilitação da resolução de eventuais conflitos.

As facilitadoras notaram que uma soma de fatores possibilitou o agendamento para realização do círculo restaurativo com todos os presentes, dentre eles: a responsabiliza-ção do adolescente pelo fato ocorrido; o reconhecimento de seus excessos no vídeo-ga-me e na agressividade; a co-responsabilização do pai; o apoio materno para a demanda de ambas as partes e, principalmente, a percepção do adolescente de que seus pais esta-vam ao seu favor, buscando o seu bem estar e não simplesmente lhe aplicando castigos.

No sistema punitivo, a responsabilização (culpabilização) tradicional é aplicada por um terceiro externo aos próprios sujeitos e não há espaço de diálogo e de identificação das causas que levaram ao conflito. Por outro lado, nos processos restaurativos, todos são incluídos participativamente, de forma que a mobilização promovida por cada par-ticipante auxilia no desenvolvimento do senso de responsabilidade coletiva para supe-rar o paradigma da punição.

Os círculos são uma forma de estabelecer conexão profunda entre as pessoas, explorar as diferenças ao invés de exterminá-las e ofertar a todos igual e voluntária oportunidade de falar e de ser ouvido sem interrupção. Neles, o que se quer construir é um espaço seguro, sem julgamento, para que as pessoas falem sobre sentimentos e necessidades e busquem, de forma horizontal, respostas para aquilo que as afeta.

Dadas todas essas razões, o Projeto Ciranda-UFMG optou por utilizar em seus ca-sos, prioritariamente, os processos circulares (círculo de conflito), segundo método da Carolyn Boyes-Watson e da KayPranis.

O primeiro círculo restaurativo teve início com as facilitadoras explicando para os participantes o processo em direção à construção coletiva de um possível acordo/ for-ma de reparação de danos. Foi apresentado o bastão de fala, recurso utilizado para re-gular o diálogo, promover a escuta de todas as partes, bem como para abrir espaço às pessoas que sentem dificuldade de falar em grupo. Aquele que segura o bastão recebe atenção total dos outros participantes e pode falar sem interrupções, manifestando suas emoções, em um ritmo tranquilo.

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No caso em análise, as facilitadoras escolheram um pião para ser o bastão de fala do círculo. A ideia era criar uma conexão com o jovem, tendo em vista serem os jogos a sua principal fonte de lazer e socialização. Ademais, as facilitadoras quiseram fazer uma analogia entre o pião, que necessita de um impulso para se colocar em movimento, e a necessidade do jovem de sentir-se apoiado/impulsionado pelos pais.

Em seguida, foram escolhidos, por todos os participantes, os valores norteadores do círculo, tais como respeito, obediência aos mais velhos, a compreensão com todos os membros da família, o entendimento e a necessidade de tentarem se colocar no lugar uns dos outros. Essa etapa é importante, porque os valores guiam como as pessoas de-vem se conduzir durante as rodadas de conversa, devendo as facilitadoras lembrá-las, nos momentos mais difíceis, sobre quais bases elas se propõe a caminhar.

Antes de adentrar no conflito, foi iniciada a contação de histórias, uma vez que nos círculos restaurativos não se fala do conflito até que as relações/ligações entre os parti-cipantes estejam estabelecidas. Segundo a metodologia de Kay Pranis, esse momento é essencial para que se emerja a humanidade e conexão de todos os participantes.7

As facilitadoras começaram contando suas próprias histórias pessoais. O objetivo pro-posto era relatar uma história positiva de momentos em família. Na ocasião, Sr. Nelson contou que foi obrigado a trabalhar durante toda a infância, não tendo muitos momen-tos de lazer. Relatou que o seu pai, avô do Juliano, era muito duro e exigente, mas que hoje ele o agradecia, pois, devido aos seus ensinamentos, tornou-se trabalhador e não passou por necessidades em sua vida adulta. Em seguida, a Sra. Cássia descreveu diver-sas memórias amorosas da sua avó, lembrando a importância da afetividade nos laços familiares. Por fim, o adolescente trouxe, como um momento significativo da sua vida, o dia em que ganhou de presente da mãe o seu primeiro vídeo-game.

Ato contínuo, as facilitadoras passaram a abordar o conflito propriamente dito, pe-dindo, inicialmente, que os participantes contassem o que os levou ao CIA. Sr. Nelson narrou o fato constante do Boletim de Ocorrência e disse se sentir extremamente can-sado com a criação dos filhos e o trabalho na padaria. Afirmou já estar velho (apesar

7 PRANIS, Kay. Teoria e prática. Processos Circulares. Tradução de Tânia Van Acker. São Paulo: Editora Palas Atena. 2010, p.55.

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de ter a idade de 44 anos) e exausto por ter que dormir apenas quatro horas por noite para dar conta de todas as suas responsabilidades. Nesse contexto, reclamou da falta de apoio do Juliano, dos excessos do jovem em relação ao vídeo-game e de sua dificuldade em lidar com o estabelecimento de limites.

Em contrapartida, Juliano afirmou que o seu pai é muito rígido e que, por ele, o jovem apenas estudaria e trabalharia. As facilitadoras perceberam que a questão do limite, tanto o de trabalhar, no caso de Sr. Nelson, quanto o de se divertir, no caso de Juliano, era ponto chave do conflito. Havia como a família se equilibrar em relação a isso? Será que o Sr. Nelson não tinha direito a algum momento de lazer e descanso? E o rapaz, será que ele precisava ser como o pai? Ou o jovem poderia ter momentos de descanso no vídeo-game, desde que isso não o impedisse de cumprir com as suas obrigações em casa e na escola? E a mãe, como ela poderia contribuir para com o núcleo familiar?

Ao longo das rodadas de conversa, trabalhou-se a questão do limite na família, ten-do os participantes sido questionados, inclusive, em relação a quais limites possuem quando lidam com emoções como a raiva. Todos eles disseram ser tomados por esse sentimento, em alguma medida, quando são contrariados, de forma que o jovem ad-mitiu a sua agressividade verbal/física e o pai reconheceu sua dureza com as palavras. As facilitadoras promoveram um momento de reflexão quanto às questões trazidas e encerraram o círculo restaurativo, problematizando a questão dos limites em relação às emoções e às necessidades da família de trabalho e de descanso.

No segundo círculo restaurativo, as partes trouxeram as reflexões que haviam feito, no sentido de que era preciso equilibrar, entre pai e filho, o binômio trabalho/descanso, e de que cada um possuía a sua parcela de responsabilidade em relação ao fato ocorri-do. Isto é, pai e filho se responsabilizaram e viram a necessidade de alterar o modo de conversar e de agir um com o outro.

Assim, foram construídas coletivamente as seguintes propostas para contribuir para a melhoria das relações no ambiente familiar:

O Sr. Nelson se compromete a não falar de forma agressiva quando Juliano estiver passando dos limites no vídeo game ou na não realização de alguma tarefa em casa ou da escola. Que irá falar uma vez e permanecer em silên-

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cio, com o objetivo de permitir a reflexão do filho, acerca das suas ações. O mesmo tipo de ação se estenderá para os outros filhos.

A Sra. Cássia se compromete a colaborar com o estabelecimento de limites para Juliano, tendo as mesmas leis acordadas pelo pai e filho, nas residências maternas e paternas, estendendo o acordo para os outros filhos.

Juliano propôs jogar vídeo-game, principal motivo do conflito entre ele e o pai, durante 4 horas por dia. O horário estabelecido pelo adolescente é de 15h às 17h, e de 22h às 00h, quando ele chegar da escola. No caso de des-cumprimento dos horários acordados pelo adolescente, esse reconhece que será advertido pelo pai, de forma não agressiva.

Se por acaso houver alguma agressividade por parte do pai no estabeleci-mento dos limites, Juliano se compromete a lembrá-lo do combinado nos ciclos, que é o de prestar atenção na forma de falar nas conversas em famí-lia, que devem seguir os seguintes princípios: serem respeitosos, terem obe-diência aos combinados, ter entendimento, compreensão uns com os outros e tentarem sentir no lugar dos outros.

Nos finais de semana, Juliano se compromete a jogar o vídeo-game duran-te seis horas livres, por dia. Os acordos envolvem jogos e tempo no celular também.

As facilitadoras agendaram um pós-círculo, um mês após o acordo, a fim de verificar se propostas firmadas nesse círculo foram cumpridas.

No primeiro pós-círculo, com o adolescente e os pais presentes, foi averiguado se ha-via necessidade de rearranjo do Plano de Ação proposto. Muito havia se avançado em relação ao que foi pactuado, com o jovem abrindo mão de jogar vídeo-game por várias horas no dia. No entanto, surgiu, de forma mais enfática, a demanda do pai em dividir as tarefas domésticas com o filho. Esse ponto já havia sido conversado anteriormente, porém, nesta ocasião, Sr. Nelson conseguiu verbalizar as suas necessidades de forma mais clara para o jovem. Em casa, a comunicação entre eles ainda ocorria com alguma dificuldade, embora não houvesse mais nenhum relato de agressão física.

Durante o pós-círculo, foi feita a escuta da demanda de ambos e trabalhadas técnicas da Comunicação não violenta no que tange aos pedidos e necessidades entre as par-tes. A mãe do jovem ofereceu a sua residência para a moradia do filho, colocando-se à

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disposição para ajudá-lo no que fosse preciso. No entanto, ficou evidente que, apesar das dificuldades de convivência com o pai, essa não era a vontade do adolescente. A residência do pai, a despeito dos conflitos, era um ambiente positivo, onde o adolescen-te conseguia suprir todas as suas necessidades, inclusive a de receber uma retribuição financeira em troca dos serviços realizados em casa e na padaria (o que fora contado somente neste atendimento), frequentar a escola e, após os círculos restaurativos, ver-se respeitado na sua necessidade de lazer, algo antes pouco percebido e/ou valorizado pela família por causa do histórico de vida dos pais - de poucas oportunidades de descanso e divertimento.

O jovem não recorreu mais à violência física nos momentos de raiva, tendo sido real-mente compreendido por ele, durante os círculos, que este não era um recurso legítimo e aceitável socialmente e por nenhum dos membros da família.

Foi agendado novo pós-círculo com o pai e o jovem, sem a presença da mãe, com o objetivo de ser melhor trabalhada a comunicação de necessidades entre pai e filho du-rante a rotina familiar. Embora Nelson e Juliano tenham reconhecido o apoio da mãe, ambos entenderam que ela não precisaria comparecer neste encontro, pois a dificulda-de de comunicação se dava entre eles.

Percebeu-se que ambos estavam cientes das necessidades de descanso/trabalho um do outro. Houve o reconhecimento de que Juliano e Nelson deveriam se respeitar na maneira de falar; que o lazer deveria ser assegurado para os dois, não somente para o filho, mas também para o pai, que trabalha desde muito cedo no comércio da padaria e não tem muitas horas de descanso; bem como foi reconhecida a necessidade da cons-trução de limites na rotina do filho, para que esse pudesse auxiliar o pai.

O Plano de Ação, portanto, foi reformulado para acrescentar que Juliano, fora do horário da escola e do período pactuado para o seu lazer, iria ajudar o Sr. Nelson nos serviços da padaria e nos afazeres da casa, recebendo uma remuneração semanal em troca desses serviços. Como foi dito, essa retribuição já existia, mas por causa dos con-flitos, o pai não tinha regularidade em lhe passar o dinheiro, o que causava muita raiva no adolescente, pois essa era a única fonte de recursos que possuía, contribuindo esse ponto também, para as discordâncias entre filho e genitor.

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As facilitadoras enfatizaram a necessidade de um diálogo não violento por parte de ambos, e a interdependência na ação deles para que o interesse comum dos dois no la-zer/descanso fosse possível. Pai e filho parecem ter repensado e compreendido bem tal necessidade, em falas como: “realmente, o meu pai está velho, não pode arcar com tudo sozinho” e“tenho pensado em tudo o que vocês me disseram, que preciso pensar antes na forma de falar com o meu filho”. Vídeos sobre a CNV foram encaminhados para a fa-mília, no sentido de que uma forma de interação mais harmônica pudesse ser melhor apreendida.

As facilitadoras perceberam, portanto, que a conduta agressiva que levou o adolescen-te ao CIA estava relacionada a inúmeros fatores: o modo de comunicação do pai com o filho; a separação da mãe do núcleo familiar, que se deu de forma muito conflituosa; a identidade e modo de ser de Juliano, ou seja, ser um jovem tímido; a dinâmica familiar que valorizava pouco os momentos de descanso e lazer; a não percepção pelo filho da sobrecarga de trabalho do pai.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que os círculos proporcionaram a reflexão e a responsabilização de to-dos os envolvidos no conflito vivido e que os ideais da Justiça Restaurativa, como por exemplo: o de dar às pessoas uma chance para contar a sua versão da história; falar de suas experiências; expressar seus sentimentos; entender melhor como a situação acon-teceu; compreender como novos conflitos podem ser evitados no futuro; sentir que foram entendidas pelos demais envolvidos; reconhecer que houve um dano; sentir o impacto que o comportamento causou no outro; criar um meio de reparar o dano; sa-ber que um pedido de desculpas sincero pode aliviar a situação; encontrar um modo de seguir em frente e sentir-se melhores consigo mesmas; dentre outros, foram atingidos.

Para as facilitadoras, ficou evidenciado que, para além do ato infracional – vias de fato – havia uma situação complexa, ou seja, uma família que precisava trabalhar inú-meras questões, como a separação conflituosa dos pais, a aceitação da nova vida esco-lhida pela mãe, a inclusão dela no seio familiar, a noção de interdependência entre as

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partes, a personalidade do jovem, a necessidade mútua de um espaço de lazer/trabalho bem compartilhados na rotina do pai e filho, a afetividade, o diálogo, a não violência, o perdão, dentre outros. Ficou nítido, durante os círculos, que o reconhecimento dos par-ticipantes de que eles ainda eram uma família e de que havia dependência mútua entre eles foi determinante para o êxito do caso em questão.

As facilitadoras acreditam que novos conflitos podem surgir na comunicação entre pai e filho no trato das tarefas domésticas, no comércio familiar e em outras questões. No entanto, parece-nos que a agressão física é um recurso que dificilmente voltará a ser utilizado, uma vez que percebido pelas partes como prejudicial à família.

Em telefonema após um ano de atendimento do caso, Sr. Nelson disse que não tem tido dificuldade de relacionamento com o filho e que este tem se comprometido muito com as próprias obrigações, tendo reduzido significativamente as horas de lazer e, in-clusive, começado a trabalhar bastante na padaria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASBOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. No Coração da Esperança: Guia de Práticas Circulares. Tradução por Fátima de Bastiani. Porto Alegre: AJURIS, 2011.

BRASIL, Decreto-Lei nº 3688, de 03 de outubro de 1941. Institui a Lei das Contravenções Penais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3688.htm. Acesso em: 22 de setembro de 2017.

O’CONNELL, Terry; WACHTEL, Ben; WACHTEL, Ted. Reuniones de Justicia Restaurativa: Manual de Reuniones Restaurativas. Tradução por Vera Winkelried e María F. Torres. Pipersville: Piper’s Press, 2010.

PETRONELLA, Maria Boonen. Apostila de Curso. Formação em Práticas de Justiça Restaurativa: Desenvolver a inteligência emocional, promover a integração, construir relações saudáveis, res-ponsáveis e justas. Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo. 2017.

PRANIS, Kay. Teoria e prática. Processos Circulares. Tradução de Tânia Van Acker. São Paulo: Editora Palas Atena. 2010.

REDE RESIDÊNCIA. EJA BRASIL. Disponível em: <http://ejabrasil.com.br/?page_id=98>. Acesso em: 19 de setembro de 2017.

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ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta - Técnicas para aprimorar relaciona-mentos pessoais e profissionais. Tradução Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006.

SOARES, Luiz Eduardo. Justiça: pensando alto sobre violência, crime e castigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

ZEHR, HOWARD. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

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UM CASO DE TRANSFORMAÇÃOA CASE OF TRANSFORMATION

Aline Ferreira Gomes de Almeida1

Lívia Vilela Bernardes2

Resumo:Aborda-se analitica e criticamente um atendimento restaurativo rea-lizado pelas autoras, facilitadoras no Projeto de Extensão Ciranda da UFMG, em um caso de conflito entre dois alunos. Apresentam-se os fatos, o mapeamento do conflito e as técnicas utilizadas ao longo do procedimento. Esmiúça-se o encontro vítima-ofensor e, por fim, analisam-se os resultados obtidos no procedimento e seu desfecho transformador.Palavras chave: Justiça Restaurativa; Conflito; Encontro Vítima-Ofensor; Projeto Ciranda.

Abstract:It is analytically and critically approached by the authors, facilita-tors in the Ciranda Extension Project of UFMG, in a case of conflict between two students. It presents the facts, the conflict mapping and the techniques used throughout the procedure. The victim-offender encounter is moderated and, finally, the results obtained in the pro-cedure and its transforming outcome are analyzed.Key-words: Restorative Justice; Conflict; Victim-Offender Meeting;

Ciranda Project.

1 A autora é bacharela em Direito pela UFMG, formada em 2015; advogada no escritório Almeida Mourão Marra Malta sociedade de advogadas; advogada-orientadora na Divisão de Assistência Judiciária da UFMG; Facilitadora no Projeto de Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG; Mediadora.

2 A autora é bacharela em Direito pela UFMG, formada em 2017; advogada no escritório Marina Pimenta e Advogados Associados; Facilitadora no Projeto de Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

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1. O CONFLITO

O caso foi encaminhado ao projeto Ciranda pela diretoria de uma instituição de en-sino superior para realização de procedimento restaurativo com dois alunos que se en-volveram em um conflito.

Diante do encaminhamento e após a definição das facilitadoras3 que atuariam no caso, foram agendados dois pré círculos restaurativos com os alunos individualmente, para que fosse possível compreender os fatos, mapear o conflito, avaliar a possibilidade de realização do procedimento e verificar a adesão dos envolvidos para a participação.

Em síntese, o conflito ocorreu nas dependências da instituição de ensino, ao final de uma festa universitária. O aluno agressor estava alcoolizado e enrolou algumas bandei-ras usadas na decoração do evento no pescoço de seu colega. Este se assustou e pediu para que aquela ação cessasse e afirmou que ele não poderia agir daquela forma, mas o pedido não foi atendido. Alguns amigos tentaram intervir, mas o agressor, que estava segurando uma garrafa de água, despejou todo o seu conteúdo no outro e, após, jogou também a garrafa em sua direção. O agredido reagiu dizendo que chamaria a polícia. Neste momento, o agressor disparou uma cusparada em seu rosto. O agredido saiu da universidade e se deslocou em direção a um posto policial próximo. Um dos amigos do agressor, e ele próprio, tentaram impedir o registro, mas o agredido realizou um bole-tim de ocorrência relatando os fatos e formalmente imputando a ocorrência de contra-venção penal prevista no art. 21 da Lei 3.688/44.

Diante do conflito, o agredido protocolou um requerimento para instauração de pro-cesso administrativo perante a diretoria da instituição de ensino em desfavor do agres-sor, sob a alegação de que teria sido vítima de agressão física e verbal. Após ambos

3 Kay Pranis (2010, p. 26-27) define o facilitador nos seguintes termos: “o facilitador, muitas vezes chamado guardião, ajuda o grupo a criar e manter um espaço coletivo no qual cada participante se sente seguro para falar aberta e francamente sem desrespeitar ninguém. Ele supervisiona a qualidade do espaço coletivo e estimula as reflexões do grupo através de perguntas ou pautas.”

4 Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato

não constitue crime. Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta)

anos. (BRASIL, 1941).

UM CASO DE TRANSFORMAÇÃO – A CASE OF TRANSFORMATION

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conversarem com o diretor da faculdade, aceitaram participar de procedimento restau-rativo para solucionar o conflito.

2. O PROCEDIMENTO RESTAURATIVO E A TRANSFORMAÇÃO

Nos primeiros atendimentos, ambos ratificaram o interesse de participar do procedi-mento restaurativo5 e não houve divergências nas narrativas quanto aos fatos registrados.

Durante o procedimento foram realizados seis pré-círculos: três sessões com o agres-sor e três sessões com o agredido. Cada encontro individual teve a média de duração de duas horas. O encontro conjunto aconteceu em única sessão, que durou três horas. Por fim, houve um encontro de encerramento com apenas um dos envolvidos, em virtude da impossibilidade de continuidade do procedimento, conforme será relatado abaixo.

Nos pré-círculos as facilitadoras realizaram o mapeamento do conflito e auxilia-ram os envolvidos em sua objetivação e na percepção de seus sentimentos e de suas

5 A voluntariedade é um dos princípios que norteiam os procedimentos restaurativos, por isso, a realização do procedimento depende do livre consentimento de todas as partes diretamente envolvidas no conflito, respeitando-lhes o direito de desistir a qualquer momento. Assim, todas as pessoas envolvidas e convidadas a participar devem manifestar expressamente seu interesse em ingressar e continuar no procedimento. No projeto Ciranda, no primeiro encontro, os envolvidos assinam um termo de compromisso, no qual ratificam a adesão ao convite para participar de procedimento restaurativo e, além disso, firmam os seguintes termos: 1) o procedimento será confidencial (outro princípio deste procedimento); 2) Todos os participantes serão tratados de forma justa e digna, sendo assegurado o mútuo respeito entre as partes, as quais serão auxiliadas a construir, a partir da reflexão e da assunção de responsabilidades, uma solução adequada e eficaz visando sempre o futuro; 3) a imparcialidade dos facilitadores, que têm o dever de resguardar o ambiente dialógico e o respeito.

Além do termo de compromisso, no primeiro encontro os atendidos preenchem um questionário socioeconômico - para avaliação estatística do perfil das pessoas que são encaminhadas - e recebem um termo com orientações sobre o procedimento, no qual há identificação das facilitadoras e telefone para contato, a localização da sala do Ciranda, e algumas regras para o atendimento, quais sejam: 1) a tolerância de atraso é de 15 minutos; 2) em caso de imprevistos, as facilitadoras devem ser avisadas sobre o cancelamento do encontro com antecedência mínima de 1 hora; 3) o não comparecimento, sem contrato prévio ou posterior, presume-se a perda da voluntariedade após 1 semana, sendo o caso devolvido; 4) após três faltas injustificadas presume desistência, sendo o caso devolvido.

No último encontro, os envolvidos preenchem um questionário avaliativo, podendo ser mantido o sigilo quanto ao declarante, no qual avaliam o procedimento, a atuação das facilitadoras, a sua participação e envolvimento no procedimento, o espaço do atendimento, dentre outras questões.

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necessidades para a realização de um pedido concreto, pautando-se nas técnicas de Comunicação Não-Violenta - CNV.

Esta técnica foi criada pelo psicólogo americano Marshall Rosenberg, que defende que ela melhora a comunicação interior e a forma de lidar com os conflitos podendo viabilizar uma coexistência mais pacífica (MARSHAL, 2006, p. 246).

A CNV é dividida, basicamente, em quatro etapas: no primeiro momento, o ofen-dido deve informar objetivamente o fato que o incomoda sem fazer julgamento mo-ral. No segundo momento, deve informar o sentimento que este fato lhe desperta. Posteriormente, deve declarar a sua necessidade que é causa desse sentimento. Por fim, na última etapa, o ofendido deve fazer um pedido concreto para que o outro possa, através de uma ação, atender a sua necessidade apontada.

Dessa forma, é possível melhorar a comunicação ao se traduzir objetivamente mensa-gens internas negativas em sentimentos e necessidades a partir de uma conexão empá-tica e de uma postura compassiva. Através da prática de CNV é possível alcançar uma coexistência mais pacífica por viabilizar o entendimento e a compreensão das próprias necessidades e as do outro, através da assunção da responsabilidade de que cada um é responsável pelos próprios sentimentos e por escolher as próprias ações.

Assim, a partir do uso da Comunicação Não-Violenta, as facilitadoras estruturaram previamente um roteiro para os encontros, visando mapear o conflito, entender como o ofensor e a vítima se sentiam diante dos fatos, delimitar quais as necessidades deles e o que estavam dispostos a construir a partir do conflito existente.

Além disso, explicaram como seria o procedimento restaurativo, quais eram as regras e os valores que norteariam todos os atendimentos.

A Justiça Restaurativa, em síntese, fundamenta-se nos princípios da autonomia, da corresponsabilidade, da participação, da cidadania, do respeito, da voluntariedade, da alteridade, do sigilo, sendo todos exercidos por meio de uma relação dialógica.

A Carta de Brasília6 elenca dezoito princípios e valores que devem orientar os proce-dimentos restaurativos, conforme abaixo transcrito:

6 Documento elaborado na Conferência Internacional “Acesso à Justiça por meios alternativos de resolução de conflitos”, nos dias 14, 15, 16 e 17 de 2005, em Brasília/DF.

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1. plenas e precedentes informações sobre as práticas restaurativas e os pro-cedimentos em que se envolverão os participantes; 2. autonomia e volunta-riedade na participação em práticas restaurativas, em todas as suas fases; 3. respeito mútuo entre os participantes do encontro; 4. co-responsabilidade ativa dos participantes; 5. atenção às pessoas envolvidas no conflito com atendimento às suas necessidades e possibilidades; 6. envolvimento da co-munidade, pautada pelos princípios da solidariedade e cooperação; 7. inter-disciplinariedade da intervenção; 8. atenção às diferenças e peculiaridades sócio-econômicas e culturais entre os participantes e a comunidade, com respeito à diversidade; 9. garantia irrestrita dos direitos humanos e do di-reito à dignidade dos participantes; 10. promoção de relações equânimes e não hierárquicas; 11. expressão participativa sob a égide do Estado Demo-crático de Direito; 12. facilitação feita por pessoas devidamente capacitadas em procedimentos restaurativos; 13. direito ao sigilo e confidencialidade de todas as informações referentes ao processo restaurativo; 14. integração com a rede de políticas sociais em todos os níveis da federação; 15. desen-volvimento de políticas públicas integradas; 16. interação com o sistema de justiça, sem prejuízo do desenvolvimento de práticas com base comunitária; 17. promoção da transformação de padrões culturais e a inserção social das pessoas envolvidas; 18. monitoramento e avaliação contínua das práticas na perspectiva do interesse dos usuários internos e externos.

Ressalta-se que no processo restaurativo, há uma profunda preocupação em com-preender a necessidade da vítima, de forma a verificar o que pode ser construído a par-tir do dano suportado. Howard Zehr (2008, p. 189) apresenta as necessidades da vítima de um ato criminoso, da seguinte forma:

As vítimas almejam vindicação, que inclui denúncia do mal cometido, la-mento, narração da verdade, publicidade e não minimização. Buscam equi-dade, inclusive reparação, reconciliação e perdão. Sentem necessidade de empoderamento, incluindo participação e segurança. Querem proteção e apoio, alguém com quem partilhar o sofrimento, esclarecimento das res-ponsabilidades e prevenção. E necessitam significado, informação, impar-cialidade, respostas e um sentido de proporção. (ZEHR, 2008, p. 189).

Já em relação ao ofensor, busca-se a sua responsabilização, um estímulo para que com-preenda as consequências de seus atos e tenha empatia com a dor do outro, pois enten-de-se que a mera punição não constitui real responsabilização. O foco é na construção

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para além da coerção, a partir de um olhar para o futuro e de reconstrução, quando possível, das relações que foram rompidas.

Assim, a responsabilização significa estimular o ofensor a compreender o dano que causou para entender as consequências de seu comportamento e buscar uma forma de reparar o que fez, ainda que simbolicamente, de forma participativa.

Nesse sentido, obtempera Gomes Pinto (2005, p. 20):

A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da co-munidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura das feridas, dos traumas e perdas causados pelo crime. (PINTO, 2005, p. 20)

Importante aclarar que para ocorrer um círculo restaurativo é necessária a presença não só da vítima, do ofensor, das facilitadoras, como também de pessoas da comunida-de que serão apoiadores dos envolvidos na construção da solução do conflito por meio, por exemplo, do acompanhamento na prática da execução de um plano de ação acor-dado. Estas pessoas devem atuar ativamente na construção das soluções para a cura das feridas, dos traumas e das perdas decorrentes do conflito.

Feitos estes esclarecimentos teóricos, passa-se a analisar como se desenvolveu na prá-tica o procedimento restaurativo envolvendo os dois alunos universitários.

O primeiro encontro, denominado pré círculo, foi realizado com o ofensor, que rela-tou os fatos, relacionando-os com sua história pessoal e seu vínculo com a vítima. Desde o primeiro momento ele se responsabilizou pela prática dos fatos narrados, mostrou-se arrependido, envergonhado, disposto a reparar o dano e a se desculpar.

Alegou não se lembrar com precisão do ocorrido, em virtude da ingestão de bebidas alcóolicas. Começou essa prática há pouco tempo, inicialmente com o intuito de so-cialização, por ser de outro Estado, não ter familiares ou amigos na cidade, residindo nesta por causa dos estudos. Relatou, ainda, que nessas ocasiões ele tem dificuldade de manter o controle sobre seus atos e normalmente tem atitudes que se arrepende e acaba por afastar os seus amigos.

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Ele demonstrou necessidade de entender os motivos pelos quais a vítima fez o bole-tim de ocorrência, pois entendia que esta teria sido uma atitude desproporcional ao que ocorreu. Esclareceu que sua incompreensão decorria do fato de que sabia que a vítima defendia o abolicionismo penal7, o que era incompatível com sua conduta de buscar respaldo policial. Observa-se que o agressor relatou que possui trauma e profundo des-conforto ante policiais, pois um de seus irmãos foi morto por um e os outros dois es-tavam presos. Portanto, relatou que quando ouviu que a vítima buscaria ajuda policial, sentiu-se preocupado e com raiva.

Por fim, deixou claro que, se possível, desejaria restabelecer o vínculo de amizade existente anterior ao episódio narrado. Durante todos os atendimentos ele mostrou-se participativo e disposto a auxiliar na construção de uma solução compositiva.

Quanto ao apoiador (pessoa da comunidade de referência), ele indicou uma amiga. Contudo, o agredido apresentou resistência a sua participação, inclusive porque ela não residia na cidade, o que inviabilizaria sua participação. Não foi apontado ou identifica-da outra pessoa como apoiadora.

Em relação ao agredido, no primeiro encontro ele relatou os fatos relacionados com o conflito e com seu vínculo anterior com o outro envolvido. O sentimento que prevale-cia em sua narrativa era de raiva e de incompreensão e o que remetia ao dia do ocorrido era o sentimento de humilhação. Em decorrência disso, apresentava necessidade de ser reparado pela agressão sofrida.

Inicialmente, seu posicionamento pautava-se na necessidade de punição, que poderia ser atendida por diversas formas, dentre elas através da expulsão ou da suspensão do aluno agressor. A sua intenção era, em suas palavras, “devolver aquela cusparada, mas de outra forma”.

7 Segundo Raúl Zaffaroni (2014, p. 89): “O abolicionismo nega a legitimidade do sistema penal tal como atua na realidade social contemporânea e, como princípio geral, nega a legitimação de qualquer outro sistema penal que se possa imaginar no futuro como alternativa a modelos formais e abstratos de solução de conflitos, postulando a abolição radical dos sistemas penais e a solução dos conflitos por instâncias ou mecanismos informais.”

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Além disso, indicou um amigo como seu apoiador, que também era amigo do agres-sor. Todavia, foi impossibilitada a participação no procedimento deste terceiro, pois este viajaria ao exterior.

Durante os seis atendimentos individuais, as facilitadoras trabalharam com o refe-rencial de justiça restaurativa em contraponto à justiça retributiva, bem como as possí-veis formas de reparação, buscando demarcar objetivamente quais as necessidades dos atendidos, o que estavam dispostos a oferecer e o que precisava ser reparado.

Ao longo dos atendimentos, foi possível perceber uma ressignificação relacionada ao lugar de ambos frente ao conflito, a percepção do que é justiça, punição, reparação e responsabilização.

Em relação ao ofendido, percebeu-se uma profunda transformação acerca da sua ideia inicial de justiça e de punição retributiva, a qual antes era vista como reservada a ação de terceiro superior, no caso o diretor, que poderia aplicar uma sanção frente a toda a comunidade, pautada em um viés impositivo, coercitivo e de punição.

Contudo, percebeu que a mera imposição de uma sanção administrativa poderia re-presentar apenas uma forma de causar dor ao agressor, sem possibilitar a sua responsa-bilização e oportunizar uma transformação positiva em sua vida. Compreendeu que era possível a resolução consensual, colaborativa e participativa, em que o agressor pudesse compreender a dimensão de seus atos, a dor que causou, reconhecer que não deve ser violento e que, portanto, poderia ter a escolha de não mais agredir outras pessoas ao compreender as consequências de seus atos.

Foi alcançada a alteridade e uma postura compassiva de ambos, em que se propu-seram a se colocar no lugar do outro e compreender o conflito a partir de uma nova perspectiva.

Foi trabalhada a ideia desenvolvida por Howard Zehr em seus livros “Trocando as Lentes” e “Justiça Restaurativa”, no sentido de que não há justiça se continuarmos man-tendo o foco exclusivamente na perspectiva punitiva e formal de “combate” à crimina-lidade. Nesse sentido, o autor assevera que:

O argumento que apresento aqui é bem simples: não haverá justiça enquan-to mantivermos nosso foco exclusivamente nas questões que têm orientado

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o atual sistema judicial: Que leis foram infringidas? Quem fez isso? O que merecem em troca?Para que haja verdadeira justiça é preciso que façamos a nós mesmos as perguntas: Quem foi prejudicado? Quais suas necessidades? Quem tem obrigação e quem é responsável por atender tais necessidades? Quem tem interesse legítimo na situação? Que processo conseguirá envolver os in-teressados a fim de encontrar uma solução? A Justiça Restaurativa requer que troquemos não apenas nossas lentes, mas também nossas perguntas. Acima de tudo, a Justiça Restaurativa é um convite ao diálogo, para que pos-samos apoiar um ao outro e aprender uns com os outros. É um lembrete de que estamos todos interligados de fato. (ZEHR, 2012, p. 76)

Ademais, foi trabalhada a ideia de responsabilização a partir da teoria restaurativa, a qual ensina que a responsabilização não pode ser compreendida como sinônimo de punição ou de imputação de culpa, mas sim como a possibilidade de se compreender os danos causados ao outro e de buscar uma forma de repará-los, ainda que simboli-camente, a partir de uma decisão construída dialogicamente. Nesse sentido obtempera Howard Zehr (2012, p.35):

No âmbito geral, responsabilizar significa assegurar-se de que o ofensor seja punido. No entanto, se o crime for visto essencialmente como um dano, a responsabilização significa que o ofensor deve ser estimulado a compreen-der o dano que causou. Os ofensores devem começar a entender as conse-quências de seu comportamento. Além disso, devem assumir a responsabi-lidade de corrigir a situação na medida do possível, tanto concreta quanto simbolicamente (ZEHR, 2012, p.35).

Para se efetivar a responsabilização, o foco deve ser no futuro e não na perspectiva da culpa voltada para o passado. A punição representa uma forma de retribuir o mal, de causar dor e aflição, o que negativamente ensina que é legítimo castigar o outro como forma de fazer justiça ou de supostamente educar. Segundo Howard Zehr (2012, p. 41):

A verdadeira responsabilidade, portanto, inclui a compreensão das conse-quências humanas advindas dos nossos atos – encarar aquilo que fizemos e a pessoa a quem o fizemos. Mas a verdadeira responsabilidade vai um passo além. Ela envolve igualmente assumir a responsabilidade pelos resultados de nossas ações. Os ofensores deveriam ser estimulados a ajudar a decidir o

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que será feito para corrigir a situação, e depois incentivados a tomar as me-didas para reparar os danos. (ZEHR, 2012, p. 41)

Assim, após os seis encontros individuais, foi possível perceber que os atendidos es-tavam preparados para se encontrar, pois além dos elementos trabalhados supracitados, foi possível delinear os fatos, os sentimentos, as necessidades e o que poderia ser cons-truído na prática para atender estas.

Em relação ao ofensor, este chegou à conclusão de que precisava retomar o sentimen-to de pertencimento, de rever suas escolhas e ter mais autocontrole com as pessoas do seu círculo social. Informou que tinha necessidade de reparar o dano causado por meio de um pedido de desculpas e que estava disposto a oferecer o que a vítima lhe pedisse para reconstruírem os laços rompidos.

Por sua vez, a vítima concluiu que, após entender melhor o contexto do agressor, os motivos que o levaram a agir de forma violenta e ao saber que ele estava assumindo seus atos e se responsabilizando racionalmente por eles, percebeu que não precisava mais de punição. Informou que seu objetivo havia sido atendido, pois o conflito não o afetava mais e que nenhum sentimento negativo estava sendo alimentado. Ponderou, ao final, que gostaria que o ofensor se comprometesse a se cuidar e a se controlar mais para não causar o mesmo sofrimento que suportou para outras pessoas.

Ante esta situação de demarcação do conflito, foi agendada a data para realizar o en-contro vítima-ofensor.

3. O ENCONTRO VÍTIMA-OFENSOR

Na sessão conjunta, foi realizado um encontro vítima-ofensor, considerado um dos métodos de justiça restaurativa, em virtude da impossibilidade de concretizar tecni-camente o círculo restaurativo, sobretudo em decorrência da ausência de apoiadores. Todavia, foram utilizados elementos de um círculo, pois as facilitadoras entenderam que a sua metodologia contribuiria para criar um ambiente de alteridade, de escuta ati-va e possibilitar o entendimento recíproco.

Por ser um método que privilegia a participação ativa e isonômica de quem prati-cou o ato e de quem sofreu seus danos, preferiu-se a condução do caso por processos

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circulares (círculo de conflito), segundo método da Carolyn Boyes-Watson e da Kay Pranis, que descreve a importância do círculo “como um espaço onde as pessoas podem falar a sua verdade” (PRANIS, 2010, p. 73). Segundo a metodologia abordada por Kay Pranis (2010, p. 25) em um círculo:

(...) os participantes se sentam nas cadeiras dispostas em roda, sem mesa no centro. Às vezes se coloca no centro algum objeto que tenha significado especial para o grupo, como inspiração, algo que evoque nos participantes valores e bases comuns. O formato espacial do círculo simboliza liderança partilhada, igualdade, conexão e inclusão. Também promove foco, respon-sabilidade e participação de todos.

E complementa, “Os círculos objetivam criar um espaço onde os participantes se sen-tem seguros para serem totalmente autênticos e fiéis a si mesmos” (PRANIS, 2010, p. 25-26).

Nos processos circulares, a solução e a transformação do caso é produzida coleti-vamente, partindo do pressuposto de que todos têm algo a oferecer para uma com-preensão mais completa do conflito. Trata-se de metodologia totalmente restaurativa que pretende garantir a conexão, o pertencimento e a responsabilização ativa dos par-ticipantes, razão pela qual tem sido o método prioritariamente adotado pelo Projeto Ciranda-UFMG.

No presente caso, aclara-se que inicialmente foi adotada a metodologia restaurativa visando a realização de um círculo. Contudo, ante a impossibilidade de contar com a presença de algum representante da comunidade, foi utilizada a metodologia de encon-tro vítima-ofensor.

Para Howard Zher (2010, p. 54) há três modelos diferentes na prática da justiça res-taurativa: os encontros vítima-ofensor, os encontros familiares e os círculos. E ressalta que estes modelos tem se mesclado cada vez mais e possuem importantes elementos em comum. Ao passo que um encontro vítima-ofensor pode usar as técnicas do círculo, por exemplo. Nos dizeres desse autor,

Os encontros vítima-ofensor envolvem principalmente as vítimas e os ofen-sores. Depois de encaminhado o caso, trabalha-se individualmente com cada uma das partes. Então, uma vez obtido o consentimento, se reúnem em

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um encontro. Um facilitador capacitado organiza e dirige a reunião e guia o processo de maneira equitativa. (tradução livre)8 (ZHER, 2010, p. 57).

No caso em análise, o atendimento conjunto foi iniciado com uma cerimônia de aber-tura, para o centramento dos envolvidos naquele momento que demandava um esta-do de relaxamento e de empatia. Para isso, foi realizado um exercício de respiração e, posteriormente, foi feita a leitura do texto “Nem tudo é fácil”, de Cecília Meireles, que possuía elementos pertinentes à solução do conflito.

Foi utilizado o bastão de fala9 para ordenar as falas, tendo sido escolhido um canudo de diploma, que era um objeto que simbolicamente estabelecia um vínculo entre todos os presentes. Basicamente representava a ideia de que o conflito ocorreu no ambiente universitário, no espaço em que ambos se preparavam para a obtenção da tão sonhada graduação, representada pelo diploma.

No centro do círculo foram colocados lenços coloridos e um vaso de plantas, com a simbologia das suas raízes, que nutre aquele organismo. Essa referência relaciona-se ao lugar de fala de cada um e de onde vem cada um de nós, com forte laço com a família e as referências pessoais, temas trabalhados com os dois alunos nos pré círculos. Buscou-se, com isso, resgatar as origens, os valores aprendidos com os pais e o sentimento de amor que nutre as relações, ainda que, às vezes, conflituosas.

Posteriormente, foram apresentados espontaneamente por todos os participantes as diretrizes10 que norteariam o encontro: sinceridade, confiança, compromisso e empatia;

8 No original: “Las conferencias víctima-ofensor involucran principalmente a las víctimas y a los ofensores. Después de remitido el caso, se trabaja individualmente con cada una de las partes. Luego, una vez obtenido su consentimiento, se reúnen en una conferencia. Un facilitador capacitado organiza y dirige la reunión y guía el proceso de manera equitativa.”

9 O bastão de fala é um objeto escolhido pelas facilitadoras com o intuito de promover a conexão entre os envolvidos, algo que represente o objetivo de estarem neste espaço ou que tenha uma simbologia representativa. Este objeto passa por todo o círculo, dando a todos oportunidade de fala. Somente a pessoa que segura o bastão tem a vez de fala, podendo optar por não falar, passando para frente, ou segurá-lo em silêncio. A única exceção é para o facilitador, que poderá falar caso seja necessário para o desenvolvimento do círculo.

10 Diretriz compreende o que cada participante precisa para se sentir seguro. Essas são as bases para o diálogo. São as promessas que os participantes fazem mutuamente de como vão se comportar (PETRONELA, 2017, p. 38).

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Na sequência, foram estabelecidos os valores11 que guiariam o encontro, tendo sido apresentados os seguintes: amor, solidariedade, força e transformação. No final de cada uma dessas rodadas, a facilitadora leu as regras e os valores que foram colocados e per-guntou se todos estavam dispostos a respeitar essas orientações até o final do encontro. Houve o consenso, não havendo necessidade de modificações.

Essas diretrizes e esses valores foram escritos por cada participante em um pedaço de papel, que foi colocado no centro do círculo, para que todos lembrassem o que havia sido inicialmente acordado. Além disso, as facilitadoras poderiam apontar e lembrar o combinado, se fossem descumpridos. Cabe ressaltar que todas as regras do procedi-mento devem ser retomadas e explicadas novamente em caso de inobservância.

Usando o bastão de fala, a primeira rodada foi iniciada com uma contação de his-tórias, a partir da seguinte assertiva: comente uma situação que você se surpreendeu com a sua força/determinação/alteridade/coragem. As facilitadoras falaram primeiro, servindo como exemplo quanto ao tipo de partilha que se esperava dos participantes, bem como para se criar alteridade. Essa rodada foi bastante emocionante, pois todos trouxeram passagens muito relevantes e marcantes de suas histórias e que faziam parte da formação pessoal, como exemplos de força e de superação.

Pondera-se que esta escolha se baseia nos ensinamentos de Kay Pranis (2010, p. 56), a qual diz que “Os círculos são processos de contação de histórias”, e complementa, “a partilha de histórias fortalece o sentido de conexão, promove a reflexão acerca de si próprio e empodera os participantes”.

A partir da delimitação de quem sofreu o dano, de quem tem responsabilidade de repará-lo e ao descobrir como atender a necessidade dos envolvidos, por meio consen-sual e não adversarial de resolução de conflitos, as facilitadoras iniciaram a etapa de perguntas reflexivas mais gerais, para criar um ambiente de envolvimento e alteridade.

Ao começar adentrar diretamente na rodada dos fatos relativos ao conflito ocor-rido, buscou-se que o ofensor não fosse estigmatizado, não fosse julgado de forma

11 Os valores trazidos são os que importam para cada um e que querem trazer para o diálogo. Em que cada um apresenta o seu “eu verdadeiro”, que consiste nos valores que representam quem eles são quando estão no melhor de si. (PETRONELA, 2017, p. 38).

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desrespeitosa e tentou-se criar um ambiente em que fosse possível alcançar na prática a vergonha reintegradora desenvolvida por John Braithwaite. Este defende que a censura de um ato produz vergonha no outro, de forma que se for trabalhada de maneira ade-quada, pode ser um poderoso instrumento para redução de conflitos na sociedade.

Segundo o citado escritor, a distinção fundamental entre a compreensão de uma ver-gonha “reintegradora” e outra “estigmatizante” é que esta é capaz de violar a identi-dade do indivíduo. A vergonha reintegradora, por outro lado, é a “que produz vergo-nha enquanto mantém os laços de respeito ou amor, que encerra a reprovação com o perdão, ao invés de potencializar o desvio mediante a gradual exclusão do desviante”. (BRAITHWAITE, 1989. p. 12-13).

Diante disso, depreende-se que é possível por meio dessa concepção de vergonha rein-tegradora promover a responsabilização, sem ser necessário estigmatizar, excluir e violen-tar o outro. Não se pode esquecer que em muitos casos, antes de alguém violar o direito do outro, muitas vezes já teve vários direitos fundamentais violados, de forma que isso contribui para que perca o parâmetro de como agir. Por estar em certa medida acostuma-do a não ser respeitado, muitas vezes apenas reproduz a lógica que a ele é imposta.

Após trabalhar estas ideias e fazer tais reflexões, o ofensor e a vítima disseram o que as facilitadoras anteriormente conseguiram construir conjuntamente, em que pude-ram expressar como se sentiam, quais suas necessidades, nos termos anteriormente informados.

Contudo, no momento final do encontro, em que deveriam fazer pedidos um ao ou-tro para atender suas necessidades ou construírem juntos um plano de ação, foi acorda-do mutuamente que gostariam de um novo encontro para que isso fosse feito. Disseram que alguns dias de reflexão poderia lhes ajudar a compreender melhor tudo que tinham acabado de vivenciar.

Então, as facilitadoras realizaram o encerramento desse primeiro encontro e agenda-ram um novo para que pudesse ser realizado o desfecho. Contudo, para a surpresa das facilitadoras e da vítima, não foi possível realizar o encerramento da forma inicialmente pensada. O ofensor viajou com data indefinida de retorno, impossibilitando a continui-dade e encerramento do procedimento, nos termos previamente planejados.

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Em virtude do comunicado da viagem e, em decorrência, da ausência do ofensor, que sabia de antemão que não poderia estar presente no encontro agendado, apesar de confirmar que estaria, as facilitadoras enviaram para ele uma mensagem reforçando o círculo enquanto espaço de sigiloso e de segurança. Foi questionado se ele se sentiu seguro, se confiou na atuação das facilitadoras e se considerou as repercussões des-sa omissão para os envolvidos, em como as facilitadoras e o ofendido se sentiriam a respeito, diante do fato de que todos mantinham expectativas e direcionaram esforços para a realização do procedimento.

Foi solicitado, por mensagem, que ele se expressasse sobre como se sente sobre isso e se quer participar de alguma forma, ainda que distante, ou se vê a possibilidade de contribuir mesmo não estando fisicamente presente. Foi informado que algo escrito por ele poderia ser lido no encontro de encerramento, por exemplo. Ao final, as facilitado-ras fizeram os seguintes apontamentos: Como você se sentiu ao participar do processo circular? Como acha que pode contribuir hoje para transformar o conflito? O que espe-rava do círculo e qual desfecho gostaria de dar para essa situação?

Ele respondeu mostrando-se arrependido por essa conduta, mas apontou que não ti-nha opção se não agir dessa forma, por questão de segurança12. Apresentou-se disposto a contribuir no que fosse possível, desculpou-se por não poder estar presente e avaliou positivamente todo o procedimento, pois foi oportunizado um encontro de respeito, no qual pode se desculpar, ouvir e ser ouvido.

Portanto, posteriormente foi realizado um encontro de encerramento com o agredido para informá-lo sobre a ausência do agressor e para realizar um desfecho que satisfi-zesse suas necessidades e expectativas criadas.

Ele esclareceu que suas necessidades haviam sido atendidas e que não necessitava de uma intervenção administrativa para se sentir reparado pelo acontecido, nem mesmo de qualquer punição. Claramente disse que o procedimento restaurativo possibilitou que ele compreendesse uma nova perspectiva de justiça e de responsabilização para além da punição e que, portanto, entendia que o objetivo havia sido alcançado.

12 As facilitadoras, mesmo após prévia autorização dos atendidos, decidiram ocultar algumas informações pertinentes ao conflito, visando resguardar o sigilo, a segurança e a identidade dos envolvidos.

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4. O DESFECHO DO CASO

A percepção das facilitadoras foi de que o procedimento conseguiu promover trans-formações positivas em ambos os atendidos, bem como solucionar o conflito existente. Contudo, alguns ponderamentos precisam fer feitos.

O fato de agressor não ter contado previamente para as facilitadoras sobre sua viagem demonstra que ele não confiou plenamente no procedimento. Apesar de ser informado sobre o dever de confiabilidade e de sigilo, não partilhou sobre sua viagem, um dado relevante para a continuidade dos atendimentos. Por conseguinte, esta insegurança e ausência de confiança repercutiu no comportamento dele no encontro conjunto, pois não demonstrou muita conexão no encontro com a vítima ante uma profunda ansieda-de claramente percebida. As facilitadoras supõem que é possível esse comportamento em razão de sua viagem, mas não há elementos suficientes para se concluir isto. Dessa forma, apesar de o ofensor ter se responsabilizado racional e formalmente pelos fatos narrados, restou a dúvida se de fato para ele o procedimento promoveu transformações relevantes que possam repercutir positivamente em sua vida.

Em relação ao agredido, foi possível perceber que ele foi bastante sincero e autêntico em seus posicionamentos. Em relação a ele os objetivos restaurativos foram alcançados. Foi possível perceber uma profunda transformação no seu posicionamento frente ao conflito, ao seu desejo de vingança e no fato de que suas necessidades foram atendidas por intermédio da alteração da sua posição do que seria punição e reparação. Ele com-partilhou a transformação de seus sentimentos, mostrando-se satisfeito com o desfecho do procedimento.

Assim, diante do conflito que gerou danos buscou-se olhar para frente, para o que ainda pudesse ser construído, de forma a superar a ideia de impor castigo e causar so-frimento no outro, conforme estabelece o paradigma de justiça retributiva. Buscou-se uma responsabilização para além da culpa individual, promovente da dor, do sofri-mento, por entender que a ameaça de castigo não altera condutas e não coíbe práticas ilícitas.

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Para as facilitadoras foi uma experiência de muita aprendizagem e felicidade poder empregar a metodologia restaurativa em um ambiente universitário. Acredita-se que este ambiente educacional deve oportunizar o conhecimento e o ensino para além dos muros da universidade, de forma que seja possível criar um ambiente transformador e reflexivo no plano existencial. Pautamos essa posição nas elucidações de Paulo Freire (SME/SP, 1989, p.7), segundo o qual a construção do saber deve se dar para proporcio-nar transformação do sujeito, podendo, quem sabe, emancipá-lo para fazer as próprias escolhas e, efetivamente, o próprio destino. Nos dizeres desse autor:

Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamen-te da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar-se em sujeito de sua própria história. (SME/SP, 1989, p.7).

Portanto, considerando que o jovem aluno está em pleno desenvolvimento, em uma fase de construção da própria identidade, as facilitadoras esperam que a aplicação da metodologia restaurativa seja uma semente para que no futuro floresça sob novas for-mas de “justiça”, que seja pautada na alteridade, no empoderamento, na dialogicidade, na responsabilidade, na reparação e na igualdade. Espera-se que a Justiça Restaurativa possa contribuir com a mudança de uma cultura punitiva e adversarial, em que todos passem a compreender que o dano causado ao outro representa um dano causado a nós mesmos. Ubuntu!

5. BIBLIOGRAFIABRAITHWAITE, John. Crime, Shame and Reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

CARTA DE BRASILIA: princípios e valores de justiça restaurativa. In: Conferência Internacional “Acesso à Justiça por meios alternativos de Resolução de Conflitos” (2005). Brasília, 17 de ju-nho de 2005. Disponível em: < http://justicarestaurativaemdebate.blogspot.com.br/2008/10/car-ta-de-braslia.html>. Acesso em: 27 jun. 2017.

MARSHAL, Rosemberg. Comunicação não violenta - técnicas para aprimorar relacionamen-tos pessoais e profissionais. São Paulo: Editora Ágora, 2006.

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SÃO PAULO (Cidade). Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Documento: Aos que fazem a educação conosco em São Paulo/ Construindo a Educação Pública Popular. Paulo Freire. Suplemento do Diário Oficial do Município, de 01/02/ 1989.

PETRONELLA, Maria Boonen. Apostila de Curso. Formação em Práticas de Justiça Restaurativa: Desenvolver a inteligência emocional, promover a integração, construir relações saudáveis, res-ponsáveis e justas. Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo. 2017.

PRANIS, Kay. Processos circulares: Teoria e Prática. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2010.

PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKAMON, C; DE VITTO, R.; Gomes Pinto, R. (orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, 2014.

ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.

ZEHR, Howard. El Pequeño Libro de la Justicia Restaurativa. Tradução por Vernon E. Jantzi. Paraguay: Good Books, 2010.

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EXORTANDO O PRÓXIMO

Elisa Barroso Fernandes Tamantini1

Rafaella Rodrigues Malta2

1. O PONTO DE PARTIDA

Desde junho de 2016, o Projeto Ciranda de Justiça Restaurativa vem recebendo casos encaminhados pelo Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional de Belo Horizonte - CIA/BH, integrado pela Vara da Infracional da Infância e da Juventude da Comarca da capital mineira.

No entanto, a preparação para nossa atuação enquanto facilitadoras de diálogo é an-terior; data de abril de 2015, quando ingressamos no Projeto. De lá para cá frequen-tamos o Grupo de Estudos de Justiça Restaurativa e Processos Circulares, promovido pelo Ciranda, para refletirmos criticamente sobre a Justiça Restaurativa, suas diversas práticas, seus limites e sua inserção em estruturas de poder hegemônicas que permeiam a realidade brasileira.

Além disso, realizamos diversos cursos de capacitação em Justiça Restaurativa, nos ter-mos regulamentado pelas Resoluções nº 125 e 225 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, ministrados pelo Programa de Acesso à Justiça e Solução de Conflitos da Faculdade de Direito da UFMG - RECAJ (2015, presencial, CH 40h), pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais - CEAF (2016, virtual, CH 40h), pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes do Tribunal de Justiça de Minas Gerais - EJEF (2017, presencial, CH 32h) e pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo - CDHEP (2017, presencial, CH 40h).

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e facilitadora no Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG.

2 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, monitora do Projeto de Pesquisa e Extensão Ciranda de Justiça Restaurativa da UFMG, pesquisadora voluntária do Programa Interfaces - Programa Interdisciplinar de Psicanálise e Direito que integra o PSILACS (Núcleo de Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo) da [email protected]

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Cumpre pontuar, ademais, nossa experiência profissional para além do Ciranda. Ao trabalharmos na Divisão de Assistência Judiciária da UFMG (2015-2017), atuamos em conflitos familiares envolvendo pessoas hipossuficientes e em situação de vulnerabili-dade, como nos casos de violência doméstica. A autora Elisa ainda teve experiência ao longo de um ano (2016-2017) trabalhando como estagiária remunerada no CIA/BH junto à Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.

Importa mencionar nossas vivências epistemológicas e do cotidiano profissional ao lei-tor para que possa verificar nosso ponto de partida na facilitação do caso, como traçamos o mapeamento do conflito e erigimos nossas percepções. Este capítulo é resultado de pes-quisa-ação no exercício da função de facilitadora e, portanto, esclarecer o nosso lugar de fala é essencial para o rigor metodológico de objetividade no trabalho de campo.

Apesar dessa pesquisa não se tratar de uma etnografia, nos atemos aqui às contribui-ções que o campo da antropologia nos dá em razão desta prática.

Igual as pesquisas etnográficas, nossa pesquisa-ação pauta-se de uma abordagem es-pecial na compreensão da situação humana (AGAR, 1996, p.12) e na qual “embora as suas fontes sejam, sem dúvida, facilmente acessíveis, elas são também altamente dú-bias e complexas; não estão materializadas em documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento e na memória dos homens vivos”, como bem explicita Malinovski acerca da etnografia em sua clássica obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1976, p.19 [1922]).

Diferentemente dos etnógrafos, enquanto facilitadoras não vivenciamos o cotidia-no do grupo com o qual atuamos. Não trabalhamos com eles; não comemos com eles; não relaxamos com eles (AGAR, 1996, p.6). Todavia, tal qual esses pesquisadores, esperamos compreender as pessoas envolvidas nos casos ao mesmo tempo em que pessoalmente lutamos contra as interferências do nosso próprio jeito de pensar, de agir julgadores do mundo.

Em razão dessas semelhanças, esta pesquisa observou as normas do Código de Ética do Antropólogo e da Antropóloga da Associação Brasileira de Antropologia. Ressaltamos o compromisso com o dever de não prejudicar as pessoas envolvidas no caso e com a confidencialidade - motivo pelo qual todos os nomes relatados são fictícios.

EXORTANDO O PRÓXIMO

Elisa Barroso Fernandes Tamantini | Rafaella Rodrigues Malta

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Esclarecemos que a escolha do caso em questão deu-se pelo fato de ser um caso com-plexo que traz violência de gênero, medicalização e religiosidade e porque ao longo do procedimento nos sentirmos pesarosas pela falta de interesse de alguns envolvidos no conflito.

Com isso, passamos a nos indagar: o que seria êxito no procedimento restaurativo? Seria possível tê-lo mesmo quando o ‘ofensor’ não demonstra interesse em permanecer no procedimento? Em que grau?

A partir da análise do Caso Mórmon, ainda em fase de atendimento por nós, obje-tivamos expor neste texto uma compreensão acerca do êxito e das potencialidades da prática restaurativa, enquanto transformação. Para tanto, utiliza-se como marco teórico a definição proposta por Lederach (2012, p. 35) de que a

Transformação dos conflitos é visualizar e reagir às enchentes e vazantes do conflito social como oportunidades vivificantes de criar processos de mu-dança construtivos, que reduzam a violência e aumentem a justiça nas in-terações diretas e nas estruturas sociais, e que respondam aos problemas da vida real dos relacionamentos humanos.

2. O CASO MÓRMON

O Caso foi encaminhado ao Ciranda pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação Especial – SAASE no dia 18/07/2017 em razão do adolescente Carlos ter agre-dido fisicamente sua mãe Patrícia em 16/07/2017. Constavam dos documentos de en-caminhamento a cópia do termo de audiência preliminar, em que o Ministério Público propôs a suspensão do feito e o encaminhamento do adolescente e de seu responsável legal a um dos núcleos de Ciclo Restaurativo; a Certidão de Antecedentes Infracionais - CAI de Carlos, na qual havia anotação de um episódio anterior, de 05/10/2016, em que foi concedida remissão extintiva ao jovem; e um relatório do caso elaborado pelo SAASE após o atendimento da vítima e do ofensor.

Carlos tem 16 anos, reside com os pais, Patrícia e Alexandre, e o irmão caçula, Alexandre, em um bairro da regional norte da capital mineira. Carlos estuda o primei-ro ano do Ensino Médio em uma escola da rede estadual de Belo Horizonte no turno

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da manhã e trabalha como jovem aprendiz na Associação Profissionalizante do Menor - Assprom no turno da tarde. O pai do jovem é afastado pelo INSS desde que sofreu um acidente o que deixou sequelas em sua coluna, mas trabalha eventualmente como mo-torista da empresa Uber, alugando carro, para complementar a renda familiar; a mãe é recém formada em Direito, almeja estudar para o concurso de delegada e trabalha for-malmente como homologadora no sindicato dos radialistas.

Os pais e o irmão do adolescente são mórmons, mas Carlos deixou essa religião aos 14 anos, pois, segundo ele, começou a “estudar geografia e história” e a partir disso questionar alguns dogmas, tendo concluído que “Deus não existe”. Inicialmente, a recu-sa do jovem de ir à igreja gerou alguns conflitos no âmbito familiar, mas no momento em que o caso chegou até nós, os pais já diziam aceitar a vontade de Carlos de não mais frequentar a igreja.

No dia dos fatos que levaram a família ao CIA, Carlos se envolveu em uma discussão com seus pais devido à exigência que eles fizeram ao jovem de que ele formalizasse seu namoro com Bruna, 16 anos, perante os sogros. Patrícia, relatou que ouviu de outras pessoas que Carlos estaria tendo relações sexuais sem proteção com Bruna e que tinha medo de que uma gravidez pudesse acontecer.

Por isso, Patrícia e Alexandre deram um prazo para que Carlos contasse aos pais de Bruna sobre o namoro, mas como Carlos não cumpriu o prazo, pois, segundo ele, a jovem pediu que ele esperasse um momento mais oportuno, seus pais foram até a casa da adolescente. Embora Patrícia e Alexandre não tenham conseguido conversar com os pais de Bruna, pois eles não estavam em casa, Carlos ficou irritado com a situação e disse que “perdeu o controle, saiu de si”, tendo agredido sua mãe e tentado enforcá-la.

A família relata que esse episódio não foi um acontecimento isolado, pois as agressões físicas e verbais são frequentes entre Carlos e seus pais. Ressalta-se que quando Carlos era criança, presenciou por diversas vezes episódios de agressões entre seus pais, espe-cialmente do seu pai contra sua mãe. Patrícia narrou que foi vítima de violência domés-tica por muitos anos e há algum tempo ela e o marido conseguiram “estabelecer uma harmonia no casamento”, não havendo mais agressões entre eles, mas que Carlos “está trazendo tudo à tona, tirando as coisas da ordem”.

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Patrícia e Alexandre fazem uso regular de antidepressivo há dez anos, pois, segun-do eles, ambos têm depressão profunda. Alexandre faz uso ainda de medicamento an-tipsicótico (Risperidona), para controle da raiva. Logo após o episódio do dia 16/07, Carlos passou a tomar também antipsicótico (Risperidona) e um ansiolítico para aca-bar com a dependência por nicotina. Ao longo dos atendimentos, o adolescente foi diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDH) e iniciou o uso de Ritalina.

Para a mãe, Carlos de certa forma reflete o que viu na infância, de modo que ela tem “vivenciado as mesmas agressões”, o que a faz sentir-se desrespeitada. Ela se queixa que “queria uma vida normal”, mas que o adolescente não permite isso, pois ele “provoca as pessoas, trata os outros de modo desrespeitoso, quando fala, por exemplo, que essa família é uma bosta”.

Carlos se queixa das cobranças da mãe em relação aos caminhos que ele deve seguir em sua vida, dizendo que “ela deposita os sonhos dela em mim”. Ele relatou ainda que seus pais “acham que são Deuses e se intrometem” na sua vida, de modo que ele acaba “perdendo o controle”.

Ao longo dos atendimentos, Carlos mudou-se da casa dos pais, passando a morar em um quarto alugado, em um bairro próximo, cujas despesas são todas pagas pelo próprio adolescente com salário de jovem aprendiz. Anteriormente, o adolescente ficou algu-mas semanas na casa de sua tia Cíntia, irmã de Patrícia. Para os pais, a saída de casa foi tida como a melhor opção, pois “uma hora alguém iria morrer”, tendo em vista que os conflitos eram diários e envolviam muita violência física.

3. A CONDUÇÃO EM PROCESSOS CIRCULARES

Após encaminhamento do caso pelo Setor de Atendimento ao Adolescente em Situação Especial - SAASE no dia 18/07/2017, houve três tentativas de realização do primeiro atendimento, nas quais os agendamentos frustrados. No dia 26/07/2017, o atendimento não foi realizado por esquecimento; em 28/07/2017, a família não compareceu, nem se justificou; em 09/08/2017, a genitora ligou cancelando o atendimento.

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No dia 12/08/2017, foram realizados os primeiros pré-círculos individuais de Carlos e de sua mãe, Patrícia, mesmo assim somente depois ligarmos para a mãe e aguardamos cerca de 1h após o horário marcado para iniciar o procedimento.

Não houve divergências na narrativa de ambos ao caracterizar a agressão objeto do processo no CIA/BH. Nesse primeiro encontro, filho e mãe ratificaram o interesse em participar do procedimento restaurativo.

Desde o início do procedimento até a presente data - 25/09/2017 - foram realizados 6 (seis) pré-círculos: 3 (três) sessões com o adolescente; 2 (duas) sessões com a genitora; 1 (uma) sessão com o pai do adolescente (apoiador).

A duração média de cada atendimento individual foi de 1h10min.

Prezando pela participação ativa dos diversos atores envolvidos no conflito junto aos apoiadores (familiares, membros da comunidade, operadores do direito, agentes do Estado), o Ciranda, desde a sua constituição, adota como diretriz a utilização priori-tária da prática de processos circulares (PRANIS, 2010) enquanto instrumento apto a efetivação plenamente da Justiça Restaurativa (ZEHR, 2015, p.70).

Desse modo, no procedimento de pré-círculo, a fim de realizar o mapeamento do conflito e preparar os participantes interessados para o círculo, utilizamos Guia do Facilitador de Kay Pranis (2011, p. 12) e questionamentos semi-estruturados propos-tos por Terry O’Connell, Ben Wachtel e Ted Wachtel (2010) para sessões individuais da metodologia de reuniões restaurativas combinados com as reflexões propostas pela Comunicação Não-Violenta (ROSEMBERG, 2006).

Ainda não foi possível marcar círculo no caso em razão de diversas faltas (justificadas e injustificadas) e da dificuldade de agendamento de pré-círculo com alguns apoiadores identificados, como demonstra o quadro a seguir.

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Quadro 1 – Linha do tempo da prática restaurativa no Caso Mórmon, 2017

1º pré-círculo(adolescente e mãe)

12/08

2º pré-círculo(adolescente)

16/08

2º pré-círculo(mãe) e

1º pré-círculo(pai) 25/08

3º pré-círculo(adolescente)

13/09

1º pré-círculo(irmão)

previsto 26/09

círculoprevisto05/10

Agressãoem 16/07

AudiênciaPreliminar 17/07 eEncaminhamento

SAASE 18/07

Inícios prazo desuspensãoprocessual

(30 dias) 12/08 Prorrogaçãoprazo de

suspensãoprocessual

Fim prazo desuspensãoprocessual

11/10

Atendimentosfrustrados em26/07; 28/07;

Cancelamentoinjustificado

(avô)

Faltasinjustificadas

(adolescente) em05/09 e 11/09;

justificadas(adolescente)

08/09

Há, não obstante, previsões de que essas sessões ocorram, respeitando o limite do prazo estabelecido no art. 2º, item 7, do Protocolo de Cooperação Interinstitucional no Âmbito do Sistema de Atendimento Socioeducativo de Belo Horizonte3.

3 “Art. 2º - Estabelecer um fluxo de encaminhamento de casos do sistema de atendimento socioeducativo para atendimento em práticas restaurativas, nos termos abaixo descritos:

[...] 7 - O processo ficará suspenso pelo prazo inicial de 30 dias, para que a instituição envie à Vara de

Atos Infracionais da Infância e Juventude um relatório sobre a possibilidade de realização de práticas restaurativas, podendo ser prorrogado, conforme a necessidade, por mais 30 dias, quando o relatório de finalização do atendimento deve ser enviado.

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Ressaltamos que a suspensão processual não prejudica realização de encaminhamento em rede, para medida protetiva ao adolescente e apoio aos seus genitores. Vislumbrando a necessidade ao longo do procedimento, cabe às facilitadoras indicá-lo.

Quanto à preparação do círculo, pretendemos aplicar o Círculo de Conexões Familiares (BOYES-WATSON, PRANIS, 2011, p.188-190), pois o seu objetivo é “fortalecer respei-to e compreensão entre os membros da família e aumentar a conscientização do nível de cuidado de uns pelos outros.”. Harmonizando com este propósito, pensamos em um artefato de decoração de pinguins que tem mecanismo de acoplagem semelhante a de uma matrioska.

A eleição do pinguim como objeto de fala nesse caso dá-se justamente pela simbolo-gia e pelo modo de vida desses animais. Eles são companheiros entre si: o casal se re-veza nas tarefas de caça e cuidado com ovos e filhotes e frequentemente se aglomeram para conservar o calor e fazem rotação de posições para que cada pinguim do grupo disponha de um tempo no centro do bolsão de calor.

Toda essas escolhas estão estritamente ligadas ao mapeamento do conflito, que nos indica o procedimento a partir da compreensão dos pontos sobressalentes de cada caso.

4. PERCEPÇÕES DO CONFLITO: O MAPEAMENTO

O mapeamento desse conflito circundou a questão do controle, que percebemos ser cru-cial para o caso, tanto no sentido do autocontrole como no sentido do controle do outro.

Inicialmente, a medicalização apontou como a forma mais latente de controle que se impunha sobre os membros daquela família. No primeiro atendimento, que ocorreu em um sábado de manhã, notamos que Carlos chegou ao encontro aparentemente do-pado, demonstrando muita lentidão na fala, com andar rastejante, olhar vagaroso e fala confusa em alguns momentos. Já no segundo encontro realizado com o adolescente, em um dia útil, às 19 horas, seu olhar era mais vivo, não lhe faltaram palavras durante a conversa e seu tom de voz estava mais alto e forte.

Para Patrícia, a medicalização de Carlos era como um destino certo, tendo em vista que ela e o marido enfrentam um quadro de depressão há 10 anos. Assim, consideramos

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importante questionar a essa família o que eles estavam fazendo além do consumo de remédios, para lidar com o mal-estar. Patrícia respondeu que nada, justificando-se em razão da falta de recursos financeiros para atividades de lazer, mas lembrou que no iní-cio do casamento fazia aulas de muay thai e gostava muito.

Como facilitadoras, consideramos que para continuidade do procedimento restau-rativo seria crucial encaminhar a família para atendimento psicológico, desejo que eles mesmos expressaram. A partir disso, o Projeto Ciranda estabeleceu um encaminha-mento de rede para o Programa Já É, membro do Núcleo PSILACS (Psicanálise e Laço Social Contemporâneo) da UFMG, coordenado pela Professora Dra. Andréa Máres Campos Guerra, que atua por meio do SPA (Serviço de Psicologia Aplicada da UFMG).

Assim, o Já É, que atua com adolescentes no sistema socioeducativo, prestará atendi-mento clínico individual ao adolescente e, ainda, atendimento conjunto aos genitores, tendo sido requerido em juízo a homologação desse encaminhamento como forma de medida protetiva, nos termos do artigo 101, IV do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Notamos também que Carlos é um adolescente bem articulado que passa por um processo de autodescoberta, de ressignificações, de modo que busca novos códigos mo-rais. Relatou que enquanto ainda era da igreja, ele sabia o que seria da sua vida (“eu faria seminário, namoraria uma menina da igreja, casaria e teria uma vida feliz”), mas que hoje ele perdeu seu “modelo de felicidade”, por isso diz que tem que “reaprender a ser filho, irmão”.

O adolescente demonstra necessidade de autodeterminação, de independência, natu-ral para a idade, porém aguçada pela sensação de controle que ele relata derivar da rela-ção com os pais. A queixa de Carlos permeia ainda o fato de que a casa onde habita sua família não tem nenhuma porta, sequer no banheiro, o que priva os membros daquele lar de qualquer privacidade.

Como facilitadoras, notamos que a saída de Carlos de casa acabou levando à perda de interesse dele em relação ao procedimento restaurativo, ao mesmo tempo em que sus-citou novos sentimentos e necessidades nesse jovem. Conforme ele nos disse nos dois primeiros encontros, ele não vislumbrava nenhuma outra medida tão necessária quan-to o afastamento do lar, indicando que tinha interesse e que estava à procura de lugares para morar sozinho ou com sua namorada, Bruna.

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No entanto, ao efetivamente sair de casa, Calos insinuou diversas vezes no nosso terceiro encontro que foi rejeitado pela família (“minha mãe me abandonou”) e que se sente irritado quando Patrícia liga para ele dizendo que sente sua falta e que gostaria que ele voltasse a morar com ela, “mas fala ao mesmo tempo que a casa está uma paz sem mim”.

Tal como demonstrado anteriormente no quadro 1, Carlos deixou de comparecer por 3 vezes aos encontros agendados e, quando finalmente foi, estava mais sério, retraído, cabisbaixo e pouco à vontade. Permaneceu com a mochila nas costas durante quase todo o atendimento, somente retirando-a quando se levantou para atender uma ligação no meio do atendimento.

Notamos que o jovem oscila entre momentos de desejo de conciliação com seus pais, em que demonstra necessidade de acolhimento, e momentos de repulsa por qualquer aproximação, tendo nos dito em seu último atendimento conosco que não tinha mais interesse em reconciliar-se com sua família, pois “não adiantava ela (referindo-se a sua mãe) tentar resolver agora que o estrago já está feito” (sic). Percebemos que Carlos pas-sa por um momento peculiar de descobertas do novo, do real do sexo, da independên-cia e que o processo de análise, a ser realizado através do Programa Já É, pode auxiliá-lo muito nessa busca por significações.

No entanto, tendo em vista a recusa do jovem em continuar o procedimento restau-rativo, optamos por dar continuidade com os outros membros familiares, incluindo a comunidade de apoio que nos foi indicada. Patrícia havia mencionado grande interesse no procedimento restaurativo e sugeriu que seu pai, que também se chama Carlos, fosse incluído, pois “ele quer me ajudar nessa situação”. Além disso, tanto Alexandre quanto Patrícia autorizaram e inclusive sugeriram que o filho caçula, Alexandre, fosse também ouvido. Cumpre pontuar que, ainda que a religião seja um “guia” para esse casal de pais, eles não indicaram ninguém da comunidade religiosa para compor o procedimento.

Seguindo os entendimentos de ZHER (2015, p.70), consideramos ser possível realizar o Círculo como uma prática parcialmente restaurativa, já que se voltaria de certo modo para a assistência da vítima, criando um ambiente de conforto e apoio para que ela pos-sa se sentir segura para expressar o que precisa para tornar a situação melhor.

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Notamos que a genitora traz um sentimento de raiva ao se reportar ao filho, o que se mescla com uma clara preocupação acerca das escolhas futuras dele. Patrícia demonstra o desejo por “uma vida normal”, indicando que seu filho é um obstáculo ao gozo desse desejo, pois para ela Carlos é “um animal”, que “quer infernizar; desestruturar; tirar as coisas da ordem, provocar”. Ainda, percebemos que ela tende a se desresponsabilizar pelos conflitos que ocorrem no âmbito doméstico, alegando que tudo deriva de confli-tos entre Carlos e o pai Alexandre.

Em atendimento com o genitor, Alexandre diz sentir decepção diante do fato do filho ter optado por escolhas que são reprováveis perante os códigos mórmons, e que Carlos está “se perdendo nesse mundo”, ao que exemplificou com o fato do jovem usar drogas, fazer sexo antes do casamento e proferir xingamentos para os pais. Alexandre, queren-do contar que repreende o adolescente quando ele chama a mãe de vagabunda na frente do irmão caçula, expressou-se assim: “minha função é exortar ele, pois minha casa é de família”. A palavra exortar, que nomeia este capítulo, porém, significa incentivar, acon-selhar, chamar de lado4 e no contexto em que surge essa fala, o pai relata momentos em que na intenção de conter o adolescente, o agredia fisicamente.

Para entender melhor o epicentro do conflito (LEDERACH, 2012, p. 61-62) narra-mos aqui um episódio de crise que ocorreu ao longo do procedimento restaurativo.

Logo no segundo atendimento realizado com o adolescente, quatro dias após o pri-meiro encontro com a família, Carlos apresentava alguns cortes no rosto e nas mãos e nos relatou um episódio que tinha ocorrido em sua casa no dia 14/08/2017. Nas pala-vras de Carlos: “meu pai tentou me matar”.

Enquanto facilitadora ficamos extremamente preocupadas com a integridade física e psicológica do adolescente e de seus familiares. Havia pouco tempo que tínhamos atendido a família e em todos os demais casos de conflitos intrafamiliares que atuamos, após o início do procedimento, ainda que permanecessem as agressões verbais, pelo menos as físicas não eram mais relatadas.

4 O verbo exortar, utilizado biblicamente, corresponde à palavra grega ‘parakaleo’, cuja etimologia corresponde para, ‘ao lado’ e kaleo, ‘chamar’.

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Explicou o jovem que o conflito se teve origem quando Patrícia mexeu na mochila de Carlos, sem a sua autorização, e encontrou tabaco, que acreditou ser com maconha. Iniciada as agressões verbais entre mãe e filho, este começou a intimidá-la corporalmen-te. Alexandre, vendo essa situação, se apossou de um facão. Conforme Carlos narrou, ele estava se dirigindo à saída da casa, quando viu que seu pai tinha a arma em mãos, logo pensou que este iria lhe matar e que deveria, então, desarmá-lo. Ao tentar fazê-lo, o jovem acabou se ferindo.

Lado outro, o pai relata que sentiu receio do que o filho fosse capaz e que necessitava defender sua família. Havia pegado o facão para se resguardar, tendo em vista a sua de-bilidade física devido ao acidente que lhe acarretou a inserção de quatro pinos na coluna. Relatou que quando Carlos foi ao embate mesmo ele estando de posse da arma, pensou que o filho é que queria matá-lo; tirar-lhe a arma para com ela matá-lo. Nessa luta, Alexandre admite ter desferido golpes contra seu filho. Demonstrou-se aflito e preocupado sobre ter machucado seu filho dizendo “a sorte foi que pegou na mochila do Carlos”.

No embate, o facão caiu no chão, e Alexandre conseguiu imobilizar Carlos. O adoles-cente narra que o pai, ainda, teria falado ao filho caçula, ‘Alezinho’ - que presenciou toda a cena - para pegar o facão, entregá-lo a ele, pois ele disse que iria esquartejar Carlos.

Alexandre, ainda, nos mostrou no dia do atendimento, levantando a camisa as mar-cas das mordidas de Carlos feitas quando este tentava se desvencilhar do pai. O geni-tor contou que nesse momento, enquanto Carlos estava no chão sendo imobilizado, Patrícia chutou e deu socos no filho. Segundo o pai, “na hora da raiva ela solta as coisas”.

Nesse dia a família optou por não chamar a polícia.

Montando um mosaico de narrativas desse episódio, percebe-se o quanto a violência e animosidade pode ser insuflada em razão do ponto a partir do qual se tem em mente uma história. Para a mãe a história começa quando encontra ‘maconha’ na mochila do filho; para o pai, quanto vê o filho intimidando agressivamente a esposa; para o ado-lescente, quando a mãe resolve mexer na sua mochila, sem a sua autorização, mesmo depois dele já ter pedido diversas vezes para ela não fazer isso.

Por este motivo, trabalhar a corresponsabilização ativa pelas ofensas nesses episódios é algo complexo e difícil. No caso questão, em razão da tamanha animosidade entre

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os envolvidos e dos conflitos serem cotidianos e estarem carregados de uma histori-cidade, inclusive no seu aspecto relacional, é que, sob orientação da supervisão psica-nalítica de nossa facilitação, encaminhamos os envolvidos para atendimento clínico, pois no momento nem todos teriam condições psicológicas de avocar sua parcela de responsabilidade.

Em vista de tudo isso, para escolher o Círculo de Conexões Familiares (BOYES-WATSON, PRANIS, 2011, p.188-190), mencionado anteriormente, pontuamos a neces-sidade de fortalecer o apoio entre os membros dessa família, considerando que parale-lamente eles estarão recebendo o atendimento clínico para lidar com os sentimentos de ódio e raiva. Ademais, tendo em vista a participação de Alexandre, de apenas 11 anos, optamos por um círculo compreensível para crianças e que democratizasse o acesso a todos os interessados na família enquanto sujeitos. Frisamos, contudo, a importância de um pré-círculo individual, lúdico e apropriado para a idade.

Zelar pela condução da facilitação, resguardando o potencial restaurativo do proce-dimento, implica necessariamente em conhecer o conflito. Não só olhar para a situação imediata, mas também enxergar os padrões subjacentes e contexto, atentando-se às suas conexões na arquitetura do conflito (LEDERACH, 2012, p.19-25). E é no mapeamento (SÓLER, 2014, p.15), feito majoritariamente ao longo dos pré-círculos, que consegui-mos conhecer os sujeitos do conflito; seus interesses, objetivos, necessidades, sentimen-tos, identificações, diferenciações, referenciais, convicções; como funciona a dinâmica do poder, as relações pessoais e estruturais e as possibilidades de coalizões.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sempre que trabalhamos no socioeducativo é importante nos apoiar na rede que com-põe o sistema de proteção e de garantia dos direitos das(dos) jovens que atendemos. O Projeto Ciranda, como membro da rede, não só tem a função de fortalecê-la como tam-bém de ampliá-la, quando houver a necessidade e a possibilidade de assim fazer. No caso do adolescente Carlos, o encaminhamento do jovem e de seus pais para atendimento psicológico significou um ganho para a estrutura socioeducativa, permitindo inclusive o desafogamento dos Centros de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS).

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Além disso, por meio dessa parceria intraUFMG, realizada entre o Projeto Ciranda de Justiça Restaurativa, do Direito, e o Projeto Já É, da Psicologia, é possível trabalhar paralelamente o procedimento restaurativo e o atendimento psicológico das partes, que é a base para nossa atuação nesse conflito.

Outro ponto interessante que este caso suscita é a dificuldade de mantermos o comprometimento com o procedimento por parte do jovem. Uma forma de incluir o adolescente no processo é reforçar, a todo tempo, que na Justiça Restaurativa o proce-dimento, e, por conseguinte, um eventual acordo, não é imposto, é construído com as partes, a partir da manifestação de voluntariedade.

Assim, quando Carlos deixou de demonstrar interesse no procedimento, buscamos compreender as causas de uma mudança de postura tão significativa entre o segun-do encontro, no qual o jovem manifestou desejo de prosseguir, e o terceiro encontro, momento em que o adolescente, após sucessivas faltas, disse não ter mais interesse em continuar. A partir disso, é sempre importante ter em mente que o tempo da adoles-cência é um tempo mais veloz, e que para que haja responsabilização efetiva é essen-cial aproveitar a oportunidade e o momento certo, não distanciando o ato da efetiva responsabilização.

O tempo da vida não é - e nem deve ser - o tempo do processo, de modo que cabe a nós compreender e respeitar sempre que uma das partes deixa de expressar a voluntarieda-de. Mas mesmo que o interesse em participar do círculo restaurativo se perca, é válido se atentar para quais os ganhos foram possíveis durante a participação daquela parte.

No caso, consideramos que Carlos demonstrou uma boa percepção do conflito e teve compreensão da importância que seria se afastar do ambiente familiar momentanea-mente, de modo a evitar maiores conflitos. Além disso, o adolescente foi receptivo ao convite de encaminhamento ao Programa Já É, dizendo que seria interessante “dar uma chance à psicanálise”, o que permite que ele faça uma ressignificação desse conflito.

Ainda, a decisão por manter o procedimento restaurativo, com a realização do Círculo de Conexões Familiares, mesmo sem a presença do ‘ofensor’, se pauta na percepção de que os processos circulares permitem que voltemos nosso olhar para as necessidades da ‘vítima’. Patrícia, após ter sido vítima de tantas violações, quer “ter harmonia” e expressa

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uma necessidade de autodeterminação, de tranquilidade, de ver a família bem e de re-conhecimento pelas mudanças que ela quer construir para si e para seus filhos.

Realizando um círculo que inclua Patrícia, seu marido, seu filho caçula e seu pai, esperamos fortalecer o respeito e aumentar a conscientização do nível de cuidado de uns pelos outros, permitindo que essa compreensão se reflita na relação dos pais com Carlos. A criação de um ambiente de conforto e apoio no núcleo familiar é essencial para atender também à necessidade de acolhimento e segurança desse adolescente.

Assim, acreditamos que o êxito no procedimento restaurativo está em ver algum grau transformativo do conflito, permitindo a essas partes visualizar nos conflitos oportuni-dades de criar processos de troca construtiva, que reduzam a violência. Assim, mesmo quando o ‘ofensor’ não demonstra interesse em permanecer no procedimento é possí-vel alcançar um procedimento que seja parcialmente ou majoritariamente restaurativo, especialmente considerando os encaminhamentos em rede feitos no presente caso.

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