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JUSTIÇA INTERNACIONAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO CONTINENTE AFRICANO – CASO HABRÉ
Karla Patrícia Narciso Severo*
Paula Lima Rocha*
RESUMO: O histórico de violações aos direitos humanos no continente africano tem-
se traduzido em uma preocupação global com o problema. Um caso em que se refletem
as aflições internas e internacionais com a questão é o relacionado ao ex-ditador
chadiano Hissène Habré. Ele é acusado da prática de crimes contra a humanidade, de
genocídio e tortura. As vítimas de Habré convivem com 21 anos de impunidade, sem
que nenhuma solução seja efetivamente dada. Esse emblemático caso reacende as
discussões acerca do papel da justiça internacional e sua efetividade na África.
Palavras – chave: Direitos Humanos. Justiça Internacional. Caso Habré.
ABSTRACT: The historical violations of human rights on the African continent have
been translated as a global worry with the problem. A case that reveals the internals and
internationals concerns with the subject is the one related to the Chadian ex-dictator
Hissène Habré. He is accused of crimes against humanity, genocide and torture. The
victims of Habré live with 21 years of impunity, without any effective solution to it.
This emblematic case rekindled discussions about the role of international justice and its
effectiveness in Africa.
Keywords: Human Rights. International Justice. Habré Case.
* Graduandas em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e pesquisadoras do
Núcleo de Estudos Internacionais (NEI). Orientadora: Elizabeth Alecrim Soares Coelho.
Mestre em Direito Constitucional e professora do curso de Direito da Unifor.
1. INTRODUÇÃO
O ex-ditador do Chade, Hissène Habré, governou o país de 1982 a 1990 e tem
sido acusado de violações aos direitos humanos durante esse período. No entanto, a
comunidade internacional ainda não chegou a um consenso quanto à melhor alternativa
para julgá-lo.
O caso traz ao foco das discussões internacionais a questão do cumprimento dos
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, como forma de combater
a impunidade aos crimes contra a humanidade, crimes de genocídio e tortura.
Além disso, reitera a afirmação, tão presente na mídia globalizada, de que
existem ainda inúmeras violações aos direitos humanos no continente africano que
continuam sem a devida atenção de seus governantes.
Isso reflete um sistema de proteção de direitos ainda falho, que demanda
medidas a serem tomadas em caráter de urgência para que os direitos referentes à
dignidade da pessoa humana possam ser devidamente respeitados no continente.
A falta de credibilidade dos instrumentos já adotados no sistema africano de
proteção aos direitos humanos faz com que vários países ainda não reconheçam a sua
jurisdição para levar os conflitos até estes e obter uma resposta justa.
A justificativa para a elaboração desse trabalho está em ser o referido tema
recente, com pouca literatura sobre o caso, sendo de extrema importância que se
estudem a fundo os casos envolvendo violações aos direitos humanos no continente
africano e, ainda, o seu sistema de proteção a esses direitos para que realmente seja
cumprido o fim para o qual foi criado.
Tem-se, então, como objetivo geral analisar o caso Habré à luz dos direitos
humanos e as possibilidades que convém para o julgamento do caso, procurando ainda
estudar os meios de proteção aos direitos humanos no continente africano, a fim de
efetivar a justiça internacional na região.
Em relação aos aspectos metodológicos, as questões foram investigadas através
da pesquisa bibliográfica e documental por meio de livros referentes ao assunto, sites de
ONGs e reportagens abordando o caso.
Nas secções, inicialmente, aborda-se os direitos humanos e suas normas
aplicadas ao sistema africano, fazendo referência às experiências passadas, em que
realmente a justiça internacional foi realizada. Posteriormente, insere-se o caso Habré
nesse âmbito, apontando possíveis soluções ao problema.
Por conseguinte, este trabalho trata de melhor expor as hipóteses de julgamento
do caso Habré, que concretizaria uma experiência de justiça internacional na região e,
consequentemente, fortaleceria o sistema africano de proteção aos direitos humanos.
2. JUSTIÇA INTERNACIONAL E DIREITOS HUMANOS
A justiça internacional é um meio de se garantir direitos comuns a todos os seres
humanos, que, por não se restringirem a um só povo, demandam um órgão desvinculado
de qualquer Estado. Tais direitos nascem com o indivíduo não importa sua
nacionalidade, sua cultura, seus costumes, seus ideais ou sua religião. Defini-los é uma
tarefa que a filosofia do direito se atribui até hoje. Entretanto, as guerras, massacres,
torturas e quaisquer tipos de injustiças que a humanidade tem presenciado durante sua
curta existência, a despertaram para a necessidade de se garantir certos direitos
essenciais para uma existência digna.
Um dos grandes problemas da efetivação desses direitos é o princípio da
soberania estatal. Tradicionalmente, esse princípio aduz que o direito e dever de zelar
pela justiça em sua jurisdição advém precipuamente do próprio Estado em questão. No
entanto, em um mundo globalizado, onde há uma grande interfluência entre os Estados
e certas violações de direitos atingem não só uma determinada comunidade, mas toda a
humanidade, é necessária uma atualização do conceito de soberania.
A cooperação jurídica entre os Estados e sua submissão a organismos
internacionais torna-se, atualmente, necessária para garantir-se uma efetiva soberania,
pois nem sempre os Estados serão capazes de conduzir a justiça de maneira efetiva
dentro de seu território.
Portanto, um ato de cooperação que tradicionalmente poderia ser visto como
uma violação da soberania de Estados, hoje em dia, pode ser reconhecido como uma
forma de manutenção de um novo conceito de soberania, estabelecido pelas atuais
relações entre Estados. Assim, o direito e o dever de um Estado soberano na
manutenção de sua justiça estariam resguardados. (Departamento de Recuperação de
Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, 2008, p. 11)
É preciso, então, um instrumento que tenha poder sancionador e esteja acima das
barreiras levantadas pela soberania, atingindo indivíduos que violem os direitos
humanos. Dessa forma, vem se desenvolvendo uma justiça supranacional, no âmbito da
qual não se pode mais falar em soberania absoluta dos Estados, pois o que há hoje é
uma flexibilização dessas soberanias nacionais.
Ao reconhecer a jurisdição da justiça internacional, o Estado se submete às suas
normas, tornando flexível sua soberania por ato de vontade própria. Assim, caso entre
em desacordo com uma norma internacional não pode justificar-se com base em seu
direito interno, pois uma vez ratificadas, essas normas incorporam-se ao direito
nacional. Dessa forma, a eficácia da justiça internacional está intimamente ligada ao
fato de partir do Estado a iniciativa de se colocar sob a tutela jurídica internacional, o
que dá ao organismo internacional respaldo e legitimidade para julgar essas questões.
2.1. O Tribunal Penal Internacional
A preocupação internacional no que diz respeito aos direitos humanos tornou-se
mais freqüente no pós-Segunda Guerra Mundial. As atrocidades cometidas pelos
nazistas levaram o mundo a repensar as questões que envolvem os direitos humanos e a
responsabilização dos indivíduos que cometeram crimes de interesse global.
O tribunal de Nuremberg, instaurado em 1945 para julgar os crimes cometidos
ao longo do regime nazista, trouxe avanços para o processo de justicialização dos
direitos humanos, tais como, segundo Flávia Piovesan (2011, p. 70), a consolidação da
idéia da necessária limitação da soberania nacional e o reconhecimento de que os
indivíduos têm personalidade jurídica na esfera internacional, contraindo direitos e
obrigações.
Outras experiências tais como os Tribunais ad hoc para a ex-Iugoslávia e para
Ruanda, também contribuíram para esse processo. Esses Tribunais, criados por
resolução do Conselho de Segurança da ONU para julgar as violações ao Direito
Humanitário Internacional na antiga Iugoslávia e posteriormente em Ruanda, tiveram
efetividade em suas decisões, porém, não atenderam o clamor por justiça em sua
plenitude, o que fortaleceu a idéia da criação de uma instituição internacional de justiça
permanente e com decisões de caráter sancionador e não somente de natureza
recomendatória.
As atividades de garantia dos direitos humanos só serão possíveis se uma
jurisdição internacional se sobrepuser às jurisdições domésticas, quando tais forem
insuficientes ou ineficazes. Nesse sentido, por garantia “entende-se a organização de
uma autêntica tutela jurisdicional de nível internacional, que substitua a nacional.”
(BOBBIO, 1992, p.40)
Assim, tendo em vista as experiências passadas e inserido no contexto do século
XX, em que a observação dos direitos humanos não é mais apenas uma benevolência
estatal perante os cidadãos, mas sim um aspecto que dá legitimidade ao ente
governamental, é que nasceu, em 1998, o Tribunal Penal Internacional, uma Corte
permanente, independente e autônoma, com jurisdição própria no âmbito internacional.
O Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma, “assenta-se
no primado da legalidade, mediante uma justiça preestabelecida, permanente e
independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a reconhecem, capaz de
assegurar direitos e combater a impunidade, especialmente a dos mais graves crimes
internacionais.” (PIOVESAN, 2011, p.79).
A jurisdição internacional pode ser acionada através de denúncia do próprio
Estado-parte ou do Conselho de Segurança à Promotoria, que pode também agir de
ofício. Depois a Promotoria avalia os requisitos de admissibilidade e, se visto que as
informações procedem, instaura o processo de investigação para apurar os fatos. Feito
isto e verificada a veracidade dos fundamentos, dar-se-á prosseguimento ao julgamento.
Entretanto, hoje, faz-se necessária uma democratização do acesso à justiça internacional
dando também ao indivíduo a capacidade de se manifestar sobre questões que interfiram
em seus direitos subjetivos.
A jurisdição do TPI é, porém, complementar à jurisdição dos Estados-partes,
“estando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno”
(PIOVESAN, 2011, p.80). Faz-se de extrema importância a complementaridade dos
sistemas internacional e nacional de proteção dos direitos humanos, pois de nada
adiantaria a prolatação de uma sentença na esfera internacional sem que haja a
receptividade adequada para que essa sentença seja efetivada no âmbito interno dos
Estados.
Quanto à convivência dos sistemas global e regional, relatório produzido pela
Commission to Study the Organization of Peace acentua: ‘Pode ser afirmado que o
sistema global e o sistema regional para a promoção e proteção dos direitos humanos
não são necessariamente incompatíveis; pelo contrário, são ambos úteis e
complementares. [...]’
É nesse sentido que surgem então os sistemas regionais de proteção aos direitos
humanos, com órgãos próprios para assegurar os direitos defendidos, tais como
Comitês, Comissões e Cortes.
“As Cortes detêm especial legitimidade e constituem um dos
instrumentos mais poderosos no sentido de persuadir os Estados a
cumprir obrigações concernentes aos direitos humanos.”
(PIOVESAN, 2011, p.64)
Segundo Flávia Piovesan (2011), no âmbito global, tem-se que a justicialização
operou-se na esfera penal, com a criação do Tribunal Penal Internacional e a
responsabilização internacional alcançando indivíduos, e no âmbito dos sistemas
regionais essa justicialização operou-se na esfera civil, com a responsabilização
internacional alcançando Estados.
No entanto, há uma grande insistência na criação de um Tribunal Internacional
de Direitos Humanos no âmbito da ONU, que alcançaria não só os indivíduos
violadores desses direitos, mas também responsabilizaria civilmente os Estados que o
fizerem, “uma vez que o sistema global se vê limitado à atuação dos Comitês, quem têm
capacidade de impor sanções morais e políticas aos Estados faltores, mas não sanções
jurídicas.” (PIOVESAN, 2011, p.93).
2.2. Histórico do Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos
Inicialmente, os direitos humanos não eram regulados nas leis internacionais
visto que estas apenas regulavam as relações entre Estados e não entre os Estados e seus
nacionais. Isso se dava pela crença que violações aos indivíduos não afetavam os
direitos de outros países.
No entanto, existiam algumas doutrinas e instituições que na época eram vistas
como exceções a essa teoria tradicional e que formaram a base do atual sistema
internacional de proteção aos direitos humanos, como a doutrina da intervenção
humanitária.
A doutrina da intervenção humanitária, que teve como um dos seus expoentes
Hugo Grotius, apesar de subjetivamente, reconhecia a possibilidade de se intervir em
um Estado, caso ele agisse contra os seus nacionais de forma a chocar a comunidade
internacional. Essa doutrina foi desenvolvida e incorporada por alguns sistemas atuais
como o africano:
[...] the Constitutive Act of the African Union, adopted July 11, 2000
(entry into force May 26, 2001), explicitly recognizes the right of the
Union to intervene in a member state pursuant to a decision of the
Assembly in respect of ‘grave circumstances, namely: war crimes,
genocide and crimes against humanity’. Constitutive Act of the
African Union, art. 4 (h). […] The establishment by the Security
Council of various ad hoc international tribunals […] to punish those
responsible for crimes against humanity, genocide and war crimes
committed in those regions may also be seen as a modern form of
collective humanitarian intervention in response to massive human
rights violations. […]. (BUERGENTHAL et al., 2009, p. 4 e p.6)1
No contexto pós-guerra, os direitos humanos tornaram-se uma legítima
preocupação internacional, havendo a necessidade de criação de um organismo que
assegurasse esses direitos. A reorganização das relações internacionais com base no
respeito incondicional à dignidade humana foi fruto da Carta das Nações Unidas.
A Carta das Nações Unidas ou Carta de São Francisco de 1945 estabeleceu a
Organização das Nações Unidas que é conhecida como o marco do surgimento de uma
nova ordem internacional, baseada na doutrina de que a soberania estatal não é um
princípio absoluto, devendo estar submetida e limitada pelos direitos humanos.
A Organização das Nações Unidas tem como um dos principais órgãos
subsidiários o Conselho Econômico e Social o qual pode, como estabelecido na Carta
das Nações Unidas em seu artigo 62, §2°, “fazer recomendações destinadas a promover
o respeito e a observância dos direitos humanos e liberdades fundamentais para todos”. 1[...]oAtoConstitutivodaUniãoAfricana,adotadaem11deJulhode2000(entrouemvigorem26deMaio de 2001), explicitamente, reconhece o direito da União de intervir em um Estado‐membro deacordo com uma decisão da Assembléia a respeito de ‘graves circunstâncias, nomeadas: crimes deguerra,genocídioecrimescontraahumanidade’.AtoConstitutivodaUniãoAfricana,art.4 (h). [...]OestabelecimentopeloConselhodeSegurançadeváriostribunaisinternacionaisadhoc[...]parapunirosresponsáveisporcrimescontraahumanidade,genocídioecrimesdeguerracometidosnessasregiões,tambémpodemservistoscomoumaformamodernadeintervençãohumanitáriacoletivaemrespostaamassivasviolaçõesaosdireitoshumanos.[...].
O Conselho Econômico e Social criou a Comissão de Direitos Humanos em
1946, em cumprimento com o disposto no artigo 68 da Carta das Nações Unidas, o qual
dita que ”o Conselho Econômico e Social criará comissões para os assuntos econômicos
e sociais e a proteção dos direitos humanos assim como outras comissões que forem
necessárias para o desempenho de suas funções”.
A Comissão de Direitos Humanos que, por sessenta anos, foi o cerne do sistema
de direitos humanos das Nações Unidas, possuía cinquenta e três membros
governamentais eleitos, para um mandato de três anos, pelo Conselho Econômico e
Social. Tinha como função designar especialistas e grupos de estudos para examinar,
monitorar e publicar relatórios concernentes a situação dos direitos humanos em
determinados países e territórios, ou ainda denunciar violações a esses direitos.
A Comissão de Direitos Humanos, ademais, também elaborava propostas e
recomendações relacionadas à proteção e promoção dos direitos humanos; muitos
desses documentos se oficializaram em Pactos, Convenções e inclusive na Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos veio complementar e interpretar
a Carta das Nações Unidas, definindo com precisão o rol de direitos humanos e
liberdades fundamentais mencionados na referida Carta. O ineditismo da declaração
consiste na conjunção de direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e
culturais, isto é, a fusão respectivamente do valor da liberdade com o valor da
igualdade, caracterizando a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem base no respeito à dignidade
humana e representa o surgimento da concepção contemporânea de direitos humanos.
Possui um caráter universal no qual a condição de pessoa é requisito único e exclusivo
para a titularidade de direitos.
Afirma Cassin (apud PIOVESAN, 2006, p.130):
[...] Declaração se caracteriza, primeiramente, por sua amplitude.
Compreende um conjunto de direitos e faculdades sem as quais um ser
humano não pode desenvolver sua personalidade física, moral e
intelectual. Sua segunda característica é a universalidade: é aplicável a
todas as pessoas de todos os países, raças, religiões e sexos, seja qual
for o regime político dos territórios nos quais incide. [...]
Todos os Estados membros das Nações Unidas estão vinculados à Declaração,
apesar dela não ter força de lei, devendo promover a observância e assegurar o respeito
universal e efetivo dos direitos proclamados por ela. “A Declaração se impõe como um
código de atuação e de conduta para os Estados integrantes da comunidade
internacional”. (PIOVESAN, 2006, p.140)
A Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 simbolizaram a internacionalização dos direitos humanos, situando o
indivíduo no centro das discussões internacionais, como membro direto da sociedade
humana.
A importância da Declaração se estende para o âmbito doméstico, na medida em
que os direitos nela previstos têm sido incorporados por Constituições nacionais,
influenciando na elaboração dessas Cartas.
Devido à repercussão da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um
debate foi suscitado em torno do universalismo dos direitos humanos que era criticado
pela corrente relativista a qual via na idéia de direito universal uma ameaça à
diversidade cultural existente. A Conferência de Viena de 1993 objetivou solucionar
esse debate, deixando claro que embora as particularidades de cada nação devam ser
respeitadas, os direitos humanos são universais e jamais podem ser violados usando
como justificativa a diversidade cultural.
Por ter sido adotada consensualmente pela comunidade internacional, a
declaração advinda da Conferência de Viena de 1993 teve grande significado para a
história da luta pela proteção dos direitos humanos. É necessário expor, porém, que uma
Conferência não faz parte dos órgãos principais da ONU, estabelecidos no Artigo 7° da
Carta de São Francisco, tendo poderes apenas a título de recomendação.
Em 2006, a Comissão de Direitos Humanos foi substituída pelo Conselho de
Direitos Humanos (CDH) através da resolução 60/251 da Assembléia Geral das Nações
Unidas. Diversas desavenças contribuíram para a gradativa perda de credibilidade e o
desgaste da Comissão.
No conturbado período que antecedeu essa reforma, as discussões se
intensificaram, tornando-se até mesmo ofensivas. No entanto, havia certo grau de
consentimento entre os países membros das Nações Unidas com relação à descrença na
efetividade das decisões da Comissão e, também, à necessidade de fortificar a máquina
institucional de proteção aos direitos humanos, criando um novo órgão de nível mais
elevado e com uma diferente composição.
Na resolução 60/251, ficou estabelecido o período de um ano para a elaboração
de um plano institucional para o CDH. Em 2007, um ano após a primeira reunião e
seguindo um intenso período de “construção-institucional”, foi aprovada a resolução 5/1
que determinava os “procedimentos, mecanismos e estruturas para formar as bases dos
seus trabalhos futuros”. (Office of the United Nations High Commissioner for Human
Rights, on line).
A criação do Conselho de Direitos Humanos, como órgão subsidiário da
Assembléia Geral, significou teoricamente uma elevação no grau de importância dado
pelos Estados membros das Nações Unidas aos direitos humanos. Essa mudança
enfatiza os direitos humanos como um dos três pilares essenciais da ONU, juntamente
com o desenvolvimento e a paz e segurança.
A Assembléia Geral, ao instituir um Conselho de Direitos Humanos, afirmou o
compromisso para:
[...] fortificar a máquina de proteção aos direitos humanos das Nações
Unidas, com o objetivo de assegurar o efetivo aproveitamento de
todos os direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, incluindo o direito ao desenvolvimento) por todos os
cidadãos globais. (Office of the United Nations High Commissioner
for Human Rights, on line).
O novo sistema adotado pelo CDH teve um número importante de inovações
relacionadas às eleições de seus membros, objetivando evitar as críticas sofridas pela
antiga Comissão. Essas transformações incluem entre outras: a eliminação do cargo de
membro permanente para incentivar a rotatividade; o requerimento que o candidato,
caso eleito, se comprometa a tomar iniciativas em prol da proteção dos direitos
humanos e a possibilidade de suspender os membros do Conselho por violação dos
direitos humanos.
O Conselho de Direitos Humanos, atualmente, é o principal corpo das Nações
Unidas responsável por garantir o respeito aos direitos humanos no âmbito
internacional.
3. DIREITOS HUMANOS NO CONTINENTE AFRICANO
O continente africano é marcado por inúmeras violações aos direitos humanos.
Vários países tais como o Chade, Ruanda, Burundi, Camarões, Darfur e República
Democrática do Congo demonstram situações alarmantes de indiferença para com os
direitos humanos.
O recente caso de Darfur, em 2004, chocou a comunidade internacional e
obrigou o Conselho de Segurança da ONU a se pronunciar sobre o caso. O governo de
Darfur foi acusado de promover uma “limpeza étnica” na região e de crimes contra a
humanidade. Como reporta o Human Rights Watch (2004, on line):
[...] as forças do governo sudanês têm supervisionado e diretamente
participado em massacres, execuções sumárias de civís, incêndios de
vilarejos e aldeias, e causado o despovoamento forçado de amplas
faixas de terra desde há muito habitadas pelos grupos étnicos Fur,
Masalit e Zaghawa.
Assim como esse, existem muitos outros casos de repercussão internacional que
fazem com que os olhares se voltem para o continente africano e percebam a
importância de se intervir nessas questões que balançam a ordem comum internacional.
Apesar de a maioria dos países africanos já ter aderido à Declaração Universal
dos Direitos Humanos, é de extrema necessidade a força imperativa dessas normas para
que haja a efetividade desses direitos no âmbito interno dos Estados.
3.1 Medidas de proteção aos direitos humanos no continente africano
Os direitos humanos na realidade do continente africano têm sua oficialidade
bastante recente. Enquanto a Europa e a América já têm seus sistemas de proteção aos
direitos humanos bem consolidados, com uma base solidificada de experiências, a
África está ainda montando sua estrutura para concretizar os direitos humanos em seus
países componentes.
A pressão internacional e interna fez com que a África se manifestasse sobre os
seus problemas e adotasse uma postura a favor dos direitos humanos, criando o seu
sistema de proteção aos direitos humanos, em 1981, com a Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos.
Entretanto, a visão e a finalidade do sistema africano de proteção aos direitos
humanos se distinguem dos demais sistemas, pois possui um teor de coletividade e
reflete a luta do povo africano por uma vida digna, pelo princípio da autodeterminação
dos povos, pelo combate ao colonialismo e pela busca por independência. Além disso,
soma-se ainda “a previsão não apenas de direitos civis e políticos, mas de direitos
econômicos, sociais e culturais.” (PIOVESAN, 2011, p.164).
Essa Carta prevê medidas de salvaguarda dos direitos e deveres nela elencados.
Em seu artigo 30, é previsto a criação de uma Comissão Africana de Direitos Humanos
e dos Povos, que encontra-se em exercício desde 1987, com sede na Gâmbia.
Porém, essa Comissão não teve o resultado esperado: porque, primeiro, suas
decisões não têm caráter vinculativo, sendo, pois, um órgão político e, segundo, por ser
um órgão meramente político, alguns de seus membros são providos de interesses
particulares ligados aos seus Estados. Isso faz com que a Comissão não tenha
credibilidade e, consequentemente, não tenha efetividade no fim para o qual foi criada.
Frente a essa situação e diante do apelo de várias ONGs, a Comissão Africana
dos Direitos Humanos e dos Povos adotou, em 1998, o Protocolo à Carta Africana, que
visava a criação de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos para dar
maior eficácia à própria finalidade protetora da Comissão.
A jurisdição da Corte pode ser provocada “pela Comissão Africana, por Estado
ou por organização intragovernamental africana” (PIOVESAN, 2011, p.173), e, no que
concerne aos indivíduos e às ONGs, estes só poderão provocar diretamente a Corte se
houver declaração expressa do país-membro permitindo.
A Corte é composta por 11 juízes, com independência em relação aos Estados, e
suas decisões são dotadas de caráter vinculador, fortalecendo, assim, os meios de
proteção dos direitos humanos no sistema africano.
Porém, “até março de 2010, dos 53 Estados partes da Carta Africana, apenas 24
Estados haviam ratificado o Protocolo.” (PIOVESAN, 2011, p.171)
Como prova dessa situação tem-se o fato de que a primeira vez em que operou,
em dezembro de 2009, no caso Yogogombaye versus Repúplica do Senegal, que
envolvia violação ao principio da irretroatividade da lei penal, a Corte declarou não ter
competência para julgar o caso, devido a não adesão do Senegal ao Protocolo, não
estando, assim, vinculado à sua jurisdição.
Esse evidente problema abre um longo caminho ainda a ser percorrido pelo
sistema africano para efetivar as normas de direitos humanos. É preciso garantir certos
requisitos que darão à Corte credibilidade e força para impor suas decisões, a fim de se
concretizar uma verdadeira jurisdição no sistema africano. Afirma Murray (apud
PIOVESAN, 2011, p.174) sobre as questões a serem perseguidas pelo sistema africano:
Primeiramente, é essencial garantir que os juízes indicados tenham
independência relativamente ao Estado, não sendo vulneráveis a pressões. Em segundo
lugar, [...] não está clara a interação entre a Corte e a Comissão. Considerações devem
ser feitas a respeito de como tal relação será desenvolvida a fim de assegurar sua
eficácia. [...] Em terceiro lugar, destaca-se que o sistema africano de direitos humanos
vem lutando constantemente em face da insuficiência de recursos por parte da
Organização da União Africana, agora União Africana. Em quarto lugar, o Protocolo
estabelece que a Corte proferirá decisões legalmente vinculantes. [...] Considerações
devem ser feitas para que existam procedimentos efetivos para garantir que qualquer
Estado que violar a Carta seja compelido a cumprir a decisão da Corte.
Muitas iniciativas ainda precisam ser tomadas para que o sistema africano possa
ter sua jurisdição amplamente reconhecida. Uma delas é a democratização do acesso à
sua jurisdição, visto que os indivíduos e as ONGs só o terão em caso de declaração
expressa do Estado ao qual pertencem. Destaca-se também
[...] o relevante papel das ONGs para a afirmação da
credibilidade da Corte, na medida em que podem contribuir para o
monitoramento da implementação das decisões da Corte Africana;
para a publicidade das decisões no âmbito dos Estados; e para a
utilização dos precedentes judiciais no âmbito interno. (PIOVESAN,
2011, p.175)
Concluindo, apesar do sistema africano de proteção aos direitos humanos ter se
iniciado e ser permeado de boas intenções, ele ainda é falho e permite inúmeras brechas
para que esses direitos, de suma importância, sejam violados. Assim, faz-se
urgentemente necessário que atitudes sejam tomadas para que a concretização desses
direitos inerentes aos seres humanos não tarde ainda mais, e para que as vítimas
africanas não percam suas esperanças na justiça.
4. JUSTIÇA INTERNACIONAL NO CONTINENTE AFRICANO
Com a criação do Tribunal Penal Internacional, em 1998, foi efetivado uma
jurisdição de caráter internacional. Com isso, sobrevieram casos e mais casos
denunciados diretamente ao Tribunal para que este julgasse com base na sua
competência.
Entretanto, 80% das mais de mil e setecentas denúncias oferecidas ao Tribunal
foram consideradas fora de sua jurisdição, em sua maioria por tratarem de países que
não ratificaram o Estatuto de Roma.
Mesmo assim, observa-se que no continente africano foram instaurados
processos contra alguns países, que resultaram em seus julgamentos e sentenças
proferidas, inclusive com mandado de prisão.
Segundo dados do Human Rights Watch, em 2004 foram instauradas duas
investigações: uma na República da Uganda, onde ataques sistemáticos e generalizados
eram perpetrados contra a população civil desde julho de 2002, e outra na República
Democrática do Congo, onde se investigou cerca de 5.000 a 8.000 assassinatos
ocorridos também na mesma época.
Em julho de 2005, o Tribunal Penal Internacional, após uma investigação que
durou cerca de um ano, expediu seu primeiro mandado de prisão, em face de Joseph
Kony, líder rebelde da resistência armada em Uganda (LRA – Lord’s Resistance Army),
Vincent Otti, o segundo em comando, e de três outros líderes desse grupo rebelde. Em
agosto de 2006 foi expedido mandado de prisão contra Bosco Ntaganda, líder da União
dos Patriotas Congoleses, acusado pela prática de crimes de guerra, envolvendo
alistamento, recrutamento e utilização de crianças menores de 15 anos em conflitos
armados entre 2002 e 2003 em Ituri.
Outro caso advém da República Centro Africana. Em maio de 2008, o Tribunal
Penal Internacional expede mais um mandado de prisão, dessa vez em face de Jean-
Pierre Bemba Gombô, ex-vice-presidente do Congo e líder do maior partido de
oposição do Congo. Gombô era o líder do Movimento pela Libertação do Congo
(MLC), cujas tropas, a convite do então presidente da República Centro Africana,
Ange-Félix Patassé, ajudaram na tentativa de suprimir um golpe de Estado em 2002. No
entanto, o golpe teve sucesso e seu líder, François Bozizé, tornou-se presidente. Em
dezembro de 2004, o novo presidente pediu ao TPI para que investigasse os crimes
cometidos durante a rebelião.
Interessante perceber que, nos três casos acima, a denúncia ao TPI foi oferecida
pelos próprios Estados, no intuito de “(...) obter uma posição de maior neutralidade
política, à luz da gravidade e complexidade dos conflitos.” (PIOVESAN, 2011, p.83).
Outras ocorrências mais recentes aconteceram em Darfur, no oeste do Sudão, e
no Quênia. Em março de 2009, o TPI expediu o primeiro mandado de prisão contra um
presidente em exercício, Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, acusado de crimes de
guerra e crimes contra a humanidade. Em julho de 2010, novo mandado foi expedido
em face de condenação por crime de genocídio. Apesar de se carecer de força para fazer
executar o mandado, ele produz efeitos imediatos e positivos. O Humans Rights Watch
(2009, on line) afirma que, como já aconteceu antes, nos casos da Libéria e da
Iugoslávia, a expedição do mandado de prisão cria um estigma em torno do acusado,
pois o torna fugitivo da justiça, fazendo-o ser marginalizado e perder o controle do
poder, o que pode ajudar a prevenir crimes posteriores.
A investigação do Quênia é a quinta iniciada pelo TPI e começou em março de
2010. Ela tem por objetivo averiguar a violência que se seguiu à eleição presidencial
considerada fraudulenta e que elegeu o atual presidente, Mwai Kibaki, em dezembro de
2007. Os perpetradores de violência das eleições anteriores, em 1992 e 1997, ainda não
foram punidos, e os líderes do Quênia não cumpriram suas promessas de levar os
responsáveis pela violência em 2007-2008 à justiça nacional. Dessa maneira, o Humans
Rights Watch (2011, on line) enfatiza consistentemente a importância de responsabilizar
os culpados pelos crimes cometidos para impedir a perpetuação desses abusos em anos
de atividade eleitoral.
Essas experiências africanas fortalecem a jurisdição internacional e revelam a
necessidade de se instaurar uma justiça regional efetiva, a fim de resguardar os direitos
humanos na região e complementar a justiça internacional quanto ao cumprimento de
suas decisões.
5. CASO HABRÉ
Depois de sua independência da França em 1960, a República do Chade passou
por um longo período de guerra civil entre os povos pertencentes ao norte, de maioria
mulçumana, e ao sul, majoritariamente cristãos. O país sofreu também diversas invasões
pela Líbia, vivendo constantemente sob sua influência.
A ascensão de Hissène Habré ao poder se deu nessa época de profunda
instabilidade do governo Chadiano. O seu regime ditatorial, marcado pela rejeição à
interferência do governo da Líbia, durou de 1982 a 1990.
Durante esse período, procurou resguardar seu regime eliminando os seus
opositores, bem como os grupos étnicos aos quais pertenciam. Houve perseguição a
etnia Hadjerai (1987), Zaghawa (1989-90), Sara e outros grupos do sul (1984), bem
como aos Árabes Chadianos. Devido aos anos de guerra contra a Líbia, apontam-se
também como vítimas do regime os prisioneiros de guerra.
A maioria dos casos de assassinatos políticos e torturas vinculados ao governo
de Habré foram praticados pela sua polícia, a Direção da Documentação e da Segurança
(DDS) cujos líderes pertenciam ao grupo étnico Gorane, o mesmo do ditador.
Em setembro de 1984, ocorre uma grande onda de repressão à elite do sul do
país com o intuito de substituí-la por pessoas leais a Habré, esse evento ficou conhecido
como “Setembro Negro”.
Após quase um ano de rebeliões, Habré é deposto, em 1990, pela Frente
Patriótica da Salvação cujo líder é o atual Presidente, Idriss Déby, fugindo em seguida
para o Senegal onde está até hoje aguardando julgamento.
O novo governo criou a Comissão de Investigação (Commission d’Enquête) com
o intuito de investigar os crimes cometidos pelo regime do ex-presidente. A Comissão
de Investigação recomendou que todos os envolvidos em crimes relacionados ao regime
de Habré fossem processados.
Em janeiro de 2000, sete vítimas Chadianas e a Associação Chadiana de Vítimas
de Crimes e Repressão Política (AVCRP) apresentam queixa contra o ex-ditador Habré
perante o Tribunal Regional de Dakar no Senegal, acusando-o de tortura e de prática de
crimes contra a humanidade.
Hissène Habré é citado no processo, em fevereiro do mesmo ano, sendo
colocado sob prisão domiciliar. No entanto, logo depois de o presidente Abdoulaye
Wade ser eleito, ele afirma publicamente que Habré não seria julgado no Senegal.
Em 2001, a Cour de Cassation, o mais alto órgão de jurisdição do ordenamento
jurídico Senegalês, posicionou-se contrária ao julgamento de Hissène Habré no Senegal,
por entender que não é de sua competência julgar crimes cometidos fora do território
Senegalês.
Devido à decisão do Tribunal Senegalês, o caso foi levado à apreciação da
Bélgica por outro grupo de vítimas do regime de Habré, no qual se incluem cidadãos
Belgas. Em 2005, a Bélgica envia um pedido de extradição de Habré do Senegal, que é
prontamente apoiado pelas Nações Unidas e pela União Africana.
O Tribunal Senegalês declarou não ter jurisdição para analisar o pedido de
extradição, deixando a decisão ao Presidente Wade que, segundo a legislação nacional,
tem a possibilidade de determinar a extradição através de decreto.
O Comitê das Nações Unidas contra a Tortura considerou que o posicionamento
do Senegal perante o caso violou a Convenção das Nações Unidas contra Tortura e
determinou que o país processasse Habré ou o extraditasse para a Bélgica.
Em seguida, o governo do Senegal leva o caso à União Africana, pedindo que
seus membros indicassem a jurisdição competente para julgar Habré. A União Africana
se posicionou a favor do julgamento no Senegal, tendo a concordância do Presidente
Wade.
A Assembléia Nacional Senegalesa, em 2007, adota uma lei, emendando sua
constituição, que permite seu tribunal processar casos de genocídio, crimes contra a
humanidade, crimes de guerra e tortura, mesmo quando forem cometidos fora do
Senegal ou se, à sua época, não eram considerados crimes no âmbito internacional,.
Por outro lado, nos anos que se seguiram, o Senegal se recusou a processar
Habré caso não houvesse ajuda econômica dos demais países. Em 2008, o ex-ditador foi
sentenciado à morte pela prática de crimes contra o Estado e a Constituição enquanto
encontrava-se ausente do país.
Em 2009, a Bélgica solicita ao Tribunal Internacional de Justiça a extradição de
Habré do Senegal ou o seu julgamento. A Corte se situou em posição favorável a sua
permanência no Senegal, mas a decisão está pendente para 2012.
Em 2010, a Corte de Justiça da Comunidade Econômica dos Países do Oeste
Africano (ECOWAS) decide que o melhor seria a criação de um tribunal internacional
ad hoc para processar Hissène Habrè, logo obtendo a concordância da União Africana.
Em 2011, é anunciado um acordo entre a União Africana e o Senegal para a
criação de um tribunal internacional ad hoc, porém, no encontro para organizar as
regras institucionais do tribunal, a República do Senegal se retirou sem prestar maiores
esclarecimentos.
6. DIREITOS HUMANOS E O CASO HABRÉ
Hissène Habré é acusado de diversas violações aos direitos humanos, presentes
na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Dentre os crimes dos quais foi
acusado, estão tanto os de grande repercussão praticados nas “ruas”, como no evento
intitulado “Setembro Negro”, como os cometidos nas prisões, de mais difícil
comprovação.
Em 2001, a ONG Human Rights Watch teve acesso aos arquivos da polícia do
regime de Habré (DDS), confirmando que ele tinha conhecimento dos fatos que
ocorriam nas prisões do país. Segundo a ONG, apenas nesses arquivos, já foram
identificados 1.265 comunicações diretas feitas a Habré sobre a situação de 898 presos.
Durante o regime, existiam sete prisões na capital N’Djaména que comportavam
presos políticos, bem como prisioneiros de guerra, e nas quais 1.208 mortes foram
enumeradas nos arquivos da DDS.
Nesses documentos são relatados que as principais causas da morte dos detentos
foram as doenças e as deficiências desenvolvidas na prisão, como a perda da mobilidade
dos membros e a desidratação severa. Todas derivadas das torturas sistemáticas e das
condições desumanas aos quais eram submetidos, como a falta de assistência médica e
de uma boa alimentação.
Os prisioneiros políticos eram geralmente os opositores do seu regime, mas
também aqueles que eram considerados uma ameaça apenas por pertencerem ao mesmo
grupo étnico desses opositores. Houve, portanto, uma espécie de coletivização da
responsabilidade de alguns indivíduos.
Porém, não eram apenas os presos políticos que sofriam essas violações, mas
também os prisioneiros de guerra provenientes dos conflitos contra a Líbia. Estes se
encontravam em situações desumanas que levavam, muitas vezes, à morte,
comprovadas através dos certificados de óbito encontrados nos documentos da DDS.
6.1 Instrumentos de proteção aos direitos humanos: caso Habré
As vítimas do regime de Habré têm suas acusações embasadas legalmente em
determinados instrumentos internacionais, tanto relacionados aos prisioneiros de guerra
quanto aos detentos por razões políticas.
Entre eles estão as Convenções de Genebra sobre a Proteção das Vítimas de
Conflitos Bélicos, assinadas em 1949, bem como os dois Protocolos adicionados em
1977, relativos à proteção de vítimas civis, foram citados nas petições das vítimas tanto
perante o judiciário Senegalês (Human Rights Watch, 2000, on line) quanto Belga
(Human Rights Watch, 2001, on line).
O também chamado “direito de Genebra” foi ratificado pelo Senegal em 1963 e
estabelece no seu artigo 13 da Convenção III que:
Os prisioneiros de guerra devem ser tratados o tempo todo com
humanidade. [...] Os prisioneiros de guerra devem, outrossim, ser
protegidos a todo tempo, de modo especial, contra todo ato de
violência ou intimidação, bem como contra os insultos e a curiosidade
pública. São proibidas as medidas de represália contra eles.
A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis,
Desumanos ou Degradantes de 1984 também fora utilizada como fundamento nas
petições. Isso se deu com o intuito de comprovar a relação existente entre o que ocorreu
nas prisões do regime e a definição de tortura trazida no seu artigo 1°:
[...] o termo ‘tortura’ designa qualquer ato pelo qual dores ou
sofrimento agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente
a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações
ou confissões; [...] quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por
um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções
públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
aquiescência. [...].
O Senegal a ratificou em 1986, obrigando-se a processar ou extraditar qualquer
suspeito de ter praticado o crime de tortura. Bastando, para isso, que esteja sob sua
jurisdição, independente da nacionalidade do acusado e da vítima, bem como do
território onde ocorreram as violações.
Também utilizou-se a Declaração das Nações Unidas sobre a Proteção de Todas
as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, assinada em 1992, conjuntamente
com a Convenção de 1984 por ser reconhecido o desaparecimento forçado como uma
forma de tortura aos parentes das vítimas.
Deve-se destacar, do mesmo modo, a presença da Convenção para a Prevenção e
a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 nas petições referidas acima. O genocídio
imputado a Hissène Habré por questões étnicas está nela definido no seu artigo II:
[...] qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir,
no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal
como: a) assassínio de membros do grupo; b) dano grave à integridade
física ou mental do grupo; c) submissão intencional do grupo a
condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou
parcial; [...].
Além disso, a punição dos homicídios praticados por razões políticas está
inserida na Convenção de 1998, também chamada de Estatuto de Roma, já citada
anteriormente, sendo esse tipo de homicídio considerado crime contra a humanidade
“quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra
qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque” (art.7°, 1, a).
Essas foram, segundo as acusações, as principais violações a Cartas de proteção
aos direitos humanos perpetradas por Hissène Habré, constituindo por si mesmas,
condições mais que suficientes para demandar o julgamento internacional do acusado.
6.2 A importância das ONGs para a efetivação dos Direitos Humanos: Caso Habré
A Carta das Nações Unidas de 1945 no seu artigo 71 estabelece que:
O Conselho Econômico e Social poderá entrar nos entendimentos
convenientes para a consulta com organizações não governamentais,
encarregadas de questões que estiverem dentro da sua própria
competência. Tais entendimentos poderão ser feitos com organizações
internacionais e, quando for o caso, com organizações nacionais,
depois de efetuadas consultas com o Membro das Nações Unidas no
caso.
O Conselho Econômico e Social (ECOSOC) executou o previsto na Carta,
dando possibilidade às Organizações Não-Governamentais (ONGs) de participarem das
atividades das Nações Unidas. Ele estabeleceu um sistema de classificação dessas
organizações em três status consultivos que dependem da abrangência de sua área de
trabalho. Essas ONGs são meios efetivos de transmitir à sociedade civil as questões
intergovernamentais discutidas dentro das Nações Unidas.
Em 1946, eram apenas 41 ONGs com status consultivo estabelecido pelo
ECOSOC, já no ano de 1992 mais de 700 organizações alcançaram essa situação
perante a ONU. Existem, atualmente, 3.400 ONGs que obtiveram status consultivo.
(NGO Branch, on line).
As ONGs defensoras dos direitos humanos, principalmente as de caráter
consultivo, tem contribuído para o desenvolvimento do sistema de proteção a esses
direitos. Segundo Thomas Buergenthal (2002, p.489):
[...] The NGOs also deserve a great deal of credit for the creation by
the UN and its Specialized Agencies of institutions and procedures for
dealing with human rights violations. This has been accomplished by
NGOs through their written and oral interventions in the proceedings
of these bodies and by lobbying key representatives and delegations.
[…] 2
A importância desses órgãos ainda se encontra em pressionar os Estados a
cumprir o estabelecido nas Cartas através da exposição dos violadores em âmbito
internacional. Elas também contribuem com as Nações Unidas na busca de informações
que atestem a veracidade do afirmado nos relatórios dos seus Estados-membros, bem
como para a identificação dos ofensores dos direitos humanos.
2 [...] As ONGs também merecem crédito pela criação pela ONU e suas Agencias Especializadas deinstituições e procedimentos para lidar com violações de direitos humanos. Isso tem sido alcançadopelasONGspormeiodassuasintervençõesoraiseescritasnosprocedimentosdessescorposeatravésdoconvencimentodosrepresentantesedelegaçõeschave.[...]
O mérito conferido às ONGs pelo seu papel em prol desses direitos pode ser
comprovado através da atuação de algumas dessas organizações, principalmente a
Human Rights Watch e a Anistia Internacional, no Caso Habré. Elas buscam
informações que possam ajudar a processar o ex-ditador e denunciam o descaso do
governo Senegalês em julgá-lo.
7. JUSTIÇA INTERNACIONAL E CASO HABRÉ
Há diversas possibilidades de levar o ex-ditador do Chade, Hissène Habré, a
julgamento, mesmo assim, suas vítimas convivem há mais de duas décadas com a
impunidade. Essas várias opções, todavia, ocasionam discussões quanto ao melhor
caminho para solucionar o caso.
Primeiramente, poderia se pensar na hipótese de extraditá-lo para o território
onde foram cometidos os crimes, isto é, o Chade. Apesar de essa opção ser dada pela
Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, não é
aconselhável, devido a já referida sentença proferida pelo Tribunal do Chade, em 2008,
que resultou em pena de morte.
No Chade, Hissène Habré não seria punido de acordo com os princípios
basilares da legislação internacional, já que a pena de morte viola a dignidade humana,
desrespeitando os direitos humanos.
Não se pode lutar por Direitos Humanos infringindo a dignidade humana,
portanto, a máxima de que “os fins justificam os meios” não tem aplicação no âmbito
desses direitos.
O governo do Chade, no entanto, é favorável ao julgamento de Habré em outro
país, tanto é que renunciou à imunidade de jurisdição conferida a ele devido à posição
que ocupava quando estava no poder.
A imunidade de jurisdição, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, pertence
ao país e não ao indivíduo, portanto, só se estará imune a ser processada perante os
tribunais de outro Estado, a autoridade cujo país não renunciou ao instituto.
Em seguida, há a opção de extradição para a Bélgica. A jurisdição Belga
permitia, no seu território, o julgamento de determinados crimes de interesse
internacional, praticados por estrangeiro no exterior. Isso se dava devido à lei de
jurisdição universal, revogada pelo parlamento Belga em 2003.
A jurisdição universal, ainda adotada em muitos países, dá a possibilidade de
julgar crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade,
independente de onde foi cometido e da nacionalidade das vítimas e dos violadores.
Apesar de revogada, seus efeitos ainda recaem sob os casos em que as
investigações já haviam começado e quando dentre os autores do processo houver
cidadãos Belgas. Logo, o caso de Habré, que preenche esses requisitos, continua sob o
efeito da lei de jurisdição universal.
A opção é bastante viável visto que a Bélgica possui experiência em julgar casos
parecidos, como os dois processos relacionados ao genocídio de 1994 em Ruanda que
foram devidamente julgados de acordo com a legislação internacional em 2001 e 2005.
Ademais, a Bélgica seria uma alternativa mais imparcial no que se refere ao
âmbito político, pois não interferiu no desenrolar dos acontecimentos durante o regime
de Habré, diferentemente de alguns países como a França, os Estados Unidos e a Líbia.
Há também uma questão econômica no que concerne à escolha da extradição
para a Bélgica, relacionada ao já estabelecido aparato judicial que resultará em um
menor gasto. Esse país possui unidades com autoridades especializadas na investigação
e no julgamento de crimes internacionais, como conseqüência da outrora referida
jurisdição universal. Além disso, a investigação já foi iniciada pela Bélgica, inclusive
com pesquisa em território Chadiano dos documentos da DDS.
Tem-se também a possibilidade de julgamento no próprio Senegal onde Habré
está vivendo desde 1990. Um dos principais obstáculos levantados era o financeiro, já
transposto através de doações oferecidas pela comunidade internacional em 2010. O
governo da Bélgica também se mostrou solicito a ajudar o judiciário Senegalês através
da disponibilização dos documentos resultantes das investigações.
Contudo, a imparcialidade do Senegal no caso é questionável. O atual
presidente, Abdoulaye Wade, desde que assumiu o governo em 2000, posicionou-se
publicamente diversas vezes contrário ao julgamento de Hissène Habré no Senegal.
Em fevereiro desse ano, numa entrevista ao periódico francês La Croix o
presidente Wade se recusou a adotar uma jurisdição especial, como proposto pela União
Africana, para julgar o ex-ditador Chadiano.
Além disso, afirmou que também não irá extraditá-lo para a Bélgica. Segundo o
presidente Wade, cabe a União Africana tomar as medidas necessárias para que haja o
julgamento. Porém, não cabe à União Africana o julgamento de Hissène Habré, devido
ao seu caráter meramente consultivo.
Embora apontada a Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos como
uma alternativa, nem o Chade e nem o Senegal fizeram a declaração, citada
anteriormente, que seria necessária para que indivíduos pudessem peticionar
diretamente à Corte.
Finalmente, seguindo o conselho da Corte de Justiça da Comunidade Econômica
dos Países do Oeste Africano (ECOWAS), tem-se pensado na institucionalização de um
Tribunal ad hoc na África, ou seja, um tribunal de exceção criado especialmente para
julgar os crimes dos quais é acusado Hissène Habré. Esse tribunal, como o Tribunal de
Nuremberg, posicionaria a dignidade da pessoa humana em um patamar superior ao
Estado e a lei positivada, já que “a partir do Julgamento de Nuremberg, qualquer
violação à dignidade humana praticada como política de governo passou a constituir
desrespeito à humanidade como um todo”. (MARMELSTEIN, 2009, p.9)
Em janeiro desse ano, a União Africana propôs a criação de um tribunal especial
de caráter híbrido, com juízes Senegaleses e outros juízes Africanos. A ONG Human
Rights Watch (2006, on line) sugeriu também como outra possibilidade uma Corte
Belga-Senegalesa que teria espaço no Senegal.
Entretanto, há alguns obstáculos a criação de um tribunal ad hoc, como a
vontade política, o tempo e os altos valores econômicos que dificultam essa
implementação.
7.1. Justiça internacional e os colaboradores do regime de Hissène Habré
O caso Habré abrange também os colaboradores de seu regime os quais
executavam suas ordens. O processo que está tramitando contra eles, no Chade, está
parado devido, principalmente, às influências políticas e à falta de recursos financeiros.
Além disso, segundo a ONG Human Rights Watch (2005, on line), mais de
quarenta de seus colaboradores, no ano de 2005, continuavam em importantes cargos da
administração pública ou da segurança do Estado, muitos dos quais eram antigos líderes
da DDS.
O fato desses violadores não serem conduzidos a julgamento e ainda possuírem
cargos no governo Chadiano leva, não só a um sentimento de impunidade, mas também,
de insegurança por parte das vítimas. Isso se dá devido aos diversos atentados e
ameaças sofridas por elas. Tem-se, como exemplo, o atentado contra a vida da advogada
das vítimas do regime de Habré, Jacqueline Moudeina, em 2001.
8. CONCLUSÃO
A tentativa de efetivação dos direitos humanos no continente Africano é ainda
recente, tanto é que 66% das decisões proferidas pela Comissão Africana não foram
cumpridas. Devido ao seu caráter não vinculativo, a Comissão Africana criou então,
através de um protocolo adicional, a Corte Africana a fim de complementar suas
funções.
No entanto, o não reconhecimento de sua jurisdição por parte da maioria dos
Estados Africanos demonstra a sua falta de credibilidade, que está associada a não
desvinculação Estatal dos seus juízes, insuficiência de recursos por parte da União
Africana, assim como, a inexistência de procedimentos que garantam a efetividade de
suas decisões e a democratização do acesso à jurisdição da Corte.
Nesse contexto, é notória a importância de o Caso Habré ser julgado na África,
servindo como uma experiência a ser incorporada ao sistema africano de proteção aos
direitos humanos. Além disso, comprovaria uma maior independência política em
relação às nações estrangeiras.
No caso de o Senegal levar adiante o processo de Habré, será o primeiro Estado
a julgar um refugiado em seu território. Caso contrário, a demora desse julgamento pode
dificultar a aquisição de provas necessárias ao desenvolvimento do processo,
prejudicando a efetividade da prestação jurisdicional internacional.
É o que se observa com a morte de algumas vítimas, acarretando uma perda de
possíveis provas, bem como o sentimento de impunidade por não se ver a justiça
concretizada. Ademais, as vítimas se tornam cada vez mais inibidas a prestar
depoimentos devido a inúmeras ameaças e atentados contra a sua vida.
Não é apenas nessa questão que o caso Habré ganha destaque na comunidade
internacional, mas também devido ao inédito posicionamento da Comissão de
Investigação que examinou a participação de nações estrangeiras nos eventos ocorridos
durante o governo Habré no Chade. Tem-se como exemplo o envolvimento dos Estados
Unidos no treinamento da polícia especializada do regime Habré, comprovado através
dos documentos da DDS encontrados pela Human Rights Watch.
Todavia, percebe-se que a maioria das vítimas é a favor do seu julgamento na
Bélgica devido à maior crença na celeridade do sistema jurídico Belga. Alguns grupos
defensores dos direitos humanos, como o Human Rights Watch, a Associação Chadiana
para a Promoção e a Defesa dos Direitos Humanos (ATPDH), a Federação Internacional
das Ligas de Direitos Humanos (FIDH) e o Encontro Africano para a Defesa dos
Direitos Humanos (RADDHO) também são favoráveis a extradição de Habré para a
Bélgica.
Finalmente, tem-se que a União Africana e a Comunidade Econômica dos Países
do Oeste Africano (ECOWAS) optam pela criação de uma Corte ad hoc de caráter
híbrido. Nesse contexto, pode-se concluir que dentro desse conjunto de opções, o
importante é que Habré seja julgado. Esse caso serviria de base para futuros
julgamentos e fortaleceria a crença do povo africano numa real prestação jurisdicional.
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