K - Jornal de Crítica

8

description

No 22 - Março/Abril de 2009

Transcript of K - Jornal de Crítica

Page 1: K - Jornal de Crítica
Page 2: K - Jornal de Crítica

2 K Jornal de Crítica

Capa: montagem sobre foto de J. Lino Grünewald (www.poesiaconcreta.com.br)Endereço: Rua Dona Ana, 10 A • V. Mariana • São Paulo • CEP 04111–070 • Contato: [email protected] Nenhum texto de K Jornal de Crítica pode ser reproduzido sem a prévia autorização, por escrito, de seus editores e/ou autores. As críticas e artigos assinados são de total responsabilidade de seus autores, não expressando necessariamente a opinião dos editores. ISSN 1981–3120 • nº 22 • Março/Abril de 2009 • Tiragem: 1.000 exemplares • Distribuição gratuita. Confira edições anteriores em www.weblivros.net/k

K é um jornal de crítica literária em suas mais diversas formas: resenhas, comentários, notas, ensaios, entrevistas, debates. Seu amplo corpo editorial guiará os trabalhos a partir de suas múltiplas preferências, descobertas e apostas, sem temer contradições. Como lema, a máxima de Kafka: “Tudo o que não é literatura me aborrece”.EDITORES: Adolfo Montejo Navas, Carlos Felipe Moisés, Donizete Galvão, Eduardo Sterzi, Fabio Weintraub, Franklin Valverde, Manuel da Costa Pinto, Paulo Ferraz, Reynaldo Damazio, Tarso de MeloEDITORES DE ARTE: Regina Kashihara, Ricardo BotelhoJORNALISTA RESPONSÁVEL: Franklin Valverde • MTB 14.342

JúlIA STuDART

A dança parece remeter a algo imaterial porque é perto demais do corpo, porque é perto demais do gesto, tão intensamente perto do corpo e do gesto que passa a ser o próprio corpo e o próprio gesto. Um movimento absoluto pairando e parado no ar, movendo o ar, ou apenas uma deixa para a carne: “Deixar a dança ser natu-ralmente Carne.” Nem pensamento, nem instinto, nem memória, muito mais rápida que a fotografia, muito mais longe do céu muito mais longe do inferno, um bordado radical da vida, um desenho, que nos leva a pensar com Nietzsche que só é possível crer num deus que dança. Um deus como a dança, tão imaterial quanto um corpo que é a dança, um contorno e uma idéia.

Jean-Luc Nancy diz, numa série de apontamentos sobre o corpo intitulada 58 indícios sobre o corpo, que “Um corpo é imaterial. É um desenho, um contorno, uma idéia”. Também este corpo-idéia lhe parece muito próximo de um corpo cósmico (que aponta para todos os lados e que tudo toca), místico, um corpo disforme e impreciso que se arma por dentro e através de uma coleção de peças, pedaços, membros, zonas, estados, funções; que se arma como uma coleção de coleções. E o que me parece mais formidável nestes 58 apontamentos de Nancy é uma proposição a primeira vista muito simples: que todo corpo é um segredo e se conserva como segredo, e por isso mes-mo também é um corpo que morre. E este corpo nos deixa apenas alguns indícios de sua passagem, que podem ser, estes indícios, talvez, apenas uma espécie de coreografia imprecisa, uma dança infinita.

De outra maneira, mas num procedi-mento muito parecido ao da proposição de Jean-Luc Nancy, o escritor Gonçalo M. Tavares (nascido em Luanda, Angola, em 1970, e residente há muitos anos em

car ainda mais esta imprecisão da dança, da coreografia do corpo comum e do poema como corpo comum que pode sempre ser outra coisa. A dança e o corpo como um acidente mútuo, um gesto vulgarizado que pode e deve ser rearticulado de uma outra maneira e assim sucessivamente num sem número de combinações infinitas. Gonçalo trabalha a linha das suas frases como uma dança que é uma queda do corpo na dança, no chão, no ar, no próprio corpo. Algo como repetir o quase imperativo em cada frase, a frase como um dedo em riste que aponta para a vida: “de qualquer modo dança.” Ou ainda: “De qualquer modo a dança é imaginar música Produzida pelo corpo a ser entendida de maneira calma pelos Mortos e pelo céu”. Gonçalo abre as frases por dentro com uso de letras maiús-culas em algumas palavras para mover mais ainda este corpo da frase, esta linha, que numas vezes é som, noutra sentido, noutra um tempo quando, mínimo, para contorcer até a própria idéia de poema.

De qualquer modo o movimento, a dança ou estes vestígios de um corpo que dança, poema e linha solta na página, com-parecem neste projeto do primeiro livro – que agora é outro nesta segunda versão revista por ele antes da edição –, como desejo. Um corpo que contribui para a alegria, como nas linhas em que diz: “Con-tribuir para o aumento do olho-te com PASMO, surpreendo-me e gosto”; e que também é um corpo de invenção em outras linhas: “inventar o repouso. No meio do movimento o Repouso.” E que está muito mais perto das coisas suspensas até ser a própria coisa suspensa, uma imagem da coisa suspensa, quando ele diz: “A história da dança não é não pode ser o Percurso dos Movimentos Traçado no chão. É (tem de ser) o Percurso dos Movimentos Traçado

O escritor português Gonçalo M. Tavares

hTTP

://GO

NCAl

OMTA

VARE

S.Bl

OGSP

OT.C

OM

Lisboa, Portugal) elabora os seus apon-tamentos sobre o corpo como dança e a dança como corpo, ou como ele mesmo define: apontamentos de um “projecto para uma poética do movimento”. Esse projeto aparece no seu primeiro livro intitulado Livro da dança, que foi publicado em Portugal em 2001 pela editora Assírio & Alvim; este corpo que dança e esta dança que é corpo se desenha como se fosse um livro de poemas. Agora o livro acaba de ser publicado no Brasil pela série Alpendre de Poesia, da Editora da Casa; é o terceiro livro da série coordenada pelos poetas Carlos Augusto Lima e Manoel Ricardo de Lima, que publicou antes Vazados & molambos, de Laura Erber e Exames de rotina, de Tarso de Melo.

O Livro da dança aparece entre nós re-editado com uma outra versão, num outro desdobramento da linha, como para mar-

no ar. Acreditar que os pássaros são restos de COREOGRAFIAS. Imagens do corpo que ficaram atrás, suspensas.”

Ao mesmo tempo, o corpo-idéia de Gonçalo M. Tavares é também uma sobra, um resto e um osso que sempre permanece quando o movimento se encerra, se acaba. É uma espécie de “corpo cósmico” e mons-truoso como o sugerido por Nancy, um cor-po que pode ser todo feito de excrementos. Diz Gonçalo: “uma parte do movimento é excremento. a outra é desejo.” E diz isto tão intensamente perto do desejo que chega a fazer desaparecer o desejo quando sugere em outras linhas: “o Desejo, de tão utilizado, perdeu a FUNÇÃO; serve para Pendurar o chapéu. Esquecer agora o DESEJO.” Gonçalo propõe uma espécie de desejo absoluto para descolar o desejo do que lhe é atribuído num hábito para a utilidade pública, como o ato banal de pendurar o chapéu. Assim propõe uma suspeita e quase artificial experiência-limite do desejo, que num outro movimento é possível aproximar daquela sugerida por Blanchot: desejar o desejo. E como diz o poeta americano Charles Bernstein para a poesia, antes artificial do que nenhuma.

Por fim, este livro de Gonçalo M. Tavares é o começo de um projeto interes-santíssimo que se desdobra em seus livros soltos, como no impertinente O homem ou é tonto ou é mulher, na sua tetralogia de guerra intitulada O reino ou no encanta-do projeto d’O Bairro com seus senhores servis, este paradoxo. Borges costumava dizer de alguns escritores que eles eram menos homens que uma vasta e complexa literatura, talvez este seja o caso de Gon-çalo M. Tavares. Precipitado isto? Talvez. Mas o que se pode dizer de um dançarino sutil “mais Magro que o instante mais mínimo”? O que se pode dizer de alguém que antes da dança esboça o desenho de um pedido para proibir a morte: “Por favor, me dê um exemplar de deus.”? Nada, apenas mover o que ele diz: “Não respondo, mas também não faço perguntas.”

Júlia Studart é poeta, doutoranda em Teoria literária pela uFSC, com pesquisa a partir das linhas narrativas de Gonçalo M. Tavares. Publicou Livro segredo e infâmia (Editora da Casa, 2007) entre outros.

Page 3: K - Jornal de Crítica

K Jornal de Crítica 3

e o céu / que acolhe meus cismares / não fosses fada e fluido o véu / que envolve teus esgares” (p. 24); e este outro, da produção mais recente: “com os lábios lavando minha alma / digo lucy – e um sol já me deslumbra / os ouvidos – lucy – mas a penumbra / me assombra, desde o olho até a palma / da mão” (p. 139).

Chama a atenção, no último fragmento transcrito, o uso do decassílabo, habilmen-te matizado pelos enjambements, além das rimas, que vão marcando, num poema sem divisões estróficas, a presença virtual de três quartetos e um dístico, vale dizer um soneto, de formato inglês. E não se trata de exceção: é notável, no conjunto da produção de Grünewald, a incidência de decassílabos, alexandrinos, redondilhos e outros metros convencionais, em meio a poemas de metrificação irregular. Temos até alguns sonetos bem lavrados: o poeta “cometeu” sete, o que é quase nada, se comparado a qualquer dos neoparnasianos da Geração de 45, mas uma enormidade para um concretista ortodoxo.

Dos sete, dois são na veia jocosa, dois apenas levemente irônicos e três são a sério, como este “soneto circular”, vazado em decassílabos clássicos, bem escandidos, todos grafados com a tradicional maiús-cula inicial (a ironia – claro está, sempre há alguma – não chega a subverter o tom de seriedade): “Difícil responder a tal per-gunta / A pergunta que o tempo eternizou / Pois se alguém com alguém sempre ficou / São só dois corpos vãos que a vida junta. // O que é sonhar, cismar ou divagar / Definir o que é flama, fé ou flor / São flácidas pala-vras sem valor / Os fáceis pensamentos cor do ar. // Restaria esta inútil melopéia / De quem burila o texto e logo ri / Do verbo que se quer visão e idéia. // Mas neste espelho me olho e vejo a ti / E ganho o conhecer renovador. / A resposta é Você. O que é o amor?” (p. 56).

Some-se ainda a predileção pelos vocábulos raros e pelo requinte visual das associações inusitadas, de extração decadentista (“fluxo de marfim”, “da platina dos meus óbolos”, “a vista se feria em filoxeras de alúmen”, “ânfora de escuma tragando o remoinho” etc.), e a conclusão será inevitável: a trajetória poética de José Lino é alimentada por um rico diálogo entre tradição e vanguarda, atraída que é, concomitantemente, por refinadas experimentações inovadoras e por não menos refinadas “velharias”, pólos aparentemente antagônicos, mas que só serão incompatíveis à luz do dogmatismo, seja o puramente “conservador”, seja o puramente “avançado”. Quanto à vertente que acabei de chamar “decadentista” mas

O poeta, tradutor e ensaísta José Lino Grünewald

Soneto circular, Vai e vem

CARlOS FElIPE MOISéS

No posfácio à primeira edição de Escreviver (1987), José Lino Grünewald (1931-2000) fixou, com clareza didática, seu ideal de poesia, expondo-o não por meio de referências aos seus próprios poemas, mas pelo elogio incondicional do concretismo, ao qual se filiara com Um e dois (1958), seu livro de estréia: exploração sistemática dos processos de montagem, aglutinação, permutação e pulverização das palavras, atribuindo-se a mesma importância aos aspectos semântico, sonoro e visual, a fim de que o poema fosse percebido como estrutura sintético-ideográfica e não como encade-amento analítico-discursivo. Com isso, na medida em que passa a lidar com a linguagem “e não com o idioma”, o texto poético se subordinará à “pura ascendên-cia da metalinguagem (uma forma de lin-guagem que explica as propriedades de outras linguagens)”.1 O resultado final, aparentemente acalentado pelo poeta, seria a completa anulação daquilo que se convencionou chamar “sujeito lírico” e suas circunstâncias históricas: “A im-pessoalidade do autor é total em matéria de referências ou ilações subjetivas, no tocante a sentimentos ou acontecimen-tos. A obra se despede do criador e se auto-explica” (p. 248).

A “ascendência da metalinguagem” parece corresponder à antiga procura da “pureza”, que Hans Sedlmayr consi-dera a principal “determinante” da arte moderna, e o desejo de impessoalidade remonta à ainda mais antiga “reação” anti-romântica, mas é pouco provável, em Grünewald e no geral, que o desejo se realize. Basta pensar no caso extremo da proeza cabralina, que levou às últimas conseqüências esse mesmo propósito: há muito ninguém mais se ilude com esse “fa-lar das coisas” que é, inapelavelmente, um “falar de si”. Quanto a isso de que “a obra

Já o propósito da impessoalidade total (radicalização do ideal teórico da poesia como metalinguagem) nem sempre é con-seguido, especialmente na primeira parte de Um e dois e nos inéditos acrescentados à presente edição, onde a efusão lírico-senti-mental, centrada no sujeito que se confessa, é uma constante. Diretamente confessional é, por exemplo, o belo poema inédito “não sei dançar”, que assim termina: “silencioso, só, assisto ao caudal / e às vezes me assoma / o desejo de nele entrar; / mas como? / se estou desarmado / também desamado / não sei dançar” (p. 147). Os exemplos são abundantes, mas fiquemos só com este, da produção antiga: “não fosse a vista errante

se despede do autor e se auto-explica”, já estamos em pleno terreno ficcional, ou da figuração retórica.

No que se refere aos processos técnicos implicados no ideal metalingüístico ado-tado por Grünewald, diríamos que este se realiza, com brilho exemplar, na segunda parte do livro de estréia e na maioria das composições de Escreviver, onde o poeta exibe, com notável engenho, sua habilidade em multiplicar sentidos e conexões laten-tes no interior das palavras e, não raro, dos sintagmas, como em: “sempre ceder / sem preceder / sempre ferir / sem preferir / sempre sumir / sem presumir / sempre ver / sem prever” (p. 82).

DIVu

lGAç

ãO

Page 4: K - Jornal de Crítica

4 K Jornal de Crítica

poderia chamar “art nouveau”, quem sabe, José Lino pratica uma poesia que guarda estreita afinidade com a de Mário Faustino ou a de Sosígenes Costa – vozes recessivas no quadro geral da poesia brasileira do século xx.

Tendo sido um dos intelectuais mais avançados do seu tempo, adepto intran-sigente do concretismo, apologista do ci-nema experimental, hiperintelectualizado, de Jean-Luc Godard e de Alain Resnais (A idéia do cinema, 1969); tradutor de poetas como Pound (de quem verteu, na íntegra, os Cantos) ou William Carlos Williams; admirador da sofisticada música atonal, e por aí vai; não chega, na verdade, a surpreender que Grünewald tenha sido também, em outras áreas, um entusiasta da Velha Guarda, dedicando muito do seu empenho, como jornalista e pesquisador, a Pixinguinha, Mário Reis, Moreira da Silva e tantos outros, assim como a Gardel, cuja

DIVu

lGAç

ãO

Ezra Pound, autor traduzido por Grünewald Anotações de Pound para The cantos

obra e personalidade cultuou com devoção (Carlos Gardel: lunfardo e tango, 1994). Tudo somado, José Lino seria um intelec-tual pós-moderno, avant-la-lettre.

A constatação é paradoxal: a parte da obra que o autor mais prezava (a da ortodoxia concreta) é, ainda hoje, avan-çada, moderníssima, já que não surgiu em nossa poesia nada mais radical do que a blitz concretista dos anos 50-60 do século passado, além de não ter apa-recido, depois de João Cabral, nenhum poeta capaz de aglutinar as mais férteis das desencontradas correntes dominantes nas últimas décadas. Mas ao folhearmos hoje a produção daquele Zelino (como o chamavam os companheiros de então) não há como ignorar certa atmosfera en-velhecida, marco histórico, documental, daquele tempo áureo. O poeta José Lino Grünewald verdadeiramente atual parece ser, não o da ortodoxia concreta, mas o do inusitado e valioso consórcio entre vanguarda e tradição. A bem cuidada e auspiciosa reedição de toda a sua poesia talvez seja indício, quem sabe, de que já podemos pensar em poesia brasileira como um todo, heterogêneo, sem a exclusão apriorística desta ou daquela tendência, em vez de darmos curso à espécie de guer-ra fria que isolou, por meio século, de um lado do muro, a ortodoxia concreta, e do outro, o resto.

1 J.L. Grünewald, Escreviver, 2ª ed. revista e ampliada, org. José Guilherme Correa, revisão de Augusto de Campos, São Paulo, Perspectiva, 2008, pp. 248-250.

Carlos Felipe Moisés é poeta, tradutor e ensaísta, autor de Alta traição (unimarco), Fernando Pessoa: almoxarifado de mitos (Escrituras) e Noite nula (Nankin, 2008).O cantor Carlos Gardel (1890-1935), tema estudo

DIVu

lGAç

ãO

DIVu

lGAç

ãO

PáDuA FERNANDES1

ylumynarya (City Bell: Libros de la Tallita Dorada, 2008), à diferença dos livros de poesia anteriores de Julián Axat (La Plata, 1976), possui uma estrutura bi-nária. A primeira parte, que nomeia o livro, caracteriza-se por uma série de fragmentos não numerados, em versos curtos com sin-taxe rarefeita. O tema é o da luz e o do olhar: “ojo// llega antes// al instante de luz/ en las palabras” (p. 12). Por vezes, há um comentá-rio em prosa que parece aludir a escritos de Le-onardo da Vinci (autor do desenho usado na capa).2 O caráter sin-gular dessa iluminação é dado pela escolha da letra y em vez de i para o título e as palavras derivadas: “disponer/ de la ylumynacyon/ o que ylumynacyon/ disponga//.../ luz, fuera de la cual no hay nada.” (p. 29).

A segunda parte, “Gui Rosey”, corres-ponde a um poema longo em versos livres, entrecortado por reticências, com o tema dos desaparecidos (o próprio Rosey é um deles) e da ética da escritura: “pienso en las últimas palabras/ de los poetas/humildes/miserables/menores” (p. 54).

A relação entre as duas seções é muito interessante: a poética exposta na primeira serve de base para a segunda. O “tañar vivo/ de una luz” (p. 17) permite a incursão pelo reino dos mortos em “Gui Rosey”: “calaveras con ojo vacío en la frente/ canto o lamento fusilado de ultratumba/ se juzgan/ se celebran/ se recuerdan/ y se entregan a la muralla de la noche” (p. 63); “cuál es el punto/ en el que la intensidad de luz/ se cotiza en sangre/ ¿derramada?/ ¿negociada?” (p. 56).

A primeira parte é menos bem realizada do que a segunda. A rarefação sintática

leva, por vezes, à dispersão, e não à concen-tração da linguagem poética: “propaga haz/ línea recta coral/ recto en cámara lúcida/lúdica/púdica/ ambidiestra sombra/fractal/ acostumbramiento// de lo maldito-divino” (p. 25). Mesmo aqui, porém, pode-se rever o Axat simultaneamente inspirado pela

filosofia e pela guerra em passagens como “ereignis-ere- i-gni -¡no!// M. Heideg-ger fue asesinado al salir de Francia/ por Walter Benjamin dis-frazado” (p. 30), que termina ironicamente com um comentá-rio sobre as transi-ções entre a luz e a sombra... Benjamin assombra, com seu anjo e sua aura, este segmento do livro.

A segunda parte evoca Gui Rosey, o poeta surrealista que desapareceu em Marselha (cidade da morte de Rimbaud), em 1941, enquanto tentava um visto para refugiar-se nos Estados Unidos (diferentemente do que ocorreu com Benjamin, seu corpo nunca foi encontrado). Porém, o faz citando Bo-laño, o que ancora o livro na questão dos desaparecidos na América Latina: “Penso en Gui Rosey/ y evoco a los nuestros que también se los tragó la tierra/ o la tierra que les tiraron encima/ / sin saber si habían muerto/ a los contratados para encontrar su tumba” (p. 51).

Um dos livros de Bolaño, Los detectives selvajes, dá nome à coleção de poesia que Axat coordena, em que saíram ylumyna-rya, desear y tener de González Mora e Versos aparecidos, reunião dos poemas de um desaparecido pela ditadura argentina, Carlos Aiub. A questão biográfica é im-portante: os pais de Axat também foram vítimas da ditadura.

DIVu

lGAç

ãO

Page 5: K - Jornal de Crítica

K Jornal de Crítica 5

ereignis-era- i-gni -não!

M. heidegger foi assassinado ao sair de Françapor Walter Benjamin disfarçadona mesma noite de 26 de setembro de 1940o cadáver do primeiro se encontra desde entãoenterradono cemitério de Port Bow

ninguém sabeacerca do jogo de simulaçõesquedesde lápreparou o fantasma...nas transições da luz à sombra, as cores locais dos objetos permanecem intactas ou, em todo caso, se se destroem, fazem-no de tal modo que não resulta perceptível, pelo que não parecem sofrer mais destruição de cor do que a causada pela distância do espectador.

às vezesme meto no cemitérioe mergulho nos ossários

desesperadonavegonado o nada

me afogome afogo entre fêmures e mandíbulas

armo puzzles impossíveisdentes com metacarposomoplatas com espinhas

e assim passo a noiteescondidocansadode tanta originalidadepara armar elos perdidos

porém antes de converter-mena fracassada “equipe-de-mim-mesmo-legista”

deixo os ossos de lado e escrevo um poema

que me devolve a pele viva de sua voz

a los poetas caídos/ a los asesinados/ a los que se quedaron cantando solos/ a los que alguna vez empuñaron la palabra justa/ [...]/ para que nada sea en vano/ para que el hueco que separa// a nosostros de ellos/ de ellos a nosotros// no pueda ingresar/ de nuevo en las palabras”.

A terceira parte recebeu o inspirado título “la rosa perdida de Clausewitz”.4 Como escreveu na seção anterior, os poetas

“como un pan se reparten la rosa/ para hacer el amor con ella/ pero también la guer-ra” (p. 49). Nesta, ele avisa em “indagación”: “era yo o éramos todos/ saliendo a buscar la rosa// para hacer la guerra/ por otros medios” (p. 67). Trata-se de uma poética de combate: “y un día abrí los ojos// entonces escuché una voz que decía:// si las palabras ya no explotan// entonces...// que explote el hombre” (“diario.”, p. 70); “... y los pedazos del poeta// repartidos// para alimen-tar niños// con fusiles en la

boca” (“diario ii.”, p. 74). O livro termina, porém, numa nota menor com as permu-tações fáceis de “restos iv.”

Em Axat, que é também jurista e, nesse papel, escreve sobre temas como o terro-rismo de Estado e o protesto social, temos o raro exemplo de poeta latino-americano que, em uma geração que se formou logo após a ditadura, conseguiu forjar uma combinação pessoal de história e memória pessoal, experimentação de linguagem e preocupação social. Não parece estranho que ele seja da Argentina, país que, dife-rentemente do Brasil, ousou enfrentar os crimes da ditadura e condenar militares e policiais por crimes contra a humanidade. Aqui, os ossos continuam amordaçados.

1 Pádua Fernandes é professor universitário, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. É autor do livro de poesia Cinco

lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008) e organizador da antologia poética de

No romance de Bolaño, busca-se uma poetisa mexicana. Mas o que parece aqui importar é outro livro, Putas asesinas, com seu conto Últimos entardeceres en la tierra, em que a relação entre pai e filho e o desa-parecimento de Rosey são combinadas de forma quase assombrada. No conto, o filho, no final, se dá conta de que o pai não estava sozinho, ao contrário de Gui Rosey. Em Axat, lemos que “yo conozco/ un hijo que/ / encontró un poema/ de su padre y/ se lo fumó en/ una noche/ de angustia” (p. 58). Essa experiência é marcada pelo terror, que não poupou, é claro, os poetas, cujas vozes são evocadas. As estátuas dos mortos desprendem-se da luz e enlouquecem: “el terror puede cortar el espacio y tiempo de tal forma/ que el cuerpo y la voz -a distancia- coinci-dam” (p. 64).

Axat, pois, desenvol-ve temas já abordados em seu livro anterior de poesia, médium (Poética belli) (Buenos Aires: Paradiso, 2006). Na primeira parte desse livro, “Perdidos en la búsqueda de sus voces”, temos já essa poética que tor-na os ossos em voz. No final do notável “diario de viaje v.”, lemos “armo puzzles imposibles/ dientes con metacarpos/ omó-platos con espinazos// y así paso la noche/ escondido/ cansado/ de tanta originalidad/ para armar eslabones perdidos// pero antes de convertirme/ en el fracasado “equipo-de-mi-mismo-forense”// dejo los huesos a un lado/ y escribo un poema// que me devuelve/ la piel viva de su voz” (p. 34). Ao usar pretensos manuscritos e cartas de seu pai,3 indaga: “¿pudo ser padre de mi padre?” (p. 22).

Em “Ángelus Novus”, segunda parte, temos a mesma poética; no “pacto entre F. Urondo y M. A. Bustos (pacto mayor)” (p. 57), os dois poetas referidos no título, am-bos assassinados pela repressão política na ditadura militar argentina: “convocaron/

Alberto Pimenta A encomenda do silêncio (São Paulo, Odradek, 2004)

2 O comentário da página 34, por exemplo, sobre o azul do ar, parece evocar a anotação 305 dos Cadernos do gênio italiano a respei-to da cor da atmosfera. Esse procedimento intertextual não é novo na obra de Axat: Servarios (Buenos Aires:Zama, 2005), na segunda seção, apresenta um diálogo com o autor romano Lucrécio.

Espaço Publicitário

3 Em um dos melhores momentos de Peso

formidable (Buenos Aires: Zama, 2003), lê-se o sonho de um filho que tenta convencer o pai a fugir, inutilmente: “la sangre de los compañeros no se negocia” (p. 67) até a constatação final: “Padre/ no puedo salvarte ni en los sueños” (p. 68).

4 O general prussiano Carl von Clausewitz foi o grande teórico da estratégia do século XIX.

DIVu

lGAç

ãO

Page 6: K - Jornal de Crítica

6 K Jornal de Crítica

Pedreiro’, dezoito!, uma música perfeita, nem sabia que ele fazia sambas e me mos-trou aquilo pronto”. “Você não sabia, mas vai ver que ele te ouvia”, eu disse. “De jeito nenhum”. Fim de papo.

“Paulo, até onde eu sei, só você, o Noel e o Chico com o Edu fizeram músicas sobre leilão. Três lindas músicas”. “O Chico tem uma? Não conheço”.

“Pra mim, a sua é a melhor”.“ ‘Leilão’, era a preferida do Luiz

Carlos Paraná. O Paraná morreu com cirrose sem nunca ter bebido, decorrên-cia de hepatite infantil. Eu estava com ele no momento.”

Amigo perdido.Elogiei “Napoleão” (“pondo a mo-

déstia de parte / é Napoleão Bonaparte e eu / que sabemos na verdade / o quanto dói uma saudade”). Só olhou pra baixo, manteve a modéstia.

— A música me deu muita alegria.Citando o Luiz Gonzaga Neto, ami-

go, esse meu, que me acompanha no entusiasmo diante de “Longe de casa eu choro / e não quero nada”, eu lhe disse que é música de amor a São Paulo, sem aquelas críticas que sempre permeiam as letras sobre a cidade. “Fiz essa letra quando estudava nos Estados Unidos. Saía pela rua, chorava muito e pensava ‘o que estou fazendo aqui, longe de São Paulo?’ ”. Elogiou o Gudin, parceiro genial que botou música nessa letra, e o Paulinho Nogueira, parceiro em outras.

“Seu Barbosa” foi encomendada pelo Paraná, que ia dar uma medalha, no Jogral, ao Adoniran. Encomendou um samba que falasse dele e que fosse à sua moda. Música de amigo.

“Capoeira do Arnaldo” foi provocação do Arnaldo Pedroso d’ Horta, “você se diz compositor e não tem nenhuma capoeira”. “No dia seguinte mostrei essa”. Música de amigo.

“Peça de Albene” é sobre uma mulher que ia ao bar de calcinha e sutiã, apenas enrolada em um pano, preso só com alfinetes (“quem põe a mão se cutuca” – genial interpretação da Pii). “Só tinha um livro: a Enciclopédia Britânica”. Música de amigo.

MARIO RuI FElICIANI

Paulo Vanzolini é um compositor de amigos.

Fui até sua casa de vila por uma con-sulta ao zoólogo para um livro de fotos sobre a Universidade. Tinha já me dito, telegráfico, que sobre o assunto do livro não tinha como ajudar. “Venha quando quiser, mas sobre isso não tenho contribui-ção, meu trabalho é diferente”. Ele ainda ignorava que minha razão maior era o encantamento pela sua música, a caixinha “Acerto de Contas”, cujas letras já sabia de cor. Receberam-me, ele e a Ana Bernardo, a ótima intérprete de “Seu Barbosa”, com café e água. Achei que cerveja seria mais adequado, mas fui protocolar e envergo-nhado e não sugeri.

No caminho, ouvindo MP3 no carro, tinha listado meus sambas favoritos e marcado aqueles sobre os quais gostaria de esclarecer um ou outro ponto pra mim obscuro na letra. Uma grande lista, “grande demais”, pensei, não contava falar de tudo. Falamos sobre muito mais. Recebeu-me por uma hora. Meio tímido, fui eu que dei o final do encontro, pois não vi um único sinal de impaciência.

Disse-lhe, de cara, que o punha na primeira fila dos grandes compositores nacionais, pelas ótimas músicas e, principalmente, pelo coloquial, pelo humor das letras e pelas mulheres, nelas tratadas sem adulação.

Paulo Vanzolini não adula as mu-lheres quando fala de amor, defeito de muitos compositores brasileiros, esses verdadeiramente machistas.

E Paulo não se quer adulado. Baixou os olhos toda vez em que elogiei sua obra. Dizem (parece que os orientais) que não se deve responder aos elogios. Paulo não responde, olha o chão de seu interior. Chão que ele e o Adoniran traduziram à perfeição.

Para não deixar cair a peteca, espiei minha lista de músicas e fui perguntando. Tentando encadear para não transformar o encontro em interrogatório policial.

Universidade, afinal era pra isso que tinha ido até lá.

— A Universidade não é fácil.E voltávamos ao samba.— A música me deu muita satisfação.Li na lista “Amor de trapo e farrapo” e

lhe disse ser música que eu e minha mulher ríamos juntos: éramos nós. E ficamos nos sambas sobre as mulheres. Contei também, já ia mais íntimo, que, diante de alguns versos, minha mulher se espantava, por masculinos demais. Apenas sorriu, sorri também, con-versa de homem, de salão.

“Quem é Irede, Paulo?” (da música “Trato do homem” – “Diga Irede o que quiser / o que mais enfeita a mulher / ainda é o trato do homem”). “É minha amiga Irede Cardoso, lembra dela, a vereadora feminista?, que botei aí, provocação”. Falei-lhe que a idéia de que o amor embe-leza a mulher tinha sido usada pelo Chico Buarque, em “Anos Dourados”, com o Tom (“no nosso retrato / pareço tão lin-da”), e arrisquei que há muita influência da música de Paulo na do Chico.

Recusou fortemente. “De jeito nenhum! O Chico tinha dezoito e me mostrou ‘Pedro

FOTO

S: R

EGIN

A KA

ShIh

ARA

Sobre o “Cuiteli-nho”, disse que Paulo Xandó, amigo de via-gens, a mostrou para ele, cantada por um barqueiro. Eles a re-colheram. Houve uma injustiça no registro da

música, que já corrigiu. Perguntei se tinha mexido na letra e me contou que alguns versos eram quebrados, mal recordados pelo barqueiro, e os ajeitou.

No encontro confirmei uma desconfian-ça que tem me acompanhado por anos: a estrofe “A tua saudade corta / como aço de navaia / o coração fica aflito / bate uma a outra faia, / os zóio se enche dágua / que até a vista se atrapaia” foi Vanzolini quem escreveu. Eu me empolguei: “ ‘bate uma a outra faia’ , Paulo, é um dos meus versos favoritos na MPB”.

“É verso de médico”, riu. “Os cardio-logistas gostam”.

Já tinha valido a viagem. O enigma do Cuitelinho estava resolvido, mas muito viria ainda. Quando havia silêncio, às vezes eu tentava falar sobre o trabalho para a

Legenda leenda legenda legenda

Page 7: K - Jornal de Crítica

K Jornal de Crítica 7

“Samba Abstrato” mostrou também para ao d’ Horta, ainda sem título, e, no dia seguinte, estava no Jornal da Tarde, batizada. Música reconhecida por amigo.

Falou de parceiros mais uma vez. “É difícil achar parceiros”. Amigos parceiros, uma ou outra mágoa. Elogiei de novo: “seus sambas são variados, tem à moda do Adoniran, uns ficam bem na voz do Paulinho da Viola, outros na voz do Chi-co, ou na do Carlinhos Vergueiro, porque são sambas pra eles, mesmo que isso não fosse deliberado”.

“O Paulinho da Viola sempre me pede que ponha letras nas músicas dele, mas não sei fazer música por encomenda”.

“Não faço mais músicas. A última foi ‘quando eu for, eu vou sem pena / pena vai ter quem ficar’. Eu fiz quando estava sozi-nho numa fazenda, tava lá sozinho e fiz.”

“Eu já te disse e repito, você, pra mim, está entre os grandes da MPB”.

“Nada, fiz pouca música. Pra completar a caixinha ‘Acerto de Contas’ foi difícil. Alguma coisa eu esqueci, mas não é impor-tante ter esquecido”. “O Caymmi também fez poucas, isso não importa”, respondi. “Fez mais do que eu”. “Um pouco mais, mas não importa”, insisti.

“Um grande cara o Caymmi, bom amigo. Divertido. Compositor magnífico. Uma vez o encontrei num lugarejo de meio de mato sentado numa soleira tocando violão”.

Contei-lhe que “Volta por cima” é música que me tocou, muito menino ainda, sem saber por quê. Lembrança definitiva de infância como o gosto de pizza, por causa do azeite, que não tinha na minha casa; como o cheiro da cama de meus pais, quando me recebiam entre eles de manhã; como a primeira visão do santuário de Congonhas do Campo; como o toque na

primeira cintura de moça, no bailinho de garagem, lá em Jundiaí.

Disse que não consegue traduzir “Vol-ta por cima” para o inglês. “Você criou uma expressão”.

Olhos baixos.Explicou que “Acerto de Contas”

tinha esse nome por acertar as contas com os músicos que sempre tocaram com ele. Coisa de amigo. Falei que, se era por isso, tinha dois sentidos, pois também era um acerto de contas da MPB com o grande compositor que ele é e, com essa caixinha de quatro CD’s, agora se conhece melhor.

De “Ronda” não falei. Não gosto de “Ronda”. E nem de “Sampa”.

Paulo Vanzolini é homem de amigos. Nem me conhecia e me recebeu como amigo.

Mario Rui Feliciani clica e escreve. Publicou o livro de contos “Dobras”, pelo Selo Sebastião Grifo, e o de fotografias “Quando o Carteiro Chegar”, pela Oficina do livro Rubens Borba de Moraes e Imprensa Oficial do Estado. é colaborador, como colunista, do site www.weblivros.com.br.

Calado eu luto,Sereno e resoluto,Mas de minuto em minuto,Sinto que a força se esvai.Eu me mantenho e sustento,Da fibra e do pensamento,Mas, de momento em momento,A resistência descai.Respiro fundo,Pois, de segundo em segundo,Mais cresce o peso do mundo.Jesus Cristo sendo o Pai.Resisto, porém não sei até quandoNo fim acabo ajoelhando,Mas a coragem não cai.

Mas ninguém penseQue não estou muito conscienteDe que fundamentalmenteNão existe diferençaEntre morrer pela crençaE ser igual a toda gente.é tudo um sonho, tudo uma sombra, uma ideia,Autor, ator e plateia,Espero que o pano caiaPra sair batendo palma Ou romper na maior vaia,Ou dizer muito ao contrárioQue espetáculo tão frouxoNem merece comentário.

Que teimosia,Nada nos une e tudo nos separaSó quando a vida páraE o tempo se distraiNo momento que vaiDo grito ouvido ao vidro estilhaçadoé que eu paro ao teu lado,E nós trocamos vidas perdidas por horas roubadas.

Teima quem quer.

Deixa disso mulher.A sorte não dá pra todosMas não escolhe a quem falta.De um lado tem maré alta,Do outro, praia de fora.Quem não tem juízo é que chora,Quem tem é que não se toca,Deus sabe o dia e a hora,Aperta, mas não sufoca.Entre o grito e o estilhaçoCabe outra vida na vidaTodo um mundo entre meus braços.Teima, sim quem quer.Deixa disso, mulher.

Espaço Publicitário

Legenda leenda legenda legenda

R. Santo Antônio, 446 – Conjunto 33 – Bela Vista – São Paulo SP – CEP 01314-000 – (11) 6729-0739 – www.terceiramargem.com – [email protected]

Odeio muito tudo issoLuiz Carlos FreitaspáginasISBNFormato

Pequenas revoluçõesSandra Ciccone Ginez páginasISBNFormato

Page 8: K - Jornal de Crítica

8 K Jornal de Crítica

DIVu

lGAç

ãO

REYNAlDO DAMAZIO

Quando foi publicado nos anos 1980, a saga Watchmen, escrita por Alan Mo-ore e desenhada por Dave Gibbons, o contexto era de grande maturidade para os quadrinhos. Ao lado de Neil Gaiman (Orquídea Negra, Sandman), J. M. de Mat-teis (Moonshadow, Blood), Frank Willer (O cavaleiro das trevas) e Art Spiegelman (Maus), Moore transformava as histórias de heróis e suas aventuras fantásticas num pesadelo existencial e filosófico, mistu-rando referências literárias, mitológicas, questões políticas do momento e o próprio universo deste gênero híbrido, intertextual por excelência, das HQs.

É como se o mundo real entrasse de sola no reino da fantasia de homens-aranha, mulheres-maravilha, super-homens e semideuses, virando tudo pelo avesso e revelando as misérias e ruínas da história contemporânea. Foi um período maravi-lhoso para os quadrinhos, muito criativo, mas que representou também o fim da inocência. Ou seja, as revistas já não seriam mais um mero entretenimento ou leitura juvenil. A barra ficou pesada, seguindo uma tradição que vinha dos geniais Will Eisner, a partir de 1940, e Robert Crumb, na década de 1960.

Em Watchmen, um bando de heróis vive sua lamentável decadência, a maioria aposentada, entre deprimidos e impotente,

outros trabalhando para o governo, ou remoendo as migalhas de lembranças

dos tempos antigos em que represen-tavam a esperança de ordem na sociedade, um ideal a ser seguido. O problema é que esta

ordem é sempre ilusória, pre-cária, e os heróis começam

a perceber seu próprio fim e o caos ao redor.

Muitas tramas se cruzam nas páginas im-piedosas e assombradas

de Moore, como o exter-mínio do grupo de heróis

decadentes, a violência urbana

crescente, a possibilidade de uma guerra em escala planetária e a invasão de extra-terrestres. Nos bastidores, há uma cons-piração que move forças sobrenaturais e interesses políticos. Mas a narrativa não se esgota aí e ainda inclui uma crítica bastan-te crua e inteligente ao próprio conceito das histórias em quadrinhos a partir de seus padrões de mercado, de seus perso-nagens inverossímeis e refeitos à exaustão para o consumo de massa, da idealização de poderes irreais, sobre-humanos, e de uma ideologia autoritária. Não é à toa que Moore é considerado por muitos como o enfant terrible do gênero, aquela cara que sempre estraga a festa.

Um dos personagens mais interessantes de Watchmen, o mascarado esquisitão Rorschach, é na verdade um psicopata violento que segue uma moral particular de salvacionismo e vingança – como ocorre com os justiceiros de um modo geral – e não se conforma com o fato desalentador de que a situação fugiu definitivamente ao controle. Torna-se um pária, marginalizado pelo sistema que o criou e perseguido por aqueles a quem serviu. O nome do perso-

nagem, tirado do teste de personalidade criado pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach (1884-1922), é

outra das grandes ironias de Moore, pois sua “cria”

se mantém justamente na fron-teira entre o herói e o vilão, o bem e

o mal, a ética e a barbárie, a sanidade e a loucura, numa perigosa crise de identidade. Se ele próprio, pode-se imaginar, fizesse o tal teste, certamente o resultado seria alarmante.

Os textos de Moore, porém, não são nada confortáveis. A linguagem é exaspe-rante, entre o poético e o sarcástico, e as si-tuações sombrias fazem o leitor mergulhar num clima muitas vezes sufocante, de terror sutil. A narrativa normalmente segue um fluxo labiríntico, com muitos discursos que se cruzam e se fragmentam, compondo um painel complexo de dramas individuais e coletivos. Por isso, não se deve estranhar se a sensação depois da leitura for a de que o abismo está bem pertinho, ao alcance dos olhos e da sensibilidade.

Por tudo isso, não se pode esperar uma versão cinematográfica muito fiel ou mesmo eficaz de Watchmen, ao gosto dos fãs. Embora o original seja ilustrado, como uma espécie de storyboard, HQ e filme são meios diferentes, com modos próprios de narrar e de estabelecer a relação com seus receptores. As graphic novels de Moore exigiriam filmes mais experimentais, de difícil apelo comercial, o que os tornaria economicamente inviáveis. Ainda que o diretor Zack Snyder tenha buscado se apro-ximar da narrativa imaginosa de Moore, o resultado não agradou o escritor, que pediu para tirar seu nome da produção, como já havia ocorrido com a adaptação de V de vingança. Para leitores e cinéfilos, resta ver o filme e comparar as duas obras, tentando compreender o que há de comum e diverso entre as linguagens de ambas, suas especificidades e contradições.

Reynaldo Damazio é sociólogo. Trabalha como editor, crítico e tradutor. Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente, 2001) e Horas perplexas (Editora 34, 2008), entre outros.

Legenda leenda legenda legendaLegenda leenda legenda legenda

Legenda leenda legenda legenda

Espaço Publicitário