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Ágora v. IV n. 1 jan/jun 2001 23-32 RESUMO: Ao retomar a interrogação sobre a relação existente entre os objetos da ciência e o gozo, Lacan propõe-se também a postular, nesse contexto, o fenômeno toxicomaníaco presente no uso metódico e ordenado dos diversos produtos que vão desde os tranqüilizantes até os alucinógenos. A materialização do efeito real da ciência sobre o corpo, no caso do uso destas substâncias tóxicas, torna-se objeto de uma hipótese que se inscreve no horizonte da chamada dimensão ética do gozo. Abor- dar a toxicomania sob o ponto de vista ético do gozo do corpo, leva, certamente, a concebê-la como um modo particular de satisfação, distinto da dependência biológica própria de toda concepção repreensiva do problema. Esse modo de satisfação que cativa certos sujeitos é considerado uma tentativa de en- frentar as perturbações do gozo do corpo e, diante do corpo inseparável do gozo, a toxicomania poderia ser vista como um mais-gozar particular, correlativo a uma mudança operada, pela ciência, no real. Palavras-chave: toxicomania, ciência, corpo, gozo, psicanálise. ABSTRACT: Lacan and drug addiction: effects of the science on the body. Returning to the question of the relationship be- tween science objects and jouissance, Jacques Lacan’s purpose, in this context, is to claim the drug addiction phenomenon which is present in the methodic and ordered use of several products from tranquilizers to hallucinogens. The real effect of science materializing over the body when under the use of these toxic substances, becomes the object of a hypothesis in- serted in the horizon of the so called ethical dimension of jouissance. The drug addiction approach under the ethical di- mension of the body jouissance is certainly conceived as an idea of private satisfaction which is different from the biologi- cal dependency peculiar to every reprehensive idea of the prob- lem. This way of satisfaction that captivates some types of sub- jects is seen as an attempt to face the jouissance disturbances in Professor do Programa de Pós- graduação em Estudos Psicanalíticos (UFMG). Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise. LACAN E A TOXICOMANIA: EFEITOS DA CIÊNCIA SOBRE O CORPO Jésus Santiago

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RESUMO: Ao retomar a interrogação sobre a relação existenteentre os objetos da ciência e o gozo, Lacan propõe-se também apostular, nesse contexto, o fenômeno toxicomaníaco presenteno uso metódico e ordenado dos diversos produtos que vãodesde os tranqüilizantes até os alucinógenos. A materializaçãodo efeito real da ciência sobre o corpo, no caso do uso destassubstâncias tóxicas, torna-se objeto de uma hipótese que seinscreve no horizonte da chamada dimensão ética do gozo. Abor-dar a toxicomania sob o ponto de vista ético do gozo do corpo,leva, certamente, a concebê-la como um modo particular desatisfação, distinto da dependência biológica própria de todaconcepção repreensiva do problema. Esse modo de satisfaçãoque cativa certos sujeitos é considerado uma tentativa de en-frentar as perturbações do gozo do corpo e, diante do corpoinseparável do gozo, a toxicomania poderia ser vista como ummais-gozar particular, correlativo a uma mudança operada, pelaciência, no real.Palavras-chave: toxicomania, ciência, corpo, gozo, psicanálise.

ABSTRACT: Lacan and drug addiction: effects of the science onthe body. Returning to the question of the relationship be-tween science objects and jouissance, Jacques Lacan’s purpose,in this context, is to claim the drug addiction phenomenonwhich is present in the methodic and ordered use of severalproducts from tranquilizers to hallucinogens. The real effect ofscience materializing over the body when under the use ofthese toxic substances, becomes the object of a hypothesis in-serted in the horizon of the so called ethical dimension ofjouissance. The drug addiction approach under the ethical di-mension of the body jouissance is certainly conceived as anidea of private satisfaction which is different from the biologi-cal dependency peculiar to every reprehensive idea of the prob-lem. This way of satisfaction that captivates some types of sub-jects is seen as an attempt to face the jouissance disturbances in

Professor doPrograma de Pós-graduação emEstudosPsicanalíticos(UFMG).Psicanalista.Membro da EscolaBrasileira dePsicanálise.

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the body, and when facing the inseparable body from jouissance,drug addiction could be seen as a particular plus jouissance, cor-relative to an operated change by the science, in the real.Keywords: Keywords: drug addiction, science, body,‘jouissance’,psychoanalysis.

1 Não me parece fortuito que, nesse curto escrito de Jacques Lacan, a referência às criações daciência preceda a evocação “das quatro substâncias episódicas” da causa do desejo, substâncias estas quesuportam o próprio funcionamento da satisfação pulsional.

Para Lacan, é preciso distinguir a estrutura do saber científico do impactodos efeitos desse saber no mundo e é este último aspecto que o levou a falar

da atividade científica como uma forma de discurso. A ciência, certamente, estáapta a reconhecer aquilo de que ela é capaz, mas não está preparada para enten-der o que ela engendra, isto é, o que ela quer, enquanto discurso, ou seja, comoforma de saber que assume poderes no plano do laço social. Nos dias de hoje,a imprevisibilidade desses efeitos é patente sobre o homem que se sustenta das“mais efetivas realizações — e também das realidades mais atrativas” da ciên-cia (LACAN, 1973, p. 6).1 O homem de ciência, se possui um controle efetivodo que faz, “não sabe o que, de fato, nos efeitos da ciência, interessa a todomundo”. Esse não-saber, Lacan denomina-o ponto de ignorância do cientista, pontoenraizado na fronteira entre os princípios de seu poder e de seu desejo (LACAN,1960, p. 808).

É a dimensão ética do gozo que, constituindo a especificidade do desejo doanalista, comparado ao desejo do cientista, pode explicar a discordância entre otrabalho da ciência e seu querer no mundo. Considere-se a atividade médica,que traduz muito bem as incidências da ciência no saber. Lacan observa comoesse saber, cujos contornos mais efetivos se desenham no alvorecer da antigüi-dade grega, deu uma guinada significativa, ao longo dos tempos, em razão dosurgimento da ciência. Na tradição antiga, a figura do médico confundia-secom a do sábio reconhecido, cujo saber não se restringia aos limites do que,mais tarde, seria a filosofia da natureza. O exercício da medicina era umaprática de prestígio e de autoridade, porque representava todo um campo dosaber que envolvia distintas esferas do conhecimento erudito e não apenas umsaber sobre o corpo (LACAN, 1966, p. 36).

REGISTRO PURIFICADO DO CORPO

Em contraste com essa manifestação inicial da medicina, esta se vê, hoje, inse-rida num modo de saber comprometido com os meios fornecidos por um do-mínio exterior ao que ela foi no passado, a saber, o discurso da ciência. Com a

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emergência da ciência, o médico perdeu sua posição tradicional e quase sagra-da de outrora. A evocação da arqueologia de Michel Foucault, em relação àcrise ética que sofreu o discurso médico ao longo do tempo, não está ausente daargumentação lacaniana. Para Foucault, um primeiro passo no sentido de ultra-passar essa posição tradicional esboça-se na “promoção, por Bichat, de umolhar que se fixa sobre o campo do corpo, no curto espaço de tempo em que elesubsiste rendido à morte, isto é, o cadáver” (LACAN, 1966, p. 37). Entretanto,me parece que de acordo com Lacan, o problema situa-se mais além da escolhada figura do olhar como última fonte epistêmica do nascimento da medicinaanatomopatológica. Faz-se necessário examinarem-se, antes de tudo, as exigên-cias determinadas pelo aparecimento de um homem que serve às condições deum mundo científico, que suscita novos poderes de investigação e de pesquisa.O médico deve enfrentá-los, se não quiser apagar sua presença no mundo emnome de sua aplicação ao trabalho da ciência. Enfim, a medicina modernaadquire uma configuração, ao mesmo tempo esboçada e subvertida, fora delamesma, pela ciência. Por essa via, Lacan observa, com razão, que o saber médi-co avança, a partir do que ele chama de relação epistemo-somática, como o maiorindício das incidências do progresso da ciência sobre a relação da medicinacom o corpo (LACAN, 1966, p. 42).

Enfim, o que caracteriza, atualmente, a relação do saber médico com ocorpo é a purificação de toda dimensão erudita, tradicional da ética. Conside-rando-se essa relação epistemo-somática, pode-se falar de um corpo no seu“registro purificado”, relação de que toda consideração de natureza ética está radi-calmente abolida. Conseqüentemente, esse domínio sobre o corpo o reduz auma máquina composta de circuitos hormonais, neurônicos, imunológicos ougenéticos. Transformado em alvo da ciência, o corpo é “fotografado, radiografa-do, calibrado, diagramado e passível de ser condicionado”; daí em diante, elenão constitui senão um organismo. Enquanto tal, tem a possibilidade de coinci-dir com “aquilo que vem de longe, do exílio, a saber, do exílio para onde adicotomia cartesiana do pensamento e da extensão proscreveu o corpo” (LACAN,1966, p. 42).

UM CORPO É ALGO FEITO PARA GOZAR

Sabe-se que o tratamento da questão do corpo, na tradição antiga, é muito maiscomplexa do que geralmente se pensa. É caso, por exemplo, de não se aceitar aafirmação corriqueira de que, em Platão, há um estatuto negativo do corpoperante a alma. Quero dizer que a noção de corpo presente, por exemplo, nosestados de entusiasmo, não é tanto a origem do mal, mas o lugar de sua resi-dência. O verdadeiro responsável em causa não é, pois, o corpo, mas o desejo,que constitui o meio para se ligar à sensibilidade. O cartesianismo, ao contrá-

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rio, repousa num dualismo fundamental da alma e do corpo, postos como duassubstâncias de fato distintas, heterogêneas e irredutíveis uma a outra. Contra-riamente ao que ocorre na problemática do corpo em Platão, essa dicotomiaaloja-se, no pensamento cartesiano, para sustentar que a substância viva docorpo é impensável. Com efeito, não há lugar, nesse pensamento, para a anima-ção do corpo, a não ser sob a forma da extensão. A análise efetiva do dualismoentre o pensamento e a extensão revela de que maneira, para Descartes, o servivo escapa à linguagem. Sobre isso, deve-se lembrar o gesto de Bichat, reperto-riado por Foucault como o ponto de partida decisivo da clínica anatomopatoló-gica, uma vez que o corpo, nessa perspectiva, é considerado como já morto. Emresumo, a visão cartesiana do corpo, presente no saber médico, contribui paraapagar o que se considera como a verdadeira natureza do corpo para a psica-nálise. À luz desta, o corpo não pode ser simplesmente caracterizado pela ex-tensão: “Um corpo é alguma coisa que é feita para gozar, gozar de si mesma”(LACAN, 1966, p. 42). A natureza do corpo vivo inscreve-se na aparelhagemprópria ao órgão não-substancial, incorporal, da libido, que é o gozo. Portanto,se, para a medicina, o corpo se confunde com o organismo enquanto realidadeprimária, para a psicanálise, ele é sempre secundário, porque só existe pelain(corpo)ração da estrutura simbólica. Nesse sentido, considera-se que o sujeitonão nasce com um corpo; ele o precede de modo incontestável.

USO METÓDICO E ORDENADO DOS TÓXICOS

É essa dimensão, abolida radicalmente da relação epistemo-somática, que auto-riza a afirmação inédita de Lacan de que a toxicomania só pode receber umadefinição “puramente policial” (LACAN, 1966, p. 43). A toxicomania, ele a concebesob o ponto de vista ético do gozo do corpo, o único capaz de evitar o horizontesimplesmente repreensível do que ele chama de uso ordenado e metódico dostóxicos. Desse modo, a prática metódica da droga é apreendida no plano dosefeitos imprevisíveis da ciência, sobretudo daqueles que trazem conseqüênciaspara o corpo (LACAN, 1987, p. 29).2 O recurso do toxicômano às drogas é

2 Convém lembrar que, no final da década de 1930, Lacan se havia referido ao que ele chama“envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca”. Sob a ótica de uma concepção deestágios do desenvolvimento psíquico em moda na época, encontra-se a primeira consideraçãolacaniana sobre a toxicomania. Quando da publicação do seu trabalho intitulado Os complexosfamiliares, ele demonstra uma verdadeira crença na evolução da libido por fases, em que apreocupação de uma construção cronológica do psiquismo compreende três tipos de comple-xos distintos: desmame, intrusão e Édipo. Deve-se considerar, entretanto, que a tendênciagenética de tal formulação não exibe o objetivismo psicológico da maioria das escolas analíticasda época. Ao contrário, para sustentar a hipótese desses três complexos, ele preferiu adotar ocaminho de uma fenomenologia clínica. É, com efeito, essa orientação clínica que justifica oprimeiro aparecimento da toxicomania no pensamento de Lacan, como exemplo do complexo

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apenas um efeito, entre muitos, que a ciência produz no mundo. Essas incidên-cias da ciência no corpo, como já se assinalou, não devem, de maneira alguma,ser consideradas simplesmente a partir da ordem da percepção, ainda que con-cebidas, como faz Foucault, por meio da figura discursiva do olhar. Lacan insis-te no fato de que toda tentativa de organização do saber científico, segundo agênese mítica da percepção adequada da realidade, falseia o eixo central dofuncionamento desse saber. E afirma ainda que o impacto de tais efeitos sobre ocorpo, ultrapassa, em muito, tudo o que se poderia especular sobre um efeito deconhecimento. O aspecto crucial do surgimento da ciência não é, em absoluto,o de haver introduzido, no mundo, um conhecimento mais aprofundado e maisextenso, mas o de haver feito surgirem, no real, coisas que não existiam, deforma alguma, no nível da percepção humana. Portanto a singularidade dainterpretação lacaniana das incidências da ciência no corpo visa, especialmen-te, a isolar o elemento real desses efeitos. A problemática epistemológica, quepretende estabelecer as condições de obtenção de uma garantia não-ilusória doaparelho perceptivo, desvia-se do real que se decanta da operação da ciência.

O OPERCEBER E AS METAMORFOSES DO REAL

Esse ponto real só é pensável na perspectiva do avanço da ciência, ou seja, apresença, na estrutura interna desse saber, de um puro formalismo significante(LACAN, 1969-70, p. 147).3 Considerando o fundamento formal da ciência,Lacan valoriza o registro do operceber (LACAN, 1969-70, p. 153) — neologismocriado para traduzir a intrusão maciça da operatividade do formalismo signifi-cante no perceber — como a marca essencial das fabricações da ciência, situan-do-o em oposição ao campo perceptivo, que recobre o domínio do conheci-mento. Essa conversão do saber ao registro do “perceber é sinal de que a ciêncianão tem mais nada a fazer com os pressupostos que, desde sempre, animam aidéia de conhecimento. Contrariamente à idéia corrente de que a ciência podeser deduzida da percepção e permite conhecer melhor o que há no mundo, ela,de fato, faz aparecerem objetos dos quais não se tinha a menor idéia (LACAN,1969-70, p. 150), acarretando transformações na própria estrutura do real.

do desmame. Os distúrbios toxicomaníacos e anoréxicos testemunham a resistência do sujeitoàs “novas exigências, que são as do progresso da personalidade”. Com efeito, a recusa dosujeito em ultrapassar sua ligação com a imago materna torna-se um fator de morte. Essatendência psíquica para a morte, que se exprime à saída do complexo de desmame, revela-semais tarde, nas formas de “suicídios muito especiais que se caracterizam como não-violentos”.Nesse ponto de sua elaboração, Lacan afirma: “A análise desses casos mostra que, no seuabandono à morte, o sujeito busca reencontrar a imagem da mãe.”3 Esse formalismo significante presente no nascimento da ciência, Lacan o situa no uso grego damatemática. É a manipulação do número como tal, nas primeiras demonstrações geométricas deEuclides, que exprime “a origem de um uso rigoroso do simbólico”.

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A ciência não apenas torna possível o acesso ao real, mas também determi-na-o e transforma-o, povoando-o de certo número de objetos que antes nãoestavam ali, mas, também, sérios candidatos a se tornarem restos, resíduos,rebotalhos da civilização. Com muita pertinência são chamados de gadgets, de-signando-se, assim, com exatidão, a natureza de dejeto que impregna sua pre-sença no mundo.4 Esses gadgets qualificam todas as espécies de instrumentosque, desde então, fazem parte da existência humana, sendo que o lado forte-mente utilitarista desses objetos é o fator que viabiliza o enfoque conceitual daciência como discurso, portanto, como um dispositivo de saber que produzlaço social. O extraordinário dessa elaboração é a maneira como essas fabrica-ções da ciência oferecem ao sujeito os meios de uma recuperação da satisfaçãopulsional. A característica mais singular dos gadgets é que o sujeito se liga a eles,até mesmo agarra-se e fixa-se neles.

O exame dos efeitos da ciência faz acentuar-se a reflexão sobre o nexo entreesses objetos e o gozo do corpo. Meu interesse volta-se, sobretudo, para a idéiade que estes só existem para oferecer ao sujeito uma certa satisfação pulsional.Os objetos da ciência existem para que o sujeito possa gozar deles — esse é oefeito real que escapa ao cientista. A ciência não se limita a fabricá-los, masencontra, também, o meio de ligá-los ao sujeito, o meio de manter o desejodeste último aderido a tais objetos.

Nada mais ilustrativo do liame entre as criações da ciência e o gozo docorpo do que a invenção contemporânea das ondas. Lacan interroga-se, de iní-cio, sobre a sua extensão imperceptível na escala planetária e interplanetária esobre as razões que levam as vozes humanas a se inserirem nelas. Ele comentao exemplo dos astronautas, “que teriam, provavelmente, muito menos sucesso,se não estivessem, o tempo todo, acompanhados pelo pequeno (a) da voz hu-mana” (LACAN, 1969-70, p. 153). Esse exemplo autoriza-o a introduzir o efeitoreal do gozo que o operceber do saber formalizado da ciência é incapaz de apre-ender. A prova disso é fornecida pelo caso dos astronautas, em que a presençada voz humana, na sua função de “sustentar-lhes o períneo”, não pode, emabsoluto, ser desvendada pela ciência (LACAN, 1969-70, p. 153). O mesmoacontece com o olhar “agora onipresente, sob a forma de aparelhos que vêempor nós, nos mesmos lugares, isto é, qualquer coisa que não é um olho, mas queisola o olhar como presente” (LACAN, 1966, p. 43).

4 É curioso constatar-se que o sentido dado a esse anglicismo pelo Grand Robert — “…objetoengenhoso, divertido e sem utilidade…” — contém, ao mesmo tempo, a idéia de satisfação ede dejeto.

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UM MAIS-GOZAR PARTICULAR

Numa intervenção no Colégio de Medicina, intitulada “Psicanálise e medici-na”, Lacan pergunta se o gozo, presente nos prolongamentos da voz e do olhar,não parece, à primeira vista, pouco concreto. Tentando responder a essa interro-gação sobre o material da relação existente entre os objetos da ciência e o gozo,ele apresenta o exemplo da droga, ou seja, dos “diversos produtos que vãodesde os tranqüilizantes até os alucinógenos” (LACAN, 1966, p. 43). A materia-lização do efeito real da ciência sobre o corpo, no caso das substâncias tóxicas,torna-se, até mesmo, objeto de uma hipótese. Imagine-se, diz Lacan, que, umdia, se esteja sob o domínio de um produto que não seja definido por essesefeitos estupefacientes sobre o corpo. Suponha-se, ainda, que a ciência conse-guisse localizar uma substância tóxica que agisse diretamente sobre o conheci-mento, um produto que permitisse “recolher informações sobre o mundo exte-rior” (LACAN, 1966, p. 43). Tal hipótese é introduzida apenas para circunscrevero fator econômico, também designado como a dimensão ética do gozo, presen-te na relação do sujeito com a droga. Seu objetivo é mostrar que o ponto devista do gozo recusa toda concepção do ato toxicomaníaco que se mantenharestrita ao aspecto da repreensão.

Na verdade, as drogas passam a existir para responder ao que as velhasescolas de pensamento nunca evitaram como uma das próprias leis de sua refle-xão ética: a questão do gozo do corpo. Atualmente, a ciência fornece operadoresquímicos capazes de se constituir em reguladores da própria economia libidinal,cuja única finalidade é extrair satisfação no nível do corpo. Essa seria a técnicado corpo que poderia ser considerada como um mais-gozar especial, em razãodo modo de captação dos excedentes do gozo gerado pelo uso da droga.

É preciso notar que essa técnica, destinada a proporcionar satisfação, agepor meio da recuperação da parte de gozo primitivamente perdida. Se Freudteve a oportunidade de apreender a função da droga no corpo partindo de seuponto de vista econômico, baseado nos conceitos derivados do campo datermodinâmica, Lacan, por sua vez, elegeu uma outra perspectiva. Evidente-mente, ele não despreza a consideração freudiana do plano econômico. Naverdade, a conceitualização do gozo leva-o a acentuar ainda mais o ponto devista econômico; apenas procura realizá-lo levando em conta a contribuiçãomarxista da economia política. Esse ponto de vista prevalece, igualmente, paraa função econômica da droga, função, desde então, explicada pelo conceito demais-valia e tomada de empréstimo à teoria do valor preconizada no materia-lismo marxista. Em outras palavras, as configurações econômicas da termodi-nâmica, que se ofereciam a Freud para tratar as trocas libidinais do sujeito, têm,em Lacan, o estatuto do mais-gozar. Observa-se o uso da termodinâmica desdeos escritos sobre a cocaína, mas também por sua interferência ao longo de toda

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a obra de Freud. Trata-se, para ele, de delimitar alguma coisa difícil de se nome-ar no sujeito e que não diz respeito apenas às suas relações com seu semelhante,mas, antes, à relação mais profunda com o que se chama, em geral, sua dimen-são vital (FREUD, 1929, p. 93).5 Lacan lança mão da mais-valia marxista, justa-mente, para sublinhar a função de extração do gozo, função dificilmenteapreensível na ótica da termodinâmica. Toda a complexidade da relação dogozo com o objeto a está subjacente a ela. O recurso à mais-valia intervém natentativa de isolar uma outra função do objeto a, distinta daquela de causa dodesejo. Essa dedução do mais-gozar com base na economia marxista não éperceptível, se não se levar em conta a função de mercado definida no Seminário,proferido no final da década de 1960, intitulado: De um Outro ao outro (LACAN,1968). Segundo Lacan, Marx parte da função de mercado para acentuar que otrabalho é um dado do mercado. No âmbito do mercado capitalista, destaca-sea função da mais-valia, concebida como essa parte do valor engendrada pelolabor dos trabalhadores que, por sua vez, excede àquela que permite reconstituiro valor de sua própria força de trabalho. Esta maneira de ver, permite a Marxdividir em duas partes homogêneas o valor que o trabalho vivo acrescenta auma mercadoria em vias de ser produzida, ou seja, o chamado capital variávelequivale ao que é devolvido ao trabalhador sob a forma de salário e a mais-valiaque é apropriada pelo capitalista na forma do lucro. Assim, se encontraria depu-rada a fonte mesma das relações sociais de produção capitalista, no interior dasquais o lucro aparece como o valor produzido integralmente pelo labor dostrabalhadores enquanto que para os economistas clássicos, o lucro é percebidocomo uma renda irredutível ao fator valor-trabalho.

A novidade introduzida por Lacan, quando retoma a teoria do valor, é aafirmação de que todo discurso é capaz de articular uma certa configuração darenúncia e, principalmente, uma extração do gozo, em geral, que, nesse âmbito,faz aparecer o mais-gozar. Por conseguinte, há uma homologia efetiva entreesses dois registros — a mais-valia e o mais-gozar — e não apenas uma sim-ples relação metafórica. O mais-gozar emerge devido ao discurso, porque é narenúncia ao gozo que se encontra um efeito de discurso. Pode-se dizer que o empre-go particular da economia política pressupõe a idéia de um vasto mercado,onde a circulação e a distribuição do gozo acontecem graças à própria existên-cia do discurso. Portanto, a delimitação entre o desejo e o gozo, entre o desejoe a pulsão, explicita-se, então, numa dupla articulação: de um lado, as primei-ras elaborações do objeto a como causa do desejo, recobrindo a dialética do

5 É surpreendente observar o quanto, em Mal-estar na civilização, as primeiras intuições sobre afunção econômica da droga respondem a uma reflexão de caráter ético. A respeito disso,convém lembrar o uso que Freud faz da expressão técnica vital para designar a toxicomania.

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desejo em Freud; de outro, o objeto a como mais-gozar (RABINOVICH, 1989, p.7-8). Em torno deste, fundamenta-se o essencial da teoria de Lacan sobre oobjeto da pulsão, a saber, uma função inseparável da definição de gozo comosatisfação da pulsão. No fundo, essa vertente do objeto a concerne à renúncia aogozo, efetuada pela satisfação pulsional assim delimitada. O mais-gozar cir-cunscreve essa renúncia sob a égide do efeito de um discurso. A renúncia aogozo em si mesmo torna disponíveis diversas manifestações do mais-gozar nomercado da civilização.

Se a droga pode servir à satisfação, isso acontece porque esta última estáaberta, por sua natureza mesma, a toda espécie de saída possível. A abordagemclínica propriamente lacaniana da droga sustenta-se no fato de que a pulsãopode se satisfazer com um objeto nocivo ao indivíduo. A questão clínica dadroga expõe, justamente, o paradoxo da satisfação extraída de um objeto, deque a investigação científica limita-se a reiterar, de forma monótona e indefini-da, a nocividade tóxica para o organismo. Esse paradoxo consiste, pois, em queo sujeito não procura, forçosamente, um objeto que lhe traga o bem (LACAN,1959-60, p. 131).6 Essa indiferença quanto ao objeto coincide com a definiçãodo gozo como satisfação da pulsão, que solicita, necessariamente, a presença docorpo, concebido como uma estrutura secundária, exatamente, porque, nele,está implicada a linguagem e não o organismo.

Com efeito, a adesão profunda do toxicômano à droga não pode se explicarsenão pelo corpo submetido à ação do significante e inseparável do gozo. Abor-dar a toxicomania sob o ponto de vista ético do gozo do corpo, como sugereLacan, em Psicanálise e medicina, leva, certamente, a concebê-la como um modoparticular de satisfação, distinta da dependência biológica. Esse modo de satis-fação que cativa certos sujeitos é considerado uma tentativa de enfrentar asperturbações do gozo do corpo. Diante do corpo inseparável do gozo, a toxico-mania poderia ser vista como um mais-gozar particular, correlativo a umamudança operada, pela ciência, no real.

Recebido em 10/3/2001. Aceito em 25/5/2001.

6 O ponto básico da proposta do paradoxo ético é a definição do gozo como satisfação dapulsão. É no contexto desse paradoxo que Lacan demonstra o laço indissolúvel entre ogozo e o mal.

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