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* LAPSOS cléderson matheus rien perez

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Projeto deenvolvido para a matéria de comunicação e expressão no segundo semestre do curso de Produção Editorial em Multimeios na Universidade Anhembi Morumbi.

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*LAPSOScléderson matheus rien perez

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Universidade anhembi morUmbi

Cléderson Matheus Rien Perez

Coletânea de Redações

Projeto desenvolvido para a disciplina de Língua Por-tuguesa, ministrada pela Professora Mirian Lapastini, para o cumprimento parcial dos requisitos necessá-rios para a conclusão do segundo período do curso de Produção Editorial em Multimeios.

São Paulo2008

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projeto gráfico e produção editorial: cléderson matheus rien perez; agradecimentos: marisa ferreira; créditos das fotos na sequência em que se encontram na coletânea: ann trilling, r. g, santa maria, cléderson perez, csaba peterdi, helder almeida, fernando borges, shannah pace, cléderson perez, blas lamagni, svetlin rusev, artlense.com, Iofoto, zabi, kmitu, chen ping hung, fernando borges, newphotoservice, cléderson perez, cléderson perez, blas lamagni, ovidiu Iordachi.

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SumáriOapresentação

mídia e arte

megalópole

uniformidade

língua, mátria o fim

letargia

nostalgia

banho

artista07 16

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Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, uma das acepções da palavra lapso é a interrupção no funciona-mento normal de algo. Esta coletânea de redações é um lapso do meu funcionamento. Eu realmente acredito que escrever é uma atividade fascinante. Através da escrita é possível ex-pressar conceitos que, de outra forma, não teriam o efeito desejado. Mesmo assim, eu nunca gostei de escrever. Talvez seja só preguiça. Talvez seja algo a ser desenvolvido.

Uma vez que escrever não faz parte das minhas funções normais, todos os textos aqui são lapsos. Falhas no meu fun-cionamento, compostas, basicamente, de textos desenvolvidos para a matéria de Língua Portuguesa, embora esteja também incluída aqui uma epifania (nome que dou às idéias e aos textos que vêm à minha cabeça nos momentos mais inesperados) que me sobreveio em uma noite de domingo. Talvez esse texto seja o primeiro de vários que escreverei por vontade própria. Talvez escrever passe a ser parte da minha rotina. Ou não. Talvez eu volte ao normal.

Writing is not necessarily something to be ashamed of, but do it in private and wash your hands afterwards.

Robert Heinlein

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Segundo Santaella (2005), é possível no-tar que, cada vez mais, as diversas mídias têm se apropriado da arte. Se no passado isso já acontecia no design gráfico, na televisão e na publicidade, hoje em dia esse intercâmbio é muito mais intenso, devido à facilitação do acesso ao conteúdo artístico causada pela popularização do computador e da internet. A idéia de intercâmbio é reforçada pela autora quando ela cita que a publicidade “recaniba-lizou” certos conceitos e imagens da pop art

da mesma forma que o movimento artístico já havia “canibalizado” as imagens da mídia de massa anteriormente.

Para Santaella, existem pelo menos duas maneiras untilizadas pela mídia para se apro-priar da arte: (a) pela imitação das maneiras e do estilo e (b) pelo uso da própria obra de arte. A autora salienta ainda que a publicidade, especialmente, tem aspirado o status de arte; vide as diversas cerimônias que premiam as melhores peças publicitárias e designers.

mídiA e ArteSANTAELLA, Lucia. Porque as comunicações e as artes estão convergindo?

São Paulo, Paulus: 2005. pp. 42-43

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Megalópoles, como São Paulo, Nova York, Tóquio ou Mumbai, cresceram, e continuam a crescer, vertiginosa e descontroladamente. Esses aglomerados urbanos apresentam tan-to pontos positivos quanto pontos negativos. Podemos citar a pluralidade cultural, as opor-tunidades econômicas e a facilidade de acesso à inovações tecnológicas como aspectos positi-vos evidentes e inerentes à vida em uma grande cidade. Além disso, uma megalópole oferece uma diversidade de opções de lazer e diversão muito maior do que uma cidade de menor porte. Outro fator positivo, que tem sido foca-do nos últimos anos, é que o morador de uma grande cidade prejudica muito menos ao meio ambiente, em média, do que um morador de uma outra cidade, pois ocupa menos espaço (prédios concentram um grande número de

pessoas num espaço relativamente pequeno), utilizam mais o transporte público (menos po-luição per capta), entre outros fatores.

Mas também há vários aspectos negativos tangentes à vida em uma megalópole. A poluição, tanto do ar quanto a sonora e a visual, provocam problemas respiratórios, auditivos, e psicológicos. A correria do dia-a-dia somada aos constantes engarrafamentos, que chegam a centenas de quilômetros, e aos altos índices de criminalidade também são fatores negativos que contribuem para o aumento do nível stress da população.

Uma vez que existem tanto vantagens quanto desvantagens em se viver em uma megalópole, cabe a cada um decidir se é a vida em um grande conglomerado urbano, em uma cidade menor ou até mesmo no campo, que é mais adequada ao estilo de vida que deseja levar.

megALóPOLe: um bem Ou um mAL?

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SObreSincretiSmO cuLturAL e SOciedAdeS unifOrmeS

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Após a II Guerra Mundial, o mundo se dividiu em dois grandes pólos ideológicos, econômicos e culturais: o capitalista, liderado pelos Estados Unidos da América, e o comunista, que tinha à frente a então existente União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Após a queda do muro de Berlin, em 1989, e o colapso da União Soviética, em 1991, os Estados Unidos passaram a ser a única grande potência mundial, e a cultura oci-dental pôde penetrar nos países socialistas. Isso gerou certa uniformidade no mundo. É possível, por exemplo, comer um Big Mac em Chicago, São Paulo, Mumbai, Cairo, ou até mesmo em Moscou. A Coca-Cola está presente em prati-camente todos os países do mundo; salvo, talvez, Cuba e Coréia do Norte. Paulo Sérgio do Carmo sintetiza esse fenômeno em seu livro O Trabalho na Economia Global, ao afirmar que “o modelo da sociedade pós-industrial se impôs em quase todas as partes do mundo”.

Mas essa uniformidade não se resume so-mente à redes de lanchonetes, marcas de roupas ou serviços oferecidos por multinacio-nais. O império do “terno e gravata”, da calça jeans, dos filmes de Hollywood, do rock e do pop, apenas provam que a hegemonia cultural tem aumentado ao redor do globo.

Há quem argumente que existem diferenças culturais entre os povos, e, portanto, não há uni-formização cultural, ou que os efeitos desta são mínimos. De fato, não se pode negar que cada povo tenha sua história, suas tradições, seus ri-tos, sua cultura; mas à medida que a globalização

avança, essas diferenças culturais passam a ex-ercer um papel diferente, começam a fazer parte de um passado, de certa forma, admirado pela população sem, no entanto, atuar efetiva-mente na vida cotidiana. Muitas vezes, o que acontece é uma espécie de sincretismo, no qual parte da cultura nativa é preservada, enquanto aspectos da cultura ocidental (leia-se, européia e americana) são adotados.

Pode-se observar que a homogeneização cultural é proporcional ao índice de desen-volvimento de uma certa região. Regiões desenvolvidas possuem mais aspectos em co-mum com a “cultura global” do que regiões mais afastadas e economicamente menos de-senvolvidas, onde as tradições populares ainda têm importância considerável na vida diária. Isso se deve ao fato de que, no modelo econômico capitalista que nossa sociedade está inserida, o desenvolvimento de uma região está intrin-secamente ligado ao investimento de empresas (estrangeiras ou não) que ela recebe. Além dis-so, a partir do momento que um país começa a se desenvolver, surge uma demanda por bens de consumo não disponíveis até então, que são trazidos de outros países a fim de suprir essa demanda. Frequentemente, companhias têm que adaptar seus produtos à certas peculiari-dades locais, resultando no sincretismo já citado no parágrafo anterior, e criando uma sociedade de cultura híbrida, que, apesar de apresentar diferenças de um país para o outro, é essencial-mente igual em todo o mundo.

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Língua materna. Usamos uma expressão fa-miliar par nos referirmos à língua que falamos e entendemos desde nossos mais tenros anos. Materna porque a aprendemos de nossas mães. Como disse Olavo Bilac, foi nela que primeiro ouvimos ”meu filho”. Fernando Pessoa, através de seu heterônimo Alberto Caeiro, também expressou a relação materna que temos com a língua ao dizer em um de seus poemas que não escolhemos nosso idioma materno, e o compa-ra a uma característica genética, como, no caso de Alberto Caeiro, cabelos loiros e olhos azuis.

De fato, não escolhemos a língua que fala-mos. Não obstante, a relação que criamos com ela é uma relação bastante familiar, pois é através dela que realizamos milhares de tarefas diariamente. Falamos português, escrevemos

em português, lemos português, pensamos em português. E, para nós, nenhuma outra língua substitui o português. Nele nos sentimos livres. Conhecemos seus mecanismos e os usamos para melhor expressar nossas idéias. Admiramos sua capacidade poética e suas peculiaridades.

Dessa forma, a língua passa a ser algo mais do que um instrumento usado por nós para a comunicação. A língua passa a ser a nossa identi-dade. Mas essa identidade vai mais além do que nacionalidade ou grupo cultural. Sabemos quem somos porque falamos português. A nossa rela-ção com a língua deixa de ser instrumental e passa a ser, de fato, familiar. O português passa a ser, de certa forma, nossa mãe. Como cantou Caetano Velos, “minha língua é minha pátria. Eu não tenho pátria, tenho mátria”.

LínguA, PátriA, mátriA

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Era uma manhã de terça-feira quando o vi pela primeira vez. Dois amigos meus me acom-panhavam numa das então regulares e longas caminhadas pela baixada do Glicério, entre a Liberdade e a Zona Leste. Estávamos captando material para um documentário que iríamos produzir sobre a população de rua na cidade de São Paulo e, para tal, estávamos dormin-do, por aquela semana, num dos albergues do bairro, mantido por uma parceria entre a pre-feitura e uma associação beneficente.

Morava embaixo de um dos vários viadu-tos da região. Acima, milhares de automóveis passavam diariamente, entrando ou saindo da Radial Leste. Foi-nos apresentado por um amigo, também morador de rua. Tinha cabelos cheios e lisos; uma franja caía-lhe sobre a testa. Ostentava uma barba relativamente grande, mas não muito. Quase não falava, mas algo em sua expressão revelava certa genialidade oculta. Coube a seu amigo nos dizer quase tudo que deveríamos saber sobre ele: era um artista. Esculpia em blocos de concreto celular. Às ve-zes era chamado para participar e até ministrar oficinas na Universidade de São Paulo (USP) e ganhava algum dinheiro por isso, que mantinha em sua conta, sem gastar, a não ser com bebida de vez em quando. Certa vez, algum doador anônimo depositou uma soma considerável de

dinheiro em sua conta. O presente não foi bem recebido. Ele tentou, sem sucesso, localizar o doador e devolver a quantia.

No dia em que o conhecemos, uma grande rede de televisão iria até o Glicério entrevistá-lo. Conhecemos sua psicóloga, um doutora da USP. Ela era encarregada de guardar as peças que ele havia esculpido. Nos mostrou peças que revelavam toda a sensibilidade e também o arrojo do artista.

Mais tarde ele nos mostrou onde morava; um pedaço de lona estendida que formava uma espécie de barraca protegendo sua cama. Ao lado, um saco cheio das mais diversas peças que ele havia coletado para usar em usas obras. Não parecia envergonhado de nos mostrar a situação em que vivia. Também não se mostrava orgulhoso. Sua expressão era sempre a mesma; calada, genial, e, de certa forma, misteriosa.

Voltei para o albergue aquele dia procu-rando o motivo que o mantia ali, embaixo do viaduto. Não encontrei nenhum que satisfizesse minha razão, provavelmente corrompida pelos desejos supérfluos do “quero” consumista da realidade que vivo. O artista do viaduto tinha tudo o que precisava. Talvez ele fosse realmente mais sábio e mais feliz do que eu ao escolher permanecer ali. Foi a impressão que seu quase absoluto silêncio me passou.

O ArtiStA dO viAdutO

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quAndOO bAnhOficOu mAiSdivertidO

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O salão estava cheio. A nata da sociedade londrina estava presente no evento. Podia-se ouvir o burburinho do público especulando qual seria o tema da apresentação daquela noite. Todos ali haviam recebido um convite especial para o evento, realizado por uma companhia não muito conhecida no país. Ninguém real-mente sabia do que se tratava, mas podiam imaginar que seria o lançamento de alguma nova invenção, e isso os deixava muito empolgados, pois gostavam de estar informados sobre as nascentes tecnologias que mudariam o mundo, naquele otimista século XIX. De repente todos se ajeitaram em seus lugares, pois o mestre-de-cerimônias havia acabado de sair detrás da cortina, e começado seu discurso.

“Boa noite senhoras e senhores! É um prazer tê-los aqui nesta agradável noite. Vocês poderiam estar em qualquer outro lugar, mas escolheram vir até aqui, e esperamos que to-das as suas expectativas sejam satisfeitas. Algum tempo atrás nossa companhia enviou para vocês um convite especial para este evento, e hoje queremos oferecer-lhes em primeira mão a oportunidade de conhecer um produto que irá revolucionar a maneira que seus filhos tomam banho”. Todos se olharam com um ar, de certa forma, estupefato. A senhoras, em seus longos vestidos, começaram a se abanar nervosamente com seus leques. O mestre-de-cerimônias con-tinuou. “Com certeza, a partir de hoje, será muito mais fácil banhar suas crianças. Não mais choro. Não mais crianças fugindo molhadas pela casa encharcando os tapetes persas que tanto lhes custaram. Ao contrário, elas terão prazer em tomar banho, pois será para elas demasiado divertido”. Houve uma pausa; era possível ouvir alguns senhores tossindo discretamente.

“Esse novo produto desenvolvido por nos-sa companhia envolveu a pesquisa de uma nova forma de produção, a fim de lidar com um ma-terial que faz poucas décadas se percebeu ser de grande utilidade para a indústria de nosso país. Esse material de que falo, a borracha, de fato, abriu novas possibilidades na indústria, dentre as quais a que eu lhes apresentarei. É necessário salientar que a borracha que usa-mos é da mais alta qualidade, selecionada e importada especialmente da exótica floresta tropical brasileira pela nossa empresa, com a finalidade de garantir maior durabilidade.” As senhoras começaram a abanar seus leques ain-da mais rapidamente.

“Vocês devem ter notado”, continuou, “que aqui à frente há um volume coberto por um pano branco, que eu agora terei o prazer de lhes revelar o conteúdo”. De fato, algum tempo atrás alguns funcionários haviam empurrado um volume de tamanho considerável para o meio do palco; quatro homens haviam sido necessá-rios para tal tarefa. O mestre-de-cerimônias deu alguns passos até objeto coberto e parou, como se para aumentar o suspense. Chamou dois funcionários que rapidamente removeram o lençol branco. O salão se encheu de espanto. Os homens faziam comentários entre si. As mu-lheres que ainda podiam abanar seus leques mais rápido, o fizeram. Uma ou duas desmaiaram.

O objeto era muito menor do que pensavam. Quase não dava para vê-lo à distância. O lençol, na realidade, estava cobrindo uma banheira che-ia de água, e dentro dela boiava, placidamente, o motivo de todos estarem naquele salão. No meio da banheira flutuava, impávido, desafiando os raciocínios mais complexos, um patinho de borracha amarelo.

quAndOO bAnhOficOu mAiSdivertidO

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O cheiro de água salgada carregado pelo vento que vem da costa. Estou chegando. Minha memória divaga e posso sentir mais uma vez todo o joie de vivre causado pelas mais diversas sensações, aromas,e texturas que vêm à minha mente: O calor do sol da manhã sobre a pele. Mais do que apenas a brisa trazendo o aroma do mar, posso ouvir o som das ondas quebran-do na praia. A luz da manhã enchendo a casa. A aspereza quase suave da areia entre meus dedos... Mas ainda não cheguei. A memória se dissipa e eu me concentro no caminho à frente.

Atravesso o estreito que separa a ilha

do continente. Imagino como seria estar no mar abaixo, acariciado pelo vento que forma pequenas ondulações na superfície da água. À frente, a cidade me lembra milhares de agulhas emergindo da terra ao redor dos morros. Rio internamente ao notar que, contrariando a im-pressão que tenho de que o mercado municipal é a apoteose amarela, a luz do sol da tarde sobre o prédio consegue intensificar ainda mais a cor do edifício. Mas não é a cidade que me interessa.

Sigo em direção ao sul da ilha por uma rua estreita, curvilínea, ladeada de pequenas ca-sas e cruzada por outras milhares de ruas tão

NOSTALGIA

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estreitas e curvilíneas quanto esta, herança da colonização açoriana. Posso enxergar, mais abaixo, invadindo um espaço antes reclamado pelo mar, a larga via expressa construída pelo governo a fim de aliviar o trânsito nas vielas que permeiam a costa interior da ilha e conduzir os turistas mais rapidamente a seus destinos. Mas a rapidez ou a superficialidade oferecida pela nova avenida não me atraem; pelo contrário, procuro absorver cada talhe das construções, cada forma na paisagem, cada expressão do lo-cal, como se para imprimi-los em minha mente.

Dirijo-me ao interior da ilha. Extensos

campos, desprovidos de árvores, conferem um tom verde-claro à paisagem, pontilhada apenas por algumas poucas casas coloridas, aqui e ali. Outras parecem ainda querer escalar os mor-ros, onde a pastagem ainda não se aventurou. Pequenas valetas e lagos preenchidos com uma água de cor escura revelam que esses campos foram, outrora, um pântano ou um mangue, hoje drenado com o objetivo de suprir as neces-sidades humanas (seriam tão necessárias assim?).

Um zunido denuncia o aumento da presença humana, com todos os seus ruídos. A ruela volta a cercar-se de casas e pequenas lojas. Percorro esse labirinto para finalmente poder ver o mar aberto. Cheguei à parte exterior da costa. Meus olhos relaxam procurando o horizonte na imen-sidão de água à minha frente. Passo por várias vilas e praias, mas não é a elas que vou. A certo ponto, o mar azul encontra o morro, e a estrada, com dificuldade, se apóia no rochedo, como um fio tênue a separar a água da terra. Posso ouvir o ribombar das ondas contra o penhasco. Estou quase lá. Um sentimento de nostalgia toma con-ta de mim ao poder respirar os ares daquela vila de pescadores que frequento, quase todo verão, desde minha infância. Começo a sentir como se já fizesse parte de tudo aquilo, desde o começo.

Do meu lado direito, pequenas servidões (ruas muito estreitas que adentram terrenos que antes eram uma só propriedade) sobem os morros, dando vista privilegiada às casas que se encontram ao fim delas. Entro em uma des-sas ruas. Paro em frente a uma casa. Desço do carro e, intuitivamente começo a caminhar até a praia, como se não fosse mais a minha vontade que dirigisse minhas ações.

A caminhada até dura cerca de dez minutos, por ruas ladeadas de sete-copas e outras ár-vores. Passo em frente de várias pequenas lojas

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e pousadas. Vejo casas antigas, com quintais de tamanho considerável; outras, mais novas, têm um quintal menor. Uma delas exibe alguns os-sos de baleia na frente, indicando a atividade econômica que provia a sobrevivência da co-munidade no passado. Avisto, no final da rua, a pequena capela, branca e amarela, construída em 1772, que parece estar inabalavelmente olhando para a praia. Caminho em direção a ela e posso ver o mar. Sinto-me como se eu

também tivesse visto os pescadores recolherem suas redes dos barcos todas as manhãs, desde os tempos mais remotos.

Desço as escadas que levam à praia. Descalço-me. Agora posso sentir a areia sob meus pés. Começo a caminhar pela praia e a ob-servar os montes que a cercam. Sobre um deles, numa das extremidades da praia, é possível ver um monastério placidamente voltado para o mar. Na outra extremidade, um pequeno canal

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e uma ilhota, acessível a pé somente quando a maré não está alta ou por uma passarela cons-truída recentemente, são os únicos acidentes geográficos que separam esta da próxima praia.

Começo a andar em direção à ilhota. Vejo os barcos coloridos dos pescadores parados na arei-a esperando até a noite, quando serão utilizados para prover pão aos moradores da vila. Alguns outros barcos, ancorados na praia, balançam de leve acompanhando as ondulações na água.

A areia já não é abundante, devido a uma grama rala, mas verdejante, que cobre toda a superfície da ilhota. Alguns arbustos e árvores dividem a paisagem com rochedos que pare-cem brotar da terra. Na parte mais baixa da ilhota, dois trapiches provêem ancoradouro para as escunas que levam, diariamente, turis-tas a uma ilha não muito distante dali. A partir da ilhota, é possível ver a praia em toda a sua extensão. Sento-me em um dos penedos e começo a observar a praia ao longe. Sinto a brisa no meu rosto. Ouço as gaivotas brigando pelos peixes deixados na praia pelos pescado-res. Ouço também, como um murmúrio na distância, o som de meninos jogando futebol na areia e o quebrar das ondas nas rochas. Mais perto de mim, nos trapiches, um barco deixa os turistas após um dia de sol na ilha. A luz amarelada do sol sobre as casas parece criar um halo sobre a vila. A torre da capela sobres-sai-se sobre os telhados. Algumas sete-copas, mais altas do que as casas, também ganham destaque na paisagem. Penso em levantar-me e voltar para a casa que aluguei para as férias, mas me sinto tão bem onde estou que poderia ficar aqui para sempre.

Lá na praia, vejo a silhueta dos surfistas, quase que reduzidas a pontos pela distância, carregando suas pranchas no braço ao voltarem para casa. Aos poucos a praia vai ficando vazia. A luz do sol deixou de ser amarelada, e está quase vermelha. Uma ou duas estrelas parecem querer apressar o fim do dia. As luzes se acen-dem nos postes, nas casas, nos restaurantes. A noite cai e eu permaneço aqui. Sinto as ondas que, incessantemente batem na praia. A lua, no alto, parece sorrir ao ver seu reflexo sobre mim. Noto que não mais vejo a praia. Agora, sou a praia.

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Letargia

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Me deito no sofá. Tento ler alguma coisa so-bre teoria literária mas vários pensamentos (ou a ausência deles) obscurecem minha mente e me tiram a capacidade de concentração. Meu olhos passam pelas linhas do livro como se fos-sem autômatos, sem nenhuma vontade própria, e parecem não transmitir nada mais ao meu cérebro além da imagem de linhas alternadas de letras e espaços brancos, que parecem se em-baralhar cada vez mais, formando uma mancha cinza no papel. Minha mente divaga pelo nada. Aos poucos, o vácuo passa também a preencher todos os outros sentidos. Não mais distingo o som dos carros passando na rua abaixo da so-nata de Beethoven que toca ao fundo. Os dois se misturam num só zunido. Minha respiração vai perdendo o ritmo até ficar lenta e audível, pa-recendo ter sido vencida pelo ar abafado, quase espesso, característico dos dias úmidos e quentes do verão. Meu corpo entra num estado letárgico que, tenho a impressão, durará eternamente.

De repente, minha ilusão de eternidade acaba. Aparentemente algo mudou, mas minha mente entorpecida não consegue identificar a razão da interrupção. Sim, perto da janela, ou através dela, com certeza alguma coisa mudou. Levanto meus olhos do livro e os direciono para o que parece se a fonte daquele movimento súbito que havia sido captado somente pela minha visão periféri-ca. Teria sido uma coruja ou algum outro pássaro noturno que pousara no parapeito?

Tento focar a janela, mas meu corpo res-ponde aos meus comandos apenas muito lentamente. Aos poucos a visão vai clareando e já é possível distinguir o que está deste lado do que está além do vidro da janela.

Um retângulo de luz amarelada. Não; não

estava ali antes. Uma janela no prédio vizinho? Embora agora possa enxergar claramente as formas, minha mente parece adormecida, inca-paz de identificar o que havia tirado meu corpo de seu estado inerte. Não que eu ainda não estivesse num estado de letargia tão intenso quanto antes; ao contrário, continuava ouvindo o mesmo zunido, respirando o mesmo ar abafa-do. E além disso, minha capacidade de raciocínio lógico estava tão comprometida quanto alguns minutos atrás. Parecia que apenas meus olhos haviam notado aquela luz que interrompera a inércia que tomava conta de mim.

Aos poucos, e de maneira fantasiosa, minha mente começa a responder ao estímulo visual. Apenas que, ao invés de identificar ra-cionalmente o que é o retângulo luminoso que perturba a escuridão da noite, ela parece intera-gir com ele, criando a ilusão de que ele hora está mais próximo, hora mais distante. E por mais que eu tente fazer meu corpo reagir inteligente-mente àquela luz que interrompera a ilusão de eternidade da qual eu havia recém-emergido, esse esforço se revela completamente vão.

Gradualmente, o zunido começa a ficar cada vez mais intenso e passa a ocupar toda minha mente, tolhendo de vez toda minha capacidade de discernimento e tirando todas as minhas es-perança de chegar a alguma conclusão coerente sobre o retângulo luminoso que… agora parece ter-se apagado. A escuridão da noite volta a ser única coisa visível através da janela e tenho a impressão de que ela começa invadir meus pensamentos e obscurecer meu raciocínio. Minha visão volta a ficar turva. O zunido fica um pouco mais suportável e agora parece até estar dentro de mim. Adormeço.

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Para quem passava na rua abaixo, Isabel e eu, no topo do prédio, não passávamos de silhuetas mínimas contra o céu cinzento de São Paulo. E, realmente, talvez não passássemos disso. Mas, lá em cima, estávamos alheios ao mundo abaixo, e nos ocupávamos apenas de nossos pensamentos, sincronizados quase que telepati-camente. A massa de prédios se entendia por quilômetros à nossa frente até se fundir com o horizonte nublado. Olhei para Isabel. Seus olhos orientais acompanhavam, lentamente, um he-licóptero à distância. Seus cabelos, negro e lisos, chicoteavam levemente sua face, balançando desorganizadamente ao vento.

Essa era a primeira vez que nos encontrá-vamos, mas parecia que conhecíamos tudo um do outro; todos os pensamentos, os sentimen-tos ocultos, as vontades arrebatadoras, os tédios diários, as crises de raiva, os lapsos criativos, os atos irracionais de amor. Quando nos vimos pela primeira vez, algumas horas atrás, ela apenas me olhou nos olhos e me disse seu nome. Mas eu já sabia; dentro de mim, eu sabia. E sabia que éra-mos dirigidos pela mesma força, que regia nossas vidas, e nos havia guiado até ali. E ela também sabia. Nenhuma outra palavra foi necessária pelas próximas horas. Em meu interior, eu conhecia toda a sua história, e ela à minha, pois as duas se confundiam numa mesma teia tecida pelo des-tino. Nossas trajetórias eram iguais, e estávamos ali pelo mesmo motivo: assistir ao fim do mundo.

“O que você mais anseia?”, me perguntou ela, como se participasse de um ritual. “Este

momento”, respondi; e continuei, “você res-ponderia a mesma coisa se eu te perguntasse, porque desde que nasceu teve esse sentimen-to, essa vontade, incontrolável, de ver o fim”. “De fato”, respondeu Isabel, “e agora que es-tou aqui, que essa vontade vai ser finalmente satisfeita, me sinto incomodada, ansiosa, como se tivesse alguma coisa fora do lugar”. Olhei dentro de seus olhos negros. A inquietação que os consumia apenas os deixava mais be-los. “Também me sinto assim, mas acho que é normal. É como se eu fosse uma criança na vés-pera do natal, sabendo que vai ganhar aquilo que esperou todo o ano”.

Permanecemos mais algum tempo ali, imóveis, inclinados sobre a única coisa que nos separava do abismo: o parapeito que cercava toda a cobertura do edifício. De repente, senti que o momento que tanto esperávamos havia chegado. O chão começou a tremer; a intensi-dade do tremor aumentava gradativamente. Já podíamos ver vários dos outros prédios da ci-dade desmoronando. Sólidas construções eram reduzidas a entulhos. As pessoas na rua corriam desesperadas de um lado para o outro, sem sa-ber o que fazer. E realmente não havia nada a se fazer. Poucos segundos antes de desabarmos juntamente com o nosso prédio Isabel se vira para mim e, serenamente, me diz, “Agora que o mundo está acabando você parece bem mais feliz”. E eu sabia que ela também estava. Segurei em sua mão e mergulhamos no vazio que se abria sob nossos pés.

O fim

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