Lesbicas

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Portugal / Cont. ESC 772$80 (3,85 ) USA US$ 6.00 www.epoca.com.br ELEIÇÃO A guerra final pela TV BOA FORMA Quando a cirurgia que reduz o estômago vale a pena ISSN 1415-5494 9 771415 549002 00222 R$ 5,50 N o 222 19 agosto 2002 ELAS ASSUMEM ELAS ASSUMEM As homossexuais brasileiras ocupam espaço público e afirmam sua orientação sexual com dignidade As homossexuais brasileiras ocupam espaço público e afirmam sua orientação sexual com dignidade LÉSBICAS Ângela Prado, 29 anos, psicóloga, que participará do programa Fica Comigo, da MTV Ana Paula de Oliveira, 27 anos, comerciante Raíssa do Amaral, 22 anos, secretária STIGLITZ Mercado louco ameaça o Brasil

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Esse artigo é uma reportagem publicada pela revista Época, e trara do lesbianismo no Brasil

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BOA FORMAQuando a cirurgia que reduzo estômago vale a pena

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R$ 5,50 No 222 19 agosto 2002

ELAS ASSUMEMELAS ASSUMEMAs homossexuais brasileiras ocupam espaço público e afirmam sua orientação sexual com dignidade As homossexuais brasileiras ocupam espaço público e afirmam sua orientação sexual com dignidade

LÉSBICAS

Ângela Prado,29 anos, psicóloga,que participará do

programa Fica Comigo, da MTV

Ana Paula de Oliveira, 27 anos,

comerciante

Raíssa do Amaral,22 anos, secretária

STIGLITZMercado loucoameaça o Brasil

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ESPECIAL

As lésbicas saem do armário, queremter filhos e admitem até mesmorelacionamentos com homens

Um espaço

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JOÃO LUIZ VIEIRA

Há algo de novo nasruas e quem anda deolhos bem abertos jádeve ter percebido. Aslésbicas estão cada vezmais à vontade. Come-

çam a deixar os tradicionais guetos ho-mossexuais para se expor publicamen-te. Andam de mãos dadas em livra-rias da moda, cinemas, restaurantes esupermercados. Às vezes arriscam tro-cas de carinhos nos cabelos e até bei-jos. Fazem isso sem constrangimentoe, freqüentemente, com muita femi-nilidade. Não há nada nessas garotas

que lembre aquele antigo estereótipomasculinizado. Elas são elegantes, cui-dam do corpo, gostam de maquiageme usam roupas sensuais. O novo uni-verso homossexual feminino ganhoucomplexidades que não faziam parteda vida das militantes gays do passa-do. Atualmente, as lésbicas que não sãomães planejam se tornar algum dia – enão necessariamente com os recursosda fertilização em laboratório. E mais:a maioria delas não descarta a possibi-lidade de eventualmente namorar ra-pazes. “Como o termo ‘lésbica’ aindaé carregado de significados negativos,muitas garotas buscam um caminhomais experimental e preferem ficar em

 N G E L A P R A D O29 anos, paulistana, psicóloga

os limites deles. Dois anos depois,eles terminaram me aceitando me-lhor. Meu pai chegou a convidar umade minhas namoradas para um jan-tar em sua casa – e ele mal cozinha,foi apenas uma forma de reaproxi-mação. Quanto às pessoas mais jo-vens, foi menos traumático. Não per-di amigos, meus irmãos e meus so-brinhos sabem e reagiram superna-turalmente. Passado algum tempo,morei na Austrália durante três anose recebi visto de residente por cau-sa de um relacionamento com ou-tra mulher. Foi uma experiência fan-tástica conhecer uma sociedade on-de as diferenças são respeitadas.

Para mim, ir para o Fica Comigo, naMTV, faz parte de um processo. Es-tou unindo o útil ao agradável, já queestou solteira há dois anos. Namoreimeninos na minha adolescência atéme apaixonar por uma amiga, aos 17anos. Ela era heterossexual e aindaé até hoje. Só que, como eu, teve acuriosidade de experimentar. Fica-mos juntas oito meses. Fui a únicamulher da vida dela. Contamos paranossos pais e não fui bem recebidaem casa. Eles cortaram minha mesa-da, tentaram proibir, mas continueia encontrar minha namorada escon-dido. Meus pais são conservadores enaquela hora precisei compreender

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conquistado

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cima do muro”, diz Paola Patassini,mestre em comunicação e semiótica,com especialização em sexualidade hu-mana pela Pontifícia Universidade Ca-tólica de São Paulo. “Lésbica em várioscasos pode ser mais uma questão de‘estar’ que de ‘ser’.”

O descompromisso com a bandei-ra gay e com a própria condição ho-mossexual tem contribuído para o au-mento da exposição. Em outubro, aMTV deve levar ao ar a edição total-mente feminina do programa Fica Co-migo, apresentado por Fernanda Li-ma. Já existe uma “querida” – a mo-ça que, no palco, escolherá uma en-tre as várias pretendentes que se ins-creveram pela internet para a versão

moderna do Namoro na Tevê. Apaulistana Ângela Prado, de 29anos, foi a selecionada. No pro-

grama, depois de três eliminató-rias, ela elegerá a finalista entre ascandidatas – já são mais de 50 –e dirá se aceita beijá-la na boca, ao

vivo, diante das câmeras. “Não estouansiosa. Eu sou a oferta, espero pelademanda”, brinca. O assunto está namoda. No mês passado, na FashionRio, o desfile mais aplaudido foi o dagrife Totem, que levou o casal Vanes-sa Andrade, de 23 anos, e Bianca Ja-hara, de 30. A Parada Gay deste ano,em São Paulo, teve como tema princi-pal as mulheres homossexuais e maisde 150 mil delas desfilaram em ple-na Avenida Paulista, numa cena atérecentemente inimaginável.

Lá fora, o fenômeno é notado commaior intensidade ainda. Celebridadescomo as atrizes Winona Ryder, Christi-na Ricci e Angelina Jolie, por exemplo,já admitiram flertes homossexuais. Ju-lia Roberts, a mulher mais poderosa deHollywood, foi flagrada por paparaz-zi aos beijos com uma “amiga” numadiscoteca de Nova York – o que não äD

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ANA PAULA DE OLIVEIRA27 anos, pernambucana,

comerciante, vive em São Paulo

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nas ganharam passaporte para sair doarmário quando começaram a viver daprópria renda. Uma moça solteira e in-dependente, que vive sozinha, tem mui-to mais dinheiro para gastar que umadona-de-casa. “Como são financeira-mente livres, podem escolher o cami-nho que quiserem”, explica o médicoJairo Bouer, especialista em sexualida-de adolescente. A luta pela liberdadesexual da geração que hoje tem filhose filhas foi outro fator que facilitou a vi-da dessas garotas. “A revolução sexualdos anos 60 mostrou que arranjos so-ciais, costumes e normas não são eter-nos e podem ser mudados”, diz a dou-tora em educação Guacira Louro, daUniversidade Federal do Rio Grande doSul, especialista em sexualidade.

As estatísticas indicam que cerca de10% da população mundial já teve al-gum tipo de experiência com pessoasdo mesmo sexo, em algum ponto davida. Considerando que no Brasil há48 milhões de jovens entre 15 e 29anos, a chamada Geração Milênio de-ve ter cerca de 5 milhões de gays, lés-bicas, bissexuais e pessoas que estão“experimentando”. Aparentementeesse universo não está crescendo, mas

a impediu, no mês passado, de se ca-sar com um homem. No primeiro video-clipe da dupla pop Tatu – Yulia Vol-kova, de 15 anos, e Lena Katina, de 16,duas cantoras russas que seguem o es-tilo Britney Spears –, elas aparecem sebeijando na boca e cantando: Eu nãosou ninguém sem ela/ Perdoem-me,papai e mamãe. O seriado americanoSexo e a Cidade, exibido na TV por as-sinatura, vai mostrar na próxima tem-porada a brasileira Sônia Braga – quejá admitiu experiências com mulhe-res no passado – no papel de uma lés-bica que conquista uma das protago-nistas. Os programas de TV america-nos agora incluem sem medo persona-gens de mulheres gays. E, diferente-mente do que ocorria no passado, nopapel de mocinhas. Em Buffy, a Ca-ça-Vampiros, um dos mais popularesentre os adolescentes, o casal de me-ninas Tara e Willow passa as cenas tro-cando beijos e carinhos. Xena, a Prin-cesa Guerreira, divide o leito com suafiel escudeira, Gabrielle. “A glamouri-zação do tema, com a moda do lesbianchic, ajudou a diminuir o preconceito”,teoriza a cantora e militante Vange Leo-nel. “Foi o mesmo efeito que o movi-

mento black is beautiful teve, nos anos60, em relação aos negros.”

“Sem dúvida é menos complicado as-sumir hoje do que seria há algunsanos”, diz a secretária Raíssa Correiado Amaral, carioca de 22 anos que mo-ra em São Paulo e está à procura deuma namorada. Raíssa é o exemplo tí-pico da nova geração de lésbicas. Nãoestá interessada em militância gay equer mesmo é ser bem-aceita em casa.Há três meses, quando conversou coma mãe depois de um almoço de sába-do, Raíssa não foi deserdada, rejeitada,nem ouviu sermões. A viúva TerezinhaRaposo, de 47 anos, prometeu se esfor-çar para entender a filha. Apenas nãoescondeu seus limites. “Quando elatrouxer a namorada aqui em casa, fin-girei para mim mesma que são ami-gas”, conforma-se. “Costumamos fa-zer planos para os filhos, mas eles sócumprem se quiserem.”

A maior liberdade que as lésbicas dehoje encontram para assumir sua opçãotem uma explicação simples e pouco ro-mântica: a independência financeira.Assim como as mulheres ganharam vozativa ao entrar no mercado de traba-lho em meados do século XX, as meni-

Namoro desde os 16 anos. Tive pou-cos namorados, queria ter certeza segostava de meninos ou meninas. Dis-farçava o tempo todo. Sou filha de mi-litar, tive problemas com meus pais.Cheguei a sair de casa e uma tia aju-dou a me reaproximar deles. Hoje,acho que vale a pena ser verdadei-ra. Dia desses, dei um beijo de línguana minha namorada numa lanchone-te. Adolescentes pararam de comere vieram nos perguntar se éramos ar-tistas. Os homens têm fetiche porduas mulheres, mas ainda queremsaber quem é o ‘homem’ e a ‘mulher’,como se isso acontecesse conosco. Ahomossexualidade é só um pedaçoda minha vida. E isso não quer dizer,inclusive, que eu não possa ser mãe.Só não decidi como, ainda.

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ganhando visibilidade. Um dos mo-tivos para isso é a internet. “As ga-rotas descobriram que não estão sozi-nhas. Elas trocam confidências on-li-ne, publicam anúncios à procura deparceiras e ficam sabendo de avançospolíticos e sociais em outros países”,teoriza Laura Bacellar, dona da Edi-ções GLS, fundada há quatro anos. Emsaraus literários mensais, Laura reúnegrupos de mulheres que gostam demulheres para discutir ficção e vidareal. Antes eram umas dez por sessão.Hoje elas já passam de 100.

Uma pesquisa encomendada pelaMTV ajuda a entender a geração queaceita essas garotas. Os jovens de ho-je são mais individualistas que no pas-sado – portanto, menos preocupadosem dar satisfações da própria vida. Sãomais tolerantes em relação a diferen-ças – por isso, não fiscalizam as opçõessexuais dos amigos. E criam sua iden-tidade por meio do consumo, o queobriga o mercado a conhecê-los e sa-tisfazê-los, seja qual for a tribo à qualpertençam. Na cidade grande, as lés-bicas são apenas mais uma das tribos,como os skatistas, os metaleiros ou osclubbers. Tribo cada vez mais visível.Quando a agência de publicidade LeoBurnett criou a campanha para a Fiat,com o slogan “Está na hora de você re-

MARIANA ARRAES23 anos, carioca,

estudante

Hoje é possível levar uma vida li-vre de preconceitos. Faço faculdadede dança e meus colegas de cursotêm a cabeça aberta. Mas tenhoconsciência de que freqüento luga-res mais liberais. Sei que muitas mu-lheres sofrem preconceito. Eu mes-ma me atormentei durante anos.Meu irmão, apesar de jovem, não to-lera minha escolha. Quando tomeiconsciência de que me sentia atraí-da por garotas, tentei lutar contraaquilo. Tinha nojo. Tinha uma idéiafalsa de que, se continuasse fican-do com garotos, deixaria de ser lés-bica. Mas nunca senti nada, nenhumprazer. Num dado momento, tive cer-teza da minha homossexualidade,mas o problema eram os outros: nãocontava nem para minhas amigas ín-timas, tinha medo da reação delas.Preferia esconder. Eu era uma pes-soa solitária. Até que vi um casal delésbicas na novela Vale Tudo e medei conta de que gostar de mulheresnão era defeito nem doença. Aindaassim, fui casada por quatro anoscom um homem. Não fui feliz. Quan-do me separei, decidi assumir.

ver seus conceitos”, decidiu incluir umcomercial em que um casal lésbico vaia uma reunião de pais, na escola.“Concluímos que a sociedade já temuma relação mais saudável com as mu-lheres homossexuais”, diz Felipe Lu-chi, um dos diretores da agência. Hádois anos, o faturamento das 30 em-presas que compõem a Associação dosEmpresários GLS do Brasil cresceu30%, contra os 4% da economia nacio-nal no mesmo período.

A cena de garotas beijando garotasprovoca cada vez menos surpresa nanoite das grandes cidades. Em SãoPaulo, há 20 boates e bares dirigidos aesse público. Em Salvador e no Reci-fe já se vê uma paisagem nova na noi-te, com lésbicas freqüentando ambien-tes heterossexuais ao lado das namo-radas. No Rio de Janeiro, junto da tra-dicional Le Boy, a mais famosa boategay da cidade, abriu recentemente aLa Girl, com pista de dança de mármo-re cor-de-rosa e dançarinas de biquínidentro de gaiolas de ferro. A dance-teria Bunker94 organiza todo domin-go um baile que virou tradição – ba-tizado sutilmente de Discotcheka. Aestudante Juliana, de 22 anos, conta quena boate GLS Bastilha, no bairro deBotafogo, cada vez encontra mais ga-rotas em busca de novas emoções. ä

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“Já fiquei com mais de uma que nun-ca tinha tido nada com mulher e pre-tendia apenas experimentar”, diz. Apoucas mesas de distância, a analis-ta de sistemas Lívia, de 23 anos, contaque gosta de mulheres, mas mantémum namoro com um rapaz. “Sou tími-da e é difícil até para mim mesma en-tender o que acontece. Nas boates hé-tero, vou com o namorado. Quando es-tou lésbica, venho aqui”, resume.

Boa parte das mulheres que dizem“estar” homossexuais explica sua de-cisão por falta de paciência com os ho-mens. “Alguns com os quais me en-volvi falharam quando precisei de umcompanheiro”, diz a estudante Ca-

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ITA CATRINA 33 anos, pernambucana, auxiliar-administrativa

Assumir meu desejo por outras mu-lheres não foi fácil. A educação nor-destina é muito centrada nos valo-res tradicionais. Mantinha minha es-colha em segredo, preocupada com aopinião dos meus pais e da vizinhan-ça. Só aos 26 anos consegui ir a umafesta GLS. Percebi, então, que não eranenhum bicho-de-sete-cabeças. Des-cobri que havia garotas como eu, enão apenas mulheres masculinizadas.Logo depois comecei a namorar umamenina e decidi abrir o jogo em casa.Minha mãe deu apoio, mas meu pai

até hoje prefere fingir que não sabede nada. Às vezes, ele fica falandobarbaridades sobre gays na minhafrente, mas não ligo mais. Tirei um pe-so das costas e deixei de ser introver-tida. Acho muito legal ver que de unscinco anos para cá as garotas estão selibertando com mais naturalidade.Mas ainda existem aquelas que man-têm um namoradinho de fachada. Mi-nha atual namorada, por exemplo,sempre teve desejos por mulheres,mas se mantinha hétero. Ela está de-cidindo como contar para a mãe.

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Século VI a.C.DA GRÉCIA ANTIGA ÀS PASSEATAS

Safo (à dir.),poetisagrega quecantava

suas amantes,é a primeiralésbica famosa.Lesbos, a ilhaonde vivia, deuorigem aotermo

l Século XVIBrasileirasacusadas delesbianismo sãojulgadas pelaInquisição. Das 29,há apenas duas viúvas e uma solteira. As demais são casadas

l Anos 40Estudos deAlfred Kinseyrevelam quea quantidadede pessoasque têmdesejo porgente domesmo sexoé maior queo imaginado

lSéculo XX – Anos 20Os “anosloucos”,em Paris e Berlim,colocam em voga a androginia e bissexuais,comoMarleneDietrich

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A homossexualidade feminina é tão antiga quanto a própria humanidade

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rolina Franchon, paulistana de 22 anos,que namora uma editora de arte. O ar-gumento mais freqüentemente ouvi-do nesse grupo é que, com a liberda-de sexual, os homens não estão maisinteressados em criar vínculos, mos-tram-se pouco dispostos a conversar eesquecem as gentilezas.

Apesar da crescente liberdade, a vi-da não é toda cor-de-rosa para as ga-rotas que saem do armário. A estudio-sa Guacira Louro ressalta que a ten-dência geral ainda é a discriminação.“Continua difícil assumir um estilo devida que foi visto durante tanto tem-po como desvio, pecado, doença”, diz.Se a independência financeira facili-

ta a aceitação das jovens de classe mé-dia, as mais pobres não têm essa chan-ce. “Mulher de periferia não pode as-sumir, porque apanha do pai, é discri-minada no bairro e pode até perdero emprego”, afirma a carioca Danie-la Duarte, de 21 anos, que trabalha nu-ma organização não-governamentalde defesa das mulheres.

Na intimidade familiar, de modo ge-ral, a crise é inevitável, até na classemédia. Mesmo que não reajam demodo drástico, os pais costumam sedecepcionar profundamente quandodeparam com a situação. E aí se per-guntam: “Onde foi que erramos?” Éuma reação compreensível. Os pais ä

ÉPOCA 24 DE JUNHO, 2002

Anos 80Paíseseuropeuscomeçam adefinir leis emque o direito à união civilnão serestringe aosheterossexuais.O primeiro é a Dinamarca

l Anos 90Celebridades,como EllenDeGeneres eAnne Heche,lançam modaposandooficialmentecomo casal.Outrasfamosasassumem

l HojeLésbicasaparecem comdestaque emcampanhaspublicitárias e a Justiçaconcede aguarda decrianças a casaishomossexuais

lAnos 60-70Ao mesmo tempo que a AssociaçãoAmericana de Psicologia retirou o homossexualismo de sua lista de doenças, mulheres saem às ruas pregando a liberdade sexual e o direito às diferenças

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RAÍSSA DO AMARAL22 anos, carioca, secretária,

vive em São Paulo

Denise Adams/ÉPOCA

Perdi a virgindade cedo e namoreimuitos homens. Fui amante de umcasado, tive um filho e pode ser queum dia volte a namorar rapazes. Nomomento estou desencantada. Nãoacho que os homens sejam confiá-veis. Quando resolvi namorar umamulher, não sabia por onde come-çar e decidi colocar um anúncio nainternet. Cheguei a conhecer umamenina que não queria um relacio-namento fixo, pois já tinha namora-do. Isso é bem comum, aliás. Essacoisa de separar amor e sexo, queos homens sempre fizeram, é des-coberta recente para mulheres co-mo eu. O curioso é que muitos ho-mens responderam ao anúncio. Elesnão se conformam que uma mulherpossa preferir outra. Depois de umtempo, encontrei uma garota queme fez feliz. Ela foi companheira,amiga, amante. Contei para minhamãe e ela entendeu. Admitiu queera difícil, mas se esforçaria paraaceitar. Quanto a meu filho, que ain-da não tem 2 anos, será preparadopara lidar naturalmente com isso.Não vou me esconder para ele nãose chocar no futuro. No final dascontas, não quero que me julguem.Hoje, estou convicta da minha es-colha, mas, se descobrir que isso nãome interessa mais, mudo meu per-curso sem culpa.

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sabem que o caminho do lesbianismoem nada facilitará a vida da filha na so-ciedade. Diferentemente do que os ho-mossexuais – e também muitas mulhe-res amargas e solitárias – costumamapregoar, o mundo não é gay. Quemtem essa orientação sexual sofre con-seqüências e não há pai que queira verum filho exposto a sofrimento. Embo-ra cada família reaja de acordo comas próprias peculiaridades – origem,tradição, valores e princípios religiosos–, há um comportamento-padrão: se-guir adiante sem tocar mais no assun-to e fazer de conta que nada aconteceu.“Há dois anos juntei coragem suficien-te para contar a meus pais. Eles com-preenderam, mas de lá para cá nun-ca mais falamos sobre isso”, diz a ca-rioca Mariana Arraes, de 23 anos.

Na primeira conversa, quase semprea única, uma indagação normalmen-te feita pelos pais é: “Quem a sedu-ziu?” A idéia usual é de que algumamulher mais velha foi a responsável.Embora realmente existam caçadorasde meninas, sobretudo na internet –em quantidade tremendamente infe-rior à de homens adultos caçando nin-fetas –, estudos recentes mostram quea extrema maioria dessas garotas seenvolveu com outras da mesma fai-xa etária. “As primeiras experiências

acontecem normalmente na adoles-cência ou na pré-adolescência”, diz aantropóloga Annamaria Ribeiro, da or-ganização Apoio a Familiares, Grupose Homossexuais (Afagho).

Para as 79 lésbicas entre 18 e 35 anosouvidas por ÉPOCA em quatro capitais,a conversa com a família foi o momen-

to crucial do processo de “sair do ar-mário”. “Eu estava armada, pronta pa-ra a luta, mas não encontrei conflitosnem adversidades”, diz a comissáriade bordo Rafaela França, nascida noconservador bairro da Tijuca, no Riode Janeiro. “O difícil mesmo foi enca-rar minha mãe, que ficou um temposem falar comigo direito.” Vencidas asquestões familiares, o próximo gran-de momento na vida dessas mulheresé a decisão pela maternidade. A maio-ria das entrevistadas declarou a pre-ferência pelo método tradicional, emque pesem esporádicos contatos he-terossexuais. “Eu e minha namora-da estamos discutindo a hipótese deficar grávidas no mesmo período”, diza comerciante Ana Paula de Oliveira,de 27 anos. “Uma possibilidade é tran-sar com amigos.” Como se vê, o novolesbianismo é mesmo um universocheio de complexidades. n

COM REPORTAGEM DE

BEATRIZ VELLOSO, DO RIO DE JANEIRO,

EDUARDO BURCKHARDT, DO RECIFE,

E TIAGO CORDEIRO, DE SALVADOR

RAFAELA FRANÇA22 anos, carioca, comissária

de bordo em São Paulo

ESPECIAL

Denise Adams/ÉPOCA

Denise Adams/ÉPOCA

CAROLINA FRANCHON 22 anos, paulistana,

estudante

Namorei homens e o sexo era bom,mas percebi que me dava melhor commulheres. No trabalho, contei que eralésbica e, em vez de me discrimina-rem, fizeram rodinhas para saber de-talhes. Pura curiosidade. Dou beijo naboca da minha namorada aonde querque vá, menos na frente de crianças.Não sou de freqüentar ambientes gays.Não vejo necessidade de me juntar pa-ra lutar por uma causa. A atitude polí-tica começa em casa, com os seus. Aospoucos, as pessoas estão entenden-do que ser homossexual não é defei-to nem qualidade. Não acrescenta nemdiminui. É só uma característica, comoter olhos azuis ou cabelos crespos.

Sempre tive atração por mulheres, maspensava comigo mesma que não po-dia gostar delas. Foi um baque quan-do me apaixonei, há quatro anos. En-trei em depressão. Vivi a fase do bis-sexualismo, quando os meninos sóqueriam saber de ficar. Nunca tive me-do de perder emprego, mas perdi ami-gos quando assumi. Hoje nem perce-bo a reação das pessoas quando tro-co carinhos com minha namorada. Nãoé para provocar, agimos como um ca-

sal normal. Se mexerem comigo,revido. Não admito ser desrespei-

tada. Só não vou dizer que nuncamais ficarei com homem, até porquenunca me imaginei homossexual.

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