Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimônio

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    2 Lina Bo Bardi: um olhar voltado ao patrimnio

    (...) o que reputamos necessrio, hoje em dia, um justo meio,

    pois nem o dogmatismo nem o impressionismo, mas uma

    espcie de medida, naturalmente crtica que, levando em

    considerao a histria como herana e continuidade, abra as

    mais amplas liberdades s possibilidades do arquiteto, hoje

    mais do que nunca mediador responsvel pelo modo de viver

    dos homens. 1

    Um primeiro olhar

    Definitivamente uma trajetria singular. No somente pela condio

    livre de profissional que decide migrar, mas tambm pelo prazer da

    descoberta, pela inquietude, um dos traos marcantes do carter de

    Lina Bo Bardi, sempre pronta a captar a riqueza das situaes mais

    corriqueiras a que um nativo nem sequer daria ateno.

    Lina Bo Bardi uma exploradora dos tempos modernos, alis, os

    Bardi juntos atuaram como exploradores de tempos recentes.

    Valendo-se da condio de intelectuais europeus que so recebidos

    de portas abertas, atravs dos vnculos mantidos l fora,

    estabelecem um circuito de relaes internacionais e encontram no

    Brasil um territrio aberto a pesquisas e experimentaes.

    Aproveitam essas oportunidades e esse circuito privilegiado de

    amizades para realizar um trabalho de grande relevncia cultural.

    O olhar estrangeiro concede-lhe a capacidade de enxergar a

    peculiaridade e a vitalidade da cultura popular sem confundi-la com

    folclore, com as sacramentadas interpretaes oficiais. Nada em

    comum com a viso estereotipada do forasteiro frente s diferenas

    culturais, sua percepo aguda possibilita o reconhecimento de

    valores como autenticidade e singeleza, muito distante da ideia

    1 Lina Bo Bardi em Contribuio propedutica ao ensino da teoria da arquitetura.

    So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2002, p.51. O escrito corresponde tese apresentada ao Concurso da disciplina de Teoria de Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, em 1957. (O texto tinha sido publicado em tiragem limitada, em italiano, em 1992).

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    banalizada sobre a produo artesanal brasileira. Ao contrrio do

    lugar-comum, sua avaliao surpreendente, acurada e profcua,

    identificando qualidade nas solues inventivas com os meios mais

    escassos e nelas colhendo inspirao.

    Uma slida formao humanstica permite-lhe dominar as mais

    diversas situaes: afere com ateno as possibilidades a explorar,

    os eventuais entraves a superar, para ento estabelecer um

    diagnstico preciso e traar um projeto no s possvel, mas

    concretamente criativo. O conhecimento tcnico e construtivo conduz

    sua disposio em contornar dificuldades e transformar as limitaes

    em estratgias particulares, dispondo dos recursos disponveis e

    apropriando-se das habilidades dos construtores, dos colaboradores

    em geral, de seus conhecimentos, de sua experincia pessoal. At

    mesmo a conscincia do despreparo da mo-de-obra, decorrente

    das no raras condies precrias de instruo e formao

    profissional, no a faz subestimar nem depreciar as potencialidades

    naturais e as possibilidades reais de aprendizado dos trabalhadores.

    Lina Bo Bardi capta o vigor da miscigenao cultural, a fora criativa

    das solues sincrticas autctones. Coleta, coleciona, mapeia,

    musealiza e reinventa no s o monumental, mas sobretudo o

    cotidiano. No por acaso identificada como caso hbrido por

    Eduardo Subirats2, para quem o hibridismo a palavra de ordem das

    culturas divididas entre a vitalidade local e as influncias dos grandes

    centros corporativos de produo de tecnologia e informao. Uma

    obra que une a extrema fantasia sobriedade extrema, nas

    palavras do autor.

    De incio, pouco explorada, a produo de Lina Bo Bardi,

    repentinamente nos anos 1990 e, mais intensamente, a partir dos

    anos 2000, desperta interesse renovado seja no Brasil que na

    Europa. Surgem a partir desse perodo vrios ensaios crticos,

    pesquisas acadmicas3 e exposies de divulgao do seu trabalho.

    2 GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Venezia: Marslio, 2004. O livro foi

    publicado por ocasio da 9 Bienal de Arquitetura de Veneza e conta com a participao de vrios autores, entre os quais Eduardo Subirats, filsofo e poeta, amigo de Lina Bo Bardi, que assina o texto: Lina Bo: Unepoca nuova e gi cominciata, pp. 21-52. 3 Entre as pesquisas concludas em tempos mais recentes, que abordam sua

    atuao, destacam-se: OLIVEIRA (Dissertao de Mestrado, FAUUSP, 2008);

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    de certo modo repelida pelos ambientes acadmicos,

    especialmente pela USP, quando se candidata a ocupar uma vaga

    como professora do curso de arquitetura em 19574. Conforme relata

    Marcelo Ferraz5, um de seus diletos colaboradores, Lina Bo Bardi

    submetida a uma espcie de ostracismo, vtima no s do regime

    militar, mas tambm das vistas grossas da arquitetura oficial. Isso

    ocorre, certamente, por ela no se alinhar ao pensamento

    dominante, aos grupos e suas lideranas, por manter-se fiel s suas

    convices pessoais e sua formao consistente e autnoma.

    Manifesta-se sempre com franqueza, sem hipocrisias nem

    sectarismos, no somente sobre os temas da sua profisso. Avessa

    aos reducionismos, no teme o debate, ambiciona a transformao,

    a prtica da cidadania, e com absoluta propriedade combina utopia e

    realidade, rigor e liberdade.

    A este estudo interessa analisar a atuao de Lina Bo Bardi sob um

    enfoque mais diretamente ligado s questes discutidas no mbito

    da conservao do patrimnio cultural. Para tanto, inicia-se com o

    enfoque de sua formao e prossegue-se com a anlise de trs

    intervenes especficas selecionadas como objeto de estudo: o

    SESC Pompia (1977-86) em So Paulo, o Solar do Unho (1962) e

    a Ladeira da Misericrdia (1987), ambos em Salvador, Bahia. Os dois

    ltimos projetos constituem parte de um ambicioso plano de

    recuperao do centro histrico de Salvador executado em duas

    etapas distintas.

    a prpria atividade do arquiteto que acaba por constituir o interesse

    central do estudo, na medida em que se estabelecem relaes entre

    as intervenes analisadas. Nesse sentido, pretende-se repercorrer a

    lgica de elaborao dos projetos, reconstituir a potica contida

    ROSSETTI (Dissertao de mestrado, UFBA, 2002; Tese de Doutorado, FAUUSP, 2007); RUBINO (Tese de Doutorado, UNICAMP, 2002). Entre os livros publicados: OLIVEIRA, O. Lina Bo Bardi, sutis substncias da arquitetura. So Paulo: Romano Guerra: Barcelona: Gustavo Gili, 2006; GALLO, A. (org.) Lina Bo Bardi architetto. Veneza: DPA: Marslio, 2004. 4 Lina Bardi, em debate que segue sua conferncia intitulada: Aula de arquitetura,

    publicada pela Revista Projeto n. 133, 1990, ao falar sobre a impossibilidade de afrontar um tema complexo em exguo intervalo de tempo, diz textualmente: Para isso, eu precisaria ainda dar aula na FAU. Mas me jogaram fora, no me quiseram mais l, na rua Maranho. No foi o corpo discente, mas as pessoas importantes. 5 Em texto intitulado Numa velha fbrica de tambores..., publicado no portal

    seo: Minha cidade. Acesso em 20/04/2009

    http://www.vitruvius.com.br/

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    nesses processos de trabalho, confrontar e cotejar os critrios de

    interveno.

    A escolha dos projetos a serem analisados foi pautada

    essencialmente pela importncia e pioneirismo devidos, entre outros

    motivos, antecipao de condutas e discusso de conceitos

    propiciada a partir da elaborao de escritos que acompanham o

    desenvolvimento dos projetos. Trata-se da ao de um arquiteto no

    especialista na rea da conservao, com uma postura que

    surpreende no s os tcnicos dos servios de tutela do patrimnio

    cultural, mas os arquitetos em geral. Lina Bardi demonstra ter um

    preparo terico slido e amplo em sua formao europia: em seus

    textos menciona Gustavo Giovannoni, o restauro cientfico, o

    restauro crtico e a Carta de Veneza6, temas sobre os quais este

    estudo pretende deter-se.

    A esta pesquisa interessa, sobretudo, a discusso sobre as vertentes

    mencionadas por Lina Bo Bardi ao discorrer sobre os princpios que

    norteiam suas intervenes especialmente o restauro cientfico e

    o crtico alm de uma anlise comparativa entre os

    procedimentos por ela adotados e as deliberaes da Carta de

    Veneza. Outro aspecto a ser investigado a aproximao entre sua

    conduta e a reflexo de Cesare Brandi (1906-1988)7. Todas essas

    referncias tericas so muito pouco divulgadas no Brasil na poca

    em que Lina Bardi desenvolve os projetos mencionados. Nesses

    trabalhos, ela faz questo de adaptar esse conhecimento no s s

    circunstncias especficas de cada situao, mas principalmente

    sua convico e interpretao pessoal.

    No se deixa levar por uma concepo superficial que confunde

    respeito histrico com timidez de ao, nem cai no equvoco de

    repetir uma prtica corrente que funde as operaes de recuperao

    e reconstruo de elementos preexistentes, sem distingui-las entre

    6 A Carta de Veneza rene as deliberaes do Congresso Internacional de

    Arquitetos e tcnicos de Monumentos Histricos realizado em 1964 e foi adotada pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Stios da UNESCO) em 1965. 7 Autor do livro Teoria del Restauro (1963), um dos intelectuais italianos mais

    expressivos do sculo XX, no campo da crtica da arte. Dirigiu o Istituto Centrale del Restauro de Roma entre 1939 e 1961. Sua reflexo terica acerca do restauro, no obstante ter mais de quarenta anos completos, continua essencial e ainda atual. Seu livro foi traduzido para o portugus com o ttulo Teoria da restaurao por Beatriz M. Khl e publicado em 2004.

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    si, sem diferenci-las dos novos componentes introduzidos. Reafirma

    sua posio contrria a uma conduta que impera at hoje, o conceito

    de matriz violletiana de volta a um estado original8. Reflete e expe

    seus pontos de vista em confronto com as referncias tericas

    acumuladas, na forma de memoriais explicativos, abrindo assim a

    possibilidade de discusso e debate sobre suas condutas de

    interveno.

    Os caminhos trilhados

    Seu modo de ser independente e irreverente pode dar a entender, a

    princpio, que Lina Bo Bardi no se importa com a cultura oficial

    consolidada. Engano pensar que ela desconhea ou ignore a

    produo terica dos seus conterrneos, ou pensar que seus

    projetos sejam fruto de pura e simples intuio. Um denso preparo

    terico e tcnico ampara suas decises.

    Convm, portanto, ressaltar os aspectos ligados sua formao e

    experincia profissional que possam iluminar a compreenso de seu

    trabalho relacionado aos temas da memria e da interveno voltada

    arquitetura preexistente.

    Lina Bo Bardi nasceu em Roma em 1915 e morreu em So Paulo em

    1992. Formou-se em 1939 pela Faculdade de Arquitetura de Roma

    cuja tradio de ensino centrava-se nas disciplinas histrico-

    arquitetnicas, reflexo da prpria condio da cidade enquanto

    estratificao de tempos histricos, conforme seu relato pessoal9:

    O fato de Roma ser um dos centros da cultura clssica,

    fazia com que os alunos aplicassem a maior parte do tempo

    de seu estudo observao dos monumentos antigos.

    A formao ligada escola romana, sob influncia de Gustavo

    Giovannoni, explica o apreo pelo sentido histrico do ofcio do

    arquiteto10. No entanto, a jovem arquiteta no se deixa acomodar: a

    8 A persistncia do conceito violletiano de restaurao analisada por Antnio Luiz

    Dias de Andrade em sua Tese de Doutorado, cujo ttulo : Um estado completo que pode jamais ter existido, FAUUSP, 1993. 9 Conforme relato da prpria Lina Bo em seu Curriculum Literrio, em FERRAZ

    (org.). Lina Bo Bardi. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p. 9. 10

    OLIVEIRA, Olvia de. I mondi immaginari e i modi reali, em GALLO, op. cit., p. 84.

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    atmosfera de Roma, capital do fascismo, a presena sufocante de

    sua histria e de suas runas faz Lina Bardi procurar um ambiente

    mais dinmico, mais propenso a acolher as propostas inovadoras do

    movimento moderno, diferente daquele racionalismo monumental

    das obras de Marcello Piacentini. Muda-se ento para Milo, para

    adquirir prtica. Colabora Gio Ponti, o ltimo dos humanistas11,

    diretor das Trienais de Milo e da revista Domus. Essa atividade

    rendeu-lhe uma rica e variada experincia: desde o design de

    mobilirio, passando pela moda, at projetos urbansticos.

    A guerra, no entanto, paralisa a produo arquitetnica, o que faz

    com que se concentre na atividade de pesquisa (especialmente

    sobre artesanato e Desenho Industrial) e de ilustrao, colaborando

    com diversas revistas e jornais, alguns deles de relativa importncia.

    Essa circunstncia especfica da guerra, que paralisa a atividade de

    projeto, no a imobiliza: ainda muito jovem, com a impossibilidade de

    projetar, Lina Bardi dedica-se a intenso trabalho na rea editorial.

    Seleciona temas, recolhe material, documenta, edita e publica.

    Cultiva, assim, a prtica da escrita que no ser abandonada quando

    ter a chance de voltar atividade de projeto. Ao contrrio, concilia o

    pensar e o fazer arquitetura pela mediao do texto escrito,

    explicitando critrios, motivaes, raciocnios que orientam a prtica.

    A durssima prova da guerra impe um claro posicionamento poltico:

    Em tempo de guerra, um ano corresponde a cinqenta

    anos, e o julgamento dos homens o julgamento dos

    psteros. Entre bombas e metralhadoras fiz um ponto da

    situao: importante era sobreviver, de preferncia

    inclume, mas como? Senti que o mundo podia ser salvo,

    mudado para melhor, que esta era a nica tarefa digna de

    ser vivida, o ponto de partida para sobreviver. Entrei na

    Resistncia, com o Partido Comunista clandestino. S via o

    mundo em volta de mim, como realidade imediata, e no

    como exercitao literria abstrata.12

    11

    Assim se definia o arquiteto, conforme declara a prpria Lina Bardi. 12

    FERRAZ, M. C. (org.) Lina Bo Bardi. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993. Fragmento de seu Curriculum Literrio, p. 10.

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    Ao exerccio da escrita agrega-se o da ilustrao [1], possibilitando o

    desenvolvimento de uma forma especial de expresso que

    caracteriza seus projetos, como assinala Lus Antnio Jorge, ao

    definir seus croquis:

    (...) narrativa literria, onde Lina dialoga com seus distintos

    interlocutores, atravs de inumerveis anotaes, evocando

    idias, imagens, referncias, montando uma espcie de

    story-board, voltado muito mais demonstrao dos

    fundamentos do projeto, dos conceitos da proposta, do que

    sua melhor representao. A nfase nas idias e a

    coerncia entre elas e as imagens geratrizes do projeto, ao

    mesmo tempo em que evitam a retrica do desenho pelo

    desenho, desmistificam o ato criador em prol de uma

    pedagogia potica. 13

    13

    JORGE, Lus Antnio. Tese de Doutorado intitulada: O espao seco. Imaginrio e poticas da arquitetura moderna na Amrica. FAUUSP, 1999, p. 105.

    [1] Ilustrao Revista Illustrazione Italiana, 1942. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 29.

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    Sugestiva e precisa a observao sobre a singularidade do seu

    desenho:

    Desenho que pretende ser minucioso sem perder o

    despojamento quase irreverente de quem v e cria.

    Desenho criador. Retrato criativo. Por isso, feliz. Felicidade

    que, como afirma Bachelard, provm da vontade e da

    imaginao criativa e no do contedo, do que se quer

    retratar. 14

    Com Bruno Zevi, Lina Bo Bardi funda a revista semanal La cultura

    della Vita, editada em Milo pelo mesmo editor de Domus, antes de

    vir para o Brasil, em 1946, j casada com o jornalista e crtico de

    arte, Pietro Maria Bardi. Aqui, no pas inimaginvel onde tudo era

    possvel, encontrou territrio adequado para viver e realizar sua

    atividade inventiva. Com a revista Habitat15 passa a ocupar um

    espao no mundo editorial brasileiro.

    Entre os vrios autores que se dedicam anlise de sua obra

    destacam-se aqui Montaner (1997) e Oliveira (2006). Josep Maria

    Montaner a situa junto a Louis Khan, Jorn Utzon, Aldo van Eyck, Luis

    Barragn e Fernando Tvora, representantes de uma terceira

    gerao do movimento moderno que rechazan el formalismo y el

    manierismo del estilo internacional y reclaman mirar de nuevo hacia

    los monumentos, la storia, la realidad y el usuario, hacia la

    arquitectura vernacular16

    Lina Bardi, para o crtico, representa uma das experincias mais

    originais e significativas entre os arquitetos dessa terceira gerao.

    Assim sintetiza a essncia de sua obra:

    (...)consigui superar los lmites del mismo arte moderno, sin

    romper con sus principios bsicos. Si la arquitectura moderna

    era antihistrica, ella consigui hacer obras en las que

    modernidad y tradicin no eran antagnicas. Si el arte

    moderno era intelectual, internacional y reacio

    14

    Idem, p. 105. 15

    Lina Bardi participa do corpo editorial da revista Habitat, revista do MASP, publicada de 1950 a 1959. 16

    Em MONTANER, J. M. La modernidad superada. Arquitectura, arte y pensamiento del siglo XX. Barcelona: Gustavo Gili, 1997, p. 12.

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    al gusto establecido y a las convenciones, en Brasil han sido

    possibles una arquitectura y un arte modernos enraizados en

    la experiencia del arte popular, negro e indgena,

    rigurosamente distintos del folclorismo, el populismo y la

    nostalgia. Si la arquitectura racionalista se basaba en la

    simplificacin, la repeticin y los prototipos, Lina Bo Bardi

    supo introducir sobre un soporte estrictamente racional y

    funcional, ingredientes poticos, irracionales, exuberantes e

    irrepetibles. Concili funcionalidad con poesa, modernidad

    con mmesis.17

    Destaca ainda que sua arquitetura mantm os valores bsicos da

    arquitetura do movimento moderno: humanismo, projeto social,

    vontade de renovao formal, construo utilitria, funcionalista, mas

    com uma caracterstica fundamental: a marca da expresso do

    trabalho artesanal.

    Conforme lembra Montaner, Bruno Zevi havia defendido uma

    necessria liberao dos limites e rigores da arquitetura moderna

    racionalista, em favor da peculiaridade da arquitetura orgnica.

    Ernesto Nathan Rogers havia afirmado que o nico modo de ser

    moderno na condio contempornea era fazer presente o sentido

    vivo da histria, evitando os automatismos e vcios da experincia

    passada.

    Olvia de Oliveira, assim como Montaner, observa no trabalho de

    Lina Bardi a superao do esquematismo abstrato da linguagem

    moderna. Dessa forma explica o compromisso do architetto18 com a

    reconsiderao da relao com a histria, a ateno tradio

    popular e ao ambiente preexistente, seja natural, seja construdo.

    Traos essenciais de seu trabalho que guardam afinidade com as

    idias postuladas por Rogers.

    Como bem coloca a autora, essa aproximao com os elementos

    artesanais e o uso dos materiais recorrentes na arquitetura popular,

    17

    Idem, p. 13. 18

    Era assim que Lina Bo gostava de ser chamada, architetto, no masculino como se diria no idioma italiano, em que a maioria das profisses no possui denominao feminina.

  • 100

    no entanto, nada tm a ver com o ideal romntico de Ruskin e Morris.

    No se trata de mitificar o artesanato, mas sim privilegiar a

    simplicidade das solues, o uso de recursos disponveis e de baixo

    custo combinados valorizao da criatividade.

    O Solar do Unho (1959-1962)

    A principal publicao do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi que rene as

    memrias de seu trabalho traz uma documentao parcial da obra e

    um texto que descreve sucintamente as suas operaes tcnicas e

    as decises conceituais que envolvem o projeto19. Destaca o

    importante conjunto arquitetnico do sculo XVI, modificado no

    sculo XVII e que no sculo XIX recebe a instalao de uma das

    primeiras manufaturas do Brasil. Informa que o conjunto foi objeto de

    tombamento pelo SPHAN em 1940 e comenta a pretenso em

    incorporar as intervenes significativas que o conjunto sofreu

    durante sua histria: todos os aspectos dramticos do ambiente

    foram respeitados20.

    As operaes de conservao realizadas no solar so voltadas a

    recuperar e sublinhar a belssima estrutura interna de madeira de

    lei (pilares, piso superior assoalhado e estrutura de sustentao da

    cobertura de telhas de barro tipo capa e canal). Mantm-se o monta-

    carga existente, substitui-se a velha escada pela nova com pilar

    central e detalhe de encaixe dos pisos com as traves laterais

    emprestado dos carros de boi. Um projeto que, como o descreve

    Subirats, enfrenta o problema tecnolgico no do ponto de vista da

    tecnologia avanada, mas essencialmente do domnio e

    transformao das tecnologias arcaicas.

    Elementos funcionais e escultricos, as escadas so exploradas em

    sua engenhosidade, na peculiaridade dos materiais e na forma de

    articulao dos diferentes nveis e, especialmente, na plasticidade

    desses elementos que se destacam como presenas marcantes no

    conjunto de sua arquitetura. [2]

    19

    FERRAZ, op. cit., pp. 152-157. 20

    Em seminrio promovido pelo Programa de Ps-Graduao da USJT sobre o tema: Cidade e indstria: aes contemporneas, realizado em 13/10/09, Silvana Rubino menciona a desmontagem da fbrica de rap que funcionava nesse local. Assinala a atitude seletiva de Lina Bardi que considera pouco relevante a atividade e, portanto, no digna de manuteno.

  • 101

    [2] Escadas: Escada-flor do Centro de Convivncia Vera Cruz, escada-rampa do MASP e escada de acesso da casa de vidro.

    Fonte: FERRAZ, 1993, p. 371, 108 e 80.

  • 102

    As ilustraes reunidas no livro mostram alguns desenhos de projeto

    e fotos que documentam, entre outros aspectos: o solene solar

    recuperado com as paredes brancas caiadas e as janelas de madeira

    pintadas de vermelho; os operrios recuperando os azulejos

    holandeses dos guarda-corpos que ladeiam o acesso principal [3]; a

    velha e acanhada escada ao lado da nova [5]; o terreiro antes e

    depois da liberao do espao aberto para possibilitar o

    desenvolvimento de manifestaes tradicionais, como cheganas,

    ranchos, sambas de roda e capoeira (conforme assinala a legenda

    da imagem) [4]; um velho guindaste deixado como monumento no

    espao recm liberado do terreiro; os rsticos pavilhes industriais

    tambm recuperados.

    [4] Ptio lateral antes e depois da liberao. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 152 e 153.

    [3] Solar do Unho e recuperao dos azulejos do guarda-corpo junto entrada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 156.

  • 103

    Alguns poucos elementos novos introduzidos no conjunto como

    intervenes mnimas reaparecero no projeto do SESC Pompia,

    entre os quais, o piso cimentado salpicado com seixos rolados e as

    divisrias de trelias de madeira.

    Importante enfatizar a operao de liberao do terrao debruado

    sobre o mar, disposto em um dos lados do solar. Se uma das

    imagens mais caractersticas desse projeto a escada que, de modo

    criativo, reinventa o encaixe dos carros de boi, provavelmente a ao

    mais contundente justamente a demolio dos edifcios acrescidos

    de forma aleatria que determinavam a obstruo da continuidade

    daquele espao inicialmente aberto. Uma deciso que exerce a

    legitimidade de eliminar elementos descaracterizadores que implicam

    perda de valor para a preexistncia. Aes como essa devem ser

    identificadas nos desenhos e nos documentos que registram as

    operaes previstas na interveno, como recomenda

    expressamente a Carta de Veneza de 196421.

    A publicao d destaque ao ambicioso projeto cultural que faz da

    recuperao desse conjunto um dos pontos de apoio de um

    tringulo cultural que pretende articular a Bahia Pernambuco e

    Fortaleza.

    21

    Ver tpico Documentao e Publicao, art. 16.

    [5] Escadas velha e nova. Fonte: Ferraz, 1993, p. 157 e 158.

  • 104

    O texto de Lina Bardi menciona o perodo de 1958 a 1960 e pouco

    como um momento proveitoso em que a Bahia viveu o esplendor de

    um conjunto de iniciativas que representou uma esperana muito

    grande para o pas todo (...). Cita as instituies que compem

    essas iniciativas: a Escola de Teatro, de Dana, a Escola Superior de

    Msica e o Museu de Arte Moderna (cuja sede ocupa o Solar do

    Unho) e comenta o programa de cunho scio-poltico elaborado

    com representantes dos poderes pblicos e personagens ligados

    cultura da regio22. O intuito incorporar certas manifestaes do

    reconhecido fermento cultural local e associ-las a exposies

    itinerantes que dialogam com eventos de natureza anloga

    existentes em outras localidades. Um movimento que busca explorar

    aspectos genunos da cultura tradicional.

    O projeto de arquitetura inscreve-se, portanto, em um amplo

    programa de estmulo reconfigurao da identidade nacional,

    partindo das bases da cultura popular23. Nesses termos, a

    implantao do Centro de Documentao sobre Arte Popular e

    Centro de Estudos Tcnicos do Nordeste, visando passagem de

    um pr-artesanato primitivo indstria moderna, promove uma

    poltica pblica de incentivo cultura, articulada a uma nova poltica

    de industrializao. Como enfatiza Lina Bardi: no se pensa em um

    museu do folclore como interpretao de um fazer popular pelo

    olhar da cultura erudita, mas um autntico centro de documentao e

    produo dos artefatos do cotidiano, um centro de experimentao

    que incorpora as prticas vernaculares.

    Eduardo Subirats discorre sobre esse projeto cultural e poltico

    radical desenvolvido entre os anos 1958 e 1964, associando-o aos

    anos admirveis em que conhece Glauber Rocha, Caetano Veloso,

    22

    Os vnculos com o cenrio cultural da Bahia na passagem dos anos 1950-60 (alimentados pela atuao da UFBA), a relao com Glauber Rocha e a afinidade com as teses do Cinema Novo, so temas tratados por Antonio Risrio em Avant Garde na Bahia. So Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995, bem como na Tese de Doutorado de Lus Antnio Jorge, intitulada: O espao seco imaginrio e poticas da arquitetura moderna na Amrica. So Paulo: FAUUSP, 1999, pp. 99-102. 23

    A esse respeito, ver texto de Lina Bo Bardi em FERRAZ, op. cit., Cinco anos entre os brancos, pp. 161-162. O relato comenta essa experincia (motivaes, iniciativas, instituies e parceiros envolvidos) e discorre sobre o desmantelamento da proposta aps o golpe militar de 1964. A dissertao de Mestrado de Raissa de Oliveira (FAUUSP, 2008) aborda o perodo de abertura poltica que marcou a transio do governo militar para a redemocratizao do pas e o posicionamento de Lina Bo Bardi frente s circunstncias desse momento particular.

  • 105

    Gilberto Gil e outras figuras notveis. Retoma as palavras de Lina

    Bardi para comentar o programa formulado:

    a criao dum movimento cultural que assumindo os

    valores duma cultura historicamente (em sentido ulico)

    pobre, superando as fases culturalista e historicista do

    Ocidente, apoiando-se numa experincia popular

    (rigorosamente distinta do folclore), pudesse lucidamente

    entrar no mundo da verdadeira cultura moderna, com os

    instrumentos da tcnica e dum novo humanismo. 24

    Afirma que, com a criao do Museu de Arte Moderna da Bahia e do

    Museu de Arte Popular do Unho, Lina Bardi cristaliza a sntese

    entre o elemento popular e a vanguarda.

    Sobre a pertinncia de uma arquitetura capaz de aglutinar pessoas,

    escreve:

    Lina arquiteto de espaos para a reconstruo e

    redefinio da cidadania da sociedade civil militarmente

    destruda pelos regimes autoritrios. Engloba memrias

    populares, capazes de transformar um episdio casual (...)

    em um momento crucial de potica do espao, e concebe

    sempre a arquitetura como um instrumento de integrao

    da existncia humana com a natureza e com seus

    mistrios, e como meio de confronto com a cidade e seus

    conflitos. 25

    O projeto do Solar do Unho, segundo o filsofo, apesar de

    conservar os sinais que o definiam como mercado de escravos,

    como lugar de sacrifcio humano, no um mausolu. um lugar de

    recriao da memria e recuperao da dignidade humana atravs

    da arte. O projeto, destaca o autor, pode ser reconhecido como

    alternativa ao espetculo da arquitetura contempornea, ao fetiche

    ligado ao acrtico consumo cultural. Uma espcie de manifesto de

    exaltao da imaginao potica, tida como componente

    24

    Subirats em texto intitulado: Lina Bo: unepoca nuova gi cominciata, em GALLO, op. cit., faz referncia citao de Antnio Risrio em Cultura aqui, ali, cultura alm, em cpia datilografada do arquivo de Lina Bo Bardi, p. 31. 25

    Idem, p. 25.

  • 106

    indissocivel da condio essencial de sobrevivncia da

    humanidade. Nesse sentido, apropriada sua sntese a respeito da

    interveno que afronta o tema da memria sem sobrepujar a

    preexistncia: Uma reconstruo arquitetnica que no destri nem

    nega as memrias, os seus lugares e as suas runas, para afirmar

    narcisicamente a temporalidade absoluta e ftua do eternamente

    novo. 26

    Como destaca Bierrenbach27 os edifcios testemunham a rotina de

    labor nas suas dependncias, uma densa histria que deixa marcas

    de modificaes e acrscimos decorrentes de diferentes usos nos

    sculos de existncia, traos marcantes da produo humana como

    marcas do tempo e da cultura. justamente essa leitura que

    caracteriza o reconhecimento de valor elaborado por Lina Bardi e,

    essencialmente, o que chancela a proposio do novo uso.

    O SESC Pompia (1976-86)

    Muitos autores j se detiveram sobre o projeto do SESC Pompia,

    muito j foi escrito sobre a interveno de Lina Bo Bardi. H que se

    enfrentar ento o risco de cair na repetio. Ou melhor, passados

    mais de vinte e cinco anos de sua inaugurao (1982), h que se

    buscar uma sntese do que j foi destacado e mais: arriscar uma

    nova leitura, mesmo que despretensiosa.

    De incio, esse projeto causou muita surpresa quer pela precisa e

    absolutamente reconhecvel insero de novos elementos nos

    espaos dos edifcios fabris, com o intuito de dotar de novo uso

    aqueles ambientes, quer pelo contraste produzido entre os novos

    edifcios construdos e os galpes industriais preexistentes. Hoje,

    embora bastante conhecido e usufrudo, o lugar conserva a mesma

    vitalidade dos anos 1980, quando foi finalizada a primeira etapa da

    interveno.

    26

    Idem, p. 26. 27

    BIERRENBACH, A. C. de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as interpretaes da histria. PPG-AU/FAUFBA, Dissertao de Mestrado, 2001.

  • 107

    Os edifcios fabris existentes

    Situado em um bairro de origem industrial, em terreno que j tinha

    pertencido Chcara Bananal depois loteada pela Companhia

    Urbana Predial proprietria do terreno entre os anos de 1911 e

    1913 o edifcio principal foi projetado em 1938 para a famlia alem

    Mauser. No ano seguinte, foi vendido Fbrica de Nacional de

    Tambores Ltda., de propriedade da Indstria Brasileira de

    Embalagens (IBESA) que posteriormente abrigaria em seu espao a

    linha de montagem de uma indstria de geladeiras. [6] Entre 1962 e

    1963 o prdio principal sofreu transformaes, alm disso, foram

    construdos outros dois galpes menores. Em 1967, a indstria ali

    instalada encerra suas atividades e, em 1971, o SESC adquire o

    terreno (17.000 m), iniciando suas atividades em 1973, em carter

    provisrio.

    Os trs anos seguintes podem ser entendidos como um intervalo de

    maturao da idia de interveno. Nesse perodo estava em estudo

    o traado da linha oeste do metr que, eventualmente, poderia

    interferir na rea em questo, motivo pelo qual a definio do projeto

    teve que ser adiada. Lina Bo Bardi convidada a apresentar sua

    proposta em 1976. Atuam como seus colaboradores os arquitetos

    Andr Vainer e Marcelo Ferraz. Com a aprovao do projeto em

    1977, o SESC interrompe o funcionamento provisrio para dar incio

    s obras.

    [6] A antiga fbrica de tambores. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 14, 17 e 23.

  • 108

    As fotos areas evidenciam a potncia desses edifcios, que se

    distinguem na massa informe e heterognea do entorno em

    transformao desordenada, mas que encontram alguns similares

    em quadras vizinhas e que mantiveram a fisionomia primitiva. A

    morfologia pode ser decomposta em vrios elementos: a tipologia

    comum do edifcio fabril (composta por blocos extensos cobertos por

    telhas de barro, com inclinaes de quatro ou duas guas, dotadas

    de lanternim); os volumes compactos de feies sbrias e uniformes;

    a disposio regular dos blocos independentes de planta retangular

    que estabelece uma hierarquia entre edifcios e espaos abertos (o

    eixo longitudinal o principal, os transversais secundrios) e que,

    sem recuos frontais, acompanha o alinhamento das caladas,

    reproduz o traado urbano. [7]

    [7] Vista area do conjunto: antes e depois da interveno. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 220.

  • 109

    O reconhecimento de valor

    Durante a fase inicial de funcionamento, as instalaes fabris

    revelam sua fora expressiva associada sobriedade e solidez dos

    primeiros exemplares industriais, distinta estrutura de concreto28,

    como tambm possibilidade de uso vislumbrada pela generosidade

    de seus espaos, aps a demolio das divises internas. Desse

    modo, percebe-se a versatilidade necessria prtica de diferentes

    atividades, mas principalmente a empatia instaurada entre a

    populao e a atmosfera daquele lugar. Dificilmente um novo projeto

    teria suscitado o mesmo efeito. Pode-se dizer que as construes

    aliadas ambientao estavam arraigadas na memria das pessoas

    que, familiarizadas, estabeleciam vnculos afetivos com aquela

    estrutura existente. Trata-se de uma espcie de memria profunda,

    uma memria involuntria, nos moldes proustianos, distinta da

    memria voluntria, dada pela inteligncia, pela racionalidade.

    Para Proust:

    (...) um odor, um sabor, reencontrados em circunstncias

    diferentes, revelam em ns, a despeito de ns mesmos, o

    passado; ns sentimos o quanto esse passado era diferente

    daquilo que acreditvamos nos recordar, e que nossa

    memria voluntria pintava, como os maus pintores, com

    cores sem verdade.29

    Um misto de sabedoria e intuio indica um caminho distinto daquele

    a que levaria a vaidade ou presuno: a demolio dos edifcios

    antigos para dar lugar a um projeto todo novo. Indo na direo

    oposta, Lina Bardi chega soluo que entrev o poder de evocao

    da memria impregnada nos muros daquelas construes, decidindo

    mant-las. Recorrendo mais uma vez a Proust, o procedimento

    avalizado:

    28

    Lina Bardi associa as caractersticas dos elementos estruturais de concreto armado dos edifcios industriais aos projetos pioneiros de Hennebique. 29

    Essas declaraes comparecem na revista Espaos & Debates n. 33, 1991 na seo Entrevista intitulada Marcel Proust e a memria, pp. 80-81. Segundo texto introdutrio, a referida entrevista foi concedida por Proust em 1912 e extrada da revista Globo n. 59, jul/ago 1991. (O grifo nosso).

  • 110

    (...) eu creio que quase somente nas recordaes

    involuntrias que o artista deveria buscar a matria-prima

    de sua obra. Primeiro, precisamente, porque elas so

    involuntrias, porque elas se formam por si mesmas,

    atradas pela semelhana de um minuto idntico: s elas

    possuem a marca de autenticidade. Depois, elas nos

    relembram as coisas numa dosagem exata entre a memria

    e esquecimento. E, enfim, como elas nos fazem provar uma

    mesma sensao numa circunstncia inteiramente outra,

    elas liberam-na de toda contingncia, dando-nos a sua

    essncia extratemporal (...) 30

    O escritor refere-se literatura, mas no unicamente a ela. Se usa a

    metfora do pintor, autoriza, de conseqncia, a se estabelecer uma

    analogia com o procedimento do arquiteto (assim, genrico, sem

    diferenciao de gnero, com queria a autora do projeto).

    J nas primeiras visitas, declara Lina Bo Bardi, como num relato de

    memrias:

    Entrando pela primeira vez na ento abandonada Fbrica

    de Tambores da Pompia, em (19)76, o que me despertou

    curiosidade, em vista de uma eventual recuperao para

    transformar o local num centro de lazer, foram aqueles

    galpes distribudos racionalmente conforme os projetos

    ingleses do comeo da industrializao europia (...).

    Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora

    estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro

    Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra.31

    como se a memria involuntria que ativa a criao de Lina Bo

    Bardi se sobrepusesse memria involuntria dos usurios, que

    acolhem e confirmam o acerto da deciso de projeto. Assim continua

    o relato, arrolando os outros motivos, no menos importantes,

    referentes manuteno tambm das prticas que animam aquele

    local:

    30

    Idem, p. 81. 31

    Em FERRAZ, op. cit., p.220. (O grifo nosso).

  • 111

    Na segunda vez que l estive, um sbado, o ambiente era

    outro: no mais a elegante e solitria estrutura

    hennebiqueana mas um pblico alegre de crianas, mes,

    pais, ancios, passava de um pavilho a outro. Crianas

    corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caa

    dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na

    gua.(...) Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda

    essa alegria.32

    Uma interveno que faz numa cidade entulhada e ofendida (...) de

    repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento.

    Nada melhor do que retomar as palavras de Lina Bardi para

    descrever os elementos essenciais desse projeto:

    E a est a Fbrica da Pompia, com seus milhares de

    freqentadores, as filas na choperia, o Solarium-ndio do

    Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fbrica destelhada que

    continua: pequena alegria numa triste cidade.33

    Vale lembrar que no havia, naquela ocasio, nenhuma restrio

    demolio dos antigos galpes. A deciso de mant-los foi

    exclusivamente da arquiteta que ali reconheceu a autenticidade e

    dignidade de um conjunto fabril de valor documental: um testemunho

    da histria da industrializao da cidade de So Paulo.

    As operaes realizadas

    A interveno comea no cimentado da calada salpicado de seixos

    rolados divertente como repetia Lina Bardi queles que a

    ouviam descrever seu processo de trabalho amistoso e afetivo

    ofertado sociedade.34

    O acesso d-se pela rua-corredor no interior do lote que assume

    importncia estratgica de ligao entre os edifcios e as diversas

    atividades que se desenvolvem em cada um deles, conduzindo ao

    final do percurso ao solarium, tambm chamado de praia, que, por

    sua vez, leva aos novos edifcios. Singulares canaletas revestidas de

    32

    Idem, p. 220. 33

    Idem, p. 220. 34

    Conforme depreende Lus Antnio Jorge, op. cit., p.87.

  • 112

    seixos rolados flanqueiam o caminho de paraleleppedos, rentes aos

    edifcios, captam e conduzem as guas pluviais. [8]

    Os pavilhes, inicialmente rebocados nas faces voltadas para a rua,

    foram descascados, deixando vista as alvenarias de tijolos de barro

    macios e a estrutura interna de concreto, permanecendo o

    invlucro, aps a liberao do espao interno. Alm da estrutura de

    concreto, mantida e recuperada a estrutura de madeira que

    sustenta a cobertura de telha-v (de barro, tipo francesa).

    [8] Totem sinalizador e rua interna com canaleta de seixos rolados. Fontes: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 66 / FERRAZ, 1993, p. 223.

    [9] Espao reservado leitura e recreao. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 225.

  • 113

    No maior dos galpes (com rea de 50 x 70 m), mdulos justapostos

    de concreto aparente, delimitados por muretas baixas, dispostos nos

    vos entre a primeira e terceira fileiras de pilares, independentes das

    estruturas preexistentes, criam espaos para leitura, reunio e

    projeo de audiovisuais. Implantada em quotas de nvel acima do

    piso trreo, em dois lances com alturas diferentes, como uma

    espcie de mezanino, essa rea possibilita, para quem ali se instala,

    uma viso de conjunto do pavilho. Locadas prximas da entrada, as

    estantes que acomodam o acervo de livros e revistas j sofreram

    vrias transformaes em seu lay-out o que, no entanto, no

    compromete o todo. [9]

    O mobilirio de madeira, a lareira, o traado sinuoso do espelho

    dgua o rio So Francisco desenhado no piso de pedra Gois

    de variados tamanhos (que substitui o piso anteriormente existente,

    ao que tudo indica um cimentado comum), preenchido com seixos

    rolados (os mesmos da calada e das canaletas) como convm a um

    rio, complementam a ocupao desse grande ambiente de estar que

    tambm acolhe exposies temporrias, espetculos, salo de jogos

    e brinquedoteca, alm da recepo ao pblico em geral. [10]

    [10] Espao de convivncia. Fonte: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 78 e 79.

  • 114

    Os acrscimos, elementos criados para propiciar os novos usos

    propostos, distinguem-se com clareza das estruturas existentes e, a

    rigor, podem ser removidos sem prejuzo da construo primitiva. O

    carter de simplicidade desses ambientes foi preservado com a

    manuteno das tubulaes e instalaes mostra, com a colocao

    de elementos singelos e, ao mesmo tempo, durveis como os painis

    em trelias ou as bsicas portas de correr em madeira que, isentas

    de guarnies e acessrios desnecessrios, deixam vista as

    roldanas e cabos de escorrimento.

    Restaurante, teatro [11] [12] e oficinas-atelis [13] so os usos

    propostos para os outros edifcios menores dispostos ao longo do

    eixo principal. Ao descrever o projeto do teatro-auditorium, espao

    organizado a partir do palco central e de duas arquibancadas

    dispostas em lados opostos, Lina Bardi considera importante explicar

    os motivos da utilizao de cadeiras de madeira, ao invs de

    poltronas estofadas:

    (...) os Autos da Idade Mdia eram apresentados nas

    praas, o pblico de p e andando. Os teatros greco-

    romanos no tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e

    os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus

    do estdio de futebol, que tambm no tm estofados. Os

    estofados apareceram nos teatros ulicos das cortes, no

    Settecento e continuam at hoje no confort da Sociedade

    de Consumo.

    A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompia apenas

    uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de

    distanciar e envolver, e no apenas de sentar-se. 35

    a idia da chamada Arquitetura Pobre, isto , no no sentido da

    indigncia mas no sentido artesanal que exprime Comunicao e

    Dignidade mxima atravs dos menores e humildes meios.36

    35

    FERRAZ, op.cit., p. 226. 36

    FERRAZ, op. cit., p. 220. Os teatros so programas arquitetnicos recorrentes na trajetria de Lina Bo Bardi. O tema enfrentado em casos especficos como no Teatro Politheama de Jundia ou no Teatro Oficina em So Paulo. O primeiro corresponde a uma restaurao nos termos declarados por Lina de compromisso entre os critrios da restaurao de hoje e a plena realizao de uma Continuidade Histrica no Tempo e na Memria. (FERRAZ, p. 264). O segundo

  • 115

    encarado no s como reconstruo de uma estrutura Fsica e Ttil, mas persegue a reconstruo de uma identidade cultural destruda pela Tempestade, uma aluso aos tempos difceis do regime ditatorial. (FERRAZ, p. 258).

    [11] Corte transversal do teatro. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

    [12] Foyer e interior do teatro. Fontes: VAINER E FERRAZ, 1996, p. 90 / FERRAZ, 1993, p. 227.

    [13] Oficinas. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 229.

  • 116

    Com esse mesmo esprito de resgate de uma dignidade popular

    organiza o espao dos atelis/oficinas a articulao entre o

    trabalho artesanal e o saber-fazer. A arquitetura aquela que extrai

    da escassez de meios a sua expresso genuna: recintos autnomos

    distribudos ordenadamente no espao livre, de um lado e outro da

    fileira central de apoios, com formas e dimenses diversificadas,

    constitudos de alvenaria em blocos de concreto aparentes de altura

    limitada, para que seja visvel o desenvolvimento das atividades por

    quem circula entre os recintos dos atelis. O procedimento utilizado

    permite mais uma vez distinguir o espao das oficinas como uma

    insero mais recente em uma estrutura preexistente. A tcnica e

    materiais empregados eliminam revestimentos e exigem um trabalho

    primoroso de aparelhamento dos blocos, rigoroso inclusive por no

    corrigir com a esptula as rebarbas da argamassa do rejunte das

    peas. Um detalhe que representa no a falta de cuidado na

    execuo, mas uma operao essencial em que so subtrados

    elementos e gestos desnecessrios.

    A imposio da rea non-edificandi, de grande empecilho

    acomodao do novo programa de uso, converte-se em importante

    espao ldico constitudo pelo grande deck de madeira a praia.

    Assim explica Lina Bo Bardi o raciocnio que conduz o projeto:

    Uma galeria subterrnea de guas pluviais (na realidade o

    famoso crrego das guas Pretas) que ocupa o fundo da

    rea da Fbrica da Pompia, transformou a quase

    totalidade do terreno destinado zona esportiva non

    edificandi. Restaram dois pedaos de terreno livre, um

    esquerda, outro direita, perto da torre-chamin-caixa

    dgua tudo meio complicado. Mas, como disse o grande

    arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: as

    dificuldades so nossos melhores amigos. Reduzida a dois

    pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos

    fortes militares brasileiros, perdidos perto do mar (...).

    Surgiram, assim, os dois blocos, o das quadras e piscinas

    e o dos vestirios. No meio, a rea non edificandi. E...

    como juntar os dois blocos? S havia uma soluo: a

  • 117

    soluo area, onde os dois blocos se abraam atravs de

    passarelas de concreto protendidos.37 [14]

    Uma inveno que se nutre da memria, um projeto com profundo

    sentido potico, ou seja, compreendido como um fazer, um modus

    operandi que se ampara em conhecimento acumulado, em

    experincia vivida, uma operao que, nos termos colocados por

    Alessandro Castroviejo38, articula o universal e o particular.

    37

    Idem, p. 231. 38

    RIBEIRO, Alessandro J. Castroviejo. Arquitetura: poticas nos anos 90 vistas atravs da arquitetura. Dissertao de Mestrado pela FAUUSP, 2001.

    [14] A praia e ao fundo os dois novos blocos unidos pelas passarelas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 101.

  • 118

    Os critrios de interveno

    Os textos de Lina Bardi apresentam a mesma ndole de sua

    arquitetura: concisos e enfticos tocam nos aspectos cruciais para

    explicitar os fundamentos que orientam as escolhas de projeto:

    Ningum transformou nada. Encontramos uma fbrica com

    uma estrutura belssima, arquitetonicamente importante,

    original, ningum mexeu... o desenho de arquitetura do Centro

    de Lazer Fbrica da Pompia partiu do desejo de construir uma

    outra realidade. Ns colocamos apenas algumas coisinhas: um

    pouco de gua, uma lareira.39

    Mais uma vez, as prprias palavras de Lina Bardi exprimem o

    esprito da ao quanto relao passado/presente:

    No se trata de s devolver o prdio como uma mquina

    do tempo no passado. Isso preciso esclarecer porque a

    retromania est tomando conta do mundo, no isto que

    estou fazendo (...) se formos tomar por princpio absoluto o

    uso que fizemos dos espaos da fbrica da Pompia,

    haver gente querendo recuperar e proteger uma salada de

    edifcios que so velhos e no histricos. Assim a cidade

    transformar-se, por excesso de zelo, numa cidade de

    cacarecos, o que no desejvel. preciso deixar tambm

    florescer a nova arquitetura.

    Assim atua, mantendo os antigos pavilhes industriais e

    reconfigurando o conjunto com a concepo dos novos blocos

    verticais monolticos de concreto aparente, voltados s funes

    esportivas. A carga expressionista dessa nova arquitetura foi

    destacada por vrios autores, entre os quais Bruno Zevi40 e Eduardo

    Subirats41. [15] [16] [17]

    39

    FERRAZ, op. cit., p.220. 40

    Em artigo intitulado A fbrica dos signos, publicado na revista LEspresso (maio/1987), em coluna dedicada crtica de arquitetura que o autor manteve por vrios anos. 41

    Em vrios textos entre os quais o j mencionado na nota 1.

  • 119

    [15] Planta do conjunto. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

    [16] Corte longitudinal do galpo das oficinas. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 60.

    [17] Elevaes. Fonte: VAINER e FERRAZ, 1996, p. 61.

  • 120

    O significado renovado de uma fbrica

    Um texto de Ruth Verde Zein, publicado em uma edio especial da

    revista Projeto42 dedicada a Lina Bo Bardi, sob o ttulo Fbrica da

    Pompia, para ver e aprender, particularmente instigante. Inicia

    discorrendo sobre a cidade um confuso amlgama de signos (...)

    em permanente mutao que, segundo a autora, praticamente

    impede de se falar em contextualismo, o que impe ao projeto a

    estratgia de dot-lo, diante da impossibilidade de adot-lo (o

    contexto). No SESC Pompia, aponta Ruth Verde Zein, Lina Bo Bardi

    consegue o duplo feito: no s adotar o contexto do bairro de carter

    industrial, como tambm dot-lo de um sentido prprio,

    transformando seu significado de espao introvertido de produo

    em espao extrovertido de lazer.

    A extroverso se materializa na reconfigurao da rua-corredor de

    paraleleppedos no interior do lote, como um convite ao pblico a

    entrar, propiciando a continuidade entre o espao urbano e a viela

    interna.

    Os galpes so mantidos em sua configurao volumtrica como

    grandes recipientes capazes de abrigar diferentes atividades. Os

    novos elementos e instalaes indispensveis para os novos usos

    propostos no rompem com a amplitude e a continuidade espacial

    originrias.

    Um dos primeiros aspectos surpreendentes na deciso da arquiteta

    certamente foi a reutilizao dos galpes. A resoluo antecipa uma

    tendncia que vai se tornar mais comum na dcada seguinte, com

    projetos notveis, promovidos pelo poder pblico, como o da reforma

    da Pinacoteca do Estado (1993-98), projeto de Paulo Mendes da

    Rocha, e a criao da Sala So Paulo (1997-99), nas antigas

    dependncias da Estao Jlio Prestes, projeto de Nelson Dupr.

    Opta pela reutilizao que no se mimetiza, ao contrrio, distingue-

    se com clareza atravs da insero de elementos precisos a

    desempenhar funes definidas por um programa arquitetnico

    rigoroso, atento s diferentes atividades e, ao mesmo tempo flexvel,

    polivalente, deixando tambm espao para o imprevisto e para as

    42

    Revista Projeto n. 149, pp. 24-35

  • 121

    imprevisveis possibilidades criadas tanto pelos gestores, como pelos

    usurios habituais do lugar.

    O crtico Bruno Zevi, amigo de Lina Bardi, em artigo j mencionado,

    cita Ruth Verde Zein e refere-se ao projeto como um corajoso

    restauro inventivo que investe de novos contedos a arquitetura

    preexistente. Conclui sua descrio enfatizando o espao denso de

    humanidade e potica fantasia:

    O objetivo no o da mundana inclusividade, mas um

    confronto entre eventos de matriz e carga expressiva

    heterogneas. Apesar dos pressupostos ideolgicos de

    uma esttica do choque, emerge um equilbrio quase

    prefeito. Bo Bardi usou magistralmente os ingredientes

    lingsticos sua disposio: a flexvel planimetria

    oitocentista, o vernculo do bairro, os timos multicoloridos

    dos camponeses imigrados, os cdigos da vanguarda, alm

    de citaes de SantElia, Le Corbusier, Mies van der Rohe e

    das Hfe vienenses. Extraordinria montagem de

    fragmentos, que evita virtuosisticamente qualquer aspecto

    Kitsch. Renunciando declaradamente mitologia da beleza

    clssica, este centro sociocultural de So Paulo joga a carta

    das dissonncias com atrevimento e espontaneidade.

    O direito ao feio uma reivindicao recorrente em Lina Bardi, uma

    alternativa ao belo que comparece em um manifesto apresentado

    como pea de divulgao de uma exposio organizada no prprio

    SESC, em 1982 I Exposio de Artes dos Funcionrios do INAMPS

    cujo texto afirma:

    A expresso Kitsch surgiu na Alemanha no fim do sculo

    XIX quando a Revoluo Industrial tomou definitivamente o

    poder. o estigma da alta burguesia culta contra os setores

    da mesma classe, menos afortunados, que atravs da

    industrializao comeavam a ter acesso aos Tesouros da

    Arte, ao Belo.

    Esta pequena exposio no uma Integrao do Kitsch

    apenas um pequeno exemplo do DIREITO AO FEIO,

  • 122

    base essencial de muitas civilizaes, Desde a frica at o

    Extremo Oriente que nunca conheceram o conceito de

    Belo, campo de concentrao obrigado da civilizao

    ocidental.

    De todo esse processo foram excludos uns ainda menos

    afortunados: o povo.

    E o povo nunca Kitsch.

    Mas esta uma outra histria.

    So idias como essa que fazem de Lina Bo Bardi um personagem

    admirvel que no obstante sua erudio empenha-se em

    estabelecer, em sua incansvel busca criativa, uma comunicao

    direta entre o repertrio moderno e a tradio da cultura popular.43

    A Ladeira da Misericrdia (1987)

    Dois aspectos essenciais so destacados na anlise desse projeto: a

    aproximao entre a viso de Lina Bo Bardi acerca da histria e o

    pensamento produzido no campo da restaurao; a correlao entre

    o projeto de Salvador e a experincia de recuperao do centro

    histrico de Bolonha dos anos 1970-80, sob coordenao de Pier

    Luigi Cervellati e Roberto Scannavini, enquanto adoo de uma

    poltica atenta estrutura tipolgica da arquitetura existente e ao

    cidado usurio.

    Construir no construdo

    A anlise desse projeto, juntamente com a do SESC Pompia,

    presta-se de modo especial ao reconhecimento de que a ao de

    Lina Bo Bardi e equipe (formada por Marcelo Ferraz e Marcelo

    Suzuki) envolve uma expressiva potica do construir no construdo.

    Esse , sem dvida, um dado relevante e oportuno para afrontar a

    delicada questo da fronteira entre o restauro e a interveno que se

    coloca no apenas como operao meramente conservativa, mas

    43

    Esse tema abordado por Eduardo P. Rossetti no artigo Tenso moderno/popular em Lina Bo Bardi: nexos de arquitetura. Em Cadernos PPG-AU, FAUFBA, ano I nmero 1 2003, pp. 11-26. Em texto intitulado: Centro histrico da Bahia, antigo e moderno, publicado nos anais do XIII Simpsio Multidisciplinar da USJT (set. 2007), Marta Boga refere-se sofisticada edio entre o erudito e o popular presente na sua obra.

  • 123

    que admite a transformao da preexistncia, ainda que controlada

    por critrios rigorosos. [18]

    Nesse sentido, o estudo recorre reflexo representada pelos

    chamados restauro cientfico e restauro crtico e, em especial,

    contribuio de Cesare Brandi, importante crtico de arte do sculo

    XX, italiano, interlocutor de Giulio Carlo Argan44, autor do livro Teoria

    del restauro, publicado em 1963. Brandi aqui lembrado por sua

    reflexo filosfica sobre o problema do restauro que, de certa forma,

    d prosseguimento concepo do chamado restauro crtico45. O

    autor representa fonte necessria e fundamental de pesquisa na

    atualidade: elabora uma anlise rigorosa que busca definir princpios

    gerais orientadores da prtica a partir do conceito que se tem da obra

    a ser submetida ao restauro tida como objeto de interesse histrico e

    artstico.

    44

    Em Histria da arte como histria da cidade. No cap. 1: Histria da arte Brandi mencionado em vrias passagens, entre as quais a da p. 27, em que Argan relaciona o juzo esttico de matriz idealista, compreenso fenomenolgica da produo artstica de Brandi. Em Projeto e destino comparece um texto intitulado: Eliante ou da arquitetura (Carta a Cesare Brandi) de 1956, uma rplica sua crtica ao modernismo racionalista. 45

    Entende-se por restauro crtico a elaborao terica, produzida por Roberto Pane, Agnoldmoenico Pica e Renato Bonelli, na Itlia em meados do sculo XX, em meio aos debates do ps-guerra. Define o restauro como um ato de cultura e ato criativo cujo escopo conservar e reintegrar o valor expressivo da obra, apoiado em critrios de identificao da qualidade artstica. Para uma anlise aprofundada, consultar verbete restauro architettonico em Enciclopedia Universale dellArte, vol. XI, Veneza-Roma, Istituto per La colaborazione culturale, 1963.

    [18] Implantao geral do Plano de Salvador. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 273.

  • 124

    A outra perspectiva de investigao refere-se s relaes

    indissociveis das reas centrais de interesse histrico com o tecido

    urbano e metropolitano. Uma compreenso diferente daquela

    hegemnica at pelo menos as dcadas de 1960-70, segundo a qual

    essas reas eram consideradas como elementos estanques, cindidos

    de continuidade com a realidade urbana da cidade difusa e

    policntrica. Esse novo enfoque possibilita conciliar a preocupao

    preservacionista, s diretrizes mais gerais do planejamento urbano.

    Entretanto, se at meados do sculo XX a ao conservacionista

    afirmava-se principalmente como reao ao abandono e s

    demolies injustificadas, hoje se identificam excessos em certos

    processos chamados de patrimonializao46 que devem ser

    contidos.

    A celebrao do restabelecimento de um dilogo interrompido

    Ao saber da iniciativa do prefeito Mrio Kertzs que, em 1986, decide

    retomar a profcua relao de Lina Bo Bardi com a cidade de

    Salvador e com a cultura baiana, Jorge Amado manifesta grande

    entusiasmo. Reconhece a importncia da ao iniciada no Museu de

    Arte Moderna e no Museu de Arte Popular, integrantes do projeto do

    Solar do Unho e comemora a realizao do projeto da Casa do

    Benin.

    Assim recorda o autor a situao que antecede a interveno:

    (...) processo de abandono e devastao, o contnuo

    vandalismo, a memria apodrecendo em esquecimento, o

    patrimnio o do povo, o que pertence nao posto

    venda a preo vil.47

    Em poucas palavras o escritor consegue reunir aspectos centrais

    ligados ao tema da conservao: a consternao derivada do

    46

    Conceito elaborado por JEUDY, 2005: refere-se ao processo de fruio do patrimnio cultural, banalizado por estratgias de marketing e polticas culturais de consumo e turismo de massa que privilegiam a imagem, o simulacro, em detrimento do fato material genuno, alm de preterir a populao local, em favor dos visitantes ocasionais. Em CHOAY, op. cit., o tema igualmente abordado. A autora refere-se ao fenmeno resultante da expanso e banalizao do conceito de patrimnio como um complexo de No, p. 209. 47

    Texto publicado na revista Projeto n. 149, em edio especial dedicada obra de Lina Bo Bardi, p. 46.

  • 125

    descuido, o apropriado sentido coletivo associado idia do

    patrimnio cultural e a crueza dos interesses econmicos que

    solapam as bases de uma herana comunitria. [19]

    A retomada do dilogo

    Outro texto, de Lina Bo Bardi, datado de maro de 198748, expe os

    critrios de conduo do projeto de recuperao do centro histrico

    de Salvador, descrevendo a idia geral que permeia a interveno:

    A palavra restaurao lembra, em geral, as tristes

    restauraes. Dentro de um certo perodo histrico

    precedente h a destruio de um edifcio, isto , a

    destruio pelo Tempo, ou pelos homens, por incidentes,

    por uma guerra, um terremoto...

    Em geral, a restaurao a restituio a um estado

    primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de

    Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco

    de rano de uma obra restaurada sempre continua. muito

    difcil no perceber ou sentir isso entrando num restauro.

    O que estamos procurando na recuperao do Centro

    Histrico da Bahia justamente um marco moderno,

    respeitando rigorosamente os princpios da restaurao

    histrica tradicional.

    48

    FERRAZ, op. cit., p. 292. Texto tambm publicado na revista Projeto n. 149, p. 48.

    [19] Salvador. Imagens do centro histrico degradado. Fonte: Couto, [et al.], 2000, p.100.

  • 126

    Para isso, pensamos num sistema de recuperao que

    deixe perfeitamente intacto o aspecto no somente exterior,

    mas tambm o esprito, a alma interna de cada edifcio.

    Ser um sistema de pr-moldados, perfeitamente distinto da

    parte histrica, denunciado pela sua estrutura e pelo tempo

    atual. No vamos mexer em nada, mas vamos mexer em

    tudo.

    O arrazoado de Lina Bardi inicia com uma associao entre

    restaurao e tristeza, refere-se textualmente lembrana de tristes

    restauraes. A meno deixa espao para interpretaes. A

    tristeza tanto poderia estar ligada ao processo desencadeado antes

    da interveno de restauro a destruio por ao do tempo, do

    homem ou de incidentes traumticos, entre os quais as guerras

    como tambm poderia referir-se a uma viso saudosista que,

    descontente com a ao do tempo que tudo transforma, pretenderia

    restabelecer uma condio ideal originria, como se fosse possvel

    retroceder, ou interromper a passagem do tempo. Uma aluso clara

    s proposies fantasiosas de Viollet-le-Duc49. Chega a atribuir

    avanos contribuio da Carta de Veneza, mas no v motivos

    para muita animao. Detecta a presena de certo rano atribudo

    obra restaurada. Esse rano, que remete idia de

    conservadorismo, tudo o que ela quer evitar.

    Certamente Lina Bardi no se identifica com uma posio romntica,

    saudosista, de apego ao passado, nem tampouco com uma viso

    conservadora de oposio a inovaes de modo geral.

    Sua interveno fortemente marcada pela contraposio a uma

    conduta que vigorou no passado, mas que ainda continua fortemente

    arraigada ao senso comum de restaurao, compreendido como

    cancelamento das vicissitudes do tempo, em favor da restituio de

    um estado mtico primitivo. Algo muito prximo da posio defendida

    pelo francs Viollet-le-Duc que, no sculo XIX, juntamente com John

    49

    A definio de Viollet-le-Duc sobre o termo restaurao, conforme consta no primeiro captulo desta pesquisa, est presente no Dictionnaire Raisonn de lArchitecture Franaise du XI au XVI Sicle, traduzido para o portugus: Restaurao. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia, S.P.: Ateli Editorial, 2000, p. 17. Em sntese: Restaurar um edifcio (...) restabelec-lo em um estado completo que pode no ter existido nunca em um dado momento.

  • 127

    Ruskin, protagoniza o debate ligado preservao da herana

    adquirida do passado.50 O ingls, por sua vez, radicaliza sua posio,

    no admite sequer uma mnima interveno, em nome de uma

    deferncia absoluta materialidade e ao conhecimento histrico. O

    respeito autenticidade histrica prescreve a intocabilidade dos

    vestgios do passado. Entre as duas posies, aquela que obtm

    maior ressonncia a de Viollet-le-Duc, o que determina uma maior

    popularidade e tambm uma espcie de renitncia.

    Lina Bo Bardi, ao afirmar que pretende respeitar rigorosamente os

    princpios da restaurao histrica tradicional, mostra que tem plena

    conscincia dos passos dados por Camillo Boito e consolidados por

    Gustavo Giovannoni51, no sentido de superar o impasse criado pelas

    vises contrapostas dos primeiros tericos. Sabe que esses

    arquitetos asseguram uma viso moderada que acolhe os

    ensinamentos da arqueologia e do estudo rigoroso dos documentos

    histricos. Tal posio afirma-se na primeira metade do sculo XX

    como restauro histrico-filolgico que se desdobra no chamado

    restauro cientfico, cuja contribuio ser analisada a seguir.

    A meno Carta de Veneza indicao de que Lina Bardi est

    ciente da ampliao da noo de patrimnio que ultrapassa o limite

    do monumento, das grandes criaes, para nela incluir a produo

    arquitetnica ordinria, ou seja, as obras modestas, que tenham

    adquirido, como o tempo, uma significao cultural52. Uma

    ampliao que passa a considerar dignas de interesse de

    preservao as edificaes mais recentes, o conjunto urbano, seu

    traado, suas relaes entre volume construdo e espaos abertos,

    alm do prprio ambiente natural. Essa maior extenso do acervo

    dos bens patrimoniais, assim como a vasta destruio provocada

    50

    As condutas iniciais voltadas preservao e restauro, elaboradas no sculo XIX, so tratadas no primeiro captulo deste trabalho. Vale relembrar que tema abordado em vrias publicaes, entre as quais se destaca: KHL, B. M. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviria em So Paulo. Reflexes sobre sua preservao. So Paulo: Ateli Editorial, 1998, pp. 179-197. 51

    Camillo Boito (1836-1914) tem grande relevncia no panorama cultural do sculo XIX como arquiteto, restaurador, crtico e professor. Sua obra Os restauradores,

    apresentada na conferncia de Turim de 1884, constitui uma das bases essenciais da teoria contempornea da restaurao. Seu discpulo, Gustavo Giovannoni, aprofunda a reflexo iniciada por Boito, dando sua decisiva contribuio para a redao da Carta de Restauro de 1931. A vertente criada por ambos ficou conhecida como restauro cientfico. 52

    Carta de Veneza: Artigo 1. Consulta ao site www.iphan.br, acesso em 2/04/2008.

    http://www.iphan.br/

  • 128

    pela Segunda Guerra Mundial, contribuem para a crise metodolgica

    que atinge o restauro cientfico, abrindo caminho para a reviso

    conduzida pelo restauro crtico.

    Um aspecto relevante do projeto da Ladeira da Misericrdia envolve

    a tcnica aplicada consolidao e travamento das estruturas

    existentes, resultado da parceria com Joo Filgueiras Lima, o Lel.

    Uma soluo que obedece s orientaes da Carta de Veneza que

    no artigo 10 afirma:

    Quando as tcnicas tradicionais se revelarem

    inadequadas, a consolidao do monumento pode ser

    assegurada com o emprego de todas as tcnicas modernas

    de conservao e construo cuja eficcia tenha sido

    demonstrada por dados cientficos e comprovada pela

    experincia.

    Neste caso, o procedimento tcnico inovador corresponde

    utilizao dos painis plissados em argamassa armada, ora usados

    como divisrias internas, ora como lajes que substituem os

    assoalhos irremediavelmente deteriorados, ora empregados como

    contrafortes de estabilizao dos edifcios existentes, recompondo a

    continuidade do conjunto naqueles lotes vazios em que as

    construes primitivas foram demolidas. [20]

    Esse um sistema de consolidao estrutural que nasce a partir de

    uma triangulao conceitual proposta por Lina Bardi que,

    conhecendo o processo de concepo estrutural de Lel,

    recomenda-lhe de observar o trabalho de Pier Luigi Nervi, a respeito

    da reelaborao do processo construtivo do ferro-cimento53. Um

    dado curioso testemunha essa articulao operada por Lina Bardi.

    Na impossibilidade de comparecer a um primeiro encontro de

    trabalho com Lel que deveria acontecer na Fbrica de Escolas, no

    Rio de Janeiro, Lina envia, por intermdio de seus colaboradores,

    uma folha de capim-palmeira dentro de uma caixa, com o seguinte

    53

    A esse respeito consultar texto dos Anais do XIII Simpsio Multidisciplinar da USJT, So Paulo, 2007, intitulado: Projeto Piloto Ladeira da Misericrdia pela lente de um caleidoscpio. Lente 3: Longe dos olhos e perto da criao: Lina, Lel e Nervi. A aproximao entre o sistema idealizado por Nervi e o das peas pr-fabricadas de argamassa armada de Lel, intermediada por Lina Bo Bardi descrita em detalhes.

  • 129

    recado: entreguem isso a Lel e digam que eu penso em uma

    estrutura assim. Ele vai entender (...). Em carta de resposta a Lina

    Bardi, acompanhada de estudos das peas pr-fabricadas em ferro-

    cimento, Lel demonstra ter entendido a sugesto e explicita a

    referncia de consulta em forma de um P.S.: Foi muito importante

    examinar o material que voc me mostrou do Nervi. 54 [21] [22]

    Talvez seja justamente o back-ground terico, associado a um

    consistente preparo tcnico, o que impede o dilogo com as equipes

    do SPHAN local, dificuldade mencionada por Ceclia Rodrigues dos

    Santos55 ao comentar o veto continuidade de implantao do

    projeto.

    Ainda hoje comum deparar-se com posies datadas em

    discusses com especialistas. Quando o tema o patrimnio urbano,

    recorrente a evocao de argumentos enunciados pelo chamado

    restauro cientfico, marcados por uma viso positivista, de certo

    modo esquemtica, das questes estticas.

    54

    Cf. LATORRACA, Giancarlo (org.). Joo Filgueiras Lima Lel. So Paulo: Blau: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, em texto em que descrito o processo de concepo dos elementos pr-fabricados, intitulado: Recuperao do Centro Histrico FAEC. Salvador, BA, 1988, p. 166-170. 55

    Revista Projeto n. 149, jan./ fev. 1992, p. 54.

    [20] Contrafortes em argamassa armada. Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.

  • 130

    O respeito histrico como culto desmedido ao passado determina

    proposies de ambientamento56, com o uso de formas de estilo

    simplificado para os elementos novos. Medidas fundadas em uma

    pretensa neutralidade na insero do novo, no contexto histrico

    consolidado, estabelecem a adoo de normas muito rgidas e

    genricas que priorizam volumes, alturas, mas no garantem a

    qualidade arquitetnica da interveno contempornea.

    56

    O termo do idioma italiano e refere-se conduta sugerida pelos tericos do restauro cientfico, com respeito tutela dos ambientes de reconhecido valor histrico. Recomenda que na construo de novos edifcios na recomposio de lacunas no tecido urbano (por demolio ou perdas de continuidade), mantenham-se os volumes dos edifcios preexistentes, assim como os elementos estruturadores da forma que integram o repertrio tradicional. O interesse declarado o de preservar a uniformidade, ou seja, evitar a discrepncia de linguagem entre o velho e o novo. Esse tema tratado no segundo captulo desta pesquisa.

    [21] Plantas com indicao dos painis de argamassa armada.

    Fonte: FERRAZ, 1993, p. 296.

  • 131

    Um dilogo de tempos

    Indiscutivelmente a anlise de intervenes em preexistncias de

    valor artstico e documental requer necessariamente o balizamento

    dos critrios adotados no projeto com aqueles preceitos

    desenvolvidos no campo disciplinar da preservao de bens

    culturais. Nesse sentido, fundamental considerar a reflexo terica

    j produzida e consolidada, como instrumento que formula os

    princpios gerais a serem reelaborados nas circunstncias

    especficas dos casos analisados.

    Uma abordagem preliminar desatenta pode sugerir uma completa

    independncia de Lina Bardi em relao ao pensamento produzido

    no terreno da preservao e restauro. A sua postura livre,

    contestadora, e sua personalidade controversa corroboram essa

    tese. De fato, no o caso de rotular seu procedimento de projeto

    conforme esta ou aquela vertente da restaurao. A este estudo

    interessa, entretanto, identificar certas tangncias de raciocnio.

    Interessa, sobretudo, investigar como Lina transita entre o rigor

    exigido pelo respeito histrico e a liberdade que tanto preza.

    A esse propsito, convm retomar as posies do restauro

    cientfico e crtico, no intuito de entender de que modo so

    incorporadas ao fazer arquitetnico de Lina Bo Bardi.

    [22] Conjunto antes e depois da recuperao. Fonte: FERRAZ, 1996, p. 292 e 293.

  • 132

    Giovanni Carbonara57, em seu livro Avvicinamento al restauro (1997),

    dedica um captulo ao tema do restauro cientfico58. Observa

    inicialmente a ascendncia do chamado restauro histrico, espcie

    de transio que, a partir das primeiras proposies, impe certos

    limites s reconstituies, na medida em que as atrela anlise

    cuidadosa de documentos e de iconografias existentes, alm de

    atentar no exclusivamente condio primitiva do edifcio a ser

    restaurado. Compreenso que destaca o valor documental da

    arquitetura, o restauro cientfico afirma-se nas primeiras dcadas do

    sculo XX e consolida a convico de que se devam preservar as

    diversas passagens que marcam a existncia de um edifcio, como

    camadas de tempos distintos que sinalizam a trajetria da histria.

    Colocando-se como mediao de posies conflitantes: ope-se

    viso de Viollet-le-Duc de que o restauro deva passar inobservado ao

    recomendar que a interveno seja distinguvel da preexistncia,

    mas, do mesmo modo, ope-se posio de Ruskin ao afirmar a

    legitimidade da restaurao. Como teoria intermediria prope rigor

    e cautela na interveno, ou seja, priorizar as obras de manuteno,

    reparo e consolidao, nessa ordem, deixando as aes mais

    invasivas para os casos indispensveis.

    Por respeito autenticidade do material original que se impe a

    diferenciao dos acrscimos em relao s partes antigas e, da

    mesma forma, que as reconstrues se baseiem em dados precisos,

    refutando hipteses incertas. Tanto a distino entre o antigo e o

    novo nas operaes de restauro, como a manuteno da

    sobreposio de passagens sucessivas, contribuem para que o

    restauro cientfico promova o dilogo de tempos.

    57

    Carbonara professor, diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed Il Restauro dei Monumenti della Facolt di Architettura dellUniversit degli Studi di Roma La sapienza. Contribui de modo significativo para a reflexo no campo

    disciplinar da restaurao com diversas publicaes, entre as quais se destaca os livros consultados: Avvicinamento al restaro: Teoria, storia, monumenti. Npoles, Liguori, 1997 e La reintegrazione dellimmagine. Roma: Bulzoni, 1976. Em Avvicinamento... contempla, mais do que as tcnicas, os princpios reguladores da

    prtica no trato da restaurao, no sentido de garantir aquela operosidade consciente dos prprios deveres e dos prprios limites dos quais se adverte, frequentemente, a ausncia. 58

    CARBONARA, G. Avvicinamento... em parte II, cap. 8, trata do Restauro

    Cientfico, pp. 231-268. Na parte III, cap. 2, aborda o Restauro Crtico, pp. 285-301.

  • 133

    Assinala Carbonara que durante vrias dcadas o restauro

    cientfico visto como postura de absoluto rigor, justamente pelo

    fato de representar importantes reparos s imprecises e arbtrios

    possibilitados pelas interpretaes das primeiras teorias. Dois

    fatores, no entanto, concorrem para que essa conduta seja

    considerada superada, em meados do sculo XX, como ocorre

    inevitavelmente com os postulados histricos:

    - o primeiro a afirmao de novas teorias estticas, entre as quais a

    de Benedetto Croce59, uma compreenso crtica atenta s

    especificidades de cada obra e sua trajetria no tempo, mais do

    que aos aspectos estilsticos e enfoques evolutivos priorizados por

    uma leitura de matriz positivista, como o era a do restauro cientfico;

    - outro fator que contribui para o questionamento dessa posio a

    destruio avassaladora provocada pela Segunda Guerra Mundial,

    que exige respostas rpidas e urgentes, aes em larga escala, no

    compatveis com a ao cautelosa e inflexvel de selecionar

    criteriosamente cada objeto de interveno, de realizar estudos

    (bibliogrficos e de arquivos) e levantamentos (in-loco) rigorosos e

    demorados antes de proceder interveno propriamente dita, como

    querem os preceitos dessa linha de atuao.

    Mesmo porque, nessas circunstncias excepcionais no se trata

    exclusivamente de reparo, recuperao e reconstruo de obras de

    valor arquitetnico consagrado: as aes voltam-se de modo geral

    aos bens comuns de carter ordinrio e devem suprir carncias mais

    imediatas. O prprio Giovannoni admite adaptaes: melhor um

    restauro cientificamente imperfeito, que represente uma ficha perdida

    na histria da arquitetura, que a renncia completa, a qual privaria as

    nossas cidades do seu aspecto caracterstico nos mais significativos

    monumentos de arte.60

    H que se considerar um aspecto novo que aflora de forma

    contundente: a questo emotiva, sentimental. A guerra comove,

    revolve sentimentos, faz emergir motivaes de carter afetivo,

    tornando discutveis as prerrogativas ditas cientficas da postura at

    ento em vigor.

    59

    Ver CROCE, B. Brevirio di esttica, 1931. 60

    CARBONARA, op. cit., p. 248 (traduo da autora).

  • 134

    So esses questionamentos a colaborar para o desenvolvimento do

    restauro crtico, entre os anos 1940 e 1960, principalmente por

    mrito dos tericos: Renato Bonelli, Roberto Pane e Agnoldomenico

    Pica, que nesses anos apontam as dificuldades de aplicao das

    orientaes previstas pelo restauro cientfico e defendem a

    necessria reviso. Os aspectos mais discutidos, segundo

    Carbonara, eram: a orientao classificatria e positivista no modo

    de entender as manifestaes artsticas, a nfase em uma

    abordagem evolutiva na conduo da anlise histrica da produo

    artstica, um substancial desinteresse pelo componente esttico do

    problema, especialmente no que tange s recomendaes de

    solues formais neutras, no aconselhamento ao ambientamento,

    que acabam por subestimar as qualidades figurativas dos

    monumentos. Destaca o autor que os debates mais expressivos do

    ponto de vista filosfico, especialmente esttico, ocorrem em

    Npoles e Roma.

    Conforme destaca Carbonara, o restauro crtico parte da premissa de

    que:

    cada interveno constitui um caso em si, no enquadrvel

    em categorias (como aquelas meticulosamente indicadas

    pelos tericos do chamado restauro cientfico:

    completamento, liberao, inovao, recomposio, etc.),

    nem adaptvel s regras preestabelecidas ou a dogmas de

    qualquer tipo, mas a se reinventar com originalidade, caso a

    caso, nos seus critrios e mtodos. 61

    De acordo com esse entendimento, o restaurador deve ter, alm de

    competncia tcnica, um profundo conhecimento da histria da arte e

    da arquitetura, condies que lhe permitem distanciar-se de decises

    arbitrrias, para encontrar a escolha apropriada, condizente com uma

    adequada investigao histrico-crtica.

    A discusso versa sobre os procedimentos mais comuns: a

    reintegrao de lacunas, a remoo de acrscimos inconvenientes, a

    diferenciao de elementos novos, a reversibilidade e a escolha da

    tcnica a ser adotada nas operaes a serem realizadas.

    61

    Idem, p. 285 (traduo da autora).

  • 135

    A qualidade da soluo aplicada em cada operao est

    necessariamente ligada criatividade e capacidade de inveno,

    requisitos essenciais da ao arquitetnica. Uma criatividade que

    deve ser orientada, ainda que no exclusivamente, mas em grande

    medida para a conservao.

    Uma das preocupaes bsicas , atravs do juzo crtico, diferenciar

    a obra arquitetnica de carter excepcional, enquanto qualidade

    artstica e valor esttico, da obra de valor documental, testemunho da

    atividade humana, pois, segundo a concepo do restauro crtico, a

    finalidade da ao justamente liberar a verdadeira imagem. Uma

    vez que os conceitos de qualidade no so permanentes, mas se

    transformam com o tempo, estes exigem, portanto, o esclarecimento

    dos motivos e dos critrios que amparam o reconhecimento de valor.

    Conforme observa Carbonara, o restaurador alinhado com essa

    vertente mostra-se mais confiante na sua prpria capacidade crtica e

    atribui prioridade ao valor artstico, pois a ele no interessa preservar

    unicamente o valor da obra enquanto documento, mais do que isso,

    o que realmente interessa o esforo de atualizar o ato criativo.

    Nesses termos, o restauro entendido como processo crtico e ato

    criativo, duas operaes aproximadas em uma relao dialtica, em

    que a segunda subordinada primeira. Assim sintetiza o autor

    essa atitude voltada a tornar viva e presente a obra de arte e de

    arquitetura:

    Aqui se unem o reconhecimento e a satisfao derivada do

    valor artstico-histrico com a necessidade de restituir

    obra a eficcia e a pregnncia62 que o tempo corroeu e

    diminuiu. O restauro como avaliao crtica paralelo

    histria da arte, da qual extrai princpios e mtodos;

    representa, em essncia, um caso particular, em que a

    ao crtica se prolonga na prtica. (...) demonstra o

    62

    Conforme definio do Dicionrio Eletrnico Houaiss da Lngua Portuguesa 1.0.10: forma e estabilidade de uma percepo; lei ou princpio geral da teoria da Gestalt segundo o qual a configurao perceptiva particular que reponta, entre todas as outras potenciais, to boa quanto o permitirem as condies prevalentes, e suas propriedades so a simplicidade, a estabilidade, a regularidade, a simetria, a continuidade, a unidade, a conciso (p.ex., uma circunferncia com pequenas falhas no traado vista como se fosse perfeitamente fechada)

  • 136

    conhecimento do momento histrico e uma consciente

    continuidade com o passado 63

    Sem dvida, as definies carregam o peso de incorrer em

    interpretaes pessoais pouco rigorosas, pelo prprio vocabulrio

    usado pelos tericos dessa vertente, (atualizao, valorizao, forma

    completa, liberao da verdadeira forma, verdadeira unidade

    figurativa), quando apropriado por agentes motivados por aes de

    modernizao e transformao arbitrria ou duvidosa.

    Uma contribuio no sentido de aprimorar essa conduta e de conter

    as imprecises a que inadvertidamente induz pode ser reconhecida

    na teoria de Cesare Brandi. Apelando mais uma vez a Carbonara,

    admite-se que a filosofia do restauro na Itlia, ainda hoje v seu

    ponto de referncia no pensamento de Brandi, fundador e diretor do

    Istituto Centrale di Restauro di Roma, o mais prestigioso organismo

    nesse campo. A partir de uma orientao crtica de ascendncia

    kantiana e inspirao crociana, organiza seu pensamento, com

    amplas e originais aberturas fenomenologia de Husserl e ao

    estruturalismo de Heidegger.

    As escolhas transitam entre as teorias

    Para situar os procedimentos de Lina Bardi em confronto com as

    posturas a que faz referncia, nada mais oportuno que iniciar com a

    sua compreenso a respeito das conexes entre a histria e as

    memrias coletivas, entre a narrativa oficial e as diferentes

    interpretaes que constituem o cotidiano:

    Mas o tempo linear uma inveno do Ocidente, o tempo

    no linear, um maravilhoso emaranhado onde, a

    qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e

    inventadas solues, sem comeo nem fim.64

    Tempo e histria nessa citao so sinnimos, o que equivale a

    entender a histria, como passado vivo que incide diretamente no

    presente e conduz reflexo. Vale observar que essa uma das

    63

    Carbonara, op. cit. p. 278 (traduo da autora). 64

    FERRAZ, op. cit. Citao de fechamento da publicao.

  • 137

    discusses propostas pela chamada Nova Histria65, uma

    abordagem contempornea que renuncia temporalidade linear,

    detendo-se nos mltiplos tempos vividos, entendendo que a

    experincia individual se enraza no social e no coletivo, como se

    pretende analisar.

    Fundamental para esta anlise investigar o seu entendimento acerca

    da locuo presente histrico: Existe porm outro tipo de Passado

    que pode ser conservado mas deve viver ainda em forma de

    Pr