Dados do Coordenador: Dados dos Participantes...3 Bento PRADO Jr, op.cit., p.199. 4 Depoimento no...
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1) Identificação:
Titulo do Simpósio Temático: Representação dos lugares na cultura brasileira
Dados do Coordenador:
Nome: Prof. Dr. Luís Antônio Jorge
Instituição: FAU/USP
e.mail para contato: [email protected]
Dados dos Participantes:
Nome: Profa. Dra. Ana Maria de Moraes Belluzzo
Instituição: FAU/USP
Nome: Prof. Dr. Marcelo Suzuki
Instituição: EESC/USP
Nome: Jacopo Crivelli Visconti
Instituição: Doutorando FAU/USP
Nome: Profa. Ms. Marina Grinover
Instituição: Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Nome: Arq. Lucas Girard
Indicação do eixo temático: Análise e Representação
Autor: Luís Antônio Jorge
Título do trabalho: Guimarães Rosa: lugares - em busca do “quem das
coisas” (um estudo sobre a construção do carro de boi, no sertão roseano)
O vaqueiro Pedro Franciano: Eu acho que ele queria era ficar sabendo o tudo e o miúdo.
O vaqueiro Tadeu: Não gente, minha gente: que não era o-tudo-e-o-miúdo... O vaqueiro Pedro Franciano: Pois então?
O vaqueiro Tadeu: ...Queria era que se achasse para ele o quem das coisas! G. Rosa (Cara-de-Bronze)
Ninguém boi tem culpa de tanta má sorte...
G. Rosa (Conversa de bois)
Guimarães Rosa realizou uma das mais profundas leituras do Brasil. Na sua
dupla dimensão de artista e pensador, pertence àquela tradição dos grandes
intérpretes do país mencionada por Antonio Candido1. Para isso, também executou o
movimento da língua para a linguagem que, antes de comunicar, é ela mesma,
palavra-pensante, na feliz expressão do filósofo Bento Prado Júnior. Para explicitar o
sentido da obra e dos personagens de João Guimarães Rosa, Bento Prado mostra a
grande diferença entre eles e o famoso personagem de Cervantes, D. Quixote - o
cavaleiro da triste figura - herói letrado que depois de ler toda a literatura
cavalheiresca, sai pelo território em busca dos signos codificados nesse universo. Mas
percorre, em suas andanças, um mundo doravante mudo. Seu itinerário nada mais faz
do que demonstrar que o velho parentesco entre a linguagem e o mundo foi rompido e
o que era saber transformou-se em loucura e delírio2. Os personagens de Rosa
percorrem um caminho inverso ao de D. Quixote: eles encontram a salvação na
decifração de um texto gravado na própria natureza (physis) que tem voz. A novela O
Recado do Morro (publicada pela primeira vez no livro Corpo de Baile, em 1956)
ilustra essa idéia que permeia toda a obra de João Guimarães Rosa: enquanto os
letrados permanecem cegos e surdos à Escritura do mundo, as crianças, os 'loucos',
os iletrados e os artistas, decifram o recado de vida e morte transmitido pela própria
1 Antonio CANDIDO, Literatura e Sociedade, 8a. Ed. São Paulo: Publifolha, 2000 – p.119
2 Bento PRADO Jr, Alguns Ensaios – filosofia, literatura e psicanálise – São Paulo, Editora Max Limonad, 1985, p.225.
Natureza. Na situação irônica que contrapõe o letrado ao iletrado, o Saber se encontra
do lado mais inesperado: não dominar a linguagem, não saber utilizá-la, é devolvê-la à
sua verdade e à sua vocação mais primitiva. Numa fórmula breve: ler em profundidade
só é possível para quem não sabe ler a superfície da letra3.
Rosa, em sua obra literária, traça uma geografia dos lugares do sertão
mineiro, ora apoiando-se na paisagem fisicamente localizada, com referências claras e
conhecidas, ora na memória das paisagens, onde a imaginação assume a tarefa de
redesenhar os contornos daquilo que já fora visto, vivido, mas que solicita uma
decifração. Nesta pesquisa, a identificação dos lugares roseanos é uma forma de
reconhecer uma cultura e, reconhecendo-a, entendê-la. O projeto Guimarães Rosa:
lugares procurou fazer a travessia pelo o espaço poético do autor, em busca do
“quem das coisas”, concorrendo para decifração de um lugar representativo da
cultura brasileira. Para isso, elegeu um dos seus contos como guia de estudo da
cultura de um lugar, com interesse especial, para a cultura material, para os artefatos
ou coisas construídas. Este interesse por documentar um ofício decorre do atual
entendimento sobre patrimônio cultural, mas, sobretudo, ecoa, vividamente, aquela
conhecida convocação de Lina Bo Bardi: isso não é artesanato nem coisa nostálgica,
é coisa do povo, é um convite a um grande levantamento nacional para se pesqisar as
nossas verdadeiras necessidades4.
A forma pela qual se dava a aproximação da arquiteta Lina Bo Bardi ao saber
popular era muito similar à abordagem criativa de Rosa: um vínculo interno, um
diálogo travado no nível da invenção da linguagem e não, da sua idealização, típica de
quem detém a autoridade de um saber refratário a experiência alheia. Como Rosa,
Lina percebeu, no contato com a riqueza da cultura popular, um convite para uma
outra arquitetura, onde a inventividade estivesse amplamente contemplada, de modo a
nutrir a cultura moderna com os saberes populares. Uma arquitetura francamente
afetiva, radicalmente simples e humildemente comprometida com as nossas
verdadeiras necessidades.5
Orientado por esta relação estabelecida entre Guimarães Rosa e Lina Bo
Bardi, dois dos maiores autores da cultura brasileira da segunda metade do século XX,
3 Bento PRADO Jr, op.cit., p.199. 4 Depoimento no livro Lina Bo Bardi, S. Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1993, p.203. 5 Luís Antônio JORGE, O Espaço Seco – Imaginário e Poéticas da Arquitetura Moderna na América, Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 1999.
propusemo-nos a uma experiência que buscasse o confronto entre obra e lugar, ou o
diálogo entre literatura e “arquiteturas do lugar”, a partir da hipótese de que ambos
oferecem estratégias de abordagem análogas e motivações semelhantes. Assim,
resolvemos conhecer o ofício da construção de um carro-de-bois no sertão roseano,
considerando este artefato como um dos mais emblemáticos da cultura material do
lugar, ao mesmo tempo que esboçamos a hipótese de que o carro-de-bois é um
engenho que fala dos temperamentos dos bois, das madeiras e dos mestres
carrreios do lugar.
Durante três dias, do mês de julho de 2005, realizamos uma oficina que
denominamos “Carro de boi - os temperamentos dos bois e das madeiras”, em
Morro da Garça (MG), com moradores da cidade, alunos da USP e leitores de
Guimarães Rosa que se encontram regularmente para “rodas de leitura” no IEB
(Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo). Pela manhã, na
Fazenda Capivara, acompanhando e registrando o trabalho de construção de um carro
de bois pelo mestre carreiro Manuel Alexandre, célebre construtor de carros da região,
ainda em atividade, a despeito dos seus 80 anos; e à noite, na Casa da Cultura do
Sertão, por meio de debates, sobre quatro assuntos principais: 1. o desenho do carro
de bois e de todos os seus componentes, assim como, as madeiras brasileiras e da
região, nele empregadas; 2. a presença do carro de bois nos relatos de historiadores e
viajantes pelo Brasil, nos séculos XVII, XVIII e XIX; 3. a leitura e a análise do conto
Conversa de Bois, de Guimarães Rosa, publicado no livro Sagarana; 4. a importância
cultural das técnicas artesanais e de um saber fazer associados à tradição rural para a
identidade de um design brasileiro.
[Quinta-feira, 14, 7:30h]
Partida, em ônibus cedido pela Prefeitura Municipal de Morro da Garça, para
a fazenda Capivara. A viagem dura cerca de uma hora. É época de seca no sertão e o
pó da estrada, ainda preso pelo sereno da noite, é ameno e não incomoda os
passageiros: uns extasiados pela imagem inédita e grandiosa do Morro, outros,
distraídos, suspeitam dos obstáculos que o ônibus deverá vencer.
A família de Manuel Alexandre nos recebe com leite, café e biscoito de
polvilho - tudo quentinho para combater o frio da manhã.
(desenho: Andrés Sandoval)
Todos a postos, acompanhamos a primeira tarefa do mestre Manuel: a
finalização do corte do cabeçalho, espécie de espinha dorsal do carro, que resultou da
compra de um “pau em pé” de ipê roxo (que, nessa época, estão todos floridos),
escolhido por ele e que lhe rendeu duas peças a um custo de R$ 300,00. O cabeçalho
excede os 4,50m de comprimento pretendidos para a peça finalizada.
Acompanhamos em seguida a montagem da estrutura da mesa do carro
composta pelo cabeçalho, pelas chedas - atreladas ao primeiro pelas cadeias – e pelo
recavém. As chedas são as duas peças laterais cujas curvaturas devem ser naturais,
conforme explica o mestre, ao alertar que não se lavra a madeira para chegar na curva
requerida sob pena de comprometer a estrutura e a resistência da mesa do carro.
Portanto, aquela sinuosa dupla curvatura é reconhecida ainda “em árvore”, por um
olhar experiente e preciso: há que render duas peças espelhadas, num perfeito
sentimento de simetria que vigia a alma de um carreiro condutor. O desenho das
chedas é uma marca registrada de um “Manuel Alexandre”: alongada, a elipse faz o
carro e a ponta do cabeçalho penetrar pela junta do coice, aproximando os bois do
carreiro. A colocação das chedas parece fazer crescer o carro e mestre Manuel
sentencia, riscando com a unha um lugar preciso onde a curva ideal (numa
demonstração de puro sentimento estético) deveria terminar – a dois dedos daquela
que observávamos.
Enquanto isso, os participantes da oficina desenhavam e faziam anotações,
comparando o observado com desenhos entregues a eles, previamente, de um carro
de boi “genérico”. Estava iniciada a pesquisa sobre um determinado ofício, sobre um
saber fazer, um como fazer, com que meios fazer, em inequívoca extinção nesse
nosso país. Registros como estes, do arquiteto e ilustrador Andrés Sandoval:
[Quinta-feira, 14, 18:00h]
Reunidos, passamos a discutir sobre o sentido da oficina: o reconhecimento
de um ofício em extinção, de um domínio técnico, de um engenho, um conhecimento
construído em seu lugar, mas também, um conhecimento que nos ensina a
compreender o lugar. Um artefato que reúne técnica e destreza, sabedoria que lida
com os temperamentos das madeiras – nas árvores presentes na região – e com os
temperamentos dos bois, pois quem constrói, como mestre Manuel, também conduz.
Investigamos a origem do carro de bois, no Brasil, no relato de historiadores
e, sobretudo, de viajantes (na sua grande maioria, no início do século XIX, após a
vinda da Corte Portuguesa para o Brasil) e identificamos as madeiras mais
empregadas na sua construção. Como, por exemplo, Jean Baptiste Debret (Paris,
1768 / 1848) que viajou para o Brasil em 1816, onde ficaria por 15 anos, integrando a
missão francesa que veio ao Rio de Janeiro a pedido de D. João VI, para fundar a
Academia de Belas Artes e produziu uma série de desenhos e relatos:
Entre as inúmeras espécies de madeiras que crescem nas florestas virgens do Brasil, os construtores
fizeram uma escolha que regula o abastecimento habitual do Rio de Janeiro, onde os negociantes de madeiras
oferecem à indústria do carpinteiro, do carroceiro, do torneador, do ebanista, do marceneiro, todos os recursos de sua
flexibilidade, de sua dureza ou de suas dimensões colossais.
Citarei algumas espécies mais notáveis tais como a canela marrom, preta ou cinza; o ipê de cor
vermelha e que não apodrece na água; o óleo, árvore do copaú, empregado em construção para caixilhos e
batentes; a grapiapunha, de um amarelo esverdeado, empregada pelo carroceiro para cambas de rodas; o garabú,
madeira roxa mais dura do que a precedente e empregada na fabricação de raios de roda ou de varais de carro; o
cipipira, marrom-escuro, mais forte e mais duro de todas, empregado especialmente nos eixos e braços de máquinas;
o vinhático com que se fazem pirogas, tetos, assoalhos e, em geral, as tábuas empregadas na marcenaria; a cacheta,
madeira das mais comuns que pode ser considerada madeira branca; o jequitibá, com o qual se fazem os mastros
pequenos e que se emprega também, juntamente com o óleo vermelho e o jataí amarelo, na fabricação das caixas
para açúcar. A sapucaia serve para fazer quilhas e mastros, cabrestantes e bordagens. O marceneiro utiliza o pequiá
e o jacarandá de belas veias para móveis preciosos. A oiticica é empregada nas polias e, finalmente, o cedro nas
peças esculpidas. As madeiras do Brasil, em geral pesadas, apresentam entre si diferenças, por pé cúbico, de duas
arrobas e nove arráteis (64 libras) a 1 arroba e 5 arratéis (32 libras mais ou menos).6
Os relatos dizem respeito à utilização do carro no transporte de cargas e de
pessoas, relatando usos e costumes de acordo com as regiões. Outros documentos
tratam da descrição do carro, das suas origens, dos tipos de sons, dos bois e dos
preços.
Assim, em Pernambuco, recolhemos registros de Frei Vicente do Salvador7
(entre 1612/1617), de Henry Koster8 (entre 1809/1815) e de Louis François de
Tollenare9 (em 1816); na Bahia, de André João Antonil10 (entre 1668/1711); no Rio
Grande do Sul, de John Luccock11 (em 1808), de Robert Avé-Lallemant12 (em 1858) e
de Herbert H. Smith13 (em 1882); no Rio de Janeiro, do já citado John Luccock (que
por lá passou entre 1809 e 1815), do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied14 (em
1815), de Jean Baptiste Debret (entre 1816 e 1831, na obra já citada), de Auguste de
Saint-Hilaire15 (em 1818) e de Theodor von Leithold e Ludwig von Rango16 (entre
1819/1820); em Minas Geraes, de John Luccock (em 1817, na obra citada), de
Auguste de Saint-Hilaire17, de Daniel Parish Kidder e James Cooley Fletcher18 (entre
6 DEBRET, Jean Baptiste – Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil - Tradução de Sérgio Milliet, São Paulo, Martins, 1949 7 SALVADOR, Frei Vicente do – História do Brasil (1590-1627) – São Paulo, Melhoramentos, 1954. 8 KOSTER, H. – Viagens ao nordeste do Brasil (1809-1815) – São Paulo, Ed. Nacional, 1936. 9 TOLLENARE, Louis François de – Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818 – Salvador, Progresso Ed., 1956. 10 ANTONIL, André João – Cultura e opulência do Brasil (1711) – Salvador, Progresso Ed., 1950. 11 LUCCOCK, John – Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil – Tradução de Milton da Silva Rodrigues, Belo Horizonte, Itatiaia / S. Paulo, Edusp, 1975. 12 AVÉ-LALLEMANT, Robert – Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858) – Belo Horizonte, Itatiaia / S. Paulo, Edusp, 1980. 13 SMITH, Herbert H. – Do Rio de Janeiro à Cuiabá (1881-1886) – São Paulo, Melhoramentos, 1922. 14 MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied – Viagem ao Brasil (1815-1817), São Paulo, Ed. Nacional, 1940. 15 SAINT-HILAIRE, Auguste de – Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil (1817-1818) – São Paulo, Edusp / Belo Horizonte, Itatiai, 1974. 16 LEITHOLD, Theodor von; RANGO, Ludwig von – O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819 – São Paulo, Ed. Nacional, 1966. 17 SAINT-HILAIRE, Auguste de – Viagem às Nascentes do Rio São Francisco (1819) – São Paulo, Edusp / Itatiaia, 1975. 18 KIDDER, Daniel Parish; FLETCHER, James Cooley – O Brasil e os brasileiros (1851-1865) – São Paulo, Ed. Nacional, 1941, 2v.
1855/1865); em São Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire19 (em 1819), de Thomas
Davatz20 (em 1855); em Alagoas, de Georg Wilhelm Freireyss21 (em 1838); ou ainda,
de Oscar Canstatt22, falando de um lugar não identificado.
A organização regional dos relatos foi uma tentativa de buscar proximidades e
diferenças no desenho e no uso do carro de bois pelo Brasil.
Nesta linha, o carro do mestre Manuel Alexandre, de Morro da Garça, é um
carro que possuí uma singularidade, uma contribuição pessoal do mestre para ofício.
Um outro participante da oficina foi o ex-trabalhador rural (hoje funcionário
público municipal), Paulo César Soares - filho do carreiro Vicente, boiadeiro da
fazenda do Chicão – que exprimiu, com os dois poemas, o significado profundo do
carro de bois para a cultura da região:
É assim um carro
Vou deixar escrito talvez para a posteridade
O que aprendi no campo e não vejo na cidade
Vou contar pra vocês com bastante precisão
As peças que compõe um carro-de-boi aqui no sertão
Vou começar o meu trabalho
Falando de cabeçalho
Este pedaço de madeira
Que começa na traseira
E vai até na frente
Na ponta boca-de-lobo, chaveia pigarro
Lá atrás sujo de poeira e barro
Um argolão bem resistente
Dos lados duas chedas curvadas
Com sete ou oito buracos cada
Pra botar uns fueiros bacana
Duas argola na frente duas atrás
E nelas que a gente faz
Arrocho para carrear pedra, madeira ou cana
19 SAINT-HILAIRE, Auguste de – Viagem à Província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai – Tradução de Rubens Borba de Morais, São Paulo, Martins / Edusp, 1972 20 DAVATZ, Thomas – Memórias de um colono no Brasil (1850) – São Paulo, Edusp / Martins, 1940, t. 1, 2v; t.2, v.3. 21 FREIREYSS, Georg Wilhelm – Viagem ao interior do Brasil nos Anos de 1814-1815 – Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, v. 11, 1906. 22 CANSTATT, Oscar – Brasil, a Terra e a Gente (1868) – Rio de Janeiro, Irmãos Pengetti Ed., 1954.
Tem o eixo uma peça reforçada
Geralmente oitavada
Pra nas pontas as rodas encaixar
Os cocão dois de trás dois da frente
Três chumaços que a gente
Põe pra cantiga segurar
A chaveta na ponta do eixo é colocada
Pra que andando pelas estradas
As rodas não venham se soltar
Outra coisa que o fueiro acompanha
É um chifre com banha
Para o eixo lubrificar
Nas rodas meião e terça
Caimbra areia também
Temos cravos e cavias
Não se esquecendo o recavém
Palmatória que não judia
Cadeia que não prende ninguém
Na roda também tem gato
Pro meião não rachar
Tem as ferragens e espera
Para o cabeçalho descansar
E amarrada do pigarro no argolão
Uma boa corrente para a viagem aprumar
Quase esqueço da cunha, que acocha o cocão
No eixo para dar aquela música notória
Se falando em carro se tem carreiro
Se tem boi um passado de gloria
Mas aí é outro caso companheiro
Que eu conto noutra história
Lamento de Carreiro
Carro de boi que canta
E toda gente se levanta
Para ver ele passar
Na verdade ele não canta
Tem presa na garganta
Uma vontade de gritar
De gritar cadê o sertão
Cadê até mesmo o chão
Para que eu possa marcar
O chão hoje é asfalto
Já não vejo lá no alto
A poeira levantar
Sou feito de madeira de lei
Muitas delas eu não sei
Como o nome falar
Umas porque são caras
Outras estão tão raras
Que tá difícil encontrar
Sucupira, folha-de-bolo, amargoso, jacarandá
Peroba, pau-barco, pau-ferro, jatobá
Bálsamo, pau-d´óleo, aroeira, tingui
Pau-terra, mangue, faveira
E alguns outros que eu esqueci
O pior de tudo, seu moço
Que um carro cantando grosso
Tá difícil escutar
Porque quando o carro se esbandaia
Qualquer coisa atrapalha
Não tá tendo quem consertar
Os nossos meninos
Já seguem outro destino
Querem saber só de estudar
Preferem computador
Essas coisas, meu Senhor
Que nem sei como explicar
Enquanto Deus for abençoando
Neste chão eu for andando
Eu quero carrear
Mas já vejo com desespero
Carro veio companheiro
Vamos ter que aposentar
Canta, carro veio, canta
Solta sua garganta
Com toda força que você tem
Porque eu sei que você agora
Não canta, mas só chora
Como estou chorando também
[Sexta-feira, 15, 7:30h]
A viagem de ônibus teve menor duração: o caminho e seus desafios já eram
sabidos. Tal como no dia anterior, o leite, o café, o biscoito e rosca estavam,
quentinhos, esperando-nos na mesa ao lado do fogão à lenha.
Neste dia, começamos os trabalhos, observando um carro que está na lida há
muito tempo, do mestre Manuel. Ao contrário do dia anterior, passamos a desmontar
alguns componentes para melhor identificá-los: suas formas, suas dimensões, suas
funções, assim como, as madeiras neles empregadas. Estes componentes haviam
sido previamente identificados na leitura do conto Conversa de Bois e entregues aos
participantes da oficina sob a forma de uma apostila ilustrada (que não será
reproduzida aqui, por limitação de espaço), de modo que fosse possível comparar um
desenho genérico de carro de bois, com aquele que iríamos documentar.
Detalhe de fixação do eixo na mesa, mostrando os dois tipos de cocões (o
fixo e o “cunhado”), ambos feitos de bálsamo, o chumaço, a cheda e os fueiros de
marmelo.
Chumaço é a peça do canto do carro que, no do Manuel Alexandre, é feito de
pau terra ou amargoso.
O eixo é oitavado e feito de sucupira. Os três rebaixos formam um canal
circular onde se assentam os chumaços e são chamados de cantadeiras. Mestre
Manuel explica que o do centro é que faz o carro cantar grosso. Os carros com dois
chumaços (só os laterais) só cantam fino. - “Se o sinhô arrepará bem, o canto do carro
tem dois sons”. Perguntam sobre a função do canto na condução do carro. “Num sei
não. Só sei que é assim... O boi não gosta só do canto fino. Mas não sei a
explicação... O que faz o carro cantar é o peso. Precisa esquentar, pra cantar...”
Olhando por baixo do carro
A chaveia e a orelha que prendem a canga-do-coice e o pigarro que apóia
o cabeçalho quando os bois são retirados do carro.
A roda em bálsamo, formada por cinco pranchas (com o centro mais espesso
e que vão afinando em direção às bordas): o meião e duas cambas (ou cambotas)
para cada lado, até formar o círculo.
Eixo de sucupira: destreza em manter, em corte cônico, uma linha reta
passando pelo centro da peça.
Atrelando a canga do coice:
Correntes de segurança, atravessando por baixo da mesa e prendendo no
argolão, quando “a descida é de respeito”.
“O trado é de reverência” (ele o comprou de uma das personalidades que
fundaram o município)
Instrumento utilizado para medir o tamanho do anel metálico que reveste a
roda de bálsamo: mais uma lição de simplicidade – saber a medida do perímetro,
desconhecendo o raio de um círculo e o número π.
O cocão encunhado e a marca gordurosa da banha (sem sal) na madeira do
eixo. O meião da roda tangencia os óculos, nome do par de furos redondos, cuja
função é deixar o canto do carro fluir melhor, sendo por isso, construídos de forma a
haver um giro de 90º de uma roda em relação à outra).
A espiga do eixo atravessa o centro da roda e é presa por cavilha. Anel de
metal que reveste a roda é esquentado, dilatado e, quando preso, é rapidamente
esfriado com água. O agulhamento metálico é para enfeitar a roda. Caprichos.
Detalhe da cunha prendendo o cocão dianteiro.
Um chumaço de pau terra
O cocão removível, de bálsamo, untado pela banha, para o atrito não atear
fogo ao carro.
Carinhoso, mestre Manuel e Sertão: ajustando a canga do coice e os canzis
(par de peças de jacarandá muxiba que trespassam a canga para prender a cabeça de
cada boi).
Manuel Alexandre leva Carinhoso e Sertão para atrelar ao carro. Segredo,
Presidente e Tesouro, bois de guia, assistiam a tudo.
Manuel Alexandre: “A bondade do boi é o calo no pescoço”
[Sexta-feira, 15, 18:00h]
Reunidos em uma grande mesa, realizamos uma leitura coletiva, em voz alta,
do conto Conversa de Bois de Guimarães Rosa, publicado em Sagarana.
Posteriormente, passamos a discutir a obra, conduzidos pela estrutura
temática que apresentamos a seguir, onde as explicações ou definições recolhidas no
texto pareciam dizer respeito à hipótese que norteou a proposta da oficina: ver o carro
de bois como um engenho construído a partir de um saber sobre os temperamentos
dos bois e das madeiras, reconhecendo, no carreiro, os sinais desta sabedoria. Nesta
estrutura, estão apenas, os personagens (homens, bois, árvores) citados no conto.
Podemos perceber, em uma consulta nos arquivos do IEB, que Guimarães Rosa fez
uma seleção entre os muitos nomes de bois e de árvores recolhidos no projeto deste
conto.
O desenho abaixo ajuda a seguir as falas de cada um dos bois,
reconhecendo a sua função na condução do carro: a junta da guia é formada por
Namorado e Buscapé, a do coice, por Canindé e Realejo. Estes são os dois pólos
antagônicos que definem os temperamento dos bois, o céu e a terra, a condução e o
freio: boi que nasce para guia, jamais será coice. As juntas intermediárias se definem
por proximidade a estes dois temperamentos. Habilidades a descobrir.
(desenho dos personagens do conto, realizado pelo autor)
Vamos às definições sobre os tipos básicos do universo do carro de bois,
recolhidas na leitura do Conversa de Bois.
1. OS BOIS:
(Nós somos bois... Bois de carro... Os outros, que vêm em manadas, para
ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar... Eles não sabem
que são bois...
Nomes e temperamentos de bois:
Boi Cala-a-boca (epígrafe)
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Buscapé
Namorado bois da guia ... depois de deixar a vara apoiada no peito da canga – obstáculo esse que Buscapé
e Namorado resguardam com respeito.
Que santos de grandes, e cheirando forte a bondade, bois companheiros, que não
fazem mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de pessoa amiga
da gente!... E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé, e passa também mão de mimo
no pescoço de Namorado – imóveis, os dois.
----------------------------------------------------
Capitão
Brabagato pé-da-guia
----------------------------------------------------
Dançador
Brilhante pé-do-coice
----------------------------------------------------
Realejo
Canindé bois do coice Vão descer uma rampa de grande declive, e os bufalões destamanhos da junta do
coice aguentam o peso do carro, fazendo freio e firmando no chão os cascos, fendidos como
enormes grãos de café.
(desenho: Andrés Sandoval)
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Tinhorão
Marechal
Cantagalo
Murici bois do carretão
----------------------------------------------------
Rodapião boi que pensava de homem
----------------------------------------------------
Carinhoso boi que ganhou sal no cocho
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Camurça
Melindre bois de coice do João Bala:
Em qualquer descida mais pior, era só eu mostrar a vara p’ra os dois, e eles, que são
bois-mestres de coice, iam sentando, e a canga jogando a junta p’ra riba! Por mesmo que as
outras relaxassem, estava tudo firme em casa...
----------------------------------------------------
Espadilha
Bolívia
Azeitona
Mexerica
Porcelana
Guiamina vacas do Major Gervásio
Mexerica é a turina. Porcelana é toda branca, desmochada. Guiamina é a preta de
cinturão branco no cilhador.
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2. AS MADEIRAS:
As árvores são representadas pelos seus nomes populares. Identificá-las foi
tarefa difícil, porque são muitas as espécies com os mesmos nomes. As
características da região orientaram a primeira seleção, mas que ainda se mostrou
insuficiente. A literatura, então, orientou a identificação final: Guimarães Rosa retrata
as árvores do sertão de forma definitiva, qualificando-as pela sua forma, jeito ou
sentido de lugar. Como de costume, aprofunda a predicação (da mesma forma com
fez com os bois), orienta a nossa viagem de reconhecimento.
A seguir, alguns exemplos de árvores na ordem em que comparecem no
conto:
timbaúbas de copas noturnas
(ou tamboril)
pau-doce
pau-terra
pau-santo
braçadas braúnas
jequitibás esmoitados
colher-de-vaqueiro em
pirâmides verdes
lanço gigante de um angico-
verdadeiro
paredão dos açoita-cavalos,
escuros
enfezadas arvorezinhas:
muricis de pernas tortas,
manquebas
mangabeiras pedidoras-de-
esmola
barbatimãos de casca rugosa
e ramos de ferrugem
no raro, um araticum teimoso, que conseguiu enfolhar e engordar
se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou peroba-da-miúda,
tirada no espigão.
3. OS CARREIROS E OS GUIAS:
(O homem é um bicho esmochado...)
Agenor Soronho (... mas não tem muita gente capaz
de saber falar o gado direito, nem
determinar o coice na descida, nem
espertar a guia e zelar a contra-
guia na subida, nem fazer um colo
bem feito, nem repartir o movimento
com lição...)
Tiãozinho Ora caminhando de frente, ora aos recuões,
Tiãozinho tem de ficar espertado, porque os bois agora deram para se agitar. Se o guia pega a
pensar demais, se descuidando, logo se alerta com o bafo quente nas orelhas e a baba lhe
respingando na nuca.
João Bala
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4. ARQUITETURA DOS CARROS DE BOIS E SUAS TRALHAS:
(desenho de Guimarães Rosa, em carta à tradutora para língua inglesa, do
conto “Conversa de bois”, recolhido no acervo do IEB/USP)
Procedendo da mesma maneira, recolhemos os nomes dos componentes do
carro de bois, na ordem em que aparecem no conto:
cintas ferradas das rodeiras
óculos de tirar barro
canga-de-cabeçada
tiradeiras
argola
soga
cingéis
ajoujo
cocão
chumaço
eixo
chaveta
cantadeira
chifre do unto
sedenhos
fueiros
cheda
esteira de caniço
vara
canga
canzis
brocha
cilhador
pigarro
chavelha
cabeçalho
tabuleiro
sola
sovela
tamoeiros
rodeira ferrada, chapeada nas bandejas
Todos estes componentes foram identificados previamente ao
acompanhamento da construção do carro pelo Sêo Manuel Alexandre. Os nomes das
peças, como as árvores, são distintos de acordo com a região do Brasil, como também
podemos observar na pesquisa histórica anteriormente relatada. Podemos comprovar
que Guimarães Rosa estava atento aos nomes utilizados na região. Esta oportunidade
de documentação também demonstrou que há espaço para autoria na construção do
carro. O do Sêo Manuel é identificado – e muito valorizado – pelos carreiros que
pudemos conversar em uma festa religiosa que comparecemos. O que documentamos
foi um autêntico manuel-alexandrino.
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5. SOBRE OS SONS DE CARRO: Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão... Não vê que a gente carreando defunto-
morto, com essa cantoria, até Deus castigo, siô?!...
Vai botar azeite no chumaço, que senão agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega
fogo em tudo, com o diabo p’r’ajudar!...
O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio um silêncio. E todos, de
olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça coisas mais fundas que o pensamento e o
sonho, e, assim, sem pressa, chegam ao vau do ribeirão.
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6. NOMES DE LUGARES:
... o Manuel Timborna, das Porteirinhas, ...
...E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do Mata-Quatro,
onde com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se truncam as derradeiras
roças da Fazenda dos Caetanos ...
...O caminho, descurvo, vai liso para a frente. E, lá léguas, meão roxo, é o Morro
Selado ...
...Estão passando agora em frente à Fazenda do seu Gervásio.
...Não quer penar como o Didico da Extrema, que caiu morto, na frente dos bois...
...E foram encontrá-lo, lá longe, na covanca da Abóbora-d’Água, já frio.
...Ah, esta subidinha ladeira do Morro-do-Sabão não é brinquedo cujo p’ra qualquer
um não!
(desenho de Andrés Sandoval)
Para concluir a CONVERSA DE BOIS com o leitor, três pontos finais:
Se a língua é a nossa “cosmovisão”, o nosso lugar de ver o mundo, nela
reside os nossos limites de pensar e sentir ou, como observou Wittgenstein, os limites
da minha linguagem denotam os limites do meu mundo.
Guimarães Rosa foi um designer da linguagem. A sua imensa obra está
marcada por uma poética profundamente comprometida com a invenção do mundo,
por meio da ampliação da linguagem, pelo alargamento de fronteiras, sejam
cognitivas, sejam sensíveis, isto é, promovendo um intenso intercâmbio entre os
nossos sentidos, acionados para alcançar um outro patamar de consciência.
O conto “Conversa de bois”23 foi escolhido para orientar os trabalhos da
Oficina Carro de boi: os temperamentos dos bois e das madeiras do projeto
23 João Guimarães ROSA – Sagarana, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 – 31ª. ed.)
Guimarães Rosa: lugares – em busca do quem das coisas24, por apresentar os
ingredientes alquímicos desse design da linguagem, que passamos a destacar:
1. ao recuperar a tradição das fábulas infantis, onde geralmente os bichos
falam, o autor promoverá um debate recorrente na sua obra: a comparação entre a
linguagem pura, despojada, espontânea, desavisada, “iletrada” – dos bois – e a
linguagem “armada”, eivada de intenções, que caracteriza o mundo dos homens -
tudo, pensado, é pior...(p.311).
O mundo dos bois de carro não está imune ao mundo dos homens, dada a
proximidade dessa convivência. Quando o mundo dos homens se intromete no mundo
dos bois, a lição vem em forma de fábula, assinalando o universo da literatura infantil,
numa narrativa à La Fontaine: a do boi Rodapião, causo com “moral da história” muito
bem marcado pelo trágico fim deste boi: (...) Só falava artes compridas, idéia de homem, coisas que boi nunca
conversou (p.319).
(...) Então, boi Rodapião ainda ficou mais engraçado de-todo. Falava: (...)
Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que vivem no escuro e nunca sabem
porque é que estão fazendo coisa e coisa. (...) é preciso pensar cada pedaço de cada coisa,
antes de cada começo de cada dia...
“E nós não respondíamos nada, porque não sabemos falar desse jeito, e
mesmo porque, cada horinha, as coisas pensam p’r’a gente...” (p.325).
Moral de uma história que pode ser interpretada como a evidência das
limitações do pensamento contido na linguagem diante dos sortilégios da sorte e do
destino. O recado narrado aponta para a falibilidade que caracteriza a condição
humana, ao mesmo tempo em que observa a sabedoria existencial (de boi) de
reconhecer, nas coisas, as suas lições. Engolfados no viver de cada dia, cada
momento, encontramos os nossos rumos. Assim, a fala do boi não se basta em si
24 O projeto Guimarães Rosa: lugares – em busca do quem das coisas – foi selecionado pelo edital publico Petrobrás Cultural na área de Patrimônio Imaterial. Aprovado pelo Ministério da Cultura do Governo Federal, foi financiado pela Petrobrás. A coordenação geral coube a Marily da Cunha Bezerra. Dividido em três módulos, coube a mim coordenar um deles (chamado “Arquiteturas do Lugar). Esta oficina foi uma das ações empreendidas, que partiram das nossas reflexões sobre os lugares abordados na obra de Guimarães Rosa. Essas reflexões estimularam a organização de um conjunto de ações educativas, de pesquisa e documentação do patrimônio imaterial. Utilizando registro em vídeo digital, fotografia, som, desenho e anotações pessoais, o projeto percorreu os caminhos do engenho e da arte de Guimarães Rosa. “Guimarães Rosa: lugares” criou, em Morro da Garça, Minas Gerais, um espaço de convívio entre pessoas de diferentes faixas etárias, do meio rural e urbano, estimulando-as a refletir sobre os conceitos de patrimônio material e imaterial, natural e construído, e sua preservação. Para isso, foram realizadas oficinas, debates, apresentações artísticas e excursões. (citação do site da Petrobrás – Memória Cultural: ttp://www2.petrobras.com.br/minisite/memoriacultural/port/patrimonioImaterial/GuimaraesRosa.asp)
mesma e é sempre menor que a vida. Vida que, no entanto, é susceptível de leitura.
Argumento análogo foi apresentado pelo filósofo Bento Prado Jr. na sua brilhante
análise do conto “Recado do Morro” (de G. Rosa), onde conclui que... o mundo é um
livro e nele está depositada, anterior a toda escrita, uma Escritura primordial que é
preciso dizer novamente. Sempre. Tarefa insuperada da literatura de Rosa.
2. O mundo redescoberto pela poesia está fartamente disseminado neste
conto que, aliás, foi pouco estudado pelos especialistas. Guimarães Rosa oferece
pistas, mas nunca explicações definitivas. Vejamos algumas declarações suas sobre a
língua e a linguagem:
O idioma é a única porta para o infinito,
mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinza
...
Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no
infinito; o momento não conta. (“Viagens imaginárias – O sertão e as veredas de G. Rosa” – Manchete, 20.07.1991)
No Brasil a linguagem ainda não se libertou. Está virgem. Há um campo
imenso para explorar, novas formas, maior flexibilidade, maior expressividade.
Em suma: é preciso cultivar a expressividade da língua.
Eu não crio palavras. Elas todas estão nos clássicos, estão nos livros
arcaicos portugueses. São expressões de muito valor que eu pretendo salvar.
Em Sertão: veredas há palavras que nem em Portugal se falam mais. Mas
existem. Para determinadas passagens, entretanto, não existem palavras. Então
é preciso criá-las, ou redescobri-las através de sons que a correspondam. (“Guimarães Rosa fala aos jovens” – O Cruzeiro, 23.12.1967)
Em Conversa de Bois, este exercício de libertação pela poesia já está
anunciado com grandeza, riqueza e profundidade. O quem das coisas:
O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a estrada, estridente. (p.304)
Mas o caminho vai. E alongam-se para diante, na paisagem luminosa, as
sombras songas dos bois. (p.312)
Os bois tafulham as munhecas, com cloques sonoros; quando desatolam, para
outra passada, a água suja escorre, chorrilhando, para encher os moldes dos cascos, e, no
mais mole, as bainhas – as fundas cisternas cavadas pelos mocotós.
Tranco... tranco... Bate o carro, em traquetreio e solavanco. Mas, no caminho
escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados, Tiãozinho não cai nem escorrega,
porque não está de-todo adormecido nem de-todo vigilante. Dormir é com Seu Soronho,
escanchado beato, logo atrás do pigarro. (p.335/336)
3. Diálogo entre boi e gente: a convergência entre a fala/pensamento dos
bois e o sonho/pensamento do menino-guia. A metafísica poética de Rosa, na relação
estabelecida entre os bois do carro e o sonho do menino. Escrevendo, descubro
sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.25 O bezerro-de-homem sabe mais, às vezes... Ele vive muito perto de nós, e ainda é
bezerro... Tem horas em que ele fica ainda mais perto de nós... Quando está meio dormindo,
pensa quase como nós bois... Ele está lá adiante, e de repente vem até aqui... Se encosta
em nós, no escuro... No mato-escuro-de-todos-os-bois... Tenho medo de que ele entenda
a nossa conversa...
[Sábado, 16, 10:00hs]
Oficina Carro de bois com o mestre carreiro Manuel Alexandre: escolha das
madeiras, os componentes do carro, os encaixes próprios dos materiais empregados,
as ferramentas, o labor e o tempo de cada etapa, o aprendizado do ofício e das suas
técnicas. Trata-se de valorizar um conhecimento e não condená-lo ao esquecimento
porque no futuro não haverá mais carros de bois.
A questão que se coloca é se este saber não poderá ser empregado em
outros objetos ou tecnologias, restabelecendo o elo entre tradição e invenção, vital
para o reconhecimento de uma cultura afirmativa. Na região de Morro da Garça ainda
podemos ver o carros de bois puxando cana e madeira e o mestre carreiro Manuel
Alexandre é um raro exemplo de profissional ainda em atividade.
Este trabalho de pesquisa, documentação e reflexão resultou em um projeto
de arquitetura para a Casa da Cultura do Sertão, construído em 2008.
25 in Literatura e Vida – um diálogo de Günter W. Lorenz com João Guimarães Rosa, Gênova, janeiro de 1965. – Arte em Revista, 2ª. edição, No. 2.- São Paulo, CEAC, 1983.
Créditos:
Fotos dos carros de bois e dos trabalhos da oficina: Luís Antônio Jorge
Desenhos: Andrés Sandoval e Luís Antônio Jorge
Fotos das árvores: do livro LORENZI, Harri – “Árvores Brasileiras – Manual de
identificação e cultivo de plantas arbóreas nativas do Brasil” – Nova Odessa (SP), Editora
Plantarum, 1992.