Linguagem, trabalho, educação e cultura - letras.ufmg.br · Por uma nova política de trabalho...

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Belo Horizonte FALE/UFMG 2016 Organizadores Antônio Augusto Moreira de Faria Denise dos Santos Gonçalves Maria Juliana Horta Soares Linguagem, trabalho, educação e cultura

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  • Belo Horizonte

    FALE/UFMG

    2016

    Organizadores

    Antnio Augusto Moreira de Faria Denise dos Santos Gonalves Maria Juliana Horta Soares

    Linguagem, trabalho, educao e cultura

  • Diretora da Faculdade de Letras

    Graciela Ins Ravetti de Gmez

    Vice-Diretor

    Rui Rothe-Neves

    Comisso editorial

    Elisa Amorim VieiraFbio Bonfim DuarteLuis Alberto BrandoMaria Cndida Trindade Costa de SeabraMaria Ins de AlmeidaReinildes DiasSnia Queiroz

    Capa e projeto grfico

    Glria Campos(Mang Ilustrao e Design Grfico)

    Preparao de originais

    Brbara Turci

    Diagramao

    Natalia Soares

    Reviso de provas

    gatha Carolline Galdino

    ISBN

    978-85-7758-297-6 (impresso)978-85-7758-298-3 (digital)

    Endereo para correspondncia LABED Laboratrio de Edio FALE/UFMG Av. Antnio Carlos, 6.627 sala 3108 31270-901 Belo Horizonte/MG Tel.: (31) 3409-6072 e-mail: [email protected] site: www.letras.ufmg.br/vivavoz

    mailto:[email protected]://www.letras.ufmg.br/vivavoz

  • 5 ApresentaoOs organizadores

    Linguagem, trabalho e educao 13 Por um trabalho crtico do professor de portugus: o livro didtico em foco

    Glaucia Muniz Proena Lara

    37 Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura: o professor em ao na arena poltica e social

    Marcelo Chiaretto

    55 Educao e trabalho em livros didticos de EJAClarice Lage Gualberto

    71 Discusses sobre trabalho com suporte em crnicas brasileiras sobre trabalhadores: temas transversais em um contexto de letramento digital

    Dulcinia Lrio Caldeira Denise dos Santos Gonalves

    89 O conto "Pai contra me", de Machado de Assis, na educao de jovens e adultos: relato de uma experincia docente

    Rosa Maria Saraiva Lorenzin Maria Juliana Horta Soares

    Sumrio

  • Linguagem, trabalho e cultura 115 Operrios de minerao, personagens do discurso literrio e do histrico: consideraes lingusticas

    Antnio Augusto Moreira de Faria

    157 Trabalhadores como personagens em mensrios sociopolticos

    Maria Juliana Horta Soares

    177 Discursos sobre trabalhadoras: anlise a partir de duas perspectivas lingusticas complementares

    Priscila Lopes Viana Furst

    195 Discurso sobre o trabalhador policial militar: um olhar a partir do boletim de ocorrncia

    Denise dos Santos Gonalves

    213 Trabalhadores protagonistas do discurso em Cruz e Sousa e Castro Alves

    Jlia Batista Castilho de Avellar

    229 Brecht & Barthes: levantar a cabea e distanciarLuiz Paixo

  • Este o terceiro livro produzido pelo Grupo de Estudos em Linguagem, Trabalho, Educao e Cultura (LinTrab), que desde 2009, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolve anlise de discursos que apresentem como temtica o mundo do trabalho e como personagens protagonistas os trabalhadores. So estudados os discursos didtico, histrico, jornalstico e literrio, a partir de poemas, contos, cr-nicas, romances, peas teatrais, notcias jornalsticas, manuais didticos e outros gneros textuais.

    Os dois livros anteriores foram antologias: a primeira, de poe-sia; a segunda, de prosa. Poemas brasileiros sobre trabalhadores: uma antologia de domnio pblico traz textos desde Gregrio de Matos, no sculo XVII, at Augusto dos Anjos, no incio do sculo XX, passando por Alvarenga Peixoto, Toms Antnio Gonzaga, Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Machado de Assis, Fagundes Varela, Castro Alves, Cruz e Sousa e Olavo Bilac. Por sua vez, a antologia Lima Barreto: artigos, cartas e cr-nicas sobre trabalhadores rene textos do escritor que quando criana foi testemunha ocular da abolio da escravatura e quando adulto retratou, jornalstica e literariamente, a vida de operrios e outros trabalhadores no incio do Brasil Repblica.1

    Ambas remam contra a corrente ideolgica dominante na cultura brasileira e do voz a um conjunto de personagens que corresponde maioria da populao em nosso pas. E organizam, de maneira at

    1 As duas antologias podem ser lidas no stio eletrnico .

    Apresentao

    http://www.lintrab.blogspot.com.br

  • Linguagem, trabalho e educao6

    ento indita, textos de escritores que faleceram h mais de setenta anos, encontrando-se, portanto, em domnio pblico. A preferncia pelo domnio pblico tem uma explicao simples: nossos livros no visam a finalidades comerciais e so disponibilizados gratuitamente na internet, no stio eletrnico do LinTrab.

    J o presente livro contm estudos acadmicos que tambm pretendem contribuir para a pesquisa das relaes entre linguagem e trabalho. Nossos agradecimentos especiais aos professores Glaucia Muniz Proena Lara e Marcelo Chiaretto, que foram convidados a par-ticipar desta edio e gentilmente contriburam com artigos originais.

    Este livro foi organizado em duas partes. Na primeira, destacam--se estudos que relacionam linguagem, trabalho e educao. No artigo "Por um trabalho crtico do professor de portugus: o livro didtico em foco", Glaucia M.P. Lara se prope a analisar o livro didtico de portugus sob a perspectiva da Semitica do Discurso, apresentando contribuies para a avaliao desse importante instrumento de ensino de lngua e lite-ratura. O trabalho sinaliza uma nova tica para o exame do livro didtico, propiciando ao professor perceber, de forma mais consciente e crtica, os efeitos de suas escolhas no dia a dia da sala de aula.

    No artigo "Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da lite-ratura: o professor em ao na arena poltica e social", Marcelo Chiaretto desenvolve um estudo comparativo entre os modelos de poltica de traba-lho dos professores de literatura no Brasil, na Alemanha e na Frana em contextos de mudanas sociais, polticas e econmicas que determinam debates, reformas e revises nos respectivos sistemas educacionais em que as chamadas "cincias do esprito" se subordinam necessidade de constituir um saber que atenda s necessidades sociais, culturais e tec-nolgicas. Chiaretto defende o papel do professor de leitura, e especial-mente de literatura, como um ser poltico, propiciador de "espao para a verbalizao das variadas representaes sociais e culturais", o que se d com respeito s diferenas dos indivduos.

    Em "Educao e trabalho em livros didticos de EJA", Clarice L. Gualberto analisa um livro didtico destinado Educao de Jovens e Adultos para mostrar como o tema trabalho abordado no material. A pes-quisadora busca tanto verificar se a abordagem da obra analisada contribui

  • Apresentao 7

    para a formao de um aluno autnomo, e socialmente atuante, quanto identificar os conceitos sobre trabalho presentes e perceber se a viso de trabalho presente no material prpria dos patres ou dos trabalhadores.

    No artigo "Discusses sobre trabalho com suporte em crnicas bra-sileiras sobre trabalhadores: temas transversais em um contexto de letra-mento digital", Dulcinia L. Caldeira e Denise S. Gonalves apresentam um projeto de interveno escolar desenvolvido no recentemente criado Mestrado Profissional em Letras, com o objetivo de estudar o gnero textual crnica em uma escola de ensino fundamental, partindo de cr-nicas que apresentam o trabalhador como personagem principal e con-templando a mediao por recursos tecnolgicos digitais computador e internet. No projeto, a temtica do trabalho e os personagens trabalha-dores ganham contornos peculiares em razo de a comunidade escolar estar situada em um municpio de forte tradio sindicalista, razo pela qual o projeto prev pesquisas no site do sindicato como forma de con-tribuir para que os alunos reflitam sobre o trabalho e percebam em que medida essa atividade humana interfere na vida das pessoas.

    Rosa M. S. Lorenzin e Maria Juliana H. Soares apresentam, em "O conto Pai contra Me, de Machado de Assis, na Educao de Jovens e Adultos: relato de uma experincia docente", atividades desenvolvidas com discentes da Educao de Jovens e Adultos tendo em vista o objetivo de discutir a situao dos trabalhadores no Brasil do sculo XIX, notada-mente a que se refere aos escravos. As atividades permitiram que, aps um estranhamento inicial em relao ao texto machadiano, os alunos percebessem como os recursos lingusticos empregados contribuem para refletir sobre a temtica do trabalho, projetar a ironia e revelar a situao desumana a que eram submetidos os homens e mulheres escravizados. A experincia contribuiu, ainda, para que os estudantes estendessem refle-xes para a situao contempornea do trabalho, prtica social na qual a maior parte dos alunos est inserida.

    Diretamente relacionada com a primeira parte deste livro, a segunda trata de relaes entre linguagem, trabalho e cultura, iniciada com "Operrios de minerao, personagens do discurso literrio e do his-trico: consideraes lingusticas". Em seu artigo, Antnio A. M. de Faria parte de trs casos no discurso literrio e dois no discurso histrico para

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    discutir aspectos nos quais a Lingustica do Discurso pode beneficiar-se dos estudos lingusticos anteriores a ela.

    No artigo "Trabalhadores como personagens em mensrios socio-polticos", Maria Juliana H. Soares analisa as revistas Caros Amigos e Le Monde Diplomatique Brasil para verificar de que maneira os trabalha-dores so representados nesses veculos considerados alternativos em relao mdia de referncia brasileira. A temtica do trabalho e o per-sonagem trabalhador so analisados em perspectivas que consideram as semelhanas e as diferenas entre os dois mensrios, previamente des-critos em suas peculiaridades que se revestem na enunciao jornalstica, prpria do campo discursivo em que se inserem. Como principal contri-buio do trabalho, Maria Juliana assinala o enfoque na compreenso de como as estratgias discursivas e seus mecanismos lingusticos podem ser analisados, por pesquisadores e educadores, como recursos para a construo e a compreenso dos discursos.

    Priscila G. Viana-Furst dedica-se, no artigo "Discursos sobre tra-balhadoras: anlise a partir de duas perspectivas lingusticas comple-mentares", a demonstrar a aplicao de dois aportes lingusticos em uma anlise do discurso. A pesquisadora recorre a construtos tericos da Lingustica do Discurso e do Interacionismo Sociodiscursivo para analisar o conto "Pai contra Me", de Machado de Assis, fazendo ressaltar nuanas do discurso sobre o trabalho e sobre o trabalhador vigentes na sociedade escravagista brasileira do sculo XIX. A metodologia adotada pela pesqui-sadora tem, entre outros mritos, o de estimular a combinao de apor-tes tericos com vistas a aprimorar a leitura e a compreenso de textos, inclusive em atividades desenvolvidas no ambiente escolar.

    No artigo "Discurso sobre o trabalhador Policial Militar: um olhar a partir do Boletim de Ocorrncia", Denise S. Gonalves busca identificar o discurso do trabalhador policial militar a respeito de si e do seu trabalho. Para tanto, analisa um exemplar de boletim de ocorrncia cujas peculiari-dades pem em destaque a ao desse profissional. A anlise, que enfoca o percurso semntico projetado no interdiscurso e no intradiscurso, des-taca o gnero BO como instncia privilegiada para perceber a viso de mundo do trabalhador policial militar.

  • Apresentao 9

    Em "Trabalhadores protagonistas do discurso em Cruz e Sousa e Castro Alves", Jlia B. C. Avellar analisa obras dos dois poetas brasileiros com vistas a destacar como se desenvolve, em seus discursos, a temtica do trabalho e a participao do trabalhador escravo. Em ambos os casos, a pesquisadora identifica a predominncia do discurso abolicionista no campo discursivo poltico-social. Quanto ao campo literrio, a pesquisa-dora joga luz sobre a existncia de parte da produo de Cruz e Sousa em que se observa o discurso abolicionista, muito embora essa produo seja omitida nas discusses mais frequentes, por no se enquadrar no rtulo simbolista atribudo ao autor.

    Luiz Paixo L. Borges, no artigo "Brecht & Barthes: levantar a cabea e distanciar", investiga o dilogo entre Roland Barthes e Bertold Brecht, tecendo uma comparao entre o ato de levantar a cabea, proposto por Barthes, e o efeito de distanciamento, desenvolvido por Brecht, no que diz respeito s funes do leitor diante da leitura e do espectador frente ao espetculo teatral, respectivamente. "Em ambos, deparamo-nos com uma proposta que visa deslocar o recebedor de sua funo passiva, tornando-o um agente", afirma o pesquisador. Para ele, o dilogo que Roland Barthes estabelece com o conceito de distanciamento, proposto por Brecht, pro-moveu a formulao de um conceito fundamental na teoria da literatura, explicando as relaes entre autor, leitor e leitura.

    Esperamos que nossos estudos contribuam para outras pesquisas acerca do trabalho e dos trabalhadores, to relevantes na vida de qual-quer sociedade.

    Boa leitura!

    Os organizadores

  • Linguagem, trabalho e educao

  • IntroduoNo presente trabalho, pretendemos refletir sobre o papel que a Semitica do Discurso (tambm conhecida como Semitica Francesa ou Greimasiana), na sua verso standard,1 pode desempenhar na anlise crtica do livro didtico (LD) de portugus. Isso porque julgamos de suma importncia que o professor tenha um olhar qualificado sobre seu trabalho, principal-mente para os fins que nos interessam aqui, sobre o instrumento rele-vante que o LD. No podemos perder de vista que, apesar do advento de novas tecnologias (internet, recursos audiovisuais, etc.) e abordagens metodolgicas, o LD ainda continua sendo o suporte privilegiado para o ensino de lngua e literatura na grande maioria das escolas brasileiras.

    J em 2002, o "Guia de Livros Didticos: 5a a 8a sries"2 apontava a necessidade de se reverter o atual panorama de ensino no pas, a fim de que o LD se tornasse um instrumento auxiliar e no mais a principal ou nica referncia da prtica pedaggica. O referido guia constatava que, devido a vrios fatores, como a inadequada formao de professo-res ou as pssimas condies de trabalho docente, o livro didtico brasi-leiro era uma das poucas formas de documentao e consulta empregada por professores e alunos, influenciando o trabalho pedaggico, definindo currculos, cristalizando abordagens metodolgicas e quadros conceituais, organizando, enfim, o cotidiano da sala de aula.1 Com isso, queremos dizer apenas que no estamos contemplando os desdobramentos mais recentes

    da teoria semitica, como o caso, por exemplo, da Semitica Tensiva.2 BRASIL. Guia de livros didticos: 5a a 8a sries.

    Por um trabalho crtico do professor de portugus: o livro didtico em foco

    Glaucia Muniz Proena Lara

    Amados, temidos, respeitados ou simplesmente usados para depois serem descartados, os livros didticos tm andado de mos dadas com a escola e, de uma forma ou de outra, parecem ser vetores pelos quais escoam vises de mundo e valores; namoros e brigas com a literatura, a lngua, a redao. Maria Paula Parisi Lauria.

  • Linguagem, trabalho e educao14

    Doze anos depois, mesmo com o surgimento de cursos (de especia-lizao, de mestrado profissionalizante, etc.) voltados para a atualizao e a qualificao do professor, parece-nos que o panorama descrito acima no sofreu alteraes substanciais. Ora, adotar a soluo oposta e sim-plista de descartar o LD tambm no resolve o complexo problema do ensino. Se o LD , digamos, um "mal necessrio", o que precisamos, por-tanto, de um professor mais crtico que possa recuperar desse "objeto" o que ele tem de melhor afinal, nem s de aspectos negativos vive o LD3 e descartar aquilo que no contribui para a formao de um aluno (leitor/produtor de textos) participativo, autnomo, crtico e, portanto, plena-mente inserido num mundo cada vez mais competitivo.

    Este artigo parte de uma pesquisa maior, desenvolvida na Faculdade de Letras/UFMG, entre 2004 e 2007, que buscou apreender a imagem da lngua portuguesa discursivamente construda em LDs que foram publicados no Brasil e amplamente utilizados em salas de aula durante o sculo XX e incio do sculo XXI. Nela, utilizando a metodologia proposta por Diana L. P. Barros para o exame de dicionrios e gramticas,4 levamos em conta dois aspectos fundamentais: 1) os contratos (implci-tos) que se estabelecem entre enunciador e enunciatrio; 2) os cruza-mentos discursivos que ocorrem nesses discursos (intertextualidade), em funo das determinaes scio-histricas (relao texto/contexto).

    Por razes de espao, restringiremos nossa anlise aqui a um dos LDs selecionados para a pesquisa maior: Portugus: linguagens, de Thereza Magalhes e William Cereja (exemplar da 8a srie5 edio de 2001) e apresentaremos apenas a parte referente s modalidades e valo-res, categorias tomadas de emprstimo ao nvel narrativo do percurso gerativo de sentido proposto pela teoria semitica e que se incluem no primeiro aspecto apontado por Barros.

    3 Como aspectos positivos, pensamos, por exemplo, na grande variedade de textos (de diferentes gneros e domnios) que povoam as pginas dos LDs atuais e que podem servir de ponto de partida para muitas atividades instigantes que levam o aluno a "pensar" e no apenas a decorar conceitos e regras.

    4 A autora usou tal metodologia na pesquisa Conceitos e imagens da norma no portugus falado no Brasil: o discurso da gramtica, que foi desenvolvida no mbito do projeto coletivo Histria das ideias lingusticas no Brasil, projeto esse que contou com a participao de duas instituies brasileiras (USP e UNICAMP) e uma francesa (cole Normale Suprieure de Fontenay-Saint Cloud).

    5 A seriao aqui utilizada refere-se poca da publicao do livro. Lembramos que, a partir de 2005, o ensino fundamental foi ampliado para nove anos, conforme informao disponvel no site do Ministrio da Educao.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 15

    Nosso objetivo verificar se (e at que ponto) as imagens da lngua portuguesa nele veiculadas se aproximam ou se distanciam dos princpios e procedimentos propostos pela Lingustica na atualidade. Isso porque, segundo constata Magda Soares, os LDs ps-dcada de 1980, vin-culam-se ao "momento de mudana de paradigmas" da disciplina Lngua Portuguesa, provocada pela influncia de conhecimentos desenvolvidos, por exemplo, nas cincias lingusticas e na sociologia.6 Queremos, por-tanto, em ltima anlise, apreender de que forma(s) Portugus: lingua-gens "dialoga" (ou no) com esse novo paradigma.

    Fundamentos tericos e metodolgicosTomados, no quadro terico-metodolgico da Semitica, como discur-sos temticos, de figurao esparsa, os LDs devem, segundo Barros, ser examinados como uma "cena" ou "espetculo enunciativo".7 Quanto aos aspectos que privilegiaremos neste artigo as relaes contratuais entre enunciador e enunciatrio , cabe dizer que eles so, para a Semitica, relaes de comunicao e de manipulao. Assim, o enunciador prope, com base num fazer persuasivo, um contrato, um acordo ao enunciatrio e este, atravs de um fazer interpretativo, aceita ou rejeita o contrato proposto. O analista deve, portanto, apreender os diferentes procedi-mentos persuasivos que levam o enunciatrio a acreditar na "verdade" do discurso.8

    Barros prope, no que tange a essas relaes contratuais, dois blocos principais de procedimentos: o das projees enunciativas de pes-soa e de tempo, questo que, pela razo j apresentada (economia de espao), no contemplaremos aqui e o das modalizaes dos sujeitos e objetos envolvidos.9 Esse ltimo bloco, foco da anlise que apresentare-mos mais adiante, diz respeito a dois tipos de modalizao: a modaliza-o pelo ser (ou modalizao de existncia do objeto) e as modalizaes pelo dever, querer, poder e saber ser ou fazer, que atribuem competncia e existncia ao sujeito. De acordo com Greimas e Courts, ao lado da modalizao pelo fazer, que incide sobre a competncia modal do sujeito

    6 SOARES. Portugus na escola: histria de uma disciplina curricular, p. 174.7 BARROS. Conceitos e imagens da norma no portugus falado no Brasil: o discurso da gramtica, p. 5-6.8 BARROS. Conceitos e imagens da norma no portugus falado no Brasil: o discurso da gramtica, p. 11-12.9 BARROS. Conceitos e imagens da norma no portugus falado no Brasil: o discurso da gramtica, p. 6.

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    de fazer, qualificando-o para a ao, encontra-se a modalizao pelo ser, que d existncia modal ao sujeito de estado,10 modificando o estatuto dos objetos que esto em conjuno com ele e definindo estados passio-nais (grosso modo, relaes de afetividade do sujeito para com os obje-tos: amor, dio, cobia, etc.).11

    Fontanille, por sua vez, distingue "modalizao" de "modalidade", mostrando que aquela mais geral do que esta. Assim, enquanto as

    "modalidades" podem ser definidas como "predicados que modificam o estatuto de outros predicados" e que, para a Semitica, so o querer, o dever, o saber, o poder e o crer (ser ou fazer), como j foi dito, a "modali-zao" implica "tudo aquilo que sinaliza a atividade subjetiva da instncia do discurso", a saber, as expresses afetivas, as avaliaes axiolgicas e, portanto, a constituio dos sistemas de valores do discurso.12 O autor destaca ainda que atravs da dimenso modal do discurso, na acumu-lao, combinao ou transformao das modalidades, que os actantes constroem progressivamente sua identidade.13

    Concordando com o autor, estudaremos, alm das modalidades (dever, querer e poder ser ou fazer14), os valores em jogo, tambm a partir da metodologia de Barros, que considerou, em sua pesquisa, trs tipos fundamentais de valores: a) os valores ticos (ligados correo); b) os valores estticos (relacionados a noes como beleza, elegncia e sonoridade); c) valores afetivos (que implicam a relao do falante com a lngua). Observaremos, ento, se os argumentos utilizados para persua-dir o outro (leitor/usurio do LD) so da ordem do inteligvel, do sensvel e/ou do sensorial e, ao mesmo tempo, examinaremos as relaes pas-sionais (afetivas) que se estabelecem entre os participantes do contrato enunciativo.

    10 A Semitica distingue, no nvel das estruturas narrativas, o sujeito de fazer (aquele que realiza a ao, isto , a performance) do sujeito de estado (aquele que sofre a ao, entrando em conjuno ou em disjuno com um determinado objeto de valor). No nvel subsequente o das estruturas discursivas esses dois actantes podem ser "assumidos" (ou no) por um mesmo ator. Assim, em "Joo se matou", sujeito de fazer e sujeito de estado coincidem, o que no acontece em "Joo matou Pedro". (Cf. LARA; MATTE. Ensaios de semitica: aprendendo com o texto, p. 26).

    11 GREIMAS; COURTS. Smiotique: dictionnaire raisonn de la thorie du langage, p. 97.12 FONTANILLE. Smiotique du discours, p. 163-164.13 FONTANILLE. Smiotique du discours, p. 172.14 Na metodologia proposta para sua pesquisa, Barros no examina a modalidade do saber, provavelmente

    devido baixa produtividade que ela apresenta na anlise desse tipo de material, razo que nos leva a no contempl-la tambm.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 17

    So essas, em breves "pinceladas", as categorias semiticas de que lanaremos mo em nossa anlise, de modo a apreender a imagem da lngua portuguesa discursivamente construda no LD selecionado. Ao longo das anlises, essas categorias sero retomadas e rediscutidas, de modo a se mostrarem mais claras, sobretudo para o leitor iniciante nos meandros da teoria semitica.

    Anlise de Portugus: linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar MagalhesPortugus: linguagens15 uma coleo de LDs, publicada inicialmente em 1998 (1a edio), que vai da 5a 8a srie do ensino fundamental. Trata-se de uma coleo ainda bastante utilizada no/para o ensino de portugus nas escolas brasileiras, razo que nos levou a escolh-la como objeto de anlise. Examinaremos aqui, porm, apenas o livro referente 8a srie que, na poca da realizao da pesquisa, representava a ltima srie do ensino fundamental e, portanto, uma espcie de marco transitrio para o ensino mdio.

    Lembramos que, a partir da dcada de 1970, os LDs ganham um manual do professor que se prope a complementar o livro do aluno, ofe-recendo quele objetivos, orientaes tericas e metodolgicas, suges-tes de atividades e o que seria impensvel at os anos 1960 as res-postas dos exerccios.16 Transfere-se, dessa forma, do professor para o LD a tarefa de preparar aulas, elaborar exerccios e fornecer respostas. Cabe observar, nesse sentido, que os autores de Portugus: linguagens, via de regra, "dialogam" diretamente com o aluno (utilizando "voc"), nas questes e exerccios propostos, sem referncia intermediao do professor. Esse tratamento ntimo j aparece na apresentao da obra, em que, alm de empregar "voc", os autores terminam, cordialmente, com "um abrao".

    Em Portugus: linguagens, o exemplar do professor acrescenta ao LD do aluno observaes em letra menor, na cor azul, que funcionam

    15 Segundo informaes obtidas no prprio livro, na poca de sua publicao ambos os autores tinham mestrado (Cereja era tambm doutorando), atuavam no magistrio (Cereja, como professor da rede particular de ensino de So Paulo-SP, e Magalhes, da rede pblica de Araraquara-SP), e j haviam escrito outras obras destinadas ao ensino fundamental e mdio.

    16 SOARES. Portugus na escola: histria de uma disciplina curricular, p. 17-18.

  • Linguagem, trabalho e educao18

    seja como respostas s questes propostas, seja como sugestes ou recomendaes ao professor sobre como desenvolver a atividade em questo. No final, em seo parte, vem o Manual do Professor pro-priamente dito, no qual constam "Introduo", "Estrutura e metodolo-gia da obra", "Cronograma", bem como explicaes tericas e sugestes de como desenvolver as atividades de leitura extraclasse, produo de texto e ensino de lngua, alm de propostas de avaliao, plano de curso (por "Unidade", com objetivos especficos, contedos, textos trabalhados, sugestes de estratgias e roteiros de leitura extraclasse). nessa seo, composta de 32 pginas, que h um dilogo mais consistente e direto com o professor, o que, no LD do aluno, limita-se a "lembretes".

    Tomaremos aqui, como objeto de anlise, o LD do aluno (acrescido das respostas e sugestes ao professor) em busca da(s) imagem(ns) da lngua portuguesa que ali se constri(em). As informaes que constam do Manual do Professor, no final do livro, sero utilizadas, quando neces-srio, para assinalar as concordncias e/ou divergncias entre o que ali se prope e o que trabalhado no livro do aluno. No tomaremos, pois, o Manual do Professor em si mesmo como um objeto de anlise, mas como material complementar aos nossos comentrios e observaes.

    Portugus: linguagens traz, na capa, fotografias e desenhos (um deles com a caricatura do escritor Lus Fernando Verssimo; outro, com o personagem Calvin dos quadrinhos com as mos estendidas, simulando um gesto de apresentao da obra). A profuso de cores da capa somada s numerosas ilustraes e fotografias que permeiam os captulos faz o livro destoar enormemente dos LDs de dcadas passadas, bem mais "dis-cretos", at porque as tcnicas de offset e de heliogravura, que permitiriam um tratamento massivo e de qualidade da ilustrao, ainda no eram muito difundidas na Europa e muito menos no Brasil.17

    H que se apontar ainda a importncia conferida aos textos no verbais (pinturas, fotografias) e aos textos sincrticos (que mistu-ram diferentes linguagens, como as tiras humorsticas, as charges e os anncios publicitrios), bem como diversidade de gneros do discurso (com nfase nos textos literrios conto, poema, crnica e miditi-cos notcia, editorial, artigo de opinio, propaganda), explorada tanto

    17 CHARON. La presse magazine, p. 8.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 19

    nas atividades de leitura quanto nas de produo de texto, embora essa explorao seja feita mais pelo vis das regularidades genricas do que pela possibilidade de transgresso,18 o que confere ao ensino dos gneros um carter mais normativo.

    O LD da 8 srie dividido em unidades e captulos, assim dis-criminados: Unidade I com o tema Juventude (Captulo 1: O jovem, o sonho, a utopia; Captulo 2: Em tempo; Captulo 3: Entre a onipotncia e a vulnerabilidade); Unidade II com o tema Valores (Captulo 1: Checando valores; Captulo 2: Beleza se pe na mesa?; Captulo 3: Conservador ou liberal?); Unidade III com o tema Amor (Captulo 1: Para sempre?; Captulo 2: Quem tem namorado?; Captulo 3: O exerccio da alteri-dade); e Unidade IV com o tema Sculo XXI (Captulo 1: A vida e o vdeo; Captulo 2: Desvendando o segredo da vida; Captulo 3: Cidado do uni-verso. E de si mesmo?).

    Cada unidade apresenta, pois, um tema geral (introduzido por meio de um texto e de sugestes de vdeos, msicas, livros e sites a ele relacionados) a que se vinculam temas parciais (distribudos ao longo dos captulos), todos atuais e compatveis com os interesses e a faixa etria dos alunos. Alm disso, ao trmino de cada unidade, h uma seo intitulada "Passando a limpo", em que se retomam e se "mistu-ram" os contedos gramaticais abordados, e uma outra, denominada

    "Intervalo", que culmina com a proposio de um projeto, envolvendo toda a classe, que pode ser, por exemplo, uma exposio ou um mural, a produo de um jornal ou a apresentao de um seminrio, relaciona-do(s) aos temas explorados.

    Nos captulos, h partes fixas e itens complementares, que vm descritos detalhadamente no Manual do Professor (final do livro). H, assim, em todos eles, as seguintes partes: 1) "Estudo do texto", que inclui trs partes fixas: "Compreenso e interpretao"; "A linguagem do texto"; "Trocando ideias"; e outras trabalhadas em alguns captulos (no necessariamente em todos), como: "Cruzando linguagens"; "Leitura expressiva do texto"; "Ler reflexo" (com as variantes: Ler um pra-zer, Ler emoo; Ler diverso);19 2) "Produo de texto", voltada para

    18 Cf. LARA. Transgredindo os gneros do discurso: entre a teoria e a prtica.19 V-se, nesse caso, que a leitura sempre colocada no nvel da fruio, como se lssemos unicamente

    por prazer ou diverso; nunca por necessidade ou obrigao (leitura utilitria).

  • Linguagem, trabalho e educao20

    diferentes gneros e tipos textuais (conto, reportagem, editorial; texto argumentativo escrito, dissertao escolar, texto expositivo oral); 3)

    "Para escrever com adequao" (com as variantes: "Para escrever com expressividade"; "Para escrever com coerncia e coeso"); 4) "A lngua em foco", que trabalha com questes morfolgicas (estrutura e formao de palavras) e, sobretudo, sintticas (oraes subordinadas substantivas, adjetivas e adverbiais; oraes coordenadas; pronome relativo; concor-dncia nominal e verbal; regncia nominal e verbal; colocao prono-minal), numa abordagem bastante tradicional (que, alis, nada fica a dever a LDs mais antigos, como o caso de Portugus prtico, de Jos Marques da Cruz, publicado em meados do sculo XX, para ficarmos ape-nas num exemplo); 5) "Divirta-se", que apresenta uma atividade ldica (uma piada, uma caricatura, uma tira humorstica, etc.), com o objetivo de estimular o raciocnio dos alunos. Alguns captulos trazem ainda uma seo denominada "Lendo textos do cotidiano".

    Entremeados s questes sobre os textos em foco e s explana-es tericas, h exerccios, voltados, sobretudo, para a fixao dos con-tedos abordados, que trazem respostas (em azul e em letra menor) para o professor. Mesmo quando se trata de questo pessoal (o que ocorre, por exemplo, na seo "Trocando ideias", em que se pede ao aluno sua opinio sobre vrios assuntos), os autores acrescentam sugestes ou expectativas de respostas: espera-se que/ possvel que o aluno diga x ou y. H tambm, ao longo dos captulos, sugestes (orientaes, expli-caes, esclarecimentos) para o professor.

    No final do sumrio (e, portanto, das unidades), vem a bibliografia, que se mostra em plena sintonia com os desdobramentos mais recentes da Lingustica (teorias do texto/discurso) e do ensino de lngua (a partir dos gneros), citando autores que vo dos estrangeiros Jean-Paul Bronckart e Dominique Maingueneau a brasileiros como Ingedore Koch, Luiz Carlos Travaglia e Maria Helena de Moura Neves, sem, no entanto, renunciar a gramticos tradicionais, como Celso Cunha e Evanildo Bechara.

    Feitas as consideraes iniciais, passemos anlise do corpo da obra. Lembramos que nossa anlise se centrar no exemplar destinado ao professor que nada mais do que o LD do aluno, acrescido de respostas s questes e exerccios propostos e com observaes para

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 21

    o professor , em busca da(s) imagem(ns) da lngua que nela se cons-tri(em).20 Comecemos pelas modalidades.

    O discurso da boa e da m norma, de carter prescritivo, apa-rece no apenas no uso explcito do modalizador dentico dever (ou de construes equivalentes, como s possvel; s se justifica), mas tam-bm no emprego do imperativo e de construes na voz passiva sinttica (usa-se; no se usa; recomenda-se); na utilizao de substantivos como regra e prescrio; de adjetivos como obrigatrio; de verbos como exigir e de advrbios como nunca. Seguem dois exemplos:21

    Exemplo 1:

    Observe que, nesse caso, no se emprega a forma "Mandei ela sair",

    porque a variedade padro recomenda a forma: "Mandei-a sair".22

    Exemplo 2:

    ENTRAR PRA DENTRO? O emprego do pleonasmo s se justifica quando

    h uma intencionalidade estilstica. Quando ele nada acrescenta

    uma redundncia desnecessria e, na variedade padro, deve ser

    evitado.23

    H, desse modo, usos e formas que devem ser (recomendados, prescritos e mesmo obrigatrios) e outros que devem no-ser (proibidos). Contrape-se, portanto, o bom uso (relacionado variedade padro) aos maus usos (ligados s variedades no padro), embora seja raro o emprego de palavras como erro para qualificar esses ltimos, preferin-do-se desvios, problemas, etc. No Manual do Professor, os autores justi-ficam essa postura, arrolando, entre os avanos alcanados na 2a edio da obra, "a mudana de postura em relao lngua (eliminando, por exemplo, a noo de erro e inserindo a noo de adequao...)".24

    O discurso da boa e da m norma, como vimos, aponta para uma imagem de lngua heterognea, mas com usos hierarquizados: uns so 20 Esclarecemos que, para a anlise que aqui se prope, no estamos considerando os muitos textos

    utilizados para as atividades de leitura e produo de texto, mas apenas as explanaes, comentrios, perguntas/respostas, etc. de responsabilidade dos autores do LD.

    21 Os exemplos e citaes aqui reproduzidos mantero os recursos de nfase (itlicos, negritos, etc.) do original. Sinalizaremos apenas quando se tratar de grifos nossos. As informaes destinadas ao professor viro grafadas em letra menor, exatamente como se apresentam no LD.

    22 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 34.23 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 139.24 MAGALHES; CEREJA. Manual do Professor, p. 2.

  • Linguagem, trabalho e educao22

    melhores mais "recomendados" do que outros, o que compatvel com a funo claramente pedaggica que Portugus: linguagens assume. Essa imagem heterognea reforada tambm pela insistncia com que os autores pedem ao aluno que identifique, nos textos lidos e produzidos, a variedade lingustica utilizada que, via de regra, a padro e que rees-creva frases de acordo com essa variedade, como mostra o exemplo 3:

    Exemplo 3:

    Reescreva as frases a seguir, empregando, de acordo com a variedade

    padro, os pronomes pessoais oblquos tonos entre parnteses.25

    Nessa perspectiva, no podemos deixar de observar que h uma espcie de "deslizamento" para o discurso da norma nica em que a variedade padro passa a valer pela lngua inteira, conferindo a esta, por-tanto, a imagem de um "objeto" homogneo e uniforme. Ocorre, pois, a passagem do "normativo" para o "normal", o "natural".

    Examinemos agora as modalidades do querer e do poder. O que-rer (ser e fazer) cria no usurio o desejo de bem falar/escrever a lngua (padro), mostrando-a como um objeto, ao mesmo tempo, proveitoso/necessrio (modalizado pelo dever-ser) e desejvel (modalizado pelo querer-ser). Nesse caso, um dos recursos empregados mostrar que um dado uso referendado por usurios de prestgio.

    Em Portugus: linguagens, os locutores autorizados esto presen-tes tanto nos textos apresentados para leitura quanto nas frases ilus-trativas e nos exerccios. Alm dos escritores sobretudo os brasilei-ros contemporneos26 , aparecem autores que vo de estudiosos ou especialistas numa dada rea (por exemplo, comportamento humano: Luiz Alberto Py e Flavio Gikovate) a autores de textos jornalsticos atu-ais (publicados em "veculos" como Folha de S.Paulo e Veja), passando por compositores brasileiros contemporneos (como Caetano Veloso e Djavan). Cereja e Magalhes, na medida em que respondem pela autoria de muitas frases exemplares, tambm se incluem nessa vasta lista. Como

    "modelos" de lngua (do bom uso) comeam tambm a ser utilizados os

    25 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 279.26 A ttulo de ilustrao, citamos os autores de alguns dos textos trabalhados em cada unidade: Lya Luft,

    Affonso Romano de SantAnna, Dalton Trevisan, Jos Paulo Paes, Carlos Drummond de Andrade, Luiz Fernando Verssimo, Vincius de Morais, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, etc.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 23

    quadrinhos, de autores como Ziraldo, Quino e Laerte, alm de textos oriundos da internet.

    Cabe observar que, algumas vezes, trechos atribudos a escrito-res e compositores so utilizados no como exemplo de "bom uso", mas de "mau uso" (ou pelo menos de um uso no muito recomendado). No entanto, h uma tentativa de justificar esse "mau uso", como no trecho que segue:

    Exemplo 4:

    A gente no sabemos escolher presidente/A gente no sabemos

    tomar conta da gente/A gente somos intil. (Roger Rocha Moreira)

    a) H, nesses versos, uma concordncia que foge s normas da

    variedade padro. Identifique-a.

    b) Ao fazer essa concordncia, o autor utilizou uma figura de sintaxe.

    Qual essa figura?

    c) Que relao h entre essa concordncia e o sentido desses versos?

    Resposta: Ao fazer uma concordncia que foge variedade padro, o autor

    ironicamente sugere e confirma nossa "incompetncia" para cuidar de ns

    mesmos.27

    Comeam tambm a aparecer textos de alunos. Nesse caso, entre-tanto, ainda que o texto seja elogiado por um ou outro aspecto (por exemplo, por suas qualidades argumentativas), seu autor no poupado de comentrios negativos quando se trata do uso da variedade padro. Em outras palavras: o aluno no visto como um usurio de prestgio. Vejamos o comentrio que antecede um desses textos:

    Exemplo 5:

    Leia o texto a seguir. Ele foi produzido por uma aluna do 1o ano do

    ensino mdio a propsito do tema cidadania. O texto foi transcrito

    diretamente, sem nenhum tipo de correo. Por isso, normal que

    haja desvios gramaticais e inadequao de alguns termos.28

    27 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 140.

    28 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 238.

  • Linguagem, trabalho e educao24

    J a modalidade do poder cria o regime da facultatividade, indi-cando as variantes que podem (ou no) ser nos limites de aceitao da norma. Em Portugus: linguagens, a facultatividade ora incide sobre usos (quando o discurso da boa e da m norma mais evidente), ora sobre as possibilidades que a lngua, como sistema, oferece (quando o discurso da norma nica sobressai). Nesse sentido, aparece a ideia de que a lngua, por si s, admite/rejeita certas formas e tambm a de que h constru-es que no podem-ser (impossveis) porque esto fora da norma (iden-tificada lngua), como mostra o exemplo a seguir:

    Exemplo 6:

    Empregou-se menos antes do substantivo feminino plural calorias

    porque no existe na variedade padro a palavra "menas"...29

    H, pois, formas e usos igualmente possveis e recomendados; os que so admitidos (desde que recebam o aval dos falantes de prestgio ou de uma "autoridade"); os que so, que existem, mas que no so recomendados (chegando alguns a beirar o limite da proibio) e mesmo aqueles impossveis (isto , que no so, que no existem na norma/ln-gua). Examinemos a modalidade do poder no mbito dos diferentes tipos de variao lingustica.

    Na introduo do "Manual do Professor", os autores apontam, entre os avanos da 2a edio sobre a 1a, uma abertura para as varieda-des lingusticas:

    No se trata de eliminar esse tipo de contedo, mas de redi-mension-lo e incluir no curso de Portugus uma srie de outras atividades que levam aquisio de noes de maior importncia, tais como enunciado, texto e discurso, intencionalidade lingustica [...], preconceito lingustico, variedades lingusticas, a semntica, as variaes de registro (graus de formalidade e pessoalidade), etc.30

    Infelizmente, quando examinamos a parte referente ao LD do aluno, constatamos que as atividades descritas acima constituem mais a exceo do que a regra. Por exemplo, a seo "A lngua em foco", que trata de questes gramaticais, absolutamente prescritiva, valorizando a variedade padro, acima de tudo, embora se diga que o "bom usurio da lngua aquele que sabe utiliz-la de modo adequado s diferentes

    29 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 194.30 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 5.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 25

    situaes de comunicao".31 O preconceito lingustico abordado de forma superficial em dois boxes sobre concordncia (vide exemplo 7), apesar de a obra tratar de (in)tolerncia social, de combate ao precon-ceito e ao sectarismo em outros momentos. Num deles, que aborda ques-tes sobre o texto "O casamento", de Lus Fernando Verssimo, h inclu-sive comentrios sobre a linguagem das personagens, relacionada ao no uso da variedade padro, e simplesmente no se aproveita esse "gancho" para falar do respeito s variedades lingusticas e seus usurios.

    Exemplo 7:

    [...] Concordar adequadamente o sujeito com o verbo ou o adjetivo

    com o nome pode tornar o texto mais preciso, sem ambiguidades,

    mas o principal valor da concordncia social.

    Socialmente, existe uma variedade lingustica de prestgio, que

    a padro. Em determinadas situaes [...] devemos observar

    essa norma, seno corremos o risco de sermos julgados de forma

    preconceituosa e no alcanarmos nossos objetivos.

    E, na variedade padro, um dos princpios lingusticos mais notados

    e exigidos socialmente o da concordncia.32

    Como se v, o trecho acima, alm de abordar a questo do pre-conceito lingustico apenas en passant, no explica por que a variedade padro a que tem prestgio social, o que pode levar o aluno a concluir erroneamente que ela melhor (mais correta, mais bonita ou elegante) do que as variedades no padro; a atribuir, enfim, o dito prestgio a questes de ordem lingustica, e no s de ordem histrica, poltica e, sobretudo, ideolgica.

    Examinemos, agora, como a obra se comporta em relao aos diferentes tipos de variao. A variao diacrnica praticamente igno-rada, no corpo da obra, a no ser por uma nica oposio, antigamente/hoje, como mostra o exemplo 8, e por uma ou outra referncia ori-gem latina de alguns prefixos (como omni). Parece, portanto, que, em Portugus: linguagens, apenas os usos atuais do portugus so vlidos (ao mesmo tempo, possveis e recomendados):31 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 129.32 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 196.

  • Linguagem, trabalho e educao26

    Exemplo 8:

    O verbo precisar, no sentido de "necessitar", normalmente

    empregado como transitivo direto tanto na variedade padro quanto

    nas variedades no padro. Antigamente, entretanto, esse verbo era

    empregado como transitivo direto em frases como "Se voc precisar

    ajuda, conte comigo".33

    J no que diz respeito variao geogrfica, os "confrontos entre o portugus brasileiro e o portugus lusitano" reduzem-se, na verdade, a um nico confronto: as diferenas na colocao pronominal, tratadas como uma questo de eufonia e naturalidade (como se ver no exemplo 9). Comenta-se tambm, a partir do poema "pronominais", de Oswald de Andrade, a proposta do modernismo de buscar uma lngua brasileira, fazendo, nesse sentido, uma vaga referncia identidade lngua-nao (exemplo 10):

    Exemplo 9:

    As diferenas entre o portugus do Brasil e o portugus lusitano

    Apesar de a eufonia ser um critrio importante para a colocao

    pronominal, h algumas diferenas entre o portugus do Brasil e

    o de Portugal que acarretam dificuldades para ns, brasileiros,

    principalmente quando escrevemos. Isso porque as regras da

    gramtica normativa para a variedade padro da lngua ainda

    guardam fortes influncias do portugus lusitano. [...] Para o falante

    portugus agradvel ouvir ou dizer o enunciado "D-me de comer",

    enquanto para o falante brasileiro mais natural "Me d comida".34

    33 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 246.34 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 277.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 27

    Exemplo 10:

    Voc deve ter notado que o poema apresenta ttulo em letras

    minsculas e no traz nenhuma pontuao. Isso ocorre porque seu

    autor, Oswald de Andrade, foi um dos fundadores do Modernismo,

    um movimento que, entre outras coisas, defendia o uso literrio de

    uma lngua brasileira, popular, prxima da fala [...] O movimento

    modernista foi nacionalista, isto , procurou valorizar nosso pas,

    nossa gente, nossa lngua, nossas tradies...35

    A variao interna do portugus do Brasil, por sua vez, no tra-balhada em Portugus: linguagens, enquanto a relao com outras ln-guas modernas (ingls, francs, etc.) abordada poucas vezes: uma delas num box em que se define e se exemplifica a noo de emprsti-mos/estrangeirismos (exemplo 11); outra, na relao com os neologis-mos (exemplo 12). Em ambos os casos, manifesta-se uma atitude no preconceituosa, o que distingue Portugus: linguagens de outros LDs que incluem os estrangeirismos entre os vcios de linguagem:

    Exemplo 11:

    Emprstimos so palavras estrangeiras incorporadas lngua por

    meio de contatos sociais com outros povos. Alguns se aportuguesam,

    como, por exemplo, maionese (do francs mayonaise), futebol (do

    ingls foot-ball), enquanto outras mantm sua grafia original, como

    outdoor. Essas palavras so denominadas estrangeirismos.36

    Exemplo 12:

    Em nosso pas, muitas foram as tentativas de substituio de

    estrangeirismos por neologismos, nem sempre invenes felizes ou

    bem-aceitas. Veja alguns exemplos:

    Neologismos Estrangeirismos convescote pic-nic (piquenique) balpodo foot-ball (futebol) [...] cardpio menu

    35 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 280.36 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 173.

  • Linguagem, trabalho e educao28

    a) Desses neologismos, apenas cardpio foi aceito pelos falantes

    da lngua portuguesa. Levante hipteses: Por que os demais no

    tiveram aceitao?

    b) O que necessrio para que um neologismo seja incorporado

    lngua?37

    Resumindo: no h uma abordagem sistemtica nem da varia-o histrica nem da geogrfica, limitando-se sua presena na obra a alguns exemplos ou comentrios esparsos. Com isso, a variao lingus-tica parece restringir-se s vertentes sociocultural e estilstica, que, alis, no so distinguidas com suficiente clareza na obra, o que pode levar o aluno a associar a variedade padro formalidade e as variedades no padro informalidade, como no exemplo 13 abaixo:

    Exemplo 13:

    Observe a construo desta frase: "Se um cachorro late pra mim na

    rua, vou l e mordo ele?"

    Ela tambm apresenta marcas da variedade coloquial e informal da

    lngua. Reescreva a frase, adequando-a variedade culta e formal da

    lngua, isto , variedade padro.38

    No entanto, em outras passagens, os autores, de certa forma, se rea-bilitam, mostrando que a variedade padro, dependendo da situao, pode ser formal ou informal (embora no estabeleam a mesma relao no que tange s variedades no padro). Por exemplo, em um exerccio, temos a seguinte questo: "Nesse convite de casamento usada a variedade padro formal, a variedade padro informal ou uma variedade no padro?"39

    Cabe observar que, ao longo da obra, a utilizao frequente do singular variedade padro em contraposio ao plural variedades no padro pode levar o aluno a tomar a norma padro (ou culta) como um todo homogneo e uniforme (versus heterogeneidade e no uniformi-dade das variedades no padro), o que contribuir, em ltima instncia, para reforar a identificao da variedade padro prpria lngua (dis-curso da norma nica). Essa identificao (norma culta = lngua) tambm 37 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 177.38 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 86. Grifos nossos.39 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 281.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 29

    aparece em outros momentos, como no exemplo 14, questo referente ao texto "Papo de ndio", do poeta Chacal:

    Exemplo 14:

    Alm dessas marcas de oralidade, o texto apresenta outras palavras

    e expresses que fogem variedade padro.

    a) Reescreva todo o texto na variedade padro da lngua.40

    O exemplo acima nos d a impresso de que a variedade padro a "verdadeira" lngua, tanto assim que tudo aquilo que foge a ela deve ser eliminado, o que justifica a reescrita do texto. Mas tambm, em outros momentos, reforando o discurso da boa e da m norma, contrape-se claramente a variedade padro s variedades no padro (ou chamada

    "variedade popular"), sendo a primeira, via de regra, valorizada positiva-mente e as segundas, negativamente, como no exemplo 15:

    Exemplo 15:

    A regncia um dos aspectos da lngua em que se evidenciam

    claramente as diferenas entre a variedade lingustica padro e

    as variedades no padro. [...] Apresentamos a seguir os casos

    mais comuns de regncia, sempre de acordo com as prescries

    da gramtica normativa e, portanto, aplicveis variedade padro

    formal.41

    No que tange variao sociocultural, o que vemos, portanto, o j constatado "deslizamento" entre o discurso da norma nica e o dis-curso da boa e da m norma. Nessa perspectiva, h usos recomendados e mesmo prescritos (que podem e devem-ser e que se quer que sejam) e usos no recomendados ou mesmo proibidos (que podem-ser j que existem, so , mas que se quer que no sejam e que, no limite, devem no-ser). Recupera-se, assim, a imagem heterognea da lngua, mas com usos hierarquizados: associam-se as variedades no padro

    "transgresso" (de princpios que regem a variedade padro), a "desvios lingusticos", mostrando-as, pois, como inferiores variedade padro.

    H, ainda, o caso em que o termo uso perde a acepo de bom (ou mau) uso e passa a designar apenas o uso comum, pautado no critrio 40 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 195.41 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 240.

  • Linguagem, trabalho e educao30

    de frequncia (exemplos 16 e 17), o que aproxima a obra em estudo de uma gramtica de usos. Essa acepo de uso, no entanto, bastante rara, fazendo prevalecer o discurso da norma nica e o da boa/m norma, que se interpenetram, se entrecruzam:

    Exemplo 16:

    A orao coordenada explicativa frequentemente empregada

    depois de oraes imperativas e optativas.42

    Exemplo 17:

    1b) Na sua opinio, qual dos anncios apresenta uma linguagem

    mais prxima do leitor? Por qu? Resposta pessoal. Sugesto: O anncio

    em que o verbo chegar rege a preposio em (na cozinha), pois essa constitui

    a regncia geralmente usada pelos falantes da lngua em situaes informais,

    inclusive por aqueles que na escrita adotam a variedade padro.

    Por seu turno, a variao estilstica, que remete basicamente oposio formalidade/informalidade, aparece ora articulada varia-o sociocultural (exemplo 18), como j observamos, ora isoladamente (exemplo 19), ora, enfim, associada s modalidades oral e escrita da ln-gua (exemplo 20):

    Exemplo 18:

    H, no entanto, certas construes consagradas pela linguagem

    coloquial que constituem pleonasmos, mas so aceitveis na

    variedade padro: chover chuva, abismo sem fundo...43

    Exemplo 19:

    O anncio faz uso de algumas expresses prprias da variedade

    coloquial da lngua. D o significado destas expresses:

    a) "colocar o seu menino nos eixos" b) "no vai tirar voc da cabea" c) "nem largar do seu p".44

    42 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 118.43 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 139.44 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 53.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 31

    Exemplo 20:

    O narrador parece estar dialogando com uma mulher, embora

    tenhamos acesso apenas fala dele. Sua linguagem apresenta

    marcas de oralidade e de informalidade.

    a) Releia o 2 pargrafo. Identifique nele palavras ou expresses que

    comprovem essas marcas. Resposta: Oralidade: a repetio de compreendo,

    o emprego da palavra olha; informalidade: pra, tava e a expresso fora de

    brincadeira.

    b) Que conotao essas marcas fornecem quanto ao tipo de

    relacionamento que h entre os dois interlocutores? Resposta: Que h

    intimidade entre eles; por isso o narrador fica vontade para falar.45

    No exemplo 20 e em alguns outros momentos do texto, fica pare-cendo que a modalidade oral est mais associada a situaes informais e a escrita, a situaes formais. Sabemos, no entanto, que entre fala e escrita temos um continuum, cujos extremos seriam a fala informal e a escrita formal, passando pela fala formal e pela escrita informal.

    Resumindo: a variao sociocultural e a variao estilstica apre-sentam as seguintes vertentes: a) usos referentes variedade padro, preferencialmente formal: aqueles que aparecem, ao mesmo tempo, como possveis, prescritos e desejveis (que podem/devem-ser e que se quer que sejam) e que, passam, nesse sentido, a valer pela lngua inteira; b) usos possveis (que podem-ser), embora sejam no recomendados ou mesmo, no limite, condenados (que se quer que no sejam e/ou que devem no-ser = variedades no padro, variedade popular); c) usos impossveis (que no podem-ser, porque se situam fora da norma [= da lngua], isto , no existem). No preciso reafirmar, pelo que foi dito at aqui, que a vertente a a que predomina na obra, fazendo deslizar o discurso da boa (e da m) norma para o discurso da norma nica.

    Quanto s modalidades da lngua, no h, na obra, um trabalho consistente, voltado, por exemplo, para o exame das especificidades que caracterizam fala e escrita. Ainda que haja consenso entre os pesquisa-dores de que a lngua falada merece um lugar de destaque no ensino da

    45 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 85.

  • Linguagem, trabalho e educao32

    lngua,46 a oralidade pouco explorada em Portugus: linguagens, limi-tando-se a comentrios esparsos sobre marcas de oralidade, algumas questes pontuais (por exemplo, sobre a fala espontnea brasileira e sobre a ortografia oficial) e a sugesto ao professor de que algumas ati-vidades sejam realizadas oralmente (por exemplo, opinar sobre o tema abordado, fazer uma "leitura expressiva", em voz alta, de algum poema). No obstante a recomendao dos PCNs, um nico gnero oral o semi-nrio contemplado, privilegiando-se gneros escritos: conto, edito-rial, reportagem, etc. (que acabam se misturando com os tipos: texto argumentativo, dissertao escolar), sobretudo na seo voltada para a produo de textos.

    Assim, so relegadas as contribuies das pesquisas em Lingustica e dos PCNs (contrariamente ao que afirma o "Manual do Professor"), o que reitera a impresso, to arraigada na escola e fora dela (no meio social mais amplo), de que a escrita superior fala, j que, ao contrrio desta, incorpora e respeita as regras da variedade padro, recomendadas pela gramtica normativa.47

    Resta-nos falar dos valores presentes em Portugus: linguagens. Dada a sua funo primordialmente pedaggica (ensinar a "boa" norma, tomada como "a" norma prpria da lngua), nela predominam os valo-res ticos (ligados correo), embora, como j comentamos, estes venham atenuados por palavras e expresses como problemas, desvios, inadequao, desacordo (em substituio a erro), acompanhando, nesse sentido, a postura relacionada ao "politicamente correto" da Lingustica (questo que, como mostramos, vem justificada no Manual do Professor). Seguem dois exemplos:

    46 Cf., por exemplo, FVERO; ANDRADE; AQUINO. Oralidade e escrita.47 Veja-se a esse respeito o exemplo: "Na lngua falada, comum o emprego de construes em

    desacordo com a variedade padro, tais como A gente vamos, Subiu os preos, Mais tarde ns conversa. A tira abaixo contm uma construo que apresenta concordncia verbal em desacordo com essa variedade" (p. 217). Na realidade essas construes no so tpicas da oralidade (j que um falante da norma padro jamais as usaria em sua fala), mas de variedades no padro. Reafirma-se, pois, a ideia de que a fala o lugar do erro (cf. MARCUSCHI. O tratamento da oralidade no ensino da lngua) ou que ela destituda de regras (cf. LARA. O que dizem da lngua os que ensinam a lngua: uma anlise semitica do discurso do professor de portugus).

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 33

    Exemplo 21:

    O texto a seguir foi escrito por um candidato de um vestibular de uma

    unidade mineira. Sua transcrio foi feita de acordo com o original

    e, por isso, natural que apresente alguns problemas gramaticais.48

    Exemplo 22:

    Entre as frases abaixo, h trs cuja regncia est em desacordo com

    a variedade padro. Identifique-as.49

    Os valores ticos so, assim, atenuados ou dissimulados, vis que favorece a construo do discurso da norma nica (embora a superva-lorizao da norma padro, em oposio s variedades no padro, se encarregue de recuperar o discurso da boa e da m norma, em outros momentos da obra). J os valores estticos (eufonia, agradabilidade) so muito pouco explorados, limitando-se a (sub)sees especficas, como

    "Figuras de Sintaxe", ou a questes pontuais referentes concordncia e colocao pronominal (exemplo 23):

    Exemplo 23:

    Das duas frases em que o adjetivo concorda com os dois substantivos,

    qual delas apresenta uma sequncia sonora mais agradvel aos

    nossos ouvidos?50

    J os valores afetivos, que abordam a relao "amorosa" do falante com a lngua/ptria, no se manifestam, talvez porque as condies de produo do final do sculo XX no favoream a emergncia desses valo-res: no se trata mais de priorizar os valores patriticos e nacionalistas, como ocorria em meados do sculo XX. H uma referncia ao moder-nismo (poema de Oswald de Andrade) como um movimento nacionalista que procurou valorizar nossa cultura e nossa lngua, porm a relao falar bem/demonstrar amor lngua e ptria no se manifesta na obra.

    Breves comentrios finaisAtravs do exame da modalizao (modalidades e valores) dos sujei-tos e objetos envolvidos que participam do contrato (implcito) entre

    48 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 186.49 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 243.50 MAGALHES; CEREJA. Portugus: linguagens, p. 197.

  • Linguagem, trabalho e educao34

    enunciador e enunciatrio,51 acreditamos ter podido mostrar que, apesar dos inegveis avanos relacionados, por exemplo, s prticas de leitura e produo de texto e abordagem de textos no verbais e sincrticos, Portugus: linguagens, guardando as devidas propores, no assume uma postura muito diferente daquela observada em LDs mais antigos (mais normativos) quando se trata de estudar a lngua. Mesmo que, na justificativa do "Manual do Professor", os autores afirmem que a abor-dagem gramatical buscaria um "alargamento de horizontes", com base

    "nos recentes avanos da lingustica e da anlise do discurso" prote-gendo-se, por outro lado, com a ressalva de no "renunciar gramtica normativa" , esta que, afinal, orienta a obra. Assim, em Portugus: linguagens mantm-se, em linhas gerais, uma mescla de normas e ima-gens: o discurso da norma nica, que constri a imagem de um "objeto" homogneo, uniforme, sem variao; e o discurso da boa e da m norma, de carter prescritivo (ainda que atenuado por algumas estrat-gias, como o no emprego da palavra erro), que constri a imagem de um "objeto" heterogneo, mas com usos hierarquizados.

    Nesse caso, atravs de mecanismos nem sempre explcitos, os autores valorizam a variedade padro (ligada, sobretudo, a situaes formais) e a modalidade escrita, reforando a funo primordialmente pedaggica da obra. Descreve-se, ento, sob a aparncia de um nico uso, o "bom" uso (a norma padro escrita), que identificado prpria lngua e contraposto ao "mau" uso. O "bom" uso coloca-se, ento, como aquele que pode-ser, que se quer que seja, j que referendado pelos usurios de prestgio, mas que, sobretudo, deve-ser, o que instaura no falante a obrigao (dever-fazer) de adot-lo e empreg-lo em toda e qualquer situao. Haja vista as numerosas indicaes para que o aluno reescreva o texto (o trecho, a frase) de acordo com a variedade padro, independentemente das condies em que esse texto (trecho, frase) foi produzido.

    Com as anlises feitas pelo vis de categorias semiticas e com os comentrios apresentados acima, acreditamos ter dado nossa modesta contribuio para o aprimoramento da capacidade de anlise e de senso crtico do leitor/professor, no que tange funo do LD no/

    51 Reiteramos que o termo enunciatrio refere-se aqui tanto ao aluno quanto ao professor.

  • Por um trabalho crtico do professor de portugus... 35

    para o ensino da lngua, o que, portanto, poder auxili-lo a fazer esco-lhas de forma mais livre e autnoma.

    RefernciasBARROS, Diana Luz Pessoa. Conceitos e imagens da norma no portugus falado no Brasil: o discurso da gramtica. So Paulo: USP, 1999. (relatrio parcial de projeto de pesquisa).

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    Glucia Muniz doutora em Semitica e Lingustica Geral pela Universidade Federal de So Paulo (1999). Atualmente professora, nvel Associado II, da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando tanto na graduao quanto na ps-graduao na rea de Lngua Portuguesa (Estudos Textuais e Discursivos).

    http://goo.glHZRUcD

  • No h dvidas sobre o papel de incluso social estabelecido pelos modernos recursos de comunicao, levando-se em conta a ampliao do espao educativo para alm do ambiente escolar. Entretanto, a educa-o formal ainda continua a ser quase insubstituvel, tanto para a forma-o do indivduo, quanto para a aquisio e controle dos conhecimentos e habilidades necessrias para uma participao ativa na vida cultural e econmica. A partir de tal constatao, v-se que a educao firma-se como um dos fatores basilares para a sustentao de uma sociedade democrtica, participativa e economicamente vivel.

    Esse sustentculo das comunidades, em escala progressiva, vem se tornando uma preocupao no apenas de acadmicos, estudiosos ou organizaes de base, mas tambm de setores antes refratrios ao tema, como os setores econmico e poltico. Tais reas e setores tradi-cionais, que antes se habituaram a lucrar velando e desvelando a igno-rncia de grande parte da populao, no puderam travar as urgncias impostas pelos mercados a exigir reformas e anteparos decentes. A meta desses setores revela-se ento bem determinada: fundamental cor-responder devidamente aos avanos desencadeados na cincia e na tec-nologia com o fim de otimizar o sistema produtivo. A competitividade estimulada e promovida, tanto no plano nacional quanto no plano global, assumiu um aspecto bem mais refinado, passando, assim, a demandar recursos humanos cada vez mais competentes. Tal competncia, certo,

    Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura: o professor em ao na arena poltica e social

    Marcelo Chiaretto

    O mundo no ; o mundo est sendo. Paulo Freire

  • Linguagem, trabalho e educao38

    est coligada qualidade da educao que cada sociedade oferece aos seus cidados.

    Sob esse prisma, no se pode esquecer das correlaes no plano internacional. Pensando-se ainda nas necessrias modificaes no campo econmico e poltico, observa-se que a educao haveria de encontrar uma evoluo conforme as tendncias e, sobretudo, as demandas internacionais, que passam a pautar desse modo as mudan-as no plano local. Medidas e polticas, dizendo-se de amplitude trans-nacional, iniciam assim um processo em conjunto visando atender de forma devidamente eficaz s exigncias das novas sociedades. Os pases denominados desenvolvidos passam ento a dedicar ateno especfica aos seus sistemas educacionais, buscando com tal prtica estimular reformas e revises cleres, eficientes e, obviamente, com fins definidos. Aos pases em desenvolvimento restou tentar reduzir as distncias estabelecidas em relao ao primeiro grupo. Enfrentando problemas graves em seus sistemas educacionais, como insuficincia, obsolescncia, vrias situaes de inadequao e de insatisfao, os pases "em atraso" viram-se emparedados pelo novo contexto de globa-lizao da economia e do trabalho, a tornar pblica e notria a premn-cia da ampliao, democratizao e renovao da educao.

    Pensando-se no Brasil e em certos pases desenvolvidos, como a Frana e a Alemanha, faz-se interessante um breve estudo comparativo de carter multicultural, ou seja, no se trata de imitar modelos e, sim, de fazer dialogar as alteridades. sabido que a Unio Europeia, consciente de sua posio no mercado global, vem adotando medidas comuns de racionalizao do ensino que convergem todas para a profissionalizao, o encurtamento dos anos de estudo e a eliminao ou desvalorizao de diplomas "inteis" tendo em vista a realidade atual e suas deman-das. Optou-se pela Frana em considerao sua ascendncia destacada sobre o sistema educacional brasileiro, sobretudo aps o sculo 19. A Alemanha se compara ao Brasil no que tange tentativa de ruptura com uma anterior ordem totalitria, uma vez que sua reunificao a partir de 1989 exigiu uma srie de mudanas na rea educacional e certos abusos por parte do grupo ocidental, isto , do grupo dos dominantes. Alm disso, no se pode perder de vista um dos objetivos deste artigo, qual seja,

  • Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura... 39

    estudar como se processaram certas modificaes no ensino da literatura nos ltimos anos, assim como apontar a necessidade urgente de um novo modelo de poltica de trabalho ao professor de Lngua Portuguesa em vista da contemporaneidade.

    Franceses, alemes e brasileiros em busca de um espao de operao aos estudos das letrasA ltima reforma educacional francesa de certa forma atual, com o marco principal em 1989 com a criao dos Institutos Universitrios de Formao de Professores (de Pr-escola at 2o Grau), buscando-se primordialmente profissionalizar de maneira mais adequada com os novos tempos a forma-o dos professores. No campo especfico do ensino das letras, os novos programas entraram em vigor em setembro de 2000, atingindo profunda-mente o ensino de literatura.1 A partir desse ponto, viu-se e ainda se v uma grande querela entre os defensores da reforma estabelecida e os defensores da grande tradio literria francesa, que se assumem lite-ralmente como salvadores das letras, de acordo com site disponibilizado na internet em que se colocam como representantes do Collectif Sauver les lettres.2

    Conforme estudos de um grupo de trabalho interdisciplinar presi-dido pelo professor Alain Viala e iniciado nos tempos do ento Ministro da Educao Nacional Jack Lang, fazia-se necessria uma reviso dos programas educativos franceses relacionados ao ensino de literatura em vista de vrios motivos, dentre os quais, a presena e atuao de novos pblicos nos liceus e colgios franceses. Os denominados "novos pbli-cos", bom explicar, eram os milhares de parentes de imigrantes em busca de cidadania e legtima incluso social.

    Os partidrios da reforma defendiam a noo de "conivncia cultu-ral", segundo o pensamento pluralista de Bourdieu.3 Conforme as refle-xes do grupo reformista, a escola pblica francesa no deve mais ser feita apenas para os Wasp (White anglo-saxon protestants) ou para seu equivalente francs, na medida em que ela acolhe agora jovens de todo horizonte e de toda origem. Impor-lhes a literatura em geral e a

    1 Cf. Les manuels de la Rforme.2 Cf. Site oficial do Collectif Sauver les lettres.3 Cf. Les manuels de la Rforme.

  • Linguagem, trabalho e educao40

    literatura francesa em particular com as caractersticas de seu estudo, seria, por sua vez, inferioriz-los por coloc-los em desvantagem em relao aos jovens inseridos nessa cultura. Por outro lado, seria um etno-cdio, j que seriam castrados de sua histria e de sua cultura, fazendo-os homens de nenhuma parte, acentuando a rejeio da qual j so vtimas, justificando a violncia e o rancor ao olhar de uma sociedade que nega o valor de seus valores.4

    Para os reformistas, os erros e pecados cometidos contra o ter-ceiro mundo no deviam ser repetidos contra os jovens em geral e con-tra aqueles vindos da imigrao em particular: "Para que eles brilhem, apaguemo-nos. No vamos alien-los de nossos valores". A reforma pressupe textos literrios abordados em acordo com um intento moral ou cidado, servindo de modelo ou de estmulo para uma expresso ou para uma argumentao clara e eficaz.5 Nomes de obras ou de autores ficam em segundo plano em vista de um estudo literrio baseado em gneros (o romanesco, o teatral, o biogrfico, o epistolar), registros (o lrico, o trgico, o irnico, o cmico), o estudo do ensaio, da escritura, do dilogo, do ato de convencer, persuadir e demonstrar.

    Percebe-se que o intuito a democratizao da literatura, mantendo distantes perspectivas mais intimidatrias, como aquelas geradas pelas grandes obras literrias do patrimnio histrico nacional e seus autores imortais. De fato, observa-se em tal reforma uma interessante proposta de como o ensino de literatura deve se operar na atualidade. O aluno esta-ria na classe antes de tudo para se expor, para se socializar, faire socit, ou seja, compreender a necessidade da tolerncia e da aceitao da alteri-dade, rejeitando o isolacionismo em prol do coletivo, assumindo-se dessa maneira como um ser social a estudar gneros sociais. A nfase no gnero teatral, por exemplo, ao qual o novo programa dedica aproximadamente 14% do tempo, demonstra essa busca pelo ldico, pelo que se pode orali-zar, atraindo talvez ainda mais os alunos por ser algo que, mesmo escrito, mostra-se vivo como os modernos meios de comunicao social. Estando o universo divinatrio do escritor em segundo plano, o texto literrio pode ser assim evidenciado como uma mensagem a ser veiculada, um discurso,

    4 WAINER. Lenseignement des classiques aujourdhui: une simple querelle des Anciens et des Modernes?5 Cf. Les manuels de la Rforme.

  • Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura... 41

    participando democraticamente de um processo de comunicao com os leitores. Em conformidade com os novos programas, "o campo da litera-tura o campo da opinio".

    Alain Viala, o presidente do grupo dos reformistas, em um certo momento declara que a histria literria corresponde cultura do profes-sor, pois ela no leva em conta devidamente o ponto de vista do aluno. Este seria ento contemplado com a grade de gneros e de registros, a partir dos quais a linguagem seria manifesta e estudada de acordo com sua ao em grandes categorias geradoras de emoo e sensibilidade.6 Para os reformadores, preciso revolucionar radicalmente o perfil do bom aluno que alcana xito em detrimento dos outros. Em outras pala-vras, pretende-se instalar um clima de maior solidariedade e comunho entre os alunos, sem que suas respectivas expresses sejam omitidas por um professor situado como centro das atenes.

    Para os combatentes dessa reforma, democratizar o acesso lite-ratura algo simplificador, uma vez que a capacidade de leitura singula-rizante, da a normal elitizao. Para eles, o ensino da literatura elitista realmente, pois ele distingue os alunos, o contrrio seria baixar o nvel ao aluno mais fraco. Nas palavras do professor Robert Wainer, um dos membros do coletivo Sauver les lettres, h de se lastimar as novas metas ditadas pelos novos tempos: "a literatura que ns ensinamos aquela de um povo e de uma classe em um momento dado da histria. Ns no temos o direito de imp-la como patrimnio cultural de um pblico tor-nado to multicultural como o nosso". Segundo Wainer, "para interessar aos alunos, preciso falar de seu mundo. Quando lhes falamos de Pascal ou de Montesquieu, de Racine ou de Stendhal, reenviamos-lhes ao coti-diano do brilho de suas bibliotecas familiares". Pode-se inferir da que "os alunos", na perspectiva do professor, so os jovens franceses acostuma-dos com o mundo francs. Os textos literrios mesclados com rap, uma das referncias da nova juventude, so abominados pelos tradicionalistas por destrurem a melodia proporcionada pelos alexandrinos.

    Com efeito, bem instigante atentar-se para as ideias de Wainer e seu grupo, pois representam de modo eloquente uma viso da litera-tura hoje encarada como atrasada, ultrapassada ou mesmo tradicional.

    6 VIALA. Lesprit des programmes.

  • Linguagem, trabalho e educao42

    V-se a atuao de um grupo aguerrido, na tradio das belles lettres, que todavia defende argumentos frgeis contra o imenso poder dos meios de comunicao de massa, contra a urgncia dos estudos transdisciplina-res em que a literatura como disciplina perde o espao privilegiado do saber para contribuir e aprender com outros saberes que agora a con-templam mesma altura em suma, tal grupo tenta ainda desviar os olhos da poderosa indstria cultural, sequiosa por atender mais e mais consumidores. Percebe-se um posicionamento extremamente vlido, mas no condizente com a noo de leitura de textos literrios como prtica cultural a recalibrar o individual e o social, em coerncia com a interao social constitutiva de todo fenmeno lingustico.

    Na Alemanha, essa "utilizao com fins definidos" do ensino da lngua materna e de sua literatura, de forma bem pertinente, ocorreu-se por outros motivos. Conforme Pedro Goergen, aps a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Ocidental reconstruiu o seu sistema de ensino mdio e superior a partir de parmetros bastante conservadores e seletivos, ao contrrio do que vinha acontecendo em outros pases europeus nesta mesma poca, que procuravam modernizar e democratizar o seu ensino. Na verdade, v-se que houve algumas iniciativas mais inovadoras, mas logo suplantadas pela tendncia conservadora. Esta, conforme o inte-resse dos prprios alemes ocidentais, retomava elementos do sistema tradicional de ensino da Repblica de Weimar, dos anos 20, como reao tanto contra as ideias totalitrias do regime nacional-socialista quanto contra as propostas de "reeducao dos alemes", sugeridas pelos ame-ricanos, em nome dos Aliados.7 Tornava-se importante uma ateno s camadas populares, no rompendo assim com o passado alemo e seu respeito, agora mais cuidadoso, ao Volksgeist o esprito nacional, o imaginrio, o sonho coletivista germnico.

    Na Alemanha Ocidental, as propostas de reforma educacional com mpeto democrtico-igualitrio eram vistas com ceticismo por sua apa-rente proximidade com as prticas niveladoras tanto do nacional-socia-lismo quanto do socialismo que, aos olhos dos alemes ocidentais, repre-sentavam uniformidade cultural e conformismo poltico. Na Alemanha Oriental, a reforma do ensino constituiu, ao lado da reforma poltica,

    7 GOERGEN. Formao de professores: a experincia internacional sob o olhar brasileiro, p. 21.

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    agrria e industrial, um dos elementos centrais de inovao radical, con-trria s iniciativas reformistas e liberais dos anos 50. Como de se imaginar, a educao era considerada parte importante do engajamento ativo na luta por uma sociedade socialista, sob a liderana do partido. Foi introduzida assim a Escola Socialista nica com o objetivo de eliminar as caractersticas elitistas e discriminadoras do ensino secundrio tradicio-nal, e assim estabelecer uma garantia de igualdade de chances.8

    V-se que as opes entre os dois sistemas de ensino refletem os interesses hegemnicos da sociedade, mesmo levando em conta as dife-renas poltico-econmicas que cada pas assumiu com relao ao sistema de organizao social. Aps a reunificao em 1989, uma nova reforma fez valer para os dois pases as mesmas diretrizes. Concretamente, isso significou a simples eliminao do sistema educacional socialista e sua substituio pelo sistema vigente na Alemanha Ocidental, em ateno premncia de se instalar um sistema escolar segundo a racionalidade da economia empresarial. Goergen informa que as medidas correspon-dentes, radicais e impositivas, foram tomadas no a partir de debates orientados em princpios pedaggicos, mas em atendimento a impera-tivos econmico-polticos. Um sistema de ensino que, na dcada de 50, certamente era melhor e mais avanado que o da Alemanha Ocidental, no soube ou no teve espao para enfrentar competentemente o padro de desenvolvimento cientfico-tecnolgico imposto pelo ocidente.

    De fato, a partir da pode-se concluir que no havia como sofrear o desejo da populao em usufruir as benesses e confortos que o capi-talismo oferecia aos tambm alemes do outro lado do muro. Vivendo em um sistema to rgido quanto ineficiente, os alemes orientais sen-tiam-se e ainda sentem-se e so mesmo assim tratados pelos alemes ocidentais como cidados de segunda categoria. Conforme uma viso empreendedora, a noo de uma educao "para todos" passou a ser bem-vinda na "nova" sociedade alem, assim como a necessidade de interiorizao de um perfil capitalista de requisitos. Uma educao huma-nista passou a ser encarada como sendo para as elites, ou seja, mais elevada, e, por isso, "sem finalidade". o momento da "modernizao

    8 Cf. GOERGEN. Formao de professores: a experincia internacional sob o olhar brasileiro.

  • Linguagem, trabalho e educao44

    recuperadora", do sistema educacional somente financiado se a econo-mia nacional capaz de concorrer no mercado mundial.9

    Com a reformulao de currculos, figuras histricas da literatura naturalmente ressurgem, enquanto outras, mesmo qualificadas, perdem-

    -se no limbo das reformas ultra-ocidentalizantes, atentas s circunvolu-es na rea poltica e econmica. Escolas passam a enfocar detidamente a capacidade de controle das tcnicas e das cincias, acabando por dei-xar s chamadas "cincias do esprito" um papel secundrio, visto que, na viso empreendedora, era preciso reconstruir um pas e, para tanto, reduzir funcionalmente a educao e a pesquisa de acordo com a capaci-dade de valorizao econmica imediata.

    A bem dizer, notria a situao fragilizada dos estudos literrios, mergulhados em uma crise de credibilidade antiga, que pode ser perce-bida em maior ou menor escala em todos os pases onde tais estudos se realizam. Segundo Sigrid Weigel, diretora dos Centros Berlinenses de Literatura e Lingustica:

    Tal mudana [de atitude dos estudos literrios em vista de uma maior credibilidade] ser inconseqente se no se acompanhar do reconhecimento de que as chamadas "cincias leves" vm-se caracterizando pelo no questionamento de seus modos de operar e, da, em aceitarem a diviso do trabalho entre as cincias naturais e tcnicas e as cincias da cultura, identificando as primeiras com a inovao e a modernizao e reservando s segundas o papel de "preservao da cultura"; ou seja, tornando-as, no momento presente, ociosas.10

    Percebe-se com clareza que em certos pases europeus as cha-madas "cincias do esprito" ou "cincias leves" esto sendo converti-das, paulatinamente, em "cincias da cultura" em um processo aberto, pode-se dizer, de instrumentalizao. Na Frana, tal situao se torna declarada ao se observar a meta de democratizar ou mesmo simplificar o acesso aos bens culturais do Estado para uma populao multicultural de trabalhadores imigrantes ainda marcada pelo rancor, pela revolta e pela excluso. Na Alemanha, o objetivo seria transformar "cidados de segunda categoria", ou seja, os antigos habitantes da Alemanha Oriental,

    9 Sobre a "modernizao recuperadora" e seus efeitos deletrios sobre o sistema de ensino alemo e europeu, bom se aprofundar na leitura de Robert Kurz, em O colapso da modernizao, da editora Paz e Terra, 1997.

    10 WEIGEL apud COSTA LIMA. Naufrgio das identidades, p. 3.

  • Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura... 45

    em trabalhadores a servio da reconstruo de um pas supostamente de todos. Quando uma Diretora dos Centros Berlinenses de Literatura e Lingustica chega a se expressar de forma to deliberada em prol de um maior questionamento das formas de operar das chamadas "cin-cias leves", nota-se um indcio de esgotamento de funes, de superfi-cializao de atitudes, de inaptido e consequente descarte. O aspecto inovador e modernizante caracterizaria o campo das "cincias naturais e tcnicas", que estariam em estreita correspondncia com os reclames do atual momento histrico, um tempo em que no basta ao professor ensinar um saber, mais do que isso, preciso que esse saber atenda s novas exigncias sociais, culturais e tecnolgicas.

    Diante de tal realidade, o ato primordial de um professor de litera-tura na contemporaneidade seria ento ensinar a ler e aprender a ler para atender dinmica das sociedades e para compreender a diversidade de funes que a escrita hoje requer. Sigrid Weigel aponta outro problema percebido tambm no Brasil: a ao de reservar s "cincias leves" o papel de "preservao da cultura", tornando-as no apenas ociosas, como tambm tradicionalistas, artificiais e autoritrias. Ser uma "cincia da cul-tura" com papel interativo, democratizante e coletivista realmente no um problema, pelo contrrio, at algo auspicioso frente ao momento histrico e poltico atual. Entretanto, ser uma cincia desse carter, man-tendo um papel assimilativo e sem configurao tica, foge aos interesses humanistas e propriamente progressistas de um campo transdisciplinar de conhecimentos assumido a priori como analista das culturas.

    Ensinar leitura para civilizar?No difcil observar que, sendo as "cincias do esprito" baseadas na atividade de leitura, suas sobrevivncias, se se pode dizer assim, depen-dero de aes produtoras de sentido, levando-se em conta uma convi-vncia poltico-social sedenta de relaes com os sujeitos que lhes do nimo. E os saberes, nos tempos atuais, devem atender s novas exi-gncias sociais, culturais e tecnolgicas. Em outras palavras, ensinar a ler filosofia, sociologia, psicologia ou mesmo literatura, e aprender a ler em tais campos, so atividades que esto atreladas s demandas e s

  • Linguagem, trabalho e educao46

    deficincias de uma sociedade a rogar por estudos que levem compre-enso de sua diversidade e dos conflitos da gerados.

    Procurando ajust-lo a uma poca de mudanas e incertezas, pases desenvolvidos esto repensando o enfoque aos seus bens culturais. Em um pas como o Brasil atual, a to discutida inoperncia dos estudos lite-rrios (principalmente em termos de ensino),11 assim como a percepo de que os docentes da rea desfrutam passivamente de um espao ex-guo no conjunto da sociedade (sobretudo na acadmica), so encaradas como situaes ou ideias previsveis e mesmo irrelevantes. Avanando na discusso, pode-se notar na sociedade brasileira uma disposio cada vez menor para o debate sobre a importncia da leitura de textos literrios e do seu ensino, uma vez que a prpria realidade da populao demanda-ria outras necessidades mais diretamente ligadas sua sobrevivncia ou mais diretamente ligadas a uma vida ultramoderna, que exigiria conheci-mentos com fins determinados.

    No Brasil e mesmo nos meios acadmicos, uma dvida se confi-gura cada vez maior sobre os estudos literrios: sem que se reivindique qualquer compromisso com um maior adensamento ou maior rigor cien-tfico, quando e sob quais formas tais estudos buscaro se tornar um ins-trumento mais efetivo de construo de uma sociedade justa? Sabe-se que, mesmo precariamente, a alfabetizao avana, o que certamente no representa diretamente um aumento do pblico-leitor. Esse novo pblico solicita aos meios produtores (autores, editoras, acadmicos) uma literatura no nvel de seu letramento, o que conduz ao to discutido problema da pulverizao do "literrio" em vista da urgncia de comu-nicao com a atual sociedade de consumo e sua linguagem hipertextu-alizada, uma sociedade que poderia no ato da leitura no acessar devi-damente o sumo esttico do texto literrio. Esse texto, se se pensar na linguagem literria em sua concepo sacralizada, elitista e subjetivista, j revela a perda definitiva de seu aspecto "aurtico" para frequentar o plurifacetado mundo da cultura, onde todas as linguagens se tocam em modo de rede, sem tratamentos destacados, sem benefcios.

    Entretanto, se a leitura do texto literrio e seu ensino talvez no contribuem diretamente com avanos na rea tecnolgica, por exemplo,

    11 CHIAPPINI. Reinveno da catedral, p. 243.

  • Por uma nova poltica de trabalho com o ensino da literatura... 47

    h um campo em que tais estudos encontrariam "espao de operao": no fortalecimento dos laos interculturais, melhor dizendo, na reafirma-o dos valores democrticos em tempos de acelerada globalizao e consequente nfase competitividade.

    A gesto democrticaTrabalhar com um suposto poder imaterial, como a literatura, , para muitos profissionais, semear, plantar, colher e abandonar uma terra sem dono. Segundo Umberto Eco, estamos rodeados de poderes imateriais, que no se restringem aos chamados valores espirituais, como o das doutrinas religiosas. E entre esses poderes pode-se incluir tambm o da tradio literria, isto , do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, no com fins prticos, mas gratia sui, por amor a si mesma, e que so lidos por prazer, elevao espiritual ou para ampliar os conhecimentos.12

    Se for verdade que os objetos literrios so imateriais em parte, pois geralmente encarnam em veculos de papel, houve um tempo em que eles encarnavam na voz de quem recordava a tradio oral de toda uma comunidade. uma finalidade absolutamente oportuna para o texto literrio. No processo de se pensar as razes da falta de leitura, convm perceber que, no caso especfico do texto literrio, h uma despolitiza-o acentuada dos estudiosos em vista da urgente necessidade de mais e mais ponderaes. Hoje, se se pensar no terreno poltico, v-se que o ensino de literatura j assumiu um fim prtico e provvel, portanto, que se trata muito mais do controle da "funcionalidade" da literatura que de acabar com seu ensino, como defendem primeira vista as propostas educacionais inscritas nos novos Parmetros Curriculares Nacionais.

    Trata-se e isto fundamental de no esquecer que o objetivo possvel na contemporaneidade aprimorar os controles, buscando no paralisar o que Umberto Eco chamou de "ampliao dos conhecimentos". O professor de literatura por seu lado, hoje decididamente um professor de leitura de textos literrios, no pode prescindir do debate pblico, dos benefcios de uma democracia de opinio pblica instalada em sala de aula, na qual os alunos no teriam alternativa seno prestar ateno nas

    12 Cf. ECO. A definio