Literatura e poder na áfrica lusófona

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DILOGO Srie Convergncia

LITERATURA E PODER NA FRICA LUSFONA

INSTITUTO DE CULTURA E LNGUA PORTUGUESA

JOS CARLOS VENNCIO

LITERATURA E PODER NA FRICA LUSFONA

MINISTRIO DA EDUCAO 1992

VENNCIO, Jos Carlos Literatura e poder na frica Lusfona/Jos Carlos Venncio. Lisboa: Ministrio da Educao. Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1992. 128 pginas; 17 cm x 24 cm. (Dilogo: convergncia) Cultura Etnologia Lingustica frica Lusfona

Ttulo LITERATURA E PODER NA FRICA LUSFONA 1 edio, 1992 INSTITUTO DE CULTURA E LNGUA PORTUGUESA MINISTRIO DA EDUCAO Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14, 1. 1200 LISBOA Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases Tiragem 3000 exemplares Capa Escultura em madeira que simboliza a cultura angolana. Composio, montagem, impresso e acabamento IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, E. P. Rua da Escola Politcnica - 1200 LISBOA Depsito legal n. 50 828/91 ISSN - 0871-4444

AGRADECIMENTOS Agradeo Fundao Calouste Gulbenkian o apoio nanceiro que me concedeu para a deslocao a Cabo Verde, permitindo-me um conhecimento de perto da realidade scio-poltica responsvel por uma das duas experincias literrias mais originais na frica de lngua portuguesa. Agradeo igualmente ao Instituto Caboverdiano do Livro, na pessoa do seu ex-presidente, Sr. Jorge Miranda Alfama, e na do seu ento director de publicaes, o poeta Oswaldo Osrio, pelo convite que me enderearam e pela amabilidade com que me receberam. No Mindelo tive a felicidade de rever um amigo de h longos anos, o Dr. Moacyr Rodrigues. Ele foi mais um dos que me ajudaram a conhecer a teimosia humana nessas ilhas quase desertas. A investigao e a reexo subjacentes a este trabalho foram realizadas durante a minha permanncia na Universidade de Heidelberga, Instituto de Tradutores e Intrpretes, como leitor do Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa.

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SUBSTITUINDO UM PREFCIO Existe uma tradio bem enraizada entre os Alemes que o especial interesse e inclinao pelo que lhes estranho e lhes vem de fora. A ilustrar esta nossa tendncia esto os estudos acadmicos de etnologia e lingustica (histrica) comparada realizados desde os ns do sculo XVIII. Ora, no sei se a tradio referida mero desejo de nos conrmarmos a ns mesmos perante um mundo muitas vezes sentido como hostil ou se um Fernweh condicionado pela geograa e pelo clima da Europa Central e que, como nostalgia de tudo quanto longnquo e inatingvel, constitui como que o reverso do saudosismo portugus. De qualquer forma, e j no campo real da cincia, abrigamos desde h muito entre ns as duas disciplinas em causa, a da etnologia (ou antropologia cultural, como se prefere dizer hoje em dia) e a da lingustica, ambas enriquecidas tambm com documentao proveniente dos territrios africanos. E foi nesta perspectiva de tradio e dever histrico, alm de preocupaes mais prementes e surgindo de consideraes da poltica econmica actual, que o Instituto de Tradutores e Intrpretes da Universidade de Heidelberga procurou iniciar, dentro do mbito dos estudos portugueses, o estudo lingustico, sociolgico, poltico e literrio dos pases e culturas lusfonas da frica e da sia, completando, desta maneira, o crculo CBA (continental, brasileiro e afro-asitico) do respectivo departamento. Deu iniciao, em 1984, ao curso africano o meu colaborador e colega Jos Carlos Venncio, que, sendo um profundo conhecedor do ambiente africano e doutorado em Etnologia pela Universidade de Mogncia (Mainz), reuniu em si as qualidades que garantem o sucesso cientco e humano de uma nova disciplina. E com relutncia e j com saudade que uso o pretrito, porque ele acaba de nos deixar. S me resta desejar que o trabalho que ele aqui apresenta, assaz interessante aos olhos de um linguista, tenha o acolhimento que merece por parte dos especialistas da matria e do pblico em geral, fazendo votos para que, dentro em breve, tenhamos em mos uma condigna traduo da obra que, sem dvida, contribuir para a expanso do conhecimento das culturas africanas na Europa. Heidelberga, a 28 de Setembro de 1987. Hans J. Vermeer Professor Catedrtico da Universidade de Heidelberga

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INTRODUO: COLONIALISMO E CRIAO LITERRIA EM FRICAEnto quando eu fui para a escola, para a escola colonial, esta harmonia quebrou-se. O idioma da minha educao deixou de ser o idioma da minha cultura.

NGUGI WA THIONGO

Estas palavras, devidas a um dos maiores escritores africanos, denem o drama por que passaram muitos dos intelectuais africanos dos nossos dias. provvel que Ngugi exagere. O texto em epgrafe pertence a um livro que Ngugi publicou em 1986, Decolonising the Mind The Politics of Language in African Literature, onde ele explica as razes por que deixou de escrever em ingls, retomando sua lngua materna, o gikuyu. H uma grande dose de paixo a atravessar este livro. Ter a ver com todos os problemas polticos por que o autor passou na sua terra natal, no Qunia, levando-o priso e, por m, ao exlio. Mesmo admitindo o exagero que poder estar implcito na frase em epgrafe, algo nos surge como incontestvel: impossvel conceber a formao do que geralmente designamos de literatura africana (i. e., literatura africana em lnguas europeias) desligada do fenmeno do colonialismo. A sobrevivncia deste dependeu da formao de quadros que serviram de intermedirios entre os colonizadores, em situao de minoria, e as populaes africanas, integradas em sociedades tradicionais, perifricas, em situao de maioria. A formao de quadros implicava ensino, e ensino formal. Isto : administravase a uns tantos africanos, geralmente elementos dos estratos sociais superiores das sociedades tradicionais, um ensino que, sendo em muitos casos pretensamente a cpia do modelo metropolitano, acabava sempre por perder em qualidade. Ou porque faltavam professores devidamente qualicados ou porque havia, partida, uma preocupao explcita das autoridades coloniais em torn-lo prossionalizante, a degenerao tornava-se inevitvel. Alguns, muito poucos, dos absolventes do grau secundrio lograram deslocarse metrpole e frequentar um curso universitrio em circunstncias iguais s dos seus colegas europeus.

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Estes dois grupos de africanos letrados, motivados pela ascenso nas sociedades colonial e metropolitana, esforaram-se, num primeiro momento, por identicar-se com o invasor, com o colonialista. Alienaram-se culturalmente, constituindo ento o que geralmente se designa de lites coloniais. Contudo, olhados com desconana pelos africanos das sociedades tradicionais e sem serem aceites na sua plenitude de homens livres e pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana, apercebem-se, num segundo momento, da inautenticidade cultural e humana em que tinham cado. Esta descoberta o incio de um processo de consciencializao que passa pela reivindicao da autenticidade cultural do seu status com os meios de expresso que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se expressarem literariamente nele. Dando azo a essa faculdade, eles no s do mostras de que intelectualmente eram capazes de orientar o seu prprio destino, o que at a havia sido posto em dvida, como tambm poderiam porventura com a sua retrica sensibilizar franjas intelectuais da metrpole para a sua causa. Esta explicao sucinta da gnese das literaturas africanas em lnguas europeias aplica-se em primeira mo ao nascimento das literaturas francfonas. Os intelectuais que estiveram por detrs delas viram-se a braos com uma poltica assimilacionista que os fazia franceses de segunda classe. E so precisamente aqueles que viviam em Frana que encetaram os primeiros passos para a sua armao como homens negros e, como tal, pensantes. Eram eles que se viam confrontados a par e passo com a sua situao biolgica de homens negros numa sociedade branca, com a fragilidade ou falsidade de um discurso ocial no dia-a-dia. Fundam assim em Paris, em redor da revista Lgitime Dfense e da que lhe sucede, LEtudian Noir (cf. MBoukou, 1984), o movimento esttico-literrio que veio a ser conhecido por Negritude. O romance do escritor senegals Cheikh H. Kane, LAventure Ambigu, cuja 1. edio data de 1961, talvez seja de todos os textos representativos desta fase da literatura francfona aquele que melhor exemplica o dilema dos intelectuais africanos que, no prosseguimento dos seus estudos, se vem obrigados a absorver muitos dos valores ocidentais. Samba Diallo, a personagem principal do romance, um jovem senegals, de origem fula (peul), que se desloca a Paris para a dar continuidade aos seus estudos. O confronto com a cultura ocidental, com a cultura europeia, despoleta nele uma profunda crise de conscincia que no ser de todo alheia sua prematura morte, j na sua terra natal. Samba Diallo encarna, na verdade, o drama de todos quantos em Paris lanaram o grito da Negritude, a urgncia do retorno s origens como forma de se tornarem coerentes com a sua prpria origem biolgica e cultural. Alm disso, o carcter autobiogrco do romance por de mais evidente. Como Samba Diallo, tambm Cheikh Hamidou Kane nasceu no seio de uma famlia tradicional no interior do Senegal, foi iniciado no estudo do Coro

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durante a sua infncia e mais tarde concluiu em Paris (Sorbonne) o curso de Direito e Filosoa. Depois disso, tal como Samba Diallo, regressa ao seu pas natal. A necessidade de armar a sua Negritude no se faz sentir com tanta acuidade entre os intelectuais anglfonos. A Inglaterra privilegiara, na verdade, uma poltica de integrao indirecta, o correlato da administrao indirecta1, das populaes africanas na economia mundial. Serviu-se geralmente para tal m do seu potencial econmico, fazendo chegar at aos pontos mais recnditos a lei do capitalismo. Tal no signica, todavia, que tenha descurado os meios que haviam sido apangio dos colonialismos francs e portugus, nomeadamente a evangelizao crist. Os efeitos desta aparecem registados num dos primeiros e mais signicativos textos da literatura anglfona. Trata-se do romance Things Fall Apart, de Chinua Achebe, um dos mais conhecidos e conceituados escritores de lngua inglesa dos nossos dias. Achebe foi um dos pioneiros da literatura anglfona. O seu romance foi editado pela primeira vez em 1958. Ele tem por tema o desabar das estruturas e dos valores tradicionais entre os Ibos, povo que habita o sudeste da Nigria e do qual o autor originrio. O ruir do sistema de valores tradicionais d-se propriamente com a adeso voluntria de um grande estrato da populao ao cristianismo, enquanto o heri, Okonkwo, assiste impotente, numa atitude de anomia, a esse ruir. O assassnio de um dos representantes da nova ordem, seguido do suicdio, surgiu a Okonkwo como a nica sada possvel do seu estado de profunda desadaptao. Quer Samba Diallo, quer Okonkwo, encontram, anal, na morte uma forma de resistirem alienao, perda da sua dignidade como homens africanos. Cheikh H. Kane e Chinua Achebe, entre outros, comprovam-nos, assim, que a perda de identidade cultural tanto se faz sentir entre aqueles que se viram envolvidos pelo colonialismo francs como, anal, tambm entre os que foram colonizados pela Gr-Bretanha. Tal constatao no nega naturalmente a bvia diferena de gradao dos estados alienatrios acarretados pela perda. Entre as duas lites tambm comum o facto de a procura ou questionamento da perda de identidade cultural ter sido imediatamente seguida pela procura de uma identidade poltica, pelo incremento do nacionalismo. Este incremento veio a culminar com a independncia poltica da grande maioria dos pases africanos nos anos 60. As respectivas literaturas reectem este desenvolvimento. Os seus textos deixam de ser veculo de preocupaes de ndole puramente cultural para passarem a transmitir as preocupaes polticas dos seus autores e porventura potenciais leitores. A partir desta viragem no mais o poltico deixar de ser o tema dominante da literatura africana.1 A chamada indirect rule. Esta no se fez sentir com a mesma intensidade em todas as colnias britnicas, nem tampouco foi uniforme em todo o perodo colonial. Seria errado, anti-histrico, se assim a entendssemos. Ela foi, por exemplo, mais intensa no Qunia do que na Nigria.

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Aps as independncias essa tendncia, contrariamente ao que se deveria esperar, acentua-se. Os regimes institudos na senda do nacionalismo, os processos de modernizao ento despoletados, no corresponderam s expectativas criadas no perodo de pr-independncia. E no seio das lites que haviam pugnado pela independncia dos seus pases que nasce a frustrao. Uns tantos, desiludidos com o uso que os seus ex-correligionrios fazem do poder, afastam-se dele e criticam-nos. A literatura continua a ser a via privilegiada para a expresso desse descontentamento, embora muitos dos autores em causa acabem por no se afastar tanto do poder como inicialmente pretendiam ou como ns possamos ser induzidos a acreditar2. De qualquer forma, nessa crtica e simultaneamente nesse afastamento que as literaturas africanas encontram a sua originalidade. O olhar crtico dos seus autores tanto visa as instncias mais elevadas do poder3, como tambm o exerccio burocrtico, a corrupo dos executantes4 ou ainda a corrupo da nova burguesia5, incentivada e tolerada pelos governantes. Mesmo que a temtica do poder no esgote naturalmente as literaturas francfona e anglfona do ps-independncia, ela no deixa de ser dominante. Este facto, aliado a um aspecto messinico que, por vezes, os seus textos tomam e ainda caracterstica de a co ser geralmente construda sobre um fundo histrico, verdadeiro (coexistindo como que duas histrias paralelas, sendo uma co e a outra realidade), levou a que os crticos literrios e africanlogos tivessem visto a um particularismo estilstico que passaram a designar de realismo africano. assim que para Mohamadou Kane, um conhecido especialista destas matrias, o romance [africano] funciona como o espelho de uma sociedade e o investimento de uma misso teraputica dupla. Por um lado, ele xa-se pintura objectiva das realidades africanas, das tenses, conitos e postulaes, forjando uma nova imagem de frica e do Negro; por outro lado, ele empenha-se em tirar este ltimo da sua apatia, de uma certa resignao, para o inserir numa corrente de modernizao (Kane, 1983: 61). Esta , em sntese, a gnese, a evoluo e a situao actual da produo literria em frica. O modelo que emergiu desta breve explicao servir-nos- de pressuposto para o estudo pormenorizado das literaturas lusfonas.2 Casos h em que os textos crticos so da autoria de ex-ministros ou mesmo de ministros, como o caso do escritor congols Henry Lopes. Ele tem ocupado variadas pastas ministeriais desde 1970, tendo publicado no decorrer do mesmo perodo Tribaliques (1972), La Nouvelle Romance (Yaound, 1976), o seu primeiro romance, e Sans Tam-Tam (Yaound, 1977/81), o seu segundo romance. Este ltimo romance uma crtica cerrada queles que, em se apanhando no poder, se afastam da causa comum, da causa da revoluo. Idntica postura encontraremos na literatura angolana do psindependncia. 3 Cf. Cameron Duodu, The Gab Boys, Londres, 1967; V. J. Mudimbe, Le Bel Immonde, Paris, 1976/80; Henry Lopes, Sans Tam-Tam, Yaound, 1977/81; Chinua Achebe, Man of the People, Londres, 1966/88. 4 Sembne Ousmane, Le Mandat, Paris, 1963/84. 5 Sembne Ousmane, Xala, Paris, 1973/79; Ifeoma Okoye, Men without Ears. Ikeja, 1984.

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1. A resposta das lites africanas do espao lusfono: o processo de consciencializao literriaQuer para o indivduo, quer para o grupo, quer para uma nao, a identidade, em sentido bvio, um pressuposto [...]

EDUARDO LOURENO

As lites lusfonas devem a sua formao, como as restantes lites africanas, sobretudo a factores exgenos, queles que foram viabilizados pelo colonialismo. O colonialismo portugus em frica, porm, se, por um lado, se assemelha ao francs, rero-me sua poltica culturalmente assimilacionista, no deixa de constituir, pelo outro, um caso muito sui generis. Isto porque ele recua ao sculo XVI e porque Portugal se deniu praticamente desde essa altura como um pas intermedirio na ento nascente economia mundial. Quer isto dizer o seguinte: as lites africanas do espao lusfono tm um historial atrs de si diferente do das restantes lites africanas ou coloniais (como tambm so aquelas designadas), a comear pela sua prpria composio somtica, onde o elemento europeu desempenhou e desempenha ainda um papel de relevo. A miscigenao biolgica e cultural constituiu-se, desde os primeiros tempos, como caracterstica fundamental da presena portuguesa em frica, transformando-se no correlato do papel de intermedirio e de zona-tampo (numa perspectiva estrutural do imperialismo, cf. Galtung, 1971; Wallerstein, 1982) que a ento nascente economia mundial destinou a Portugal e ao colonialismo portugus. Ela surgiu como o nico meio de sobrevivncia desse mesmo colonialismo, fustigado, por um lado, pela resistncia dos potentados africanos e, por outro, pela concorrncia das outras potncias coloniais. Se o fraco desenvolvimento das foras produtivas e a situao interna portuguesa (a relao entre foras sociais e a disposio do poder) so responsveis por esse papel de intermedirio e consequentemente de zona-tampo, a falta de braos responsabilizou directamente a miscigenao dos colonizadores com os colonizados, assim como a prtica prematura duma poltica de assimilao cultural. Esta vericou-se no s nas sociedades insulares (Cabo Verde

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e So Tom e Prncipe), como tambm em Angola. Tentei anteriormente (Venncio, 1987; 25-30) demonstrar, na base da obra dum escritor portugus do sculo XVII A. Oliveira de Cadornega, autor de Histria Geral das Guerras Angolanas , que nessa altura a ideologia colonial no assentava numa oposio entre branco versus negro, mas sim entre cristo (o mesmo que civilizado) versus gentio. Um sculo depois a correspondncia ocial entre os governadores coloniais em Angola e o Conselho Ultramarino em Lisboa deixa antever a existncia de duas espcies de africanos: os de cales, aqueles que haviam adquirido alguns dos hbitos do colonizador, servindo-o na causa da guerra e do comrcio, e os gentios. Vemos assim que a formao das lites lusfonas antecedeu, em princpio, as restantes, mesmo que as no motivassem uma conscincia de grupo, o que s praticamente nos anos 40 e 50 deste sculo acontece, numa altura em que as outras tambm o passam a estar. No podemos, todavia, negar que o seu longo historial no tivesse registado aspectos que pesaram aquando dessa tomada de conscincia. Rero-me, por exemplo, no caso de Angola, adulterao inconsciente do portugus europeu nos sculos XVII e XVIII, assim como grande pujana do jornalismo, com grandes conotaes polticas, em ns do sculo XIX. evidente que a tal adulterao j no se verica no sculo XIX e que os homens que deram azo a este jornalismo, provavelmente os grandes beneciados da uniformizao do ensino nas colnias atravs do Decreto de 1845 do ministro liberal Jos Falco, mostram partilhar dum universo esttico-cultural que tinha muito mais a ver com a metrpole do que com Angola. Por exemplo, a colectnea de textos publicada em Lisboa, em 1901, sob o ttulo de Voz de Angola Clamando no Deserto, recolha duma srie de respostas de intelectuais angolanos a um artigo racista publicado na Gazeta de Loanda, representativa da imitao por parte desses intelectuais dos meios de argumentao dos metropolitanos. Quer isto dizer o seguinte: entre eles e um metropolitano que no partilhasse dos princpios defendidos no tal artigo no h diferenas a serem registadas. O mesmo vlido para poetas angolanos do sculo XIX, como Maia Ferreira e Cordeiro da Matta, cujas musas continuavam a ser europeias (cf. Venncio, 1987: 33-6), assim como para o poeta so-tomense Costa Alegre (1864-89). Este foi o primeiro membro das lites lusfonas a registar o confronto com uma sociedade diferente, para o caso, a sociedade lisboeta. O seu discurso ainda o de algum alienado, de algum que no se aceitava como tal, que se culpava a si, cor da sua pele, ao facto de ser mestio, para justicar os infortnios sofridos numa sociedade preponderantemente de brancos. Todavia, o contrrio tambm o prova a publicao por um intelectual angolano, Antnio Assis Jnior, dum romance nativista em folhetins no jornal luandense A Vanguarda. Os folhetins foram reunidos mais tarde (1934 ou 1935, as fontes divergem) em volume sob o ttulo O Segredo da Morta Romance de

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Costumes Angolenses, em edio local pelA Lusitana. Nativismo entendido aqui no sentido que Mhlmann (1964: 323 e segs.) lhe atribui. Ele entende-o como um movimento colectivo em sociedades colonialmente dominadas, visando uma emancipao espiritual, no tanto poltica, mas sim mais religiosa e reformista. com o nativismo, diz ainda Mhlmann, que o colonizado se comea a expressar duma maneira prpria, sendo ento o nativismo como que uma pr-fase do nacionalismo, este j como um movimento da intelligentsia. H, na verdade, ao longo do romance nativista de Assis Jnior um constante recurso superstio como alternativa da ausncia de valores e normas dum mundo ideolgico em transformao, a saber o da pequena-burguesia africana, donde mais tarde sairo muitos dos que ho-de encetar os primeiros passos para a consciencializao literria e nacional em Angola. A posio que Assis Jnior ocupa nas letras angolanas , embora com outros diapases que teremos a oportunidade de ver em pormenor, ocupada em Cabo Verde por Eugnio Tavares e Pedro Cardoso, tidos como detentores dum discurso precedente do da Claridade, o movimento iniciador da conscincia literria em Cabo Verde. Manuel Ferreira (1986: LXXVII) chega mesmo a ver, com reticncias, na obra do jovem Pedro Cardoso um certo nativismo1. Resumindo: embora apenas nos anos 40 e 50 deste sculo se possa falar duma consciencializao das lites lusfonas como grupo social, quando as outras tambm o passam a estar, no deixa de ser verdade que o seu longo historial as particulariza, mesmo que ele no tenha sido congruente ou linearmente evolutivo. Que os homens dos anos 40 e 50 tivessem presentes as experincias positivas desse historial, no pode ser armado ou, pelo menos, problemtico arm-lo; mas que eles zeram a sua socializao em sociedades de alguma forma inuenciadas pelas experincias positivas desse historial, j o menos. 1.1. A reivindicao poltica em segundo plano, i. e., a reivindicao cultural como intencionalidade textual primeira O livro de poemas de Jorge Barbosa Arquiplago, publicado em 1935, e o primeiro nmero da revista de arte e letras Claridade, sado em 1936, publicaes fortemente inuenciadas pelo modernismo brasileiro2, parecem constituir as primeiras manifestaes duma consciencializao literria, cultural, nas ex-colnias portuguesas em frica. Sem dvida que assistimos, quer com o livro de Barbosa, quer com a revista, a um ncar de ps na terra dos intelectuais cabo-verdianos, que o mesmo ser dizer que assistimos s primeiras manifestaes da cabo-verdianidade. Por este conceito entendo a mundividncia, a Weltanschauung do homem cabo-verdiano,Ao que parece, Manuel Ferreira emprega a expresso nativismo no sentido de variante cabo-verdiana de provincianismo. Ela existir na cultura cabo-verdiana, pelo menos, desde 1913. Cf. Davidson, 1988: 63. 2 Cf. entrevista com Manuel Lopes, um dos fundadores da Claridade, in Anexo. Nela testemunha M. L. o quanto a literatura portuguesa inuenciou tambm o seu grupo. Menciona, nomeadamente, as revistas Presena e Diabo.1

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sobretudo do intelectual, construda sobre a interpretao que ele faz da realidade material e humana que o rodeia. Trata-se, no m, dum conceito que apresenta anidades com o que a antropologia cognitiva entende por cultura, reduzindo-a ao acto cognitivo. Barbosa que, conjuntamente com Baltasar Lopes, Manuel Lopes e M. Velosa (cf. Lopes Filho, 1984: 16-21), fundava tambm na altura no Mindelo a revista Claridade, d-nos em seu livro a primeira e talvez a mais completa verso de caboverdianidade. Com ela inuenciar no s os da sua gerao, como tambm geraes vindouras. Barbosa comea com a descrio (o mesmo que interrogao) geogrca do arquiplago no poema Panorama: [Destroos de que continente, de que cataclismos, de que sismos, de que mistrios?], passando descrio histrica (poemas Panorama e Ilhas), analisando depois a realidade socilogica (poemas Ilhas e Rumores), no deixando de levantar o drama da ausncia de chuva (poema A terra) em consonncia com o problema dos recursos econmicos (poemas A terra e Rumores), chegando questo da autenticidade cultural (poemas Rumores, A morna e Povo) para depois passar nostalgia do mar no poema O mar: Ai o mar que nos dilata sonhos e nos sufoca desejos! Ele termina, por m, o seu livro com a aceitao dum destino (poema Destinos e, de certa forma, a grande mensagem do livro) rodeado de mar A crtica literria foi propcia em identicar esta verso da cabo-verdianidade com evasionismo, assim como do mesmo modo fez deste ltimo a temtica privilegiada do grupo Claridade. Se, ao olharmos para o romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, isto verdade, j o menos se atendermos aos romances dum outro elemento do grupo, Manuel Lopes. Uma anlise pormenorizada de Chiquinho permite-nos destacar, em primeiro lugar, o quanto de autobiogrco o romance tem. A. Carvalho (1984) chega mesmo a consider-lo como um Bildungsroman maneira dos romances ditos iniciticos da moderna literatura africana. Na verdade, o percurso de Chiquinho foi o de muitos intelectuais cabo-verdianos a partir de 1917 (cf. Sousa, 1985), altura em que se funda no Mindelo o Liceu Nacional de So Vicente, tambm designado de Liceu do Infante D. Henrique. Se at a o Seminrio-Liceu de So Nicolau, criado em 1866 (Carreira, 1984), marcava o percurso daqueles que desejassem prosseguir os seus estudos, a partir de 1917 o Liceu do Mindelo que passa a preencher esses anseios da juventude cabo-verdiana. aqui que os estudantes oriundos dum dos pontos das dez ilhas que formam o arquiplago entram em contacto no s com a vida acadmica,

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como tambm com o mundo exterior. Mindelo, cidade fundada em 1838 sob a chancela do marqus de S da Bandeira (Bolo, 1954), transforma-se ainda nessa altura com a instalao pelos Ingleses de depsitos de carvo para fornecimento das suas carreiras de longo percurso na cidade mais internacional do arquiplago. , depois da emigrao, praticamente o nico elo de ligao do arquiplago com a economia mundial. Tal ligao acabou por ter efeitos na formao dos estudantes do Mindelo, entre os quais se encontrava Chiquinho (qui o jovem Baltasar Lopes), assim como tambm acabou, mesmo que indirectamente, por inuir na fundao da revista Claridade (no B. Lopes professor e intelectual formado). Tudo isto para concluirmos que sem o Liceu do Mindelo, por um lado, e os depsitos de carvo das companhias inglesas, pelo outro, seria impensvel uma Claridade, um Arquiplago e um Chiquinho. Chiquinho diz-nos, todavia, mais ainda sobre a sociedade mindelense e a sua intelligentsia. A um segundo nvel de anlise, i. e., para alm do carcter autobiogrco e evasionista do romance3, deparamos ainda com a homologia que o autor realiza com determinadas funes inerentes textura narrativa. Rero-me a uma certa contestao poltica dirigida contra o Governo como, por exemplo, a que aparece ilustrada na tentativa de Chiquinho e Andrezinho em organizarem o movimento operrio em So Vicente. Esta contestao, de qualquer forma, nunca passa dum determinado ponto. O sistema, o colonialismo, nunca posto em causa, pelo menos explicitamente, o que vem at corroborar com a mensagem de fundo que parece dominar o romance, i. e., o mar, tal como em Arquiplago, visto como o nico meio para fugir s injustias sociais. Estas, todavia, no deixam de ser denunciadas. Se em Manuel Lopes continuamos a assistir mesma reivindicao cultural, desta vez temperada com um antievasionismo (marcante sobretudo no romance Chuva Braba e no conto O Jamaica zarpou, do romance inacabado Terra Viva), tambm verdade que a crtica poltica, em contrapartida, aparece desvanecida4. Os seus textos Um galo cantou na baa e Os Flagelados do Vento Leste so prova disso. No primeiro realiza o autor, num primeiro nvel, homologia com a postura do guarda Ti (autor da morna que d o ttulo novela O galo cantou na baa ), que descobre Roberto (marinheiro do cter de nome Grinalda) e JullAntone a fazerem contrabando. Este ltimo, apenas o desespero da sua situao nanceira (no sabia com que sustentar a famlia) o levou, por aliciamento de Jom Tudinha (o dono do cter), a praticar tal acto a soldo de patres cuja eventual priso est para alm do pelouro do guarda Ti. Este ltimo -nos apresentado como vtimaChiquinho faz-se ao mar com rumo de nor-noroeste, a proa era a Amrica (p. 300). O autor reitera hoje ainda esta posio. Explica o sucedido pelo facto de Cabo Verde ter constitudo politicamente uma periferia, onde os interesses de Lisboa j chegavam esbatidos. Nestas circunstncias, o poder colonial no constituiu oposio directa aos que, pela escrita, pelo discurso intelectual, procuravam interpretar a realidade social da sua terra. Ver entrevista in Apndice.4 3

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duma engrenagem e dum dever para com ela muito maneira do Zuz, o auxiliar administrativo no conto de Luandino Vieira Estria do ladro e do papagaio, do volume Luuanda. Ambos so vtimas duma engrenagem da qual entendiam menos do que aqueles que tinham de vigiar. Num segundo nvel de abordagem, vemos que o autor se identica mas duma forma muito desvanecida (bem mais desvanecida que em Luandino Vieira) com as vtimas dum sistema social que ele no refere directamente, i. e., o colonialismo. Os Flagelados do Vento Leste tem como personagens principais o vento que sopra do Sara, o Harmato do continente africano, baptizado em Cabo Verde por Vento Leste, e os seus efeitos: a seca. As simpatias do autor no vo tanto para as duas grandes vtimas da seca, Jos da Cruz e seu lho Leandro ( o anti-heri), mas sim para o chefe de posto de Porto Novo, na ilha de Santo Anto. Este visto como justo e equilibrado nas suas decises, propriedades com as quais o autor realiza homologia. Quer a obra dum outro escritor claridoso, Antnio Aurlio Gonalves, quer a obra posterior de Baltasar Lopes (p. ex., o conto Balanguinho ou a poesia que publicou sob o pseudnimo de Oswaldo Alcntara) ou ainda a obra dum Jorge Barbosa (p. ex., o poema Panetrio5, onde o autor se arma como o inverso do poltico), valem pela interpretao que zeram da cabo-verdianidade, entendendoa como apangio duma conscincia cultural, criticando pontualmente aspectos polticos, mas no se pode dizer que o movimento surgido da revista que fundaram e que se alimentou das suas obras, o movimento claridoso, tivesse fortes motivaes polticas. Os claridosos, atendendo aos textos que nos legaram, no puseram o sistema colonial em causa; no se assiste neles reivindicao dum estatuto nacional para Cabo Verde. Uma possvel explicao para esta ausncia encontrmo-la no facto de que Cabo Verde, ao contrrio dos restantes pases lusfonos (So Tom includo), dispunha duma populao bastante homognea quer no aspecto somtico (com predominncia para o mestio), quer no cultural (basta destacarmos o crioulo, lngua nacional para todos os estratos sociais). Na verdade, embora o intelectual cabo-verdiano tivesse usufrudo do ensino formal portugus, no se tornou, por via disso, protagonista dum dualismo cultural. Isto, no obstante os claridosos terem dado mostras em seus textos duma grande aproximao a universos esttico-culturais reinantes na metrpole. Rero-me aqui revista Presena, por meio da qual at atendendo s palavras de Teixeira de Sousa (1958) eles entram em contacto com o modernismo brasileiro. Mas, se isso verdade, tambm no o menos o facto de que entre esses intelectuais e o povo em geral (objecto da sua interpretao, o agente da cabo-verdianidade num sentido extensivo) no se punha qualquer divrcio cultural. Bem pelo contrrio.5 Era para eu/ser panetrio/Os meus escritos/teriam a verrina/as iras/e o rubro/grito da revolta/Era para eu/ser panetrio/[] Agora/com os resduos do tempo /tingindo de branco/os meus cabelos/[] j tarde de mais/para a magnca aventura.

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A terra, a iminncia da seca, parece t-los preocupado em primeiro plano. Na impossibilidade de a combaterem pelo trabalho alis aqui, nesta atitude perante o trabalho, parece estar muito do ethos no s do intelectual, mas do Cabo-Verdiano em geral resignam-se ou viram-se para o mar, para a sada que o mar pode oferecer. Quando se nega esta hiptese, ou seja, o mar, como o caso de M. Lopes em Chuva Braba, tem-se ento o trabalho como alternativa e um pouco de sorte, claro! O que disse em relao aos claridosos repete-se na gerao literria que imediatamente lhes sucede, os da gerao de 40, donde se destacou sobretudo a gura do romancista Teixeira de Sousa. Quando Manuel Ferreira (1958) chega a So Vicente nos recuados anos 40, j no encontra T. Sousa entre aqueles que discutiam ento se o seu conto Drago e eu era ou no cabo-verdiano. Na altura j estudava Teixeira de Sousa medicina em Lisboa, ramo que o ir absorver nos anos seguintes, como o comprovam os imensos artigos que publica, sobretudo como nutricionista, no boletim Cabo Verde. Apenas esporadicamente publica ento neste mesmo boletim alguma crtica literria, fazendo-o a propsito de dois concursos literrios que ento se realizam e nos quais Gabriel Mariano se arma como contista (Sousa, 1950)6. Teixeira de Sousa, mesmo de longe, no deixou de manter laos apertados com os seus colegas de gerao. No s colaborou na Flha da Academia, Certeza, a revista que estes haviam criado no Mindelo, como tambm a ele se deve o facto de Antnio Nunes ter escrito o primeiro poema no resignativo da literatura cabo-verdiana: o Poema de amanh, publicado no segundo e ltimo nmero de Certeza7. Isto foi-me confessado pelo prprio T. de Sousa em conversa que tivemos h um ano aproximadamente8. Recordo-me, diz T. de Sousa, que um dia disse ao Antnio Nunes: eu gostava que tu escrevesses um poema sobre Cabo Verde, mas que esquecesses as secas, as fomes, as mortandades, enm, as desgraas todas. Que escrevesses uma coisa herica, uma coisa pica, toda puxada para a frente, que imaginasses um Cabo Verde diferente Ele apareceu-me no sbado seguinte ento com o Poema de amanh, o seu momento potico mais alto. Nessa altura A. Nunes j havia publicado na cidade da Praia (em 1939) o seu livro Devaneios, expoente da sua fase romntica, parnasiana, e em Lisboa j frequentava, por interposio de T. de Sousa, a tertlia neo-realista do rs-do-cho do ento Caf Portugal. O Poema de amanh, se no repete a riqueza metafrica do discurso dum Jorge Barbosa, resignativo que, na verdade, no . Vejamos um excerto:6 O grosso da sua obra de data posterior. Rero-me colectnea de contos, Contra Mar e Vento, onde o conto Drago e eu foi republicado, e aos romances Ilhu de Contenda, Capito de Mar e Terra e Xaguate. 7 Aps a sada destes dois nmeros, logo esgotados porta do Liceu de Gil Eanes (como se passou a chamar o antigo Liceu do Infante D. Henrique), as autoridades coloniais proibiram a revista porque a consideraram subversiva. 8 Parte desta conversa foi publicada. Ver entrevista in Anexo.

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Mame! sonho que, um dia, em vez dos campos sem nada, do xodo das gentes nos anos de estiagem deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo [] .................... . ................................ Mame sonho que, um dia, estas leiras de terra que se estendem, quer sejam Mato Engenho, Dacabalaio ou Santana, lhas do nosso esforo, frutos do nosso suor, sero nossas E, ento, ............................................................ novas seivas brotaro da terra dura e seca, vivicando os sonhos, vivicando as nsias, vivicando a Vida! Embora Certeza se propusesse ir politicamente mais longe, a verdade que continuamos a no assistir a uma reivindicao colectiva, de grupo, de um estatuto nacional. O Poema de amanh uma excepo. Em Ilhu de Contenda, o primeiro romance de T. de Sousa aps to longo silncio, deparamos, a par da ideia bsica do homem transformador da natureza laia do neo-realismo portugus, com uma identicao estreita entre o autor e o Dr. Vicente. Esta personagem politicamente crtica, chegando mesmo a levantar a hiptese da independncia de Cabo Verde nos seus longos dilogos que mantm com o colega, j reformado, Dr. Rafael. A questo da independncia , alis, ponto de discrdia entre os dois mdicos, simbolizando, ou concomitantes com, as duas geraes literrias que tenho vindo a descrever: as posies do Dr. Rafael so, de certa forma, as dos claridosos, e as do Dr. Vicente, as do grupo Certeza. As referncias histrico-culturais do Dr. Vicente continuavam a ser, todavia, as europeias. Vejamos um excerto de dilogo exemplicativo disso: [] a lepra uma doena que sempre causou repulsa a toda a gente Ainda no se conseguiu varrer da cabea das pessoas a gura de Lzaro e tambm o som dos guizos que durante a Idade Mdia se atavam s pernas dos leprosos (p. 295). evidente que uma tal referncia, tendo em conta a sociedade cabo-verdiana, bioculturalmente mestia, perfeitamente justicvel; j no o se atendermos a um contexto mais vasto, o africano. O mesmo alheamento que o grupo dos claridosos havia votado aproximao a frica encontrmo-lo no grupo Certeza. Deparamos,

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neste ponto, com uma continuidade entre os dois grupos que corresponde continuidade que em Portugal se estabelece entre o grupo da Presena e o do neorealismo. Resumindo: para alm de Claridade ter sido evasionista ou no, para alm de Claridade e Certeza terem representado a africanidade ou no, elas foram revistas que deram expresso a movimentos literrios profundamente cabo-verdianos. Marcaram o despertar do intelectual cabo-verdiano, o que vale tambm por ter sido, nesse propsito, pioneiro na frica de lngua ocial portuguesa. Alis, no creio que o contrrio fosse possvel. O Cabo-Verdiano havia desempenhado em relao s outras colnias portuguesas um papel intermedirio entre colonizadores e colonizados, pelo que partida estaria em melhores condies de virar o bico ao prego, o que, na verdade, fez. Lembremo-nos do papel de Amlcar Cabral quanto fundao do Movimento Popular para a Libertao de Angola (MPLA) ou ainda a fundao do Partido Africano da Independncia da Guin e Cabo Verde (PAIGC)9. Enquanto em Cabo Verde, que o mesmo ser dizer no Mindelo (em Cabo Verde, a capital cultural, por excelncia), se assiste, no perodo que imediatamente se sucede emergncia do grupo Certeza, a um marasmo, se no intelectual, pelo menos de publicaes 10, manifestam-se nessa altura intelectuais africanos de lngua portuguesa em dois outros centros urbanos do imprio: em Luanda e em Lisboa. Eles orientam, ao contrrio dos intelectuais cabo-verdianos, as suas manifestaes no sentido de vencerem aquele que ento lhes surgia como o principal obstculo armao como homens de plenos direitos em meios sociais estranhos sua constituio somtica e cultural. Esta preocupao tanto se manifesta em intelectuais brancos como em negros ou ainda em mestios. Tais manifestaes so passveis de agrupamento em duas categorias denidas consoante o jogo de duas variveis: uma de ordem geogrca e a outra de ordem rcica. Enquanto de Lisboa so sobretudo as vozes de intelectuais de cor, a estudantes, que mais se fazem ouvir, em Luanda sobressai o protesto de intelectuais brancos. Quer isto dizer o seguinte: enquanto os de Lisboa daro incio ao seu processo de consciencializao e simultaneamente de libertao pelo reconhecimento da incapacidade de sobrevivncia somtica numa sociedade de brancos, os segundos consciencializam-se porque reconhecem a incapacidade de como brancos se armarem numa sociedade preponderantemente formada por negros. A consciencializao destes ltimos assim simultaneamente a alienao da sua origem (cf. Venncio, 1987; 66 e segs.).9 Cumpre, alis, nesta qualidade toda uma ideia que j em 1949 surge representada no boletim Cabo Verde atravs de artigos de Fausto Duarte, Luiz de Sousa e Amlcar Cabral. Eles deram realce s anidades histricas existentes entre a Guin e Cabo Verde. 10 Entre o n. 7 de Claridade, sado em 1949, e o n. 8, sado em 1958, vo nove anos de interregno.

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Esta dicotomia explica o carcter que os dois processos de consciencializao tomam. Enquanto o grupo de Lisboa, formado por intelectuais oriundos doutras colnias, para alm de Angola (exceptuando Cabo Verde), se sentir bastante ligado ao pan-africanismo, por um lado, e ao movimento Negritude, com sede em Paris, pelo outro, o grupo de Luanda, de motivaes polticas mais concretas, circunscrito ao espao poltico de Angola, sentir-se- mais ligado ao modernismo brasileiro e porventura [via Castro Soromenho?)] ao neo-realismo portugus. Desde 1911 que se faziam ouvir em Lisboa as vozes pan-africanistas, primeiramente com o peridico de vida efmera O Negro, rgo ocial do Partido Africano, e um ano depois com a fundao da Junta da Defesa dos Direitos de frica, que em 1920 se transforma na Liga Africana. Em 1923 reparte Lisboa com Londres um congresso pan-africanista, numa altura em que este movimento j se aproximara, sob inuncia de George Padmore (cf. Grohs, 1967: 173, e Mouralis, 1981: 471 e segs.), das teses marxistas, do sovietismo , acentuando ento j o carcter fundamentalmente econmico da colonizao. Em 1942 publica o sotomense Francisco Jos Tenreiro, ento ainda estudante, o seu livro Ilha de Nome Santo, como que o primeiro grito de africanidade, propriamente dita, dos intelectuais africanos de lngua portuguesa. Trata-se de uma africanidade que prescreve os princpios pan-africanistas (cf. os trs poemas soltos: Epopeia, Exortao e Negro de todo o mundo), mas que tambm no deixa de estar na continuidade dum poeta seu conterrneo, j aqui frisado, Costa Alegre, embora mais de meio sculo os separe. Aps a publicao em Paris, em 1948, por Senghor, da Anthologie de la nouvelle posie ngre et malgache, tida como o meio pelo qual as ideias negritudinistas chegam a Lisboa, assiste-se no s crescente inuncia de poetas francfonos na obra potica de Tenreiro (cf. Martinho, 1982), como tambm desta altura a primeira antologia de poesia negro-africana de lngua portuguesa, organizada por Tenreiro e pelo angolano Mrio Pinto de Andrade, a saber: Caderno de Poesia Negra de Expresso Portuguesa, editado em Lisboa em 1953. Dele excluem os seus organizadores os poetas cabo-verdianos, porque justicava Tenreiro em Nota nal a poesia das ilhas crioulas, com rarssimas excepes, no (traduzia) o sentimento da negritude que a razo-base da poesia negra. Entre os poetas antologiados encontrava-se o angolano Agostinho Neto, se no o maior representante da Negritude no espao africano de lngua portuguesa, pelo menos o poeta lusfono com maior reconhecimento internacional. Dois poemas seus so antologiados: Aspirao e Criar. Se com o primeiro poema, invocando todo o homem negro que no s em Angola era objecto de discriminao econmica, ele se inscreve na problemtica pan-africanista/negritudinista, com o segundo poema inscreve-se numa rbita mais universalista, cantando no s o homem negro explorado, mas invocando todos os homens a quem negada a condio de o serem. Paralelamente, medida em que incitava criao de

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gargalhadas sobre o escrneo da palmatria, de rmeza no vermelho sangue da insegurana ou ainda incitando simplesmente criao de amor com olhos secos, introduzir na literatura angolana o esprito de combatividade, o messianismo11, a defesa duma utopia, que tanto ir marcar a literatura angolana, inserindo-a com isso, com essa caracterstica, entre as literaturas africanas mais originais, fazendo-a cumprir o principal do realismo africano. O seu discurso torna-se assim o prenncio daqueles textos, cuja intencionalidade primeira ser a reivindicao dum estatuto nacional, no que Angola, sociologicamente falando, toma a primazia em relao s restantes colnias. Ao grupo de Lisboa, para alm de Francisco Jos Tenreiro e Agostinho Neto, ter ainda pertencido um poeta posteriormente revelado, Vasco Cabral. Oriundo da Guin-Bissau, ao contrrio dos poetas cabo-verdianos, sentir-se- tocado pela problemtica do intelectual africano na Europa, pela problemtica do negro em sociedade de brancos, como o prova o seu poema frica! Ergue-te e caminha, datado de 1955: Me frica! Vexada Pisada Calcada at s lgrimas! Cona e luta E um dia a frica ser nossa! O Caderno de Poesia Negra de Expresso Portuguesa deu ainda expresso a duas poetisas, uma de So Tom, Alda (do) Esprito Santo, com o poema L no gua Grande, e outra de Moambique, Nomia de Sousa, presente com dois poemas: Magaa e Deixa passar o meu povo. Ambas pertencem ao grupo de Lisboa (ou podem ser consideradas como tal). A contribuio de Nomia de Sousa, contudo, e com especial ateno para o poema Deixa passar o meu povo, aproxima-se mais da problemtica integradora deste grupo, a mesma problemtica que o havia orientado para a defesa das teses negritudinistas. A saber: a reivindicao do direito de se poder ser negro11 Ver, a este propsito, M. Antnio, 1987: 2-3. M. A. defende neste artigo que o messianismo de Neto estava intimamente ligado sua formao evanglica.

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Enquanto me vierem de Harlem vozes de lamentao diz a poetisa: e meus vultos familiares me visitarem em longas noites de insnia, no poderei deixar-me embalar pela msica ftil das valsas de Strauss. Escreverei, escreverei, com Robeson e Marian gritando comigo: Let my people go, OH DEIXA PASSAR O MEU POVO. O grupo de Luanda, em contrapartida, sentiu-se desde o princpio mais motivado para problemas sociais inerentes ao espao angolano. Muito maneira do que havia acontecido com os modernistas brasileiros e o grupo dos claridosos, procurou o Movimento dos Novos Intelectuais de Angola assentar os ps em Angola, enaltecer as coisas da terra. Viriato da Cruz e Antnio Jacinto sero talvez os dois elementos do grupo que mais se armaram, que mais informaram a angolanidade. Por angolanidade, conceito que apresenta paridade com o de cabo-verdianidade, entendo o resultado da maneira muito especca de os intelectuais angolanos, a comear pelos Novos Intelectuais, de os dirigentes polticos, apreenderem o espao geopoltico herdado do colonialismo e a consequente predisposio de o quererem transformar em espao nacional por meio da sua (des)alienao em relao s sociedades perifricas, s sociedades tradicionais. Angolanidade encontra assim equivalncia no que Manuel Rui (1982), escritor e um dos tericos polticos angolanos mais audazes, designa de conscientizao da nacionalidade (de Cabinda ao Cunene) e do Estado internacionalmente reconhecido. A diferena entre cabo-verdianidade e angolanidade, ambos os conceitos denindo a mundividncia duns tantos sobre uma maioria, que, dada a heterogeneidade cultural e humana existente no espao herdado do colonialismo em Angola, coloca-se a angolanidade ainda muito sob uma dimenso prospectiva (cf. Venncio, 1987: 121). Enquanto a cabo-verdianidade existe, a angolanidade, diria, vive-se e amanh! poder ser bem diferente do que hoje se vive e se prev. em funo desta mesma angolanidade que o grupo de Luanda, composto na sua maioria por brancos ou mestios, ir dar incio ao seu processo (des)alienatrio numa sociedade maioritariamente de negros. Viriato da Cruz legou-nos um dos poemas lricos mais felizes de toda a literatura em lngua portuguesa. Rero-me a Namoro, onde descreve os infortnios de amor dum habitante dos subrbios, dos

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musseques12 de Luanda, reconstruindo elmente o universo esttico-cultural dos que a habitavam, confrontados com uma situao de dualismo cultural e lingustico, mas que no deixavam de apresentar uma certa estabilidade na apropriao do idioma e valores culturais do colonizador. esta mesma estabilidade, com foros de fenmeno colectivo, que Viriato da Cruz to bem traduziu para o seu poema, particularmente feliz na descrio que o apaixonado faz da mulher que ama, recorrendo-se de imagens telricas do seu quotidiano, tais como: Sua pele macia era sumama /da cor do jambo. A diferena, creio que Viriato da Cruz a deixou bem marcada, entre ele e esse habitante do musseque luandense apenas uma: ele sabia ler, conhecia bem o idioma do colonizador, manobrando-o conscientemente em prol da sua (des)alienao. Ele era um intelectual, enquanto o outro no. O ideal para Viriato da Cruz (e para os da sua gerao, como veremos) seria, anal, que ambos partilhassem do mesmo universo esttico-cultural. Era esse o nvel, o da interiorizao (inconsciente/consciente) do espao luandense, do espao crioulo, que os identicaria, os uniria, permitindo-lhes uma vivncia comum da angolanidade em prol duma ptria que tinha ainda de ser criada. Outros nomes seriam de apontar aqui a propsito de Luanda como centro difusor de ideias pr-nacionalistas. Nomes que estavam ligados ao Departamento Cultural da Associao dos Naturais de Angola e que em 1951 daro estampa a revista Mensagem, da qual saram quatro nmeros (do 2 ao 4 num mesmo caderno). Entre esses nomes encontrava-se o de Mrio Antnio Fernandes de Oliveira, mais conhecido por Mrio Antnio, o de Antnio Cardoso e o de Maurcio de Almeida Gomes, que exortou o Movimento dos Novos Intelectuais a forjar a poesia de Angola! [] Uma poesia nossa, nossa, nossa! cntico, reza, salmo, sinfonia, que uma vez cantada, rezada, escutada, faa toda a gente sentir, faa toda a gente dizer: poesia de Angola!A origem etimolgica deste termo ainda uma incgnita. Um documento de 1892 menciona os musseques como terras de agricultura. No encontrei na documentao referente aos sculos XVII e XVIII igual meno, embora se saiba que a referida rea limtrofe da cidade de Luanda estava nessa altura ocupada com hortas e pomares. Cf. Venncio, 1983: 75.12

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Todos eles experimentam um processo de (des)alienao idntico ao de Viriato da Cruz. Processo de (des)alienao que partida foi favorecido pelo prprio colonialismo portugus, i. e., Luanda, fundada na segunda metade do sculo XVI, tendo sido desde essa altura a cabea duma sociedade culturalmente crioulizante, funcionando em relao ao todo do espao angolano como uma ilha [para utilizar a expresso de Mrio Antnio (1968)] crioula, forneceu aos seus intelectuais um millieu onde a diferena entre eles e o povo, quer o dos subrbios urbanos, quer o do interior prximo, se apresentava esbatida. Ambos, o intelectual e o povo, experimentam, embora em diferentes gradaes, o mesmo processo de aculturao, viabilizando-se dessa forma mais facilmente uma identicao entre autor e universo narrado, entre autor e rcit, como Viriato da Cruz no poema j mencionado o comprovou. Explica-se assim no s o carcter pioneiro de Luanda, a par do Mindelo e de Lisboa, no processo de desalienao cultural dos intelectuais lusfonos, como tambm se explica a crescente motivao poltica que vai invadindo os textos que eles produzem. A sua sobrevivncia como angolanos estava, de qualquer forma, para alm dos limites da sociedade crioula, conns que s seriam alcanados atravs da defesa duma utopia localizada para alm da textura fsica, sintctica ou semntica do texto, como veremos. Resumindo: o processo de desalienao das lites urbanas na frica lusfona tem fundamentalmente lugar em trs centros urbanos: Mindelo, Lisboa e Luanda. Enquanto os movimentos literrios mindelenses se pautaram pela reivindicao duma autenticidade literria e cultural cabo-verdiana, muito no gnero do modernismo brasileiro, com uma motivao poltica muito remota, perlharam os estudantes africanos em Lisboa os ideais pan-africanistas e negritudinistas, cumprindo uma consciencializao literria por reaco a uma sociedade maioritariamente branca. Na medida em que este grupo acompanhava os acontecimentos luandenses, o despertar dos intelectuais luandenses, e que Lisboa, ao contrrio de Paris, era a capital dum imprio colonial que subsistia apoiado num regime autoritrio, no foram as suas manifestaes completamente desprovidas duma motivao poltica, como parece que foi o negritudinismo parisiense. Em Luanda, embora o despertar dos Novos Intelectuais se tivesse pautado, no princpio, pela experincia dos intelectuais nordestinos brasileiros, como o zeram os intelectuais mindelenses, dadas as condies especcas em que se pretendiam inserir como angolanos e como poetas e escritores, cedo se envereda para uma reivindicao poltica, para um pr em causa do sistema colonial.

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1.2. A reivindicao poltica como intencionalidade textual primeiraNs vamos em busca de luz os teus lhos Me

AGOSTINHO NETO

Luanda toma a primazia quanto produo dos primeiros textos literrios com uma intencionalidade poltica determinada. So os mesmos homens da revista Mensagem que encaminharo os seus textos cada vez mais para uma reivindicao poltica. Dois factores explicam, de certa maneira, este pioneirismo: a agudizao da represso colonial e a necessidade de se enveredar pela luta armada, da resultante, assim como a existncia na sociedade crioula dum potencial pblico leitor. Quem diz potencial pblico leitor dir, perante tais circunstncias, potenciais guerrilheiros. Um dos poetas que dar progressivamente ao seu discurso uma tonalidade poltica concreta, anticolonial, Antnio Cardoso. Ele foi talvez o poeta angolano que mais de perto seguiu os passos de Agostinho Neto quanto ao tom didctico, messinico, to caractersticos do discurso potico deste e, como vimos, do que hoje se designa de realismo africano. Neto exortava a criar com os olhos secos; Cardoso, no seu poema intil chorar, exortava a que se no chorasse, porque Se choramos aceitamos, preciso no aceitar. Cardoso um poeta branco, como tambm branco o j referido Antnio Jacinto e um outro poeta, mas sobretudo escritor, que passa a assinar sob o pseudnimo de Luandino Vieira. Quer Cardoso, quer Luandino estreiam-se na revista Cultura II, cuja publicao se inicia em 195713. Um outro poeta, Arnaldo Santos, mestio, encontra nesta revista tambm uma oportunidade de publicao. (Re)inicia-se entretanto em Lisboa, em 1958, a publicao do Boletim da Casa dos Estudantes do Imprio, onde iro colaborarCultura I havia sido publicada de 1945 a 1951. Tinha um cariz poltico indenido, no que contrasta com a Cultura II.13

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muitos dos que haviam dado vida s revistas Mensagem e Cultura II e que, doravante, para melhor compreenso passarei a designar de gerao de 50. Embora o Boletim ..., anterior e posteriormente designado de Mensagem, desse guarida gerao de 50, a esses autores politicamente motivados, detentores dum discurso que j poderia ser apelidado de nacionalista, nota-se, na verdade, que os seus organizadores continuavam presos s teses negritudinistas. Isso torna-se explicvel, em primeiro lugar, porque em Lisboa, a capital do imprio, se concentravam estudantes das diferentes colnias (pelo que no teria muito sentido a tomada de posies polticas particulares a qualquer uma das colnias); em segundo lugar, porque esses estudantes continuavam, na qualidade de homens de cor, a confrontar-se com uma sociedade diferente; em terceiro lugar, porque, tratando-se de estudantes preocupados com a explicao terica dos fenmenos sociais que mais directamente lhes tocavam, tais como colonialismo, superioridade da civilizao ocidental, etc. , encontram nas teses negritudinistas, de fcil acesso, a resposta ao que procuravam (cf. Venncio, 1987: 81-3). Registe-se, de qualquer forma, a intensicao das relaes entre os dois centros de difuso esttico-literria nesta altura mais importantes: Luanda e Lisboa. Entre os colaboradores destas revistas, quer das angolanas, quer da(s) lisboeta(s), Luandino Vieira, depois de Agostinho Neto, quem leva mais longe a ruptura com o universo esttico-cultural da metrpole. Iniciando-se no domnio da narrativa com dois pequenos contos ainda esteticamente indenidos, Duas Histrias de Pequenos Burgueses, onde o niilismo queirosiano ainda se faz sentir, passa depois a uma colectnea de contos, j esteticamente amadurecidos, a que d o ttulo de A Cidade e a Infncia, cuja 1. edio, datada de 1957, com a chancela dos Cadernos Nzamba, foi quase toda apreendida pela polcia poltica portuguesa, a PIDE (Polcia Internacional de Defesa do Estado). Nestes textos inicia o autor aquilo que nos anteriores apenas anunciara: a sua alienao como branco num mundo africano e a sua desalienao como escritor que se pretendia angolano em relao ao universo esttico-cultural metropolitano. No s o registo do falar dos habitantes dos musseques luandenses, como Viriato da Cruz to bem registara e descrevera, que est em causa, mas tambm a adopo de formas de narrar da literatura oral tradicional. A aproximao a estas formas permitia ao escritor ultrapassar as barreiras urbanas, as barreiras da alfabetizao, i. e., a leitura em voz alta duma obra sua por algum que poderia substituir a funo dos mais velhos nas sociedades tradicionais, despertaria o interesse mesmo daqueles que a no podiam ler por serem analfabetos. Se em A Cidade e a Infncia Luandino Vieira descreve a sua prpria consciencializao, a partir de A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e Vidas Novas procura, voltando-se agora para fora, a consciencializao poltica de seus conterrneos. So textos dum discurso muito directo, pouco metafrico,

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no deixando, contudo, de ser esteticamente conseguidos. Deles ressalta uma moral poltica a ser seguida por aqueles que se predispusessem a lutar contra o colonialismo, havendo mesmo referncias a um movimento, a uma organizao poltica clandestina, que integrava (ou deveria integrar) essa luta. Esta organizao poderia muito bem ser o MPLA, movimento formado em 1956 (Barros, 1977: 61 e segs.) a partir da unicao de dois partidos: do PLUA (Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola) e do PCA (Partido Comunista de Angola), ao qual Luandino, assim como Antnio Cardoso e Antnio Jacinto, ter estado ligado. Em A Vida Verdadeira de Domingos Xavier, referindo um caso verdico passado durante a construo da barragem de Cambambe (localizada cerca de 200 km a sudeste de Luanda, ainda na sociedade crioula), Domingos Xavier, tractorista nessas obras de construo, prefere a morte a denunciar o seu contacto poltico mais prximo, o engenheiro Silvestre, como o autor, um branco que se reivindicava angolano. Em Vidas Novas so vidas que renascem com o comprometimento poltico por uma Angola a ser libertada, so angolanos que nascem do sacrifcio da luta. Uma leitura global dos contos permite-nos extrair as seguintes normas de conduta poltica, da conduta do bom angolano ou mesmo de todo o angolano, j que este se torna praticamente impensvel fora duma dimenso poltica prescrita por essas normas. So elas (cf. Venncio, 1987: 92-3): 1) a militncia poltica acima de qualquer solicitao de ordem material; 2) a lealdade poltica acima de qualquer diviso rcica ou tnica. Em Luuanda, colectnea de trs pequenas novelas escritas em 1963, talvez a obra mais acabada de Luandino Vieira, premiada em 1965 pela Sociedade Portuguesa de Escritores, assim como em trabalhos posteriores14, j no se infere, num primeiro plano, dos respectivos rcits uma mensagem poltica. O autor deixa de realizar homologia com o bom militante poltico, para passar a identicarse ou, pelo menos, a nutrir simpatia por aqueles que, mesmo estando ao servio das autoridades coloniais (como o j aqui referido auxiliar Zuz15), o fazem inconscientemente e no deixam de ser angolanos no seu ntimo. A consolidao do sentimento de ser angolano, como j havia acontecido com A Cidade e a Infncia e no m acontece com muitos outros da gerao de 50 (Antnio Jacinto, in O grande desao; Toms Jorge, in Infncia), d-se j no na militncia poltica, mas sim na infncia. Esta surge ao contrrio do que acontece com a representao da infncia/adolescncia na literatura moambicana16 como o tempo da igualdade,14 Tais como: No antigamente da vida, Joo Vncio Os Seus Amores, Lourentino, Dona Amnia de Sousa Neto e Eu, Jos Luandino Vieira, Macandumba Estrias e Ns, os do Makulusu. 15 Personagem da Estria do ladro e do papagaio, do volume Luuanda. Ele foi, neste texto, comparado com o guarda Ti do conto O galo cantou na baa, do escritor cabo-verdiano Manuel Lopes; conto publicado in O Galo Cantou na Baa. 16 Cf. o conto de Lus B. Honwana Ns matmos o co tinhoso, inserido no volume com o mesmo ttulo. Embora os protagonistas deste conto convivessem assiduamente uns com os outros, cada um tinha conscincia do que era somaticamente e do estatuto social que isso lhe atribua na sociedade colonial.

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do anti-racismo. na infncia, por exemplo, que Joo Vncio, heri da novela do mesmo nome, se apaixona por Mimi, um rapaz branco. Esta utopia perde-se com o avano da cidade de asfalto, com o avano do capitalismo. No por acaso que Lourentino, in Lourentino, no quer que deitem abaixo a mafumeira (ceiba pentandra) da sua infncia. Esta concepo de infncia torna-se inexplicvel fora do contexto do colonialismo portugus em Angola e da capitalizao por ele viabilizada, fazendo-se sentir esta mormente em Luanda, cidade que, durante a transformao dos Novos Intelectuais de crianas em adultos, regista, se no o maior, pelo menos dos maiores surtos evolutivos da sua secular existncia custa da chegada de novas levas de imigrantes. Benguela, culturalmente a segunda cidade mais importante em Angola17, com fama de ter sido a ptria de degredados polticos portugueses, no foi indiferente s transformaes que se operavam em Luanda a nvel da literatura e da poltica. Os poetas Aires de Almeida Santos e Ernesto Lara Filho comprovam-no. Este ltimo lana de Luanda em 1961 um apelo de solidariedade ao seripipi (um pssaro) de Benguela, i. e., capacidade de empenhamento poltico do Benguelense, melhor ainda, sua angolanidade: Eh Seripipi de Benguela escuta aquela cano. Parece pardal de Luanda cantando na escurido. Levanta voo, seripipi do galho desta priso. Leva no bico uma esperana ao ninho do teu irmo. Na verdade, o ano 1961 uma data histrica para o MPLA18. Foi nesse ano, a 4 de Fevereiro, que ele iniciara a luta armada, atacando uma priso e uma esquadra de polcia em Luanda. Como retaliao, o regime colonial deu azo ao seu carcter repressivo, organizando rusgas nos arredores da cidade e prendendo um nmero elevado de angolanos tidos como nacionalistas. em socorro destes, a ttulo de solidariedade, que Ernesto Lara Filho eleva o seu canto.17 A cidade foi fundada no sculo XVII. Foi inicialmente cabea duma segunda sociedade crioula que, entretanto, acabou por se fundir na que Luanda desempenhava papel central, transformando-se ento na segunda cidade mais importante da sociedade crioula que tenho vindo a referir. 18 Digo para o MPLA e no para Angola porque a 15 de Maro do mesmo ano a FNLA (Frente Nacional para a libertao de Angola), ento UPA (Unio dos Povos de Angola), iniciava tambm a luta armada.

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Um ano depois, j de Paris, dava a conhecer que o seripipi fugiu da gaiola Ouve-se vibrante no mato o canto da libertao, ou seja: a luta armada havia comeado e com ela vivia-se j a liberdade. Em Benguela realizou tambm Carlos Pestana (pseud. Pepetela) a sua socializao. Estreia-se em 1962 com um conto inserido na antologia Novos Contos de frica, organizada e editada por Garibaldino de Andrade com a chancela das clebres Publicaes Imbondeiro do Lubango (ento S da Bandeira). , todavia, na guerrilha, entre as leiras do MPLA, que se arma como escritor, como um dos melhores escritores angolanos, como um bom escritor africano, ao escrever em 1971 o romance Mayombe. Se a participao na guerrilha ter permitido ao autor a antecipao da libertao, ao escrever Mayombe antecipou o tempo posterior independncia. aqui que este romance se valoriza, ultrapassando a contingncia que geralmente acompanha a chamada literatura de guerrilha, que no s no poeta Costa Andrade encontra um representante, como tambm no prprio Pepetela com a narrativa As Aventuras de Ngunga. Mayombe tem por palco a oresta do mesmo nome no enclave de Cabinda e a aco desenrola-se volta duma base militar do MPLA. Em texto anterior (Venncio, 1987: 117-8) coloquei a diferena entre este romance e a narrativa As Aventuras de Ngunga (a passar-se na Regio Leste da guerrilha do MPLA) no facto de propriedades como honestidade e simplicidade, com as quais o autor realiza homologia, no estarem personicadas numa s personagem, como o caso de Ngunga, mas estarem disseminadas, pelo menos, em duas personagens. So elas Teoria, o professor da base, e Sem Medo, o comandante. Uma outra caracterstica que valoriza este romance o niilismo representado por Sem Medo, em relao ao qual o autor no completamente indiferente. Pelo menos, utiliza-o para se opor s propriedades representadas pelo Comissrio, que luta com o propsito de mais tarde, com o MPLA no poder, vir a usufruir pessoalmente desse sacrifcio. Sem Medo, pelo contrrio, entrega-se totalmente causa da luta, antecipa com isso a sua libertao e isso basta-lhe. A sua morte, no m do romance, poder ento signicar o m duma utopia, o m de tudo aquilo que enaltecia a luta e a procura da angolanidade, o m da liberdade por que se lutava. Sem Medo (tal como o autor?) ama demasiado a liberdade para a atraioar. Ela existe enquanto por ela se luta. Deixando de haver a necessidade desta luta, corre-se o risco de a perder, nomeadamente ao deixar-se prender pelas solicitaes do poder e do bem-estar material aps a independncia. A liberdade, a causa da sua luta, a angolanidade, esto muito para alm dessas solicitaes de ordem imediatista. Sem Medo no tinha ento outra alternativa seno

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morrer. Fazendo-o morrer, actualiza o autor o seu texto, na medida em que critica implicitamente algumas tendncias carreiristas e desviadoras da causa comum que existiro no seio do MPLA. Para alm da explorao desta dicotomia ideolgica em que uma das partes nos surge como impeditiva da angolanidade, d ainda o autor vida (atravs dos restantes guerrilheiros da base) a duas outras barreiras a serem vencidas: o tribalismo e o racismo. O realce dado superao destes dois ltimos fenmenos faz dele um representante, praticamente o nico entre os escritores lusfonos, do realismo africano. bem provvel que o empenhamento dado por Pepetela superao desses dois fenmenos, problemtica que como veremos continuar a preocup-lo em trabalhos posteriores, tenha a ver com a sua prpria fragilidade, com a necessidade sentida pelo autor de ultrapassar os limites do seu prprio enquadramento somtico e cultural, no m, a sua qualidade de angolano, e eventualmente de escritor, branco numa sociedade onde a maioria de raa negra. Com este esforo ele d continuidade ao messianismo que aparece em Agostinho Neto, em Antnio Cardoso e em Luandino Vieira (A Vida Verdadeira de Domingos Xavier e Vidas Novas). Esta uma dimenso muito prpria da literatura angolana, particularizando-a no contexto das literaturas africanas em lngua portuguesa. Dessa dimenso deriva grande parte da sua criatividade. Quase que poderamos dizer que a literatura angolana, entre essas literaturas, a mais africana. Explicao para tal encontramos talvez na oposio entre a sociedade crioula ou sociedade central19, como facto consumado, e o dualismo cultural que envolve os seus elementos, fenmeno ainda em transformao e passvel de ser guiado para um determinado sentido. A defesa duma utopia por parte do topo desta sociedade crioula resulta assim como a soluo para eliminar as contradies internas prpria sociedade e as contradies que a opem ao todo do espao geopoltico angolano. Perante este quadro deixa de ter importncia para o nosso propsito aquela literatura produzida socapa durante a clandestinidade dos anos 60 e princpios dos anos 70 em Luanda e noutros pontos de Angola e de cujos textos se pode inferir uma referncia situao poltica. Rero-me a um Joo-Maria Vilanova, pseudnimo de Joo de Freitas(?)20, que nos anos 70, aps uma dcada quase silenciada, a de 60, trouxe, a par dum outro poeta, Ruy de Carvalho, como que uma revoluo esttica s letras angolanas. Pelo menos, trouxe uma inovao em relao ao paradigma sado da produo literria dos anos 50. O seu belo poema Kazanji, includo no volume 12,819 Designao de Franz-Wilhelm Heimer (1980). O conceito de sociedade central, diferentemente do de sociedade crioula ou ainda sociedade colonial, tem um fundamento econmico. 20 Ainda uma incgnita a verdadeira identidade de Joo-Maria Vilanova.

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or que na lavra alastra e lesta no kimbo adestra or sua palma furor acesa serena a calma no arimbo NAPALM. O sujeito potico, simulando uma situao que seria prpria da literatura de guerrilha, est colocado do lado daqueles que combatem o colonialismo. Em David Mestre (pseud. de Lus da Mota Veiga), O Pulmo, pelo contrrio, a resistncia dentro do prprio sistema colonial que descrita. Em Manuel dos Santos Lima, As Lgrimas e o Vento, romance publicado em 1975, com aco a decorrer no incio da luta armada, descrevem-se os dois lados da luta, i. e., a personagem principal comea por estar integrada no Exrcito Portugus para depois passar para o lado da guerrilha. Resumindo: a evoluo do texto intencionalmente poltico na literatura angolana antes da independncia, tendo a globalidade da literatura africana como paradigma, tem em Agostinho Neto, em Luandino Vieira e em Pepetela os impulsos mais marcantes. Como denominador comum nessa evoluo destaca-se o messianismo, a defesa duma utopia, pela qual tem de passar a reivindicao da angolanidade e por onde passa o que a literatura angolana tem de mais original, cumprindo o contexto do realismo africano. O desvio ao padro lingustico do portugus europeu como necessidade de dar expresso a um mundo semntico diferente, a uma dimenso cultural angolana, e a aproximao s formas tradicionais de narrar (com a gerao de 50, sobretudo com Luandino Vieira) constituem os meios estilsticos utilizados pelos intelectuais luandenses, e, de certa forma, pelos benguelenses tambm, para vencerem as barreiras urbanas, as barreiras da alfabetizao. Esta solicitude dos intelectuais luandenses ou benguelenses em vencerem tais barreiras no se repete noutra cidade do imprio portugus, nem mesmo no Mindelo, que to bons frutos havia dado no perodo imediatamente anterior Segunda Grande Guerra, alis o perodo do seu auge econmico, que o mesmo ser dizer, do auge do seu porto, o Porto Grande. S aps um marasmo de pelo menos quinze anos (o tempo que separa Certeza do Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes, sado em nmero nico em 1959) que se comeam a descortinar no Mindelo os

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indcios duma literatura politicamente empenhada. O mesmo pode ser dito em relao cidade da Praia, a capital do arquiplago, embora ela fosse desde 1949 palco duma revista cultural, o boletim Cabo Verde, no qual Amlcar Cabral zera em 1952 (28: 5-8) um apelo a uma literatura politicamente mais empenhada e tambm onde Gabriel Mariano se revelara como contista, nomeadamente como vencedor de dois concursos literrios21. Apenas em 1958, altura em que publicado o n. 1 e nico do Suplemento Cultural do boletim Cabo Verde, i. e., catorze anos aps o surgimento de Certeza e um ano antes do Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes, que se comeam a anunciar os primeiros indcios duma literatura politicamente empenhada na cidade da Praia. Enquanto no Mindelo tal acontece com a publicao do poema Praia bote de Onsimo Silveira, na Praia tal deveu-se a Gabriel Mariano e a Ovdio Martins, de quem se publicou o poema Para alm do desespero: Para alm do desespero Tambm minha revolta Com cadeados nos punhos. Estes trs intelectuais, reivindicando ou comeando a reivindicar uma caboverdianidade temperada de africanidade, tinham experincias de vida doutras paragens para alm das de Cabo Verde, facto que alguns crticos procuram tornar explicativo da sua ruptura com a tradio literria de Claridade e Certeza, o arquitexto cabo-verdiano, por assim dizer. Se tal me parece ser verdade, na realidade Onsimo Silveira escreve aquele que se tornou no mais polmico ensaio das letras cabo-verdianas (1963) (pela crtica que faz aos homens da Claridade e da Certeza), sob o paradigma da literatura angolana da gerao de 50, no menos verdade o facto de que, antes de tal ensaio ter vindo para as bancas, j um grupo de alunos do Liceu de Gil Eanes, entre os quais se encontravam os poetas Oswaldo Osrio e Armnio Vieira, continuavam o pouco que o Suplemento e o Boletim tinham de empenhamento poltico. Partindo do princpio de que uma mensagem literria tanto mais ecaz quanto mais difcil separ-la dos elementos formais que a viabilizam, a poesia de Ovdio Martins, dos poetas que iniciam em Cabo Verde uma literatura de empenhamento poltico, aquela que mais longe chegou, que mais informou esteticamente a caboverdianidade. Versos como na noite/grvida de punhais, do poema Emigrao, que Mrio de Andrade aproveitou para subttulo da sua antologia temtica de poesia africana (1975); poemas como Anti-evaso21 1. prmio dos Contos Regionais, com o conto O roubo (in Cabo Verde, 8, 1950: 16-8), e 2. prmio ExAequo do concurso do Melhor Contista de 1952, com o conto Velho Natal (Cabo Verde, 40, 1953: 20-3).

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[Gritarei Berrarei Matarei No vou para Pasrgada] em resposta a alguns poemas de Oswaldo Alcntara (i. e., Baltasar Lopes)22, e Aviso [Podem humilh-los mil vezes massacr-los mat-los de mil mortes (so serviais...) Mas depois no nos venham dizer que no vos avismos!] parecem ser prova desse apuramento esttico, a par da reivindicao doutro estatuto poltico23 que no aquele que dava pelo nome de colonialismo portugus. O famoso poema de Gabriel Mariano Capito Ambrsio, que muitos cabo-verdianos tero conhecido antes da sua publicao em 1975, patenteia um discurso potico menos metafrico. Ambrsio, o heri do poema, fora preso e deportado por ter conduzido no Mindelo, em ns dos anos 30 (9 de Junho de 1937), uma manifestao de protesto contra a inrcia governamental perante a fome que ento grassava a ilha. Desde ento, a comear por Gabriel Mariano (salvo erro), tem sido, pela coragem e combatividade demonstrada, alvo de enaltecimento por parte daqueles autores que com os seus textos pretendiam contestar o statu quo. Para alm de Gabriel Mariano, canta-o tambm Oswaldo Osrio no seu poema Capito ambrzio redescoberto [ah capito ambrzio para alm da negra bandeira da fome nas tuas mos valentes outra quiseste nos legar], escrito num perodo compreendido entre os anos de 1967-73. Foi posteriormente publicado no seu livro Caboverdeamadamente, Construo, Meu Amor. Poemas de Luta (1975). Mariano e Osrio transformam Ambrsio em heri nacional, reivindicando por via dele um outro sistema poltico que no aquele a que a presena portuguesa obrigava.22 Desdita que Baltasar Lopes em 1985 ainda no havia esquecido. Veja-se o seu texto Varia Quadam, publicado esse ano in Ponto e Vrgula, 14: 24-6.

Manuel Lopes acompanha-o nesta cruzada anti-Onsimo.23 No obstante este facto, registam-se, por vezes, situaes em que o sujeito potico se situa um pouco do processo que sancionava a colonizao duns por outros.

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Corsino Fortes, estreado no Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes (1959) e ainda com colaborao na Claridade e no boletim Cabo Verde, procura integrar a temtica barbosiana (no diria da Claridade) na da sua gerao, politicamente motivada, como vimos. Em Po e fonema, cuja 1. edio data de 1974, canta o poeta (poema Nova largada, 2. canto) a partida antecedida do regresso Mas antes muito antes de hipotecar meu litro de sangue E partir Plantei o polegar junto da tua rvore oh dolo de pouca terra], a partida como um mal necessrio, como meio de granjear melhor estatuto scioeconmico, e no como um m, como Jorge Barbosa interpretara um certo desejo de partir que parece existir em cada cabo-verdiano. Se este desejo na realidade existe, ele mais um meio do que um m, pois tambm verdade que o grande desejo dos cabo-verdianos emigrados e isto est sobejamente documentado na literatura o regresso. Se no poema atrs parcialmente transcrito a questo da partida o tema central, de algures na dispora, num tempo de aco posterior, fala o sujeito potico do poema Pilo (3. canto) dum regresso que deseja, que tem por certo: Ouve-me! primognito da ilha Ontem fui lenha e lastro para navio Hoje sol somente para sementeira Devolvo s ondas A vocao de ser viagem E co po porta das padarias. Concluindo: em Corsino Fortes parte-se para regressar e regressa-se para car e (eventualmente) mudar ... Da emergncia da mudana falar-nos-ia a narrativa de Lus Romano. Mas no o caso. Irmo mais velho dum outro escritor da dispora, Teobaldo Virgnio, dnos Romano em seu livro Famintos o quadro mais naturalista e grotesco da realidade colonial em Cabo Verde. Famintos uma colectnea de contos, por vezes poemas, denunciando as injustias coloniais duma forma frontal como nenhum escritor ou poeta cabo-verdiano at a o zera. Utiliza para tal um discurso sobremaneira metonmio, levando mesmo, por vezes, dado ainda o exagero com que impregna o

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que descreve, a nutrir no leitor um efeito contrrio ao desejado. A contribuir para isso est ainda o xismo que se regista no plano da narrativa, donde Pierrette e Grard Chalender (1983) destacaram tipos sociais como: o padre, o pobre, o revolucionrio, etc. Estes relacionam-se entre si duma forma to maniquesta que acabam por cumprir o tal grotesco (quase sem gosto?) da narrativa. Romano surge assim como um caso nico no arquitexto cabo-verdiano, no s porque acaba por no estar integrado em nenhuma gerao (o seu ponto de partida o da chegada em Manuel Lopes, diz Riausova, 1983), como tambm praticamente o nico autor a utilizar a narrativa para a expresso duma mensagem preponderantemente poltica, ao que se junta ainda o grotesco e o exagero acima mencionados. Como acontece com os seus conterrneos que imprimiram uma mensagem preponderantemente poltica aos seus textos no ncontramos na sua reivindicao poltica a presena dum terceiro elemento (excepo talvez para Ovdio Martins, mas por outras razes), duma terceira dimenso, que no caso dos autores angolanos ocupada pela diferena cultural que os separa daqueles ainda no integrados na sociedade crioula. Esta ausncia, que se traduz numa linearidade, diferentemente do que se passa com a literatura cabo-verdiana de reivindicao cultural, acaba por empobrecer esteticamente tais textos. Resumindo: a emergncia dos textos intencionalmente polticos surge na literatura cabo-verdiana, pelo menos, uma dcada depois do que acontecera em Angola e, como veremos, em So Tom e no Maputo. Enquanto em Angola tal emergncia antecede a luta armada, estabelecendose uma relao de causalidade entre literatura e luta armada, em Cabo Verde tal no acontece, i. e., no se pode estabelecer uma relao directa entre fenmeno literrio e luta armada. Isto no obstante Onsimo Silveira, Ovdio Martins, Gabriel Mariano, Oswaldo Osrio e Lus Romano terem acompanhado com a pena a luta que outros, seus conterrneos e guineenses, encetavam na Guin-Bissau contra o colonialismo portugus sob os auspcios do PAIGC. Trs nomes merecem ser acrescentados emergncia duma literatura politicamente empenhada no espao lusfono: Alda (do) Esprito Santo, Vasco Cabral, j nossos onhecidos, e Jos Craveirinha, poeta moambicano. Os dois primeiros escrevem os seus poemas mais conhecidos inspirados em aces de epresso do sistema colonial. No caso de Alda (do) Esprito Santo foi o massacre de Batep, em Fevereiro de 195324, que a inspirou a escrever Onde esto os homens caados neste vento de loucura. uma ode justia, liberdade que a ptria dos homens, por onde teria de passar a construo da ptria santomense:24 Ao que parece, o massacre foi motivado pelo facto de terem aparecido panetos anunciando uma revolta dos naturais e ameando de morte o governador. Cf. Hamilton, 1984: 263, nota 13.

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o sangue inocente ensopando a terra [] a chama da humanidade cantando a esperana num mundo sem peias onde a liberdade a ptria dos homens No caso de Vasco Cabral foi o massacre de Pidjiguiti, ocorrido a 3 de Agosto de 1959, durante uma greve de trabalhadores daquele porto, que o levou a escrever em 1972 o seu poema intitulado Pidjiguiti, onde o poeta, identicando-se com o sofrimento dos trabalhadores [O meu povo morre massacrado no cais de Pidjiguiti], se torna com o seu discurso metonmico num percursor dos jovens poetas guineenses forjados na guerrilha: Agnello Augusto Regalla, Hlder Proena e outros, autores que pretendo contemplar em pormenor no prximo captulo. Devemos a Jos Craveirinha talvez o poema da literatura africana em lngua portuguesa, de intencionalidade poltica, esteticamente mais conseguido. Tratase do poema Grito negro, integrado no volume Xigubo, cuja 1. edio data de 1964, com a chancela da Casa dos Estudantes do Imprio. Nele descreve o autor por dentro o processo de consciencializao do negro, integrado e feito forade-trabalho no sistema colonial, repetindo o que Mhlfeld (1986) entende por consciencializao, embora este autor no se rera concretamente nesse propsito interpretativo consciencializao dos negros nas sociedades coloniais. Segundo Mhlfeld, o processo de consciencializao est ligado ao de libertao; no se pode entender este independentemente daquele, constituindo ambos como que fases dum mesmo processo. Este inicia-se a partir do momento em que a pessoa reconhece que incapaz de ultrapassar o enquadramento orgnico que lhe permite a vida25. No poema de Craveirinha, o negro, na pele do qual o sujeito potico se aloja, faz este reconhecimento, exprimindo-o com os meios de abstraco que lhe so permitidos, recorrendo-se nomeadamente de objectos ou de pessoas do seu quotidinao: o carvo e o branco. Dois pontos de referncia da explorao que sente a envolv-lo. Reconhece que esses elementos em relao a si so superiores porque ele negro, mas negro tambm o carvo e este arde; se arde queima: Eu sou carvo! Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combusto.25

Cita neste propsito E. Cassirer (1980), Die Logik der Kulturwissenschaften, Darmstadt, pp.

24 e segs.

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Se o carvo arde, queima e destri, tambm ele, que carvo, poder destruir o sistema de explorao que tem sobre os ombros, e que chega at ele representado pelo patro: Sim! Eu serei o teu carvo Patro! Para alm da denncia do sistema colonial, h ainda como fora o caso da literatura angolana a registar a reivindicao de algo mais, qui um outro sistema construdo sobre a destruio do existente. Estas trs vozes, porm no que se distinguem da emergncia do texto literrio de inteno poltica em Angola e em Cabo Verde , no surgem integradas social e historicamente, i. e., as suas produes literrias dicilmente podem ser encaradas sob uma perspectiva sociolgica, como um facto literrio. Os nomes de Marcelino dos Santos (Kalungano), Rui Nogar ou ainda o de Honwana, revelado como contista nos anos 60, no contribuem para que Moambique constitua excepo nesta apreciao. No s fazem parte de geraes diferentes (no sei at que ponto poderemos falar de intertextualidade entre eles), como tambm registam diferenas no apuramento esttico. Alm disso, no se infere dos textos de Honwana os mais conseguidos uma intencionalidade poltica precisa.

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2. A reestruturao do poltico: A luta pela interiorizao colectiva da utopiaAs consequncias dos acontecimentos ocorridos em Angola ainda mal comearam a ser compreendidos em frica. KENNETH KAUNDA

At aqui analisei a emergncia e evoluo das literaturas africanas em lngua portuguesa durante o perodo colonial. Constatmos essa evoluo atravs da transformao dos rcits, primeiramente ocupados com uma reivindicao de ndole cultural e depois por uma reivindicao poltica. Esta transformao, acontecida no incio dos anos 60, teve como causa principal a relutncia de Lisboa em conceder a independncia s suas colnias, como o haviam feito outras capitais coloniais. A transformao ento operada foi mais notria na literatura angolana. Entre as literaturas africanas em portugus apenas esta e a cabo-verdiana se zeram valer como fenmenos sociolgicos, como actos colectivos, no que diz respeito sua produo e, de certa forma, sua leitura. A literatura angolana distinguiu-se, todavia, da cabo-verdiana pelo facto de lhe estar subjacente uma sociedade culturalmente dualista; pelo facto de a represso colonial se ter feito sentir em Angola duma forma mais acentuada e ainda pelo facto de essa literatura se ter empenhado no combate ao aparelho repressivo do regime, ter acompanhado o trabalho clandestino do MPLA no interior da sociedade colonial e na guerrilha. Estes trs factores zeram dela um caso nico, sui generis, no contexto da produo literria lusfona, onde ela toma ento a primazia quanto originalidade. Como a literatura angolana tem valido como pioneira, como ela se tem mostrado no perodo marcado pela reestruturao do poltico e pela integrao das sociedades perifricas (Cabo Verde constitui em relao a este ltimo aspecto um caso especial) como a mais produtiva, assim como tambm tem repetido a experincia das literaturas africanas em ingls e francs em equivalente perodo, servi-me dela como paradigma para isolar os critrios que permitam uma sistematizao prvia de toda a produo literria na frica de lngua portuguesa do ps-independncia. So

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trs esses critrios, os quais serviro tambm de subcaptulos: 1) a reconsiderao do passado, 2) o impasse, i. e., vive-se parcialmente a utopia, mas sente-se o quo difcil a integrao das sociedades perifricas, das sociedades tradicionais e, por m, 3) a crtica aos desvios utopia. A guerra civil que tanto tem assolado a sociedade angolana, como a moambicana, mantm-se pelo menos, por enquanto, perifrica produo literria dos dois pases. 2.1. Reconsiderando o passado colonial Da mesma forma que a vitria do MPLA em 1975 se deveu sua liao na histria e tradio da sociedade crioula, pode-se praticamente armar que em Angola as primeiras manifestaes literrias do ps-independncia, de carcter inovador, tiveram por tema a relao entre passado colonial, sujeito de enunciao e sociedade a construir-se. Assumiram, em suma, a busca da prpria angolanidade1. Embora tal relao seja impensvel noutra dimenso que no a poltica, descortinamse, todavia, duas tendncias: uma privilegiando mais a integrao na angolanidade pela via cultural e outra pela via poltica, propriamente dita. Para a exemplicao da primeira tendncia seleccionei trs ttulos: Portugal colonial, poema de David Mestre; Yaka2, romance de Pepetela, e o livro de Arlindo Barbeitos, O Rio Estrias de Regresso, com especial relevo para a histria A madame3. Para a exemplicao da segunda tendncia destaquei os seguintes ttulos: Dilaji dia kinema, de Octaviano Correia, e Memria de Mar, de Manuel Rui. Em Portugal colonial, de David Mestre, datado de 1977, o Europeu, o Portugus, que renega o stio onde nasceu: Nada te devo nem o stio onde nasci ....................1 Em estudo anterior (1987) chamei a ateno para a coincidncia que existe entre a angolanidade, como eu a entendo, e o conceito de ptria ou mtria (die Heimat), como ele aparece na obra do lsofo alemo Ernst Bloch. Para este o encontro com a Heimat ( utopia) pressupe uma dupla desalienao: a desalienao do sujeito em relao a si prprio e em relao ao meio ambiente. Ao contrrio da tese clssica do marxismo, a realizao da utopia est no caminho que se percorre para a atingir. H como que uma antecipao da utopia. Esta a dimenso que encontramos na literatura angolana do ps-independncia e sobretudo em Pepetela. Os seus livros patenteiam, quer pela forma, quer pelo contedo, a procura da angolanidade. Cf. entrevista in Anexo. 2 O seu ltimo romance, Lueji, parece representar as mesmas preocupaes ontolgicas de Yaka. 3 A pea de teatro Ana, Z e os Escravos, de Jos Mena Abrantes, premiada em 1986 com o Prmio Sonangol de Literatura e publicada em 1988, constitui outro exemplo, a nvel de linguagem teatral, desta tendncia.

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nada te devo Portugal colonial cicatriz de outra pele apertada. No um percurso novo de integrao na angolanidade. Para a formao desta concorrem duas ordens de elementos scio-lingusticos; os derivados da presena portuguesa e aqueles outros que so fornecidos pelas sociedades perifricas, donde se destaca a contribuio dos Ambundu e do seu idioma, o kimbundu, j que em seu territrio que se constitui a sociedade crioula. Desde os tempos mais remotos, pelo menos desde o sculo XVII, que testemunham escritores e poetas portugueses pela pena a integrao na angolanidade pela via cultural. Nomes como Cadornega, j citado, como Alfredo Troni, como Toms Vieira da Cruz e mais recentemente Ruy de Carvalho so exemplos dessa integrao (cf. Venncio, 1985; 1987). Em Mestre existe como que a preocupao de o sujeito potico se reproduzir como um homem novo na nova conjuntura angolana, h como que o renegar da Histria que ele, todavia, conhece e sabe (conscientemente) quo importante ela para a explicao da sua situao ali. Mas como j algum disse todo o acto revolucionrio , de certa forma, um acto de esquecimento e David Mestre preza o lado revolucionrio. Nem podia ser de outro modo, pois se, na verdade, ele se quer sentir integrado na nova realidade angolana, tem de forosamente privilegiar esse lado. Idntica problemtica aparece ilustrada numa das vertentes da obra de Pepetela. Rero-me aos romances Muana Puy e Yaka. A temtica deste ltimo, literariamente mais acabado, versa a histria de quatro geraes duma famlia de colonos portugueses, a famlia de Alexandre Semedo, a gura principal. Mais concretamente os encontros e desencontros dessa famlia, e sobretudo de Alexandre Semedo, com a angolanidade. Yaka uma esttua oriunda do povo do mesmo nome (ou ainda Jaga, Imbangala ou Mbayaka), um povo cuja identicao histrica tem suscitado controvrsias, mas que a literatura histrica unnime em referi-lo como um povo guerreiro, um povo oponente presena portuguesa em Angola. A esttua foi oferecida ao pai de A. Semedo e acompanha este ltimo durante toda a sua vida. Ela motivo e recepo de longos monlogos nas alturas em que ele mais questionava a sua razo de ser, o porqu de estar ali. Ela simbolizava a sua inquietao, o seu remorso por pactuar com a inautenticidade cultural que o envolvia, ele homem branco numa terra onde o elemento africano era preponderante. O escritor antecede a descrio da vida de Alexandre Semedo com a enunciao das partes que compem a esttua, como se esta motivasse aquel