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LITERATURA NEGRA BRASILEIRA: QUILOMBISMO, TEORIA E PRAXIS Denise Almeida Silva (URI) Esta comunicação propõe-se a refletir sobre a forma como, no Brasil, o ideal de resistência quilombola tem estado no cerne do ativismo e da práxis literária negros. Inicialmente, apresenta-se breve resenha sobre o quilombismo histórico, para, em seguida, refletir no quilombismo enquanto ideologia e sua práxis por parte de teóricos e autores afro-brasileiros. Enfoca-se o quilombismo em seu viés teórico a partir de textos de, principalmente, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e Conceição Evaristo. Pensa-se a práxis literária quilombola como escrita de resistência, lugar transgressivo de manutenção e difusão da memória e identidade a partir do olhar do negro sobre o negro, exemplificando-se esta prática através de exemplos selecionados da ficção afro- brasileira contemporânea. Segundo a estudiosa Beatriz Nascimento (2008), o fenômeno quilombo caracteriza-se por uma unidade através do tempo, uma vez que, durante sua trajetória serviu de símbolo com conotação de resistência étnica e política. Originalmente, instituição africana de origem angolana, no Brasil o quilombismo, após ter recebido novas conotações nos períodos colonial e imperial, configura-se, atualmente, como forma de resistência cultural, migrando, pois, para o âmbito dos princípios ideológicos. A origem do conceito remonta ao século XVI, quando os imbangalas, ao ingressarem na região central africana, introduzem o Kilombo, rito de passagem através do qual incorporavam jovens de várias linhagens à sua sociedade. Dessa forma, o Kilombo, como Nascimento observa, “cortava transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder frente às instituições de Angola” (2006, p. 119). Assim compreendido, Kilombo apontava tanto para a instituição em si, como para os indivíduos que se incorporavam à sociedade imbangala. Outros significados, ainda, estendiam-se ao território ou campo de guerra, que se denominava jaga, à casa sagrada onde se processa o ritual de iniciação, e ao acampamento de escravos fugitivos, quando os imbangalas efetuavam o comércio negreiro com os

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LITERATURA NEGRA BRASILEIRA: QUILOMBISMO, TEORIA E PRAXIS

Denise Almeida Silva (URI)

Esta comunicação propõe-se a refletir sobre a forma como, no Brasil, o ideal

de resistência quilombola tem estado no cerne do ativismo e da práxis literária negros.

Inicialmente, apresenta-se breve resenha sobre o quilombismo histórico, para, em

seguida, refletir no quilombismo enquanto ideologia e sua práxis por parte de teóricos e

autores afro-brasileiros. Enfoca-se o quilombismo em seu viés teórico a partir de textos

de, principalmente, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e Conceição Evaristo.

Pensa-se a práxis literária quilombola como escrita de resistência, lugar transgressivo de

manutenção e difusão da memória e identidade a partir do olhar do negro sobre o negro,

exemplificando-se esta prática através de exemplos selecionados da ficção afro-

brasileira contemporânea.

Segundo a estudiosa Beatriz Nascimento (2008), o fenômeno quilombo

caracteriza-se por uma unidade através do tempo, uma vez que, durante sua trajetória

serviu de símbolo com conotação de resistência étnica e política. Originalmente,

instituição africana de origem angolana, no Brasil o quilombismo, após ter recebido

novas conotações nos períodos colonial e imperial, configura-se, atualmente, como

forma de resistência cultural, migrando, pois, para o âmbito dos princípios ideológicos.

A origem do conceito remonta ao século XVI, quando os imbangalas, ao

ingressarem na região central africana, introduzem o Kilombo, rito de passagem através

do qual incorporavam jovens de várias linhagens à sua sociedade. Dessa forma, o

Kilombo, como Nascimento observa, “cortava transversalmente as estruturas de

linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder frente às instituições de Angola”

(2006, p. 119). Assim compreendido, Kilombo apontava tanto para a instituição em si,

como para os indivíduos que se incorporavam à sociedade imbangala. Outros

significados, ainda, estendiam-se ao território ou campo de guerra, que se denominava

jaga, à casa sagrada onde se processa o ritual de iniciação, e ao acampamento de

escravos fugitivos, quando os imbangalas efetuavam o comércio negreiro com os

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portugueses. Mais tarde, no século XIX, a palavra passou a designar, ainda, as

caravanas de comércio em Angola.

Entre nós, a primeira referência a um quilombo data de 1559; no século XVIII

documentos usam o termo com referência a qualquer agrupamento de cinco ou mais

negros fugidos, e no Código de Processo Penal de 1835 é empregado no sentido de

velhacouto. Contrasta com esses conceitos o significado que o termo tem para os negros

aquilombados, para os quais representa reunião fraterna, livre, caracterizada por

princípios de convivência e solidariedade.

Uma vez que o quilombo, no período colonial, acompanha os contextos dos

“ciclos” econômicos do Brasil, Beatriz Nascimento (2006, p. 121) propõe que sejam

encarados como “sistema sociais alternativos”, ou retomando Ciro Flamarion, como

“brechas no sistema escravista”. No século XIX, como ocorrera no século XVII,

diferentemente do que acontece no século XVIII, já não representam, cada um de si, um

risco ao sistema, e muitas vezes convivem pacificamente com ele.

Já nessa época, é possível distinguir um arcabouço ideológico no quilombismo,

já que muitos agrupamentos se organizam como reação ao colonialismo. Assim,

conforme Nascimento (2006b, p.122), é “no final do século IX que o quilombo recebe

o significado de instrumento ideológico contra as formas de opressão. Sua mística vai

alimentar o sonho de liberdade de milhares de escravos”, frequentemente alimentada

pela retórica abolicionista.

A passagem de instituição para símbolo de resistência redefine, mais uma vez,

redefine o termo. Assim, é como ideologia, sobretudo, que o quilombo adentra o século

XX, e sua mística passa a se fazer presente em um momento de redefinição da

identidade nacional, como foi a Semana de 22. Por essa época, a Editora Nacional

publica obras sobre o quilombo, de autoria de Nina Rodrigues, Ernesto Enne, Edison

Carneiro, Artur Ramos e Guerreiro Ramos; uma versão romanceada, de autoria de

Felício dos Santos, havia sido publicada pouco antes (NASCIMENTO, 2006b, p.123).

O quilombo passa, assim, a ser lembrado como desejo de utopia, fato que se

manifesta, inclusive, em letras de sambas. A retórica do quilombo como sistema

alternativo, nos anos de chumbo, passa a ter, na linguagem de Nascimento (2006b, p.

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123), a função de “correção da nacionalidade” face à ausência de cidadania plena e a

obstrução de canais reivindicatórios. Por essa época, uma contranarrativa à história

oficial alcança sucesso significativo: a peça teatral Arena contra Zumbi, a qual busca,

no quilombo, figura para a resistência popular às forças da opressão, tomando Palmares

como esperança e símbolo de um Brasil mais justo e mais livre.

Se antes o quilombismo havia servido como forma de reação ao colonialismo

de fato, a partir dos anos 1970, quando se verifica a reorganização e revitalização do

movimento negro brasileiro, reage ao colonialismo cultural. Nesse sentido, é

fundamental o papel pioneiro de Abdias Nascimento, a quem se deve a percepção e

registro inicial do quilombismo como um “conceito emergente do processo histórico-

cultural da população afro-brasileira”. A citação corresponde ao título de um ensaio,

redigido em 1980 como proposta “aos seus irmãos e irmãs afrodescendentes no Brasil e

nas Américas”, manifesto em que Abdias Nascimento ressalta como a memória do

afrodescendente brasileiro vem sendo sistematicamente agredida e apagada.

Considerando o modelo quilombista como uma “ideia-força”, “energia”

(NASCIMENTO, 2008, p. 204), o pesquisador propõe a criação de um Estado Nacional

Quilombola antirracista, livre, justo e soberano, baseado no modelo palmarino, cuja

finalidade básica seria promover a felicidade do ser humano. Por outro lado, para que o

negro recuperasse sua memória – a história perdida de seus antepassados e da cultura

africana – bem como fosse capaz de dimensionar mais verídica e justamente sua

contribuição para a construção da pátria brasileira, propôs mecanismos para a

mobilização e organização do negro, de forma a fomentar a “pesquisa, crítica e reflexão

constantes sobre o passado e o presente das condições de ida da população de origem

africana no Brasil” (NASCIMENTO, 2008, p.215).

O quilombismo como ideologia de resistência e ideia-forma persiste em plena

vitalidade. Prova disso é, por exemplo, o manifesto “Quilombismo, a solução”, postado

no dia 21 de março de 2013 pelo blogueiro César Augusto Santos Pedroso. Incisivo,

Pedroso afirmava:

precisamos viver o Quilombismo como uma IDEOLOGIA. Todos

aqueles “ismos” mudaram o mundo através de suas ações operativas, uns

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mais contundentemente outros nem tanto, e, assim, foram os “ismos” que

historicamente contribuíram ao processo evolutivo da grande massa que se

chama humanidade, mas, esse processo evolutivo não se deu para todos, pois,

sem um “ismo” nada acontece, e nós negros não entendemos que sem nosso

“ismo” não conseguiremos acontecer. Eu acredito que unidos conseguiremos

desenvolver através de nossos estudos os conceitos que nos fortalecerão e nos

levarão a lugares que nos pertencem como verdadeiros construtores desse

país. (PEDROSO, 2013)

Por outro lado, ao considerar a práxis literária quilombola, Conceição Evaristo

reflete como a palavra poética é, mais do que modo de narração do mundo, a revelação

de “utópico desejo de construir um outro mundo” (2010, p. 133). Antes que refletir o

ser, aponta para o mundo que “poderia ser”, o que, como a escritora raciocina, revela,

através do desejo por um outro mundo, o descontentamento com uma ordem

estabelecida. Constrói-se, assim, contranarrativa que ocupa um lugar antes vazio, e

posiciona-se como contrafala ao discurso oficial, detentor do poder, circunstância em

que assumir a postura artística equivale a assegurar o direito à fala.

A literatura negra, como ainda Evaristo (2010, p. 138) observa, toma como

parte de seu corpus a história do povo negro, agora vivida e interpretada do ponto de

vista negro: uma história dos dominados, pois. Lembrando a práxis afro-brasileira do

quilombismo formulada por Abdias Nascimento, a qual oferecia pontos de resistência

contra o sistema escravista, operando “focos de resistência física e cultural”, Evaristo

percebe uma “mística quilombola latente ou patente, como forma de defensiva e

afirmativa do negro, na sociedade brasileira” (2010, p. 138). É visível, por exemplo, na

adoção, por várias organizações no passado, do nome Quilombo ou Palmares, termos

que carregam a sugestão da ação quilombola como um paradigma de organização social

entre os negros brasileiros.

No contexto do conceito do quilombismo proposto por Abdias Nascimento e por

Beatriz Nascimento, Evaristo retoma o pensamento da poetisa afro-brasileira Miriam

Alves, a qual opõe à noção de impotência implícita ao gueto a ideia de resistência e de

organização do quilombo. Avançando nos termos da comparação, a escritora mineira

propõe a distinção entre quilombo e senzala, uma vez que o primeiro é lugar de escolha,

enquanto a senzala, como o gueto, implica submissão. Pensa, assim, o quilombo como

“um espaço de vivência marcado pelo enfrentamento, pela audácia de contradizer, pelo

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risco de contraviver o sistema” (EVARISTO, 2010, p. 139), uma vez que o quilombola,

na condição de escravo fugido, redobrava sua exclusão social, passando a ser visto, por

seus ex-senhores como marginal e fora da lei.

A práxis quilombola evidencia-se recorrentemente na literatura negra

brasileira. Com frequência, o Quilombo de Palmares e a figura-chave de Zumbi são

reverenciados e ressignificados, como no poema Quilombos, de José Carlos Limeira,

dedicado a Abdias Nascimento e Lélia Gonzales. Subdividido em seis partes –

Memórias I e II, Sonhos I e II, Notícias e Insônia, o poema move-se do ideal de

liberdade palmarino à sua negação na sempre renovada escravidão da minoria negra

marginalizada, a qual “já nasce com jeito de morte”, e morre em vida “no trem lotado,

no barraco caindo/ No camburão, na porrada nos dentes/ No lodo” (LIMEIRA, 2011).

Na seção Memórias I, o eu poético expressa memórias transgeracionalmente

perpetuadas na memória dos negros, as quais lembram Angola-Janga como um lugar

onde foram devolvidos ao escravo a liberdade e dignidade que lhes foram roubadas pelo

tráfico negreiro: “O gosto da liberdade sentido, cravado no peito/Correr, sentir os

campos ter a vida/Angola Janga Terra de negros livres [...] África (tão subitamente

roubada)/Sonhos (tão subitamente assassinados) /Liberdade (tão subitamente trocada

pela escravidão)”. Com nostálgica saudade de um tempo não vivido, o eu lírico abre o

poema afirmando seu anseio por um tempo e lugar já idos: “Queria ver você negro/

Negro queria te ver/ Se Palmares ainda vivesse/ Em Palmares queria viver.” (LIMEIRA,

2011)

Esses versos iniciais recorrem, com modificações progressivas, no decorrer do

poema, transformando-se em estribilho que implica o contraste entre o ideal palmarino e

o presente, quando o negro volta a ser acorrentado pela miséria e desigualdade social e

econômica. Memórias II, que enfoca o ódio que se entranha progressivamente no negro

ante a violência da escravidão, sintetizada, no poema, pela ação do feitor, inicia com os

versos que acentuam o contraste entre uma vida digna e livre e a indignidade da

escravidão. Ao crescer a memória da violência, o eu lírico não mais apenas deseja viver

em Palmares, mas lá ficar: “Negro correndo livre/ Colhendo, plantando por lá/Se

Palmares ainda vivesse/ Em Palmares queria ficar.” (LIMEIRA, 2011). Na sequência,

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Sonhos I sobrepõe ao massacre ocorrido em Palmares tantos outros que se seguiram na

história do Brasil, não mais ordenados por El Rei: ataques quotidianos, alguns miúdos,

expressos pela falta de pão, e outros maiores, capazes de atrair as manchetes do jornal.

Pensando na dor do seu povo, o eu lírico deseja estar com eles, em atitude de

resistência: “O rei de Portugal/Mandou ao meu povo matar/ Se Palmares ainda

vivesse/Em Palmares queria estar”. Em Sonhos II, ao imaginar uma utópica

preservação de Angola-Janga (“Você já pensou se Domingos Jorge Velho e sua malta/

Não houvessem tido tanta sorte?/ Já pensou naquele país da serra da Barriga?) e a

consequente ausência da exploração do negro pelo branco, a urgência do desejo do

negro por esse paraíso perdido aumenta: “Te vejo meu povo feliz/ Teu sonho querendo

sentir/ Se Palmares ainda vivesse/ Pra Palmares teria que ir” (LIMEIRA, 2011). Nas três

últimas seções do poema, Criancinhas, Notícias e Insônia, o desejo por Palmares

aumenta cada vez mais: quanto mais crescem a exploração infantil e a miséria do

afrodescendente, tanto mais se faz premente a memória do quilombo, e sua ideologia

libertadora:

(vivo pensando em ti)

[...]

Como não estar no barulho da britadeira

Na comida azeda, na marmita fria

Como não estar na fome do meu filho

Já nascido com jeito de morte

Como não estar no lio das madames

No cheiro da gordura da pia

Nas bostas dos barões boiando na latrina

Como não estar no trem lotado, no barraco caindo

No camburão, na porrada nos dentes

No lodo. Do fundo de cada cela

Como, se tudo isso sou eu? (LIMEIRA, 2011)

Assim, ante as desigualdades sociais, o eu lírico, insone, identifica-se a seu povo

sofredor, o que fortalece não apenas a saudade de Palmares, mas leva à vigorosa

reafirmação de seu ideal nos versos finais do poema: “Por menos que conte a história/

Não te esqueço meu povo/ Se Palmares não vive mais/ Faremos Palmares de novo”

(LIMEIRA, 2011).

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A evocação de Angola-Janga e da emblemática figura de Zumbi, manifestações

um tanto óbvias da mística palmarina, estão longe de ser as únicas figuras e formas

através das quais é urdida a práxis quilombola na literatura afro-brasileira. Enquanto

ideal de resistência, esse segmento da literatura brasileira tem trazido à lume realidades

antes ausentes em nossa literatura, já que aos negros era dificultada a expressão de sua

visão e voz. Nesse sentido, Miriam Alves registra como, à maneira praticada pelos escritores

negros, a literatura

assume um “compromisso social personificado. À medida que falamos do

nosso lugar duma maneira própria, estamos dizendo coisas que muita gente

não quer ouvir, ou tem medo de ouvir. E nesse exato instante estamos

rompendo a máscara da invisibilidade colocada em nós por aqueles que nos

querem negar ou nos ver à sua maneira, maneira esta que basicamente

consiste em nos retratar num servilismo que não tem outro objetivo senão o

de se curvar à vida alheia, que de preferência deve ser a vida de algum

branco. (ALVES, 1985, p. 13).

Em depoimento posterior, a escritora é clara ao afirmar que essa postura

corresponde a um claro posicionamento político-ideológico:

Ressalto nesta produção o ato político. Falo em atitude política não para

designar passeatas de ficcionistas e poetas negros, exigindo seus direitos à

publicação e circulação, exigindo a criação livre, permeada por sua vontade e

inspiração, ou ainda exigindo reconhecimento dos órgãos políticos (secretaria

disto ou daquilo), ou ainda reclamando suas entradas nos bares acadêmicos

fechados (livrarias e editoras), onde somos literalmente barrados e

discriminados por trás de discursos de má qualidade, subliteratura e

desinteresse de leitores. Não é deste ato político, que não fizemos, que falo.

Falo do ato político que praticamos, escrevendo-nos em nossa visão de

mundo. Quando digo nossa, falo Brasil e toda questão econômico-político-

histórico-cultural e relacionamentos plurirraciais que permeiam. Nossa

produção reflete isto (ALVES, 1987, p. 84).

É a partir dessa visão, e em nome do compromisso social alimentado pela ideia-

forca quilombola que a literatura afro-brasileira tem, recorrentemente, assumido tom

denunciatório e reivindicativo, mesmo quando o faz de forma profundamente poética,

como a que caracteriza a escrita de Conceição Evaristo. Seu primeiro romance

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publicado, Ponciá Vivêncio, narra a história de uma descendente de escravos que se

desloca da vila dos senhores Vicêncio para a cidade grande, em busca de melhores

condições de vida, deixando para trás tentativas frustradas de liberdade e realização

pessoal. Na cidade, tudo o que obtém é um barraco no morro, trabalho com salário

insuficiente e um marido taciturno e violento, tão atormentado pela opressão econômica

quanto ela. Em seus momentos de reflexão, a protagonista denuncia a traição do ideal

quilombola, e a manutenção de uma escravidão de fato:

De que valera o padecimento de todos aqueles que ficaram para trás? De que

adiantara a coragem de muitos em escolher a fuga, de viverem o ideal

quilombola? De que valera o desespero de Vô Vicêncio? Ele,, num ato de

coragem-covardia, se rebelara, matara um dos seus e quisera se matar

também. O que adiantara? A vida escrava continuava até os dias de hoje.

Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se

repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de

travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e

nova vida. (EVARISTO, 2003, p. 83).

Embora os estreitos limites impostos pelo tempo destinado a uma comunicação

impeçam a análise de outros textos, exemplos como os aqui apresentados recorrem na

literatura afro-brasileira contemporânea, testemunhando a profunda influência,

pervasividade e vigor da ideia-força quilombola.

Referências

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Contos. São Paulo: Edição dos Autores, 1985, p. 13.

________. O discurso temerário. In: Criação crioula, nu elefante branco: I Encontro de poetas e

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EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira.

In: PEREIRA, Edmilson de Almeida. (org.). Belo Horizonte: Mazza, 2010. p. 132-142.

______. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.

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