Livro Completo

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Os Sentidos da INTEGRALIDADE na atenção e no cuidado à saúde 1_Abertura edicao 2009.pmd 20/10/2009, 13:48 1

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Integralidade no sistema unico de saude

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  • Os Sentidos daINTEGRALIDADEna ateno e no cuidado sade

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  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: Ricardo Vieiralves de CastroVice-reitora: Maria Christina Paixo Maioli

    INSTITUTO DE MEDICINA SOCIALDiretor: Cid Manso de Mello ViannaVice-diretor: Michael Eduardo Reichenheim

    LABORATRIO DE PESQUISAS SOBRE PRTICAS DE INTEGRALIDADE EM SADECoordenadora: Roseni PinheiroCoordenador adjunto: Ruben Araujo de Mattos

    CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM SADE COLETIVAPresidente: Cid Manso de Mello Vianna

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE PS-GRADUAO EM SADE COLETIVAPresidente: Jos da Rocha Carvalheiro (USP)

    Conselho EditorialAluisio Gomes da Silva Jnior (UFF)Andrea Caprara (UECE)Isabel Brasil Pereira (Fiocruz)Jos Ricardo de C. M. Ayres (USP)Kenneth Rochel de Camargo Jr. (UERJ)Lilian Koifman (UFF)Madel Therezinha Luz (UERJ)Maria Elisabeth Barros de Barros (UFES)Mary Jane Spink (PUC-SP)Paulo Henrique Novaes Martins de Albuquerque (UFPE)Roseni Pinheiro (UERJ)Ruben Araujo de Mattos (UERJ)Yara Maria de Carvalho (USP)

    Centro de Estudos e Pesquisa em Sade Coletiva - CEPESCRua So Francisco Xavier, 524 7 andarMaracan - Rio de Janeiro RJ CEP 20550-900Telefones: (xx-21) 2334-0504 ramal 152 (cepesc)Fax: (xx-21) 2334-2152URL:www.lappis.org.br / www.ims.uerj.br/cepescEndereo eletrnico: [email protected]

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  • Roseni PinheiroRuben Araujo de Mattos

    Organizadore s

    Os Sentidos daINTEGRALIDADEna ateno e no cuidado sade

    Rio de Janeiro 2009

    CEPESC IMS/UERJ ABRASCO8 Edio

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  • Os sentidos da integralidade na ateno e no cuidado sadeRoseni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos (org.)8 Edio - 2009

    Capa: Erica FidelisPreparao de originais: Roseni PinheiroReviso: Ana Silvia GesteiraEditorao eletrnica: Mauro Corra FilhoAcompanhamento editorial: Ana Silvia Gesteira

    Copyright 2008 by Roseni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos

    Ficha catalogrfica elaborada por UERJ/REDE SIRIUS/CBC

    Esta publicao contou com apoio de CNPq, FAPERJ e CEPESC/ IMS-UERJ

    CATALOGAO NA FONTEUERJ / REDE SIRIUS / CBC

    S478 Os sentidos da integralidade na ateno e no cuidado sade /Roseni Pinheiro e Ruben Araujo de Mattos, organizadores.Rio de Janeiro: UERJ, IMS: ABRASCO, 2006.184p.

    ISBN 978-85-89737-52-4

    1. Poltica de sade - Brasil. 2 Servios de sade - Brasil. 3.Poltica de sade mental - Brasil. 4. Sade - Planejamento -Brasil. I. Pinheiro, Roseni. II. Mattos, Ruben Araujo. III.Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Insti tuto deMedicina Social. IV. Associao Brasileira de Ps-Graduaoem Sade Coletiva.

    CDU 614.008.1

    Impresso no Brasil

    Direitos exclusivos para esta edio dos editores-autores. Todos os direitosreservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada semautorizao expressa dos editores.

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  • A David Capistrano Filho (in memoriam), idealizador erealizador da prtica poltica de sade como um direito e comoservio, que insistia em nos dizer que temos uma dvida muitogrande com os desassistidos e eles tm pressa...

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  • 1_Abertura edicao 2009.pmd 20/10/2009, 13:486

  • A Eduardo Levcovitz, amigo e professor do Instituto de Medicina Social,que na qualidade de ator ativo na formulao e implementao do SUS, nosintroduziu o tema, apresentando suas idias e inquietaes sobre os desafiose a ousadia de fazer cumprir a lei.

    s alunas Ana Emlia, Ana Auler, Eneida, Grasiele, Helena, Maria He-lena, Monia e Regina, pelas intensas discusses e crticas desenvolvidas nadisciplina Os Sentidos da Integralidade, ministrada no IMS-UERJ, as quaiscontriburam para a sistematizao de nossas reflexes sobre os diferentessentidos e significados atribudos ao princpio da integralidade.

    AGRADECIMENTOS

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  • SUMRIO

    Prefcio 8a. EdioJOS RICARDO C. M. AYRES ................................................................................. 11

    Apresentao ..................................................................................................................... 15KENNETH ROCHEL DE CAMARGO JR.

    Polticas de Descentralizao e Cidadania:novas prticas de sade no Brasil atual ...................................................................... 21MADEL T. LUZ

    Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexes acercade valores que merecem ser defendidos ........................................................................ 43RUBEN ARAUJO DE MATTOS

    As Prticas do Cotidiano na Relao Oferta e Demanda dos Serviosde Sade: um campo de estudo e construo da integralidade .................................. 69ROSENI PINHEIRO

    As Necessidades de Sade como Conceito Estruturante na Lutapela Integralidade e Eqidade na Ateno em Sade .................................................. 117LUIZ CARLOS DE OLIVEIRA CECILIO

    Da Integrao de Programas Integralidade de Aes de Sade:algumas reflexes preliminares ....................................................................................... 131ANA EMLIA LEITE GUEDES

    Os Sentidos das Prticas Voltadas para Sade e Doena:maneiras de fazer de grupos da sociedade civil .......................................................... 161SONIA ACIOLI

    Integralidade nas Polticas de Sade Mental ................................................................ 171DOMINGOS SVIO ALVES

    Sobre os autores .............................................................................................................. 181

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  • motivo de grande alegria poder prefaciar esta nova edio de Ossentidos da integralidade na ateno e no cuidado sade.

    Em primeiro lugar, uma alegria pessoal. Isto porque, repetindo o quedisse Ricardo Bruno Mendes Gonalves em outro prefcio, est j estabe-lecido, entre o prefaciador e o trabalho que visar, um amplo arco desimpatias e cumplicidades... de modo que o pequeno esforo que umfaz ser sempre solidrio de um grande esforo que outro fez, e de cujobrilho quer compartilhar. Os autores desta obra, a comear por seusorganizadores, so mestres, colegas, interlocutores com quem tenho tidooportunidade de aprender, trocar idias, estabelecer parcerias. So pares daSade Coletiva por quem nutro no apenas amizade e afinidades acadmi-cas, mas por quem tenho grande admirao. Ver esta obra chegar a estasignificativa marca editorial s confirma o valor e a fecundidade das contri-buies que estes valorosos companheiros tm trazido a nosso campo.

    Em segundo lugar, a alegria de perceber que um tema a um s tempo tocomplexo e relevante para as prticas de sade est recebendo destacadaacolhida em nosso meio. Entre os princpios que tm norteado a reconstru-o do sistema de sade brasileiro, a integralidade talvez o mais difcil dedefinir e, no entanto, aquele sobre o qual repousam os maiores desafios paraa efetiva consolidao do SUS e de suas elevadas misses. Como j disseem outro lugar: o princpio da universalidade nos impulsiona a cons-truir o acesso para todos, o da equidade nos exige pactuar com todoso que cada um necessita, mas a integralidade nos desafia a saber efazer o qu e como pode ser realizado em sade para responderuniversalmente s necessidades de cada um. O sucesso deste livro um

    PREFCIO 8 EDIO

    JOS RICARDO C. M. AYRES

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  • indcio, portanto, de que o desafio da integralidade no est passando des-percebido pela comunidade acadmica, tcnica e poltica da Sade Coletiva,o que um poderoso alento.

    Mais do que um desafio poltico, econmico ou administrativo, trata-seaqui tambm de um desafio tecnolgico, de arranjar, criar e recriar aes demodo a produzir, de modo universal e equitativo, no apenas tratamento,preveno ou recuperao da sade, mas, por meio de todos e cada umdestes recursos, produzir cuidado.

    Presente j no ttulo do livro, a referncia ao cuidado d-nos bem adimenso das ambies do princpio da integralidade. Alerta-nos da riquezadas necessidades, finalidades, articulaes e interaes implicadas num tra-balho em sade que se entende no apenas como produtor de bens ouvalores de uso, mas como precioso recurso das e para as pessoas em buscade sua realizao como sujeitos na plenitude do termo. Cuidar participarda construo, sempre socialmente compartilhada, dos projetos de felicidadeque no cessam de criar e nascer de nossos encontros no mundo, produzindoa cada vez novos horizontes para novos encontros possveis. Cuidar verque cada experincia que se apresente como obstculo quilo que queremosfazer de nossa vida nossa na polis e da polis em ns seja compreendidae transformada do modo que nos parea mais justo, produtivo e belo. Sejanegativamente, como crtica e resistncia a prticas que nos afastam denossas legtimas aspiraes, seja na proposio positiva de alternativas, cuidadoe integralidade so idias congneres em suas vastas ambies, generosasat o limite da utopia, mas, por isso mesmo, imprescindveis.

    No parece acidental, portanto, que cuidado integral e integralidadedo cuidado sejam expresses to presentes e fortes hoje em nosso campo. como se uma palavra reclamasse a outra: a integralidade do cuidado,como o cuidado s pode ser integral. E essa mtua referncia guarda na suaintimidade a complexa pliade de aspectos a que nos referimos acima, ne-cessariamente envolvida na concretizao dos valores emancipatrios emtecnologias a serem operadas no cotidiano das prticas de sade.

    Sob a tica da integralidade, as necessidades de sade precisam serentendidas de um modo a que muitos chamam de mais amplo, querendose referir no-restrio leitura biomdica dessas necessidades, traduzidasem entidades antomo-fisio-patolgicas, atuais ou potenciais (riscos). Masamplitude talvez no seja o modo mais adequado de se referir ao tipo demudana que a integralidade busca imprimir compreenso das necessida-

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  • Apresentao

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    des de sade. De um lado, porque algo caracterstico da leitura biomdica justamente sua amplitude, sua capacidade de criar identidades para fen-menos que se estendem ad infinitum, na medida mesma em que tendem aoinfinito os desdobramentos lgicos da sua linguagem cientfica. No deamplitude que se trata, portanto. O que no se quer restringir a leitura dasnecessidades linguagem das cincias biomdicas. O que interessa no que sejam mais amplas, seno mais particularizadas e significadas. No sequer falar de esferas no alcanveis pela biomedicina, mas de fazer falarde outras formas as experincias que s as cincias biomdicas tm sidoautorizadas a descrever. Quais linguagens podem falar das situaes oucondies que relacionamos concretamente com nossa experincia de sadee doena de forma pragmaticamente operante no cuidado? esse enrique-cimento na traduo das necessidades que se busca com a integralidade.

    Falar de outras formas das necessidades no mbito das tecnologias ,imediatamente, produzir de modo diverso, fazer mais e fazer diferente. Aparticularizao significada de experincias de potncia ou a limitao paraos projetos de felicidade definir mais ricos objetos e instrumentos paranossas aes de sade. Assim, as finalidades se enriquecem com o enfoqueda integralidade, reclamando de ns a integrao de diversas esferas erecursos de trabalho em sade. Integrao horizontal, porque reclamamaspectos de promoo, proteo e recuperao da sade que se implicammutuamente nas situaes concretas de sade-doena-cuidado. Integraotambm vertical, entre ateno primria, secundria e terciria, porque arealizao de tais finalidades reclama, em cada situao, diversos e dinmi-cos arranjos entre distintas espcies de tecnologias.

    Finalidades enriquecidas reclamam, por sua vez, que as linguagens eaes de instruo biomdica construam articulaes entre si e comoutras linguagens e aes capazes de realiz-las como tecnologias efeti-vas. Assim, a multiprofissionalidade, a interdisciplinaridade e aintersetorialidade so as decorrncias esperadas dos processos de trabalhoem sade orientados integralidade.

    Finalmente em nossa argumentao, mas primeiro no mundo vivido preciso ter claro que se a linguagem ato, encontro, no haver recons-truo de expresses de necessidade, redefinies de finalidades e de arti-culao de recursos sem transformaes nas interaes entre os sujeitos.No h busca de integralidade que no chegue, por um caminho ou poroutro, necessidade de enriquecer o dilogo entre os sujeitos implicados nas

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  • Jos Ricardo C. M. Ayres

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    prticas de sade: entre profissionais e usurios e de profissionais entre si.Por isso, no se consegue pensar em integralidade sem considerar o contex-to de intersubjetividade em que se d o cuidado, sem considerar o dilogocomo seu fundamento, em qualquer plano em que se o analise, da macroesferada constituio do Estado microesfera do ato teraputico.

    Neste livro, j um clssico da Sade Coletiva brasileira, o leitor encon-trar preciosos recursos para instruir-se e refletir sobre cada um desseseixos da integralidade do cuidado, assim como poder verificar as profundasrelaes entre eles. Na verdade, encontrar esses aportes no apenas nestelivro, mas nos diversos volumes que compem uma j vasta coleo produ-zida sob a coordenao do Laboratrio de Pesquisas sobre Prticas deIntegralidade em Sade (LAPPIS), do Instituto de Medicina Social da UERJ.

    Some-se, ento, minha alegria o forte desejo de que o dilogo propostopelos organizadores e autores desta e demais publicaes do LAPPIS nocesse de inspirar a comunidade sanitria, criando, a partir dos encontrosneles realizados, renovadas possibilidades de construir o cuidado integral,equitativo e universal sade.

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  • As Muitas Vozes da IntegralidadeKENNETH ROCHEL DE CAMARGO JR.

    A rea de Sade Coletiva no Brasil, e possivelmente na AmricaLatina, tem um carter mais abrangente do que o que apresenta na Amricado Norte ou Europa. Sob esta designao curricular, abrigam-seepidemiologistas, planejadores, gestores, profissionais das vrias profissesda rea assistencial da sade, pesquisadores de vrias tradies disciplinaresnas Cincias Humanas. Essa multiplicidade de inseres e pontos de vista,por si s um indicador da vitalidade do campo, traz, contudo, uma respon-sabilidade ampliada. Por um lado, a multiplicidade e a diversidade demandama preciso dos enunciados, para que o debate seja de fato possvel. Poroutro, este um campo desde sempre militante.

    No nosso pas, em particular, a luta pela construo de um sistema desade universal, acessvel e de qualidade se confunde num primeiro momen-to com a prpria luta pela redemocratizao do pas, e assume no presentecontornos de resistncia guinada conservadora com relao s polticaspblicas da ltima dcada. Ou seja, as propostas do campo tm efeitosbastante concretos na esfera poltica, e mesmo no cotidiano mais amplo dapopulao. Sendo assim, a possibilidade de esclarecimento e construo deacordos quanto a princpios organizadores da assistncia, longe de ser me-ramente acadmica, no sentido pejorativo da palavra, interessa a amplasaudincias idealmente, a todos os cidados.

    A discusso sobre a integralidade das aes de sade, essa miragemfugidia e ao mesmo tempo central para o sistema de sade que queremos,assume de maneira exemplar essa caracterstica. Sua conceituao eimplementao podem definir, num certo sentido, a essncia mesma de umapoltica pblica de sade veja-se, por exemplo, o texto de Luiz Carlos deOliveira Cecilio nesta coletnea. O modo concreto de articular aes

    APRESENTAO

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    Kenneth Rochel de Camargo Jr.

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    assistenciais, dizendo-as integrais no cuidado, define o patamar tico etcnico de programao e avaliao da qualidade da assistncia, dimensessituadas no ncleo duro do planejamento e gesto em sade.

    O curioso que integralidade uma palavra que no pode nem aomenos ser chamada de conceito. Na melhor das hipteses, uma rubricaconveniente para o agrupamento de um conjunto de tendncias cognitivas epolticas com alguma imbricao entre si, mas no completamente articula-das. Pode-se identificar, grosso modo, um conjunto de tradiesargumentativas que desembocam nesse agregado semntico: por um lado,um discurso propagado por organismos internacionais, ligado s idias deateno primria e de promoo de sade; por outro, a prpria demarcaode princpios identificada em pontos esparsos da documentao oficial daspropostas de programas mais recentes do Ministrio da Sade em nossopas; por fim, nas crticas e proposies sobre a assistncia sade dealguns autores acadmicos em nosso meio. A inexistncia de uma definiode fato sobre o que seria a tal integralidade ao mesmo tempo umafragilidade e uma potencialidade, sendo ambas caractersticas apontadas,ainda que nem sempre simultaneamente, em vrios dos textos aqui reunidos.Essa no-definio talvez explique, ainda, mesmo que parcialmente, a claraescassez de bibliografia sobre o tema, o que torna a publicao deste volumemais que oportuna, verdadeiramente estratgica do ponto de vista das pos-sibilidades que abre para a qualificao do debate sobre a integralidade.

    A variedade de abordagens e propostas fica evidente ao olharmos oconjunto dos textos que esto sendo publicados. Os dois primeiros trabalhosdesta coletnea tm em comum o recurso histria como apoio para odesenvolvimento de suas anlises. No primeiro deles, Madel Luz situa his-trica, social e politicamente o momento atual da poltica de sade, assina-lando alguns de seus paradoxos, como a descentralizao de responsabilida-des com centralizao de recursos financeiros, num contexto de ajuste aomodelo globalizado que jamais se completa, para explicitar no plano simb-lico uma certa concepo de sade, utilitarista e mercantilizada, que permeiaa nossa sociedade. Isto se traduz, por um lado, na busca da esttica doscorpos jovens e potentes como sinnimo de sade e, por outro, na prolife-rao de um mal-estar difuso que carreia cada vez mais pessoas para osconsultrios dos servios de sade. A idia do cuidado e a solidariedade semostram contra-estratgias eficazes na construo de uma resistncia aoindividualismo em suas vrias manifestaes.

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  • Apresentao

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    Ruben Mattos aborda o tema da integralidade como um valor, mostrando-o, em primeiro lugar, como um diferenciador claro de propostas como as queinspiraram o arcabouo jurdico que deu origem ao SUS no Brasil, caracte-rizadas pela universalizao do acesso aos servios de sade como dimen-so da cidadania, em contraste com o vis economicista tipificado pelaspropostas do Banco Mundial, que prope a focalizao da assistncia pblica sade isto , a criao de barreiras de acesso como mais eficaz.A partir de um rastreamento histrico do desenvolvimento da idia deintegralidade bandeira de luta polissmica, uma imagem-objetivo, confor-me a expresso resgatada dos clssicos do planejamento em sade passaa explicitar o conjunto de valores a ela associado, bem como a ilustrar comoestratgias variadas da assistncia sade se inspiraram e transformaramessa idia-fora, evidncia clara de sua fertilidade.

    O texto seguinte traz uma perspectiva mais transversal, baseada numestudo de caso sobre a implantao de um sistema de sade local. Tomandoas prticas do cotidiano como base de desenvolvimento de sua argumenta-o, Roseni Pinheiro aborda os desafios colocados s tentativas de integrao,nos seus vrios sentidos, pela assistncia sade nos servios pblicos.A sua exposio deixa claros, em particular, os equvocos da concepotecnocrtica do planejamento em sade, vistos como a aplicao daracionalidade de experts sobre uma populao tomada como receptora pas-siva. Quanto a esta ltima, o estudo aborda, de forma inovadora, a articu-lao das concepes populares sobre questes fundamentais para a assis-tncia sade com a prpria determinao de demanda entendida na suadialtica com a oferta, vendo-se ambas como resultado de processos din-micos e no simplesmente um retrato congelado no tempo definido a priori.No mbito da oferta, desenvolve-se a idia de que a mesma condicionadae enquadrada por um determinado modelo de racionalidade a da biomedicina o que por sua vez determina um claro desafio para a mudana de seuspadres. Na composio final do mosaico apresentado, fica clara a dimen-so propriamente poltica da luta pela implantao de servios de sade quegarantam de fato o que consta como direito na letra da lei: o servio desade de qualidade e de acesso universal.

    Luiz Carlos de Oliveira Cecilio, membro de um dos mais ativos gruposde pesquisa voltados para a questo da assistncia na rea de Sade Co-letiva, prope a discusso das necessidades de sade como eixo estruturanteda discusso, no apenas sobre a integralidade, mas sobre a poltica desade de um modo geral. No entender de Cecilio, esse enfoque permitiria

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    Kenneth Rochel de Camargo Jr.

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    romper com vrias dicotomias como a dissociao entre os nveis macroe micropoltico que paralisam a discusso crtica e, possivelmente, mesmoa ao inovadora. Seu texto prope uma viso ampliada da idia deintegralidade, que no seu entender subsumiria as propostas de integralidade(tal como correntemente entendida), eqidade e universalidade.

    A seguir, Ana Emlia Guedes retoma a chave histrica como recursometodolgico, e aborda o discurso das aes bsicas de sade comoexplicitador de tenses internas presentes nas sucessivas abordagens sobreintegralidade. Retomando alguns dos pontos assinalados por Luz no textoque abre a coletnea, mostra a contradio entre as intenes universalistasdo chamado movimento sanitrio, presentes nos textos legais de regula-mentao do SUS, e as tentativas de restrio mais ou menos disfaradasembutidas em mais uma proposta de modernizao conservadora da esferapblica no Brasil. Nesse texto ficam claros os limites criados pela indefinioconceitual da idia de integralidade: a pactuao em torno de prticas con-cretas fica dificultada pelo que a autora chama de carter amorfo de suadefinio.

    Sonia Acioli retorna perspectiva do campo, como Roseni Pinheiro,porm centrada ainda mais no ponto de vista da sociedade civil, mais espe-cificamente de um grupo urbano dos mais desfavorecidos, no que diz res-peito conceituao nativa sobre sade. De modo inovador, seu estudoprocura associar essa conceituao s prticas de sade da mesma popu-lao, prticas estas entendidas dentro de um conceito ampliado, j enunci-ado por Madel Luz no primeiro texto deste livro.

    Uma questo recorrente na discusso sobre a integralidade das aes desade diz respeito aos programas especficos, orientados por grupospopulacionais e/ou categorias diagnsticas. Domingos Svio Alves mostra apossibilidade no apenas da reflexo sobre o tema integralidade no interiorde uma rea especfica a sade mental de onde extrai importantes liessobre a indissociabilidade entre a idia de integralidade e a possibilidade deacesso aos servios de sade. Adicionalmente, fecha o texto com umainteressante especulao sobre a possibilidade (ou mesmo necessidade) deincorporao dos programas de sade mental a uma perspectiva mais ampla nominalmente, a de sade da famlia.

    Roseni Pinheiro e Ruben Mattos tm coordenado um programa de pes-quisas sobre integralidade no Instituto de Medicina Social da UERJ.O I Seminrio do Projeto Integralidade, realizado nesse Instituto em agostode 2000, reunindo professores e alunos, pesquisadores e gestores, agentes do

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  • Apresentao

    OS SENTIDOS DA INTEGRALIDADE NA ATENO E NO CUIDADO SADE 19

    aparelho de Estado e da sociedade civil, procurou demonstrar a vitalidade ea urgncia do debate sobre a integralidade, deixando em aberto um leque depotenciais a explorar, tanto do ponto de vista da assistncia quanto da pes-quisa. Como parte do mesmo esforo de reflexo, os organizadores dapresente coletnea ministraram a disciplina Os Sentidos da Integralidade,no Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva, tambm no Instituto deMedicina Social. Os textos aqui apresentados retratam as questes suscita-das no primeiro seminrio, assim como a reflexo desenvolvida ao longodaquela disciplina. Escrevo a apresentao deste material pouco aps arealizao do segundo seminrio do mesmo programa no espao aproximadode um ano, o que mostra, por si s, a vitalidade do mesmo.

    neste ponto que encerro minha participao neste volume, convidandoo leitor a compartilhar com os autores dos textos que se seguem suasindagaes, dvidas e hesitaes porque neles no encontraro propostasfechadas. Como pesquisador, acredito que esse o maior tributo que sepode prestar ao seu trabalho.

    Rio de Janeiro, novembro de 2001.

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  • Polticas de Descentralizao e Cidadania:Novas Prticas em Sade no Brasil Atual

    MADEL T. LUZ

    O projeto de descentralizao em sade surgido no Brasil nos anos 50 retomado, em termos de poltica pblica, no incio da dcada de 80, com acrise das polticas sociais do Estado militar autoritrio, que durou duas d-cadas.

    Aqui se fala em retomada, porque os atores so essencialmente osmesmos do perodo anterior (burocracia e profissionais da rea de sade eprevidncia) e o modelo basicamente o mesmo sanitarista edesenvolvimentista, embora atualizado. A novidade, em termos polticos, que a nova descentralizao incorpora aos poucos o projeto dos servioslocais de sade (SILOS), elaborado pelos organismos internacionais daordem sanitria (OMS/OPS) nos anos 70. Tambm cresce a idia de par-ticipao em direo sociedade civil, aos usurios dos servios, em vezda idia de comunidade, to cara aos anos 60. Programas dedescentralizao municipal de servios so estruturados na primeira metadedos anos 80, em acordo com prefeituras simpatizantes das idias dedescentralizao e de priorizao dos servios bsicos de sade.

    Essas experincias continuam aps o perodo de transio democrtica(1975), com a poltica de sade da Nova Repblica e a criao do ServiosUnificados e Descentralizados de Sade (SUDS), e sero o laboratrio doprojeto Sistema nico de Sade (SUS), que chegar praticamente pronto VIII Conferncia Nacional de Sade, em Braslia, em 1986, para ondeconvergiram mais de trs mil pessoas, fato indito na histria dessas confe-rncias. necessrio esclarecer que a dcada de 80 foi palco de umaprogressiva movimentao social em torno das polticas pblicas, principal-mente a de sade, que passou a ser vista pela sociedade civil organizada(associaes, organizaes civis, sindicatos e partidos) como direito decidadania. Houve a formao de movimentos populares em torno das

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    Madel T. Luz

    OS SENTIDOS DA INTEGRALIDADE NA ATENO E NO CUIDADO SADE

    questes centrais das polticas de sade (universalizao, hierarquizao eacessibilidade em relao aos servios), bem como grande participao degrupos organizados locais (comunitrios) nas Conferncias de Sade (es-taduais, municipais), fruto da importncia que toma essa questo na polticada conjuntura1.

    importante ressaltar que a movimentao da sociedade civil teve papelinegvel na aceitao poltica das propostas da VIII Conferncia Nacionalde Sade, em grande parte consubstanciadas no SUS. Pela primeira vez, sepode falar numa poltica pblica no pas, que busca, ao menos no seu dis-curso, a descentralizao e a desconcentrao, em proveito de instnciasintermedirias de poder institucional e sob controle social do cidado, atra-vs de participao em conselhos (estaduais, municipais e locais) destinadosa este fim. A sade tornou-se a vanguarda das polticas pblicas nessaquesto. Entretanto, grande parte desse instrumento de descentralizaopoltica ficou sem regulamentao at o fim dos anos 80. Quando se inicioua dcada de 90, os ventos polticos sopraram a favor do neoliberalismo, coma eleio de Collor de Mello. Comeava ali um processo de desmonte depolticas pblicas construdas no apenas na dcada anterior mas em outras,recuando-se at o governo de Getlio Vargas e a poltica previdenciria dosanos 30.

    inegvel a complexificao dos contrastes e problemas crnicos dasociedade brasileira na ltima dcada, em todos os nveis econmico,social, poltico e cultural , resultante no apenas do estilo de crescimentoeconmico e desenvolvimento social do pas2, mas tambm do processoconhecido como globalizao. A endmica concentrao de riqueza, aliadaao crescente desemprego, piorou sensivelmente com a poltica econmica deajuste fiscal adotada pelos governos da dcada, passando a economia bra-sileira, como a de outras do continente, a ser monitorada por organismosfinanceiros mundiais, como o FMI e o Banco Mundial. Foram implantadasnas economias perifricas polticas econmicas internacionais monetaristascentradas no setor externo, para as quais a expanso interna da produoe do emprego nas naes foradas a adot-las tm pouca significao frenteao controle da dvida externa, do equilbrio fiscal, da balana de pagamentose da fora da moeda. O processo de implantao desse modelo em nossopas, iniciado no Governo Collor, ampliou-se e consolidou-se nos dois pero-dos do Governo FHC.

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  • Polticas de descentralizao e cidadania: novas prticas em sade no Brasil atual

    OS SENTIDOS DA INTEGRALIDADE NA ATENO E NO CUIDADO SADE 23

    A conseqncia dessas polticas tem sido o empobrecimento dos povosdos pases ditos de Terceiro Mundo ou emergentes, que acontece numaescala e com uma rapidez jamais presenciada no capitalismo3. Multides depobres so continuamente jogadas nas ruas desses pases, pelo desemprego,pelo encarecimento da moradia, pelas doenas, pela velhice sem amparodevido a uma aposentadoria insuficiente. So populaes vistas comodescartveis, como acentuaram estudiosos da questo da transformaodo regime de trabalho e das condies sociais no capitalismo mundializado,inaugurando uma triste nomenclatura incorporada pela mdia. A perda destatus e de capacidade de consumo, com inevitvel declnio econmico esocial das camadas mdias tradicionais (pequenos comerciantes, comercirios,profissionais liberais, bancrios, funcionrios pblicos civis e militares) outro subproduto inegvel do processo de mudana na economia em planonacional e internacional, conhecido como globalizao.

    Nesse contexto, os jovens dificilmente encontram lugar no ncleo din-mico do sistema de produo, independentemente de sua qualificao (evi-dentemente, quanto menos qualificado o jovem, ter menor probabilidade deter um emprego e ser mais atrado para o mundo do crime e do trfico dedrogas); os maduros so expulsos de seus empregos pelo encolhimento dospostos de trabalho, sobretudo na indstria; os que perdem o emprego tmgrande dificuldade em voltar para o sistema. Como conseqncia, a econo-mia informal acaba atingindo praticamente 50% do volume da atividadeeconmica. Todos esses fatos, conhecidos no apenas dos estudiosos dascondies de vida da sociedade brasileira, mas da opinio pblica, somencionados aqui para chamar a ateno para a importncia que terocomo resultado final em termos de aumento de demanda de ateno mdica,uma vez que atingem duramente a populao, sobretudo em termos de sademental, motivando uma verdadeira crise na estrutura de atendimento dasade pblica.

    A proposta do Estado neoliberal, como estratgia, encolher-se ao nvelmnimo, deixando em mos privadas, filantrpicas ou voluntrias, s quais fazapelos constantes de participao e parceria, atividades concernentes aosetor social, secularmente definidas como funes pblicas essenciais. Tam-bm por isso essa forma de Estado tem sido denominada entre ns deneoliberal, como aluso ao Estado liberal clssico do fim do sculo XIX eda Primeira Repblica, ou Repblica Velha, no incio do sculo XX4.

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    O Estado neoliberal nos tem governado e dominado nos ltimos dez anos,e temos cincia do que tem sido sua poltica de sade: corte de verbas,desmonte do setor pblico, desvio de verbas destinadas sade para outrosgastos etc. No pretendo deter-me nesses aspectos, ampla e cotidianamentedebatidos e denunciados por economistas, cientistas polticos, sanitaristas epela mdia. Limito-me a analisar, ainda que brevemente, o que essa polticaimplica em relao s questes centrais destas pginas, isto , a questo dapolaridade centralizao/descentralizao, da cidadania e das prticas emsade na sociedade civil.

    Em aparente paradoxo, o Estado neoliberal tende a favorecer adescentralizao. Digo aparente porque, no plano financeiro, os governosneoliberais tendem a centralizar os recursos da Unio, que passam a sercontrolados por sua equipe econmica, atravs da concentrao dosmesmos nos ministrios ligados economia, e a exercer sobre as unidadesda federao (estados e municpios) um controle frreo, estabelecendo umconjunto de regras contbeis para o repasse dos recursos provenientes dosimpostos a essas unidades. No desenvolvimento desta lgica de repasses,a partir de um certo ponto, o poder central passa a agir como um agentefinanceiro em relao a essas unidades, emprestando-lhes os recursosnecessrios para obras de investimento, custeio, folha de salrios etc. Comoconseqncia, os estados e municpios no apenas passam a depender dopoder central para desempenhar a contento suas atividades, como tendem aendividar-se para alm do que permitiriam as receitas provenientes de suasunidades5, criando um crculo vicioso semelhante ao que enfrenta o prprioEstado nacional face aos organismos financeiros internacionais. Deste pontode vista, o Estado neoliberal o mais centralista de todos os que a Repblicabrasileira pde conhecer.

    Do ponto de vista da concentrao do poder poltico, esse tipo de cen-tralizao enseja formas de manipulao e corrupo tambm inditas nopas, pois, atravs do controle dos recursos, o poder central negocia, desvia,cerceia ou libera as verbas em princpio destinadas a setores sociais bsicos,como sade e previdncia social, chegadas ao nvel da emergncia. Ospoderes Legislativo e Executivo, nos nveis estadual e municipal, acabamtornando-se refns dessa poltica, assistindo o pas atnito e deprimido aobalco de negociaes corporativas das verbas pblicas em que se trans-formaram as relaes entre os poderes da Repblica. Por outro lado, oncleo central do Estado faz o que pode para se livrar do nus poltico, social

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    e econmico que representam sade e previdncia, transferindo para unida-des perifricas as funes e, sobretudo, as responsabilidades concernentesa essas funes. Esta delegao, prevista num instrumento dedescentralizao de poltica pblica, como o SUS, torna-se uma forma deo Estado central desincumbir-se de funes que lhe so constitucional-mente atribudas.

    Entretanto, o repasse dos recursos necessrios para o desempenhodessas funes no se faz no mesmo ritmo nem com a mesma presteza comque so repassadas as obrigaes. Desta forma, se quisesse resumir numaformulao clara e simples a poltica de descentralizao da sade dosgovernos neoliberais da ltima dcada, poderia dizer que esta tem consistidoem transferir (delegar) funes para unidades estatais territorialmentemenores (estados, municpios e locais), no sentido de delas poder cobrarresponsabilidades referentes s funes delegadas com o menor dispndiopoltico e financeiro possvel. Esta tem sido basicamente a estratgia dedescentralizao do Estado neoliberal. Evidentemente, esta uma das pers-pectivas polticas envolvidas na questo da descentralizao da poltica desade, embora seja a que mais pesa em termos de conseqncias para asociedade civil e para a nao como um todo, considerada a importncia doator poltico envolvido nessa perspectiva. Mas h tambm as perspectivas deoutros atores, presentes em conjunturas anteriores, como os profissionais eas burocracias da rea de sade, e a sociedade civil, que merecem seranalisadas. Alm disso, novos atores que crescem na conjuntura dos anos90 precisam ser colocados em exame para que se tenha uma viso maisglobal e ntida da complexidade do problema. Em primeiro lugar, cabemalgumas palavras sobre os atores tradicionais da discusso do processocentralizao/descentralizao nas polticas de sade.

    Refiro-me aqui aos profissionais (mdicos, enfermeiros, psiclogos,nutricionistas e assistentes sociais) e a certos setores da burocracia da reade sade (Ministrio da Sade e da Previdncia Social). Creio que essesatores evoluram de uma viso corporativa estrita (portanto particularista)para uma viso mais democratizante (portanto mais universalista) durante osanos 90, na medida em que passaram a ter uma interlocuo com a soci-edade civil organizada (associaes, organizaes, sindicatos, setores departidos etc.) e advogaram muitas vezes sua participao no planejamentoe na gesto (controle social) dos servios de ateno primria sade,atravs de conselhos integradores de sua representao. Mais que isso:foram em geral esses atores o que no quer dizer sempre, pois

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    resistncias houve e ainda hoje h muitas que propuseram e fizeramimplantar tais Conselhos nas Secretarias de Sade nos diversos nveis (local,municipal e estadual).

    Profissionais e burocratas, incluindo os gestores, so, portanto, uma forapoltica que tem atuado no interior do Estado (nas instituies estatais desade) ou na periferia do Estado (nas instituies corporativas de sade),no sentido de produzir um movimento de desconcentrao do poder estatalde dentro para fora, num processo de descentralizao atravs dofavorecimento da co-gesto institucional em todos os nveis territoriais (local,municipal, estadual e central), confirmando mais uma vez a teoria de que asinstituies, mais que simples reproduo do Estado, so contraditrias efuncionam como campo de luta poltica. Neste sentido, devem-se conside-rar profissionais e burocratas da rea de sade como vanguarda dadescentralizao e da desconcentrao institucional no interior das polticaspblicas brasileiras, nos ltimos 15 anos. Sua estratgia tem servido demodelo para outras reas sociais, como a educao.

    Em seguida, cabe considerar o efetivo avano de movimentos popularese de organizaes da sociedade civil, desde a segunda metade da dcada de80, no sentido de reivindicar participao no planejamento e na gesto (con-trole social) dos servios de sade. Esse avano tem caminhado da peri-feria para o centro, em termos territoriais e polticos, isto , do local para ocentral. Os municpios e localidades so o grande eixo de mobilizao peladescentralizao em direo s Secretarias Estaduais de Sade e ao podercentral, no Ministrio da Sade. Alm das organizaes e associaes locaiscomunitrias, atuantes desde o incio dos anos 80, cabe assinalar, na dcadade 90, o surgimento e desenvolvimento participativo das organizaes no-governamentais (ONGs) e dos agentes comunitrios de sade, ambos comimpacto na movimentao poltica civil que envolve a questo da sade.

    Assim, a participao efetiva da sociedade civil nas polticas de sade,resultante do entrosamento entre organizaes civis e setores institucionais(profissionais, burocratas e gestores) tem variado de acordo com a culturapoltico-partidria dominante nos governos de nvel municipal ou s vezes estadual, e tem sido um elemento concreto de desconcentrao do poderestatal atuando de baixo para cima, embora ainda limitado a poucos es-tados e municpios. Poder-se-ia dizer que esse entrosamento produtivo departicipao constitui fator de democratizao da poltica de sade. Evi-dentemente essa presso democratizante pode encontrar reao mais oumenos positiva, com maior ou menor intensidade da parte do poder pblico.

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    No que concerne ao governo central, essa reao tem sido praticamentenula, em funo da natureza das polticas pblicas restritivas vigentes nogoverno neoliberal, que no ultrapassam o nvel de assistncia, emergencialaos mais necessitados.

    No que concerne ao Estado, visto como conjunto de esferas de gover-no, preciso assinalar sua grande diversificao interna em direo aolocal, operada na dcada de 90, com a expanso dos municpios e o cres-cimento do peso dos governos municipais, atravs da expanso das prefei-turas (e de suas secretarias). Um dado significativo desse crescimento aorganizao dos prefeitos em nvel de associao nacional, bem como dascmaras legislativas, dando origem ao que se poderia denominar de umassociativismo pblico indito no pas.

    Os municpios necessitam se unir na atualidade, em termos de poderpblico, para fazer face ao poder central, no sentido de obter recursosoramentrios para suas atividades e evitar o colapso fiscal por endividamento.Quero acentuar aqui que um novo ator poltico consolidou-se na dcada de90 em relao questo da centralizao x descentralizao das polticaspblicas, e esse ator tende a ganhar importncia, na medida em que cresceseu peso na balana poltica, atravs das eleies. Neste sentido, afirmo quetambm o poder municipal tende a ser nos prximos anos uma esfera degoverno que pressiona o Estado central de baixo para cima, no sentido dadescentralizao/desconcentrao das polticas pblicas em geral, e em es-pecial das polticas de sade, em funo do dispositivo descentralizadorrepresentado pelo SUS, fortalecendo direitos sociais de cidadania e a inclu-so da sociedade civil no Estado.

    Entretanto, devem-se levar em considerao as foras polticas que atu-am em sentido contrrio a essa tendncia. Alm da prpria estrutura doEstado na conjuntura atual e das polticas que dela decorrem, existem osinteresses de privatizao, organizados desde os anos 70, transformados emlobbies, nos anos 80, e em poderoso ator poltico nos anos 90: laboratriosfarmacuticos, corporaes mdico-hospitalares, seguros e servios privadosde sade, chegados ao nvel de atividade financeira, em geral cartelizados.

    Essas foras sociais tm forte presena em todos os nveis e esferasgovernamentais e pressionam fortemente o Estado no sentido de seus inte-resses. O Estado, por sua vez, tende a privatizar seus servios e a limitar-se a ser apenas um regulador do mercado em relao a preos e qualidadesde servios e produtos oferecidos populao na rea de ateno mdica.

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    Madel T. Luz

    OS SENTIDOS DA INTEGRALIDADE NA ATENO E NO CUIDADO SADE

    Desta forma, as foras socialmente dominantes tendem a se complementare a tensionar as foras que atuam no sentido da descentralizao edesconcentrao das polticas de sade.

    Deve-se assinalar, entretanto, o forte interesse do Estado central emtransferir funes e servios para sua periferia, em termos territoriais e deesferas de governo (servios de sade em nvel local), o que tem tidoefeitos descentralizadores em relao poltica de sade. Foram criadasregulamentaes assegurando a efetiva transferncia, inclusive em planofinanceiro, dentre as quais se destacam as Normas Operacionais Bsicas(NOB), editadas durante a dcada de 90. A regulamentao de Conselhosde Integrao de gesto institucional, em nveis municipal e estadual, iniciadanos anos 80 sem grande adeso, tambm se desenvolveu nesse perodo,superando aos poucos o tradicional isolamento institucional no plano da gestoe do desenvolvimento de programas.

    Deste modo, pode-se dizer que na dcada de 90 houve descentralizaona poltica de sade brasileira, se entendida como delegao de funes outransferncia de aes (e sua gesto) para nveis territoriais menores eperifricos do sistema (municpios e localidades). Mas, se considerada aconcentrao dos recursos na esfera central de governo, o frreo controlecontbil exercido sobre os nveis perifricos e a priorizao de determinadosprogramas verticais no necessariamente coerentes com os escolhidoscomo prioritrios em nvel municipal , pode-se dizer que se trata at omomento de uma descentralizao incompleta, que s vezes chega ainviabilizar, por insuficincia de recursos, o funcionamento de programase servios locais, sobrecarregando os profissionais de sade e responsabili-zando-os, s vezes de maneira espalhafatosa6, pelas falhas resultantes doestrangulamento do sistema de ateno sade.

    Finalmente, se houve descentralizao na poltica de sade brasileira nadcada encerrada, no houve e nem poderia haver, considerando-se acomposio atual do Estado e sua poltica dominante desconcentrao.A presso de setores da sociedade civil, profissionais e burocracia, bemcomo do poder pblico em nvel municipal, entretanto, constante e tendea crescer com o papel do local na poltica estatal nos anos vindouros. Issopressionar o Estado no sentido de implantar descentralizao comdesconcentrao institucional de poder, forando a poltica de sade aavanar no sentido das demandas da sociedade.

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    Quando se avana, alis, na direo das prticas e representaes desade da sociedade civil brasileira isto , dos indivduos, grupos e cole-tividades que a compem , deve-se mencionar a multiplicidade e a diver-sidade de modelos, discursos, prticas e representaes presentes, ligados asaberes tradicionais ou atuais, a sistemas mdicos complexos (como ossistemas tradicionais indgenas) ou a terapias descoladas de uma racionalidademdica especfica e justapostas a outras, originrias de contextos culturaisdiferentes dos da colagem efetuada.

    Diversidade, fragmentarismo, colagem (ou, se preferirmos a expressocunhada por Lvi-Strauss, bricolage), hibridismo e sincretismo, caracters-ticas culturais atribudas ps-modernidade, esto seguramente presentes nogrande mercado social da sade contempornea. Aqui a positividade darepresentao de sade ganhou fora nos ltimos 30 anos, face a uma visoat ento dominante de sade como normalidade / ausncia de doena, oucapacidade / incapacidade de trabalhar ou de desempenhar atividades7. Voltareia esse tema mais adiante. No momento, creio ser mais importante discutiro porqu da unanimidade da sade. Por que a sade to importantena cultura atual, a ponto de podermos nos referir a ela como a novautopia?

    Acredito que se pode comear pelo custo social que a sade passou arepresentar para os indivduos, as famlias, o Estado e a sociedade civil nosltimos 20 anos. Adoto essa hiptese, macroanaltica, como uma hipteseinterpretativa com funo de elemento terico de contextualizaosocioeconmica. Ela no suficiente, entretanto, para explicar a pluralidadede sentidos e significados, de representaes sociais e prticas sintetizadosna categoria sade presentes na sociedade atual. Pluralidade que remete complexidade do universo simblico presente na cultura atual. Nele a diver-sidade de atribuies de sentidos e significados, de representaes, adoode identidades individuais e coletivas no campo da sade gera o que deno-mino monlito simblico da sade. No universo simblico contemporneoh um conjunto de representaes relativas aos valores dominantes na so-ciedade, como o individualismo (a compreenso dos sujeitos como unidadespontuais autnomas), a competio entre os indivduos como regra bsicado relacionar-se, o consumismo como afirmao de ser, o corpo (e seucuidado) como unidade central muitas vezes nica delimitadora do in-divduo em relao aos outros, bem como as estratgias de valorizao docorpo, com o sentido de obter dinheiro, status e poder. As estratgiasreferentes a essa valorizao so basicamente estticas e incluem

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    representaes e imagens de juventude, beleza e fora. Essas estratgias,dominantes na cultura, permeiam as representaes e prticas de sade,subsumindo-as e dirigindo-as no sentido da ratificao e do fortalecimentodos valores centrais da sociedade mencionados.

    Por outro lado, a questo das condies de vida, emprego, trabalho,qualidade de vida, no sentido social e psicossocial da expresso, ressurge,neste contexto, como lugar privilegiado no apenas terico mas simblico, nadefinio do que sade. Para muitos, atualmente, ter sade podertrabalhar, mas agora no mais no sentido de ter disposio ou fora fsicapara o trabalho, mas no sentido de estar empregado e, na melhor das hip-teses, de ter estabilidade no emprego. Este o sentido socioeconmico maisamplo a que me referi, acima, do custo social da sade. Esse sentido esttambm ligado a outro, ao de custos do cuidado mdico (dos seguros eplanos de sade) no contexto atual de tecnificao da medicina e de suaabsoro pela economia de mercado capitalista. Nesse contexto, a medicinavem-se transformando numa atividade de produo de bens (enquantoofertante de servios mdicos) e em instncia social de consumo de bens(pelo lado da demanda de servios pelo paciente, reduzido a cliente)8.

    Deste ponto de vista, ter sade significa, muitas vezes, no mais poderadoecer, no ter mais esse direito. Na verdade, adoecer significa, paramuitos indivduos e famlias, atualmente, seja na Amrica do Norte ou naEuropa, na Amrica Latina ou na sia, perder o emprego, abrir falncia, cairabaixo da linha da pobreza e de l provavelmente no sair. Cuidar da sade,ou manter a sade em forma, implica cuidar tambm do emprego portanto, da prpria sobrevivncia.

    A situao de insegurana e instabilidade torna-se, por sua vez, fonte dosconstantes desconforto, inquietao e perturbao, designados como stress,que por sua vez gerador de adoecimento em grandes faixas da populao.Alm disso, a mudana econmica acelerada vem ocasionando acentuadadesagregao de valores culturais, atingindo relaes sociais e setores davida social considerados estveis at recentemente. A subverso de valoresrelativos a geraes, gneros, sexualidade, formas de socializao baseadasna educao e no trabalho, alm da tica das relaes interpessoais, profis-sionais e polticas, tem gerado perturbao e agravos sade fsica e mentalem parcela crescente de indivduos na sociedade atual. Um grande mal-estarpsicossocial est em curso, produzindo sintomas e sndromes indefinidos,muitas vezes no identificveis pela medicina, responsveis pela perda demilhes de horas de trabalho em todo o mundo. Configura uma grave crise

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  • Polticas de descentralizao e cidadania: novas prticas em sade no Brasil atual

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    sanitria e gera uma constante busca de cuidado das pessoas num conjuntode atividades, todas vistas como de sade, dentre as quais sobressaem asteraputicas ditas alternativas.

    A universalidade atual do paradigma ou utopia da sade pode ser cons-tatada no apenas na quantidade e na diversidade das atividades e prticasatualmente designadas como de sade, mas sobretudo na tendncia aressignificar atividades sociais vistas na cultura como atividades ldicas dejogo ou lazer, esporte ou recreao, estticas, ou mesmo erticas, comoatividades de sade. O esporte, a dana, o namoro, as relaes sexuais,o alimentar-se, o dormir, o caminhar, o trabalhar, tudo pode e deve ser vistocomo prtica de sade. Ou de risco de doena, dependendo da inteno,da intensidade, da freqncia e da quantidade com que feito. Pois todasas atividades devem ser praticadas com equilbrio, comedidamente, isto ,sem excessos.

    Quero chamar a ateno para a questo do comedimento como uma dasrepresentaes fundamentais da sade, embora no nica, na cultura con-tempornea, originria da prpria sociedade moderna burguesa9. Todo ex-cesso visto, nesse contexto, como um risco sade, porque desequilibra,e o desequilbrio gera o adoecimento, isto , a chegada da doena. Entrepacientes da rede pblica de sade, por exemplo, encontra-se com muitafreqncia uma representao autoculpabilizante dos excessos no comer,beber, ou em outros hbitos, como origem do seu adoecimento. A medida doagir, do comportar-se ou do controlar-se est nos sujeitos, pois so eles osresponsveis por no danificar sua sade com excessos. A questo dafalta, por outro lado, sempre vista pela perspectiva do excesso de algu-ma qualidade vital negativa: a falta de exerccios, por exemplo, semprevista em funo da vida sedentria, em que sobra descanso ou inatividadefsica e assim por diante. O equilbrio, neste caso, fruto no debalanceamento entre foras ou pesos opostos, mas de conteno, e a con-teno supe o autocontrole dos sujeitos.

    A conteno dos excessos, entretanto, no o nico modelo decomedimento presente na cultura contempornea. Outros modelos de equi-lbrio no se reduzem ao paradigma da normalidade / doena, fugindo aomodelo do comedimento ligado ao controle mdico. Existem representaesafirmativas de equilbrio em grupos e coletividades na sociedade civil, asso-ciadas vitalidade e sua conservao, ao aumento da energia (sinnimode vitalidade, neste modelo), vista como fora, juventude e beleza, ou har-

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    monia, vistas, por sua vez, como sinnimo de sade. Manter a sade emforma , neste caso, manter a forma, no sentido mais esttico da palavraforma10. Um conjunto muito importante de atividades de sade, com umnmero crescente de adeptos, decorre desse modelo.

    Interessa assinalar aqui que a esttica, mais que a racionalidade mdicae seus modelos (normalidade / patologia ou vitalidade / energia), o critriosociocultural de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmenteso saudveis, ou se precisam exercer alguma atividade de sade, atra-vs do estabelecimento de padres rgidos de forma fsica. O verdadeiromandamento da sade est mais ligado boa forma do que ao modelodoena / preveno / cura. As representaes e prticas atuais relativas sade, tanto as ligadas biomedicina, como as que se ligam s propostasmdicas vitalistas, ou mesmo s conhecidas como naturistas, esto profun-damente atravessadas por representaes estticas do corpo, as quais esto,por sua vez, ancoradas nos valores individualistas dominantes na culturacontempornea. Deriva dessa interpenetrao simblica entre sade, influ-enciada pela ordem mdica, pela esttica e pelo individualismo, uma srie deconseqncias interessantes em termos de representaes, prticas e estra-tgias de incluso / excluso de indivduos e grupos sociais.

    Chamo a ateno para atividades de sade que se organizam na so-ciedade civil atual, destinadas a lidar, de acordo com os diferentes extratossociais, sua mentalidade e insero na estrutura de produo ou na cultura,com os processos de incluso ou, mais freqentemente, de excluso socialque decorrem da interpenetrao mencionada acima. Essas atividades ten-dem a se tornar estratgias e tticas de resistncia a esses processos, ou decriao de novos valores e prticas de sociabilidade. As atividades desade podem ser vistas, nesse contexto, como um tipo de estratgia desobrevivncia social, de rompimento com o isolamento provocado pela cul-tura individualista e narcisista que predomina na sociedade capitalista atual.A meu ver, elas manifestam a presena da diversidade das representaesde sade na cultura atual e o desenvolvimento de valores atuais concernindoa relaes sade / doena, corpo / mente, fora / juventude, beleza / sade,sade / juventude etc.

    Abordarei o conjunto de atividades ou exerccios de sade mencio-nadas h pouco, que so mais presentes nos grandes centros urbanos. Trata-se das atividades fsicas praticadas coletivamente no espao das academiasde ginstica, com predominncia das faixas etrias mais jovens (18-35 anos)mas com tendncia de expanso para faixas etrias mais avanas (40-60

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  • Polticas de descentralizao e cidadania: novas prticas em sade no Brasil atual

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    anos), conforme reportagens e noticirios da imprensa escrita e televisiva.Tais atividades no procuram mais, como em perodos clssicos, equilibrarmente e corpo na busca do equilbrio / sade, mas fortalecer e tornaraparentes certos tecidos do corpo, desenhando msculos, levantandoseios e ndegas, tornando fortes msculos e tendes, modelando, assim, umaimagem de sade que associa fora, juventude e beleza. A prtica sistem-tica de exerccios repetidos sob ritmos variados, freqentemente acompa-nhados por msica coerente com tais ritmos, visando a pr em forma ocorpo, caracteriza esse conjunto de exerccios fsicos como um movimentoregido pela esttica na cultura atual. Existem variadas formas de exerccioscoletivos, conhecidos sob o ttulo de atividades fsicas, praticados s vezesno mesmo espao, isto , na mesma academia, que incluem diversosmodelos e distintos paradigmas de prticas, do mais biomecnico ao maisbioenergtico, que absorveram movimentos da yoga, da dana, das artesmarciais etc. H, no Rio de Janeiro, demanda de pblico para a prtica detodas essas categorias de atividades. A demanda de pblico para a prticade todos esses tipos de atividades crescente nas metrpoles atuais.

    O resultado esperado pela maioria dos praticantes dessas atividades normalmente esttico, e no propriamente de sade. Entretanto, conside-ra-se nesse meio que indivduos no-praticantes esto fora de forma e noso, conseqentemente, saudveis. Como a busca da beleza / juventude ogrande empenho nessa atividade, muitas vezes h um excesso nas prticasmais hard do fisiculturismo, o que acaba danificando a prpria sade. freqente o uso de esterides anabolizantes e outras substncias qumicaspelos praticantes de modalidades, como musculao, sobretudo os de sexomasculino, no sentido de fazer crescer os msculos, torn-los mais apa-rentes e evitar o cansao para poder praticar mais exerccios. A busca desucesso, status e dinheiro, assim como o consumismo associado ao corpoem forma, entre os jovens de classe mdia das academias, perceptvel,embora esses no sejam os nicos valores presentes. O corpo represen-tado como um capital potencial, um investimento que pode(e deve) ter retorno. Fica patente, nesse contexto, que o corpo individual o centro do universo simblico desse pblico, independentemente at degnero11. Relaes sociveis de cooperao que ultrapassem os umbrais dosalo da academia, se existentes, so desconhecidas.

    claro que essa caracterizao grosseira e est restrita s faixas maisjovens dos praticantes das atividades fsicas mais hard. Todas as atividadesfsicas praticadas coletivamente em espaos fechados (ou mesmo abertos,

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    como parques, praas e jardins pblicos) acabam levando a atividades decooperao e de identidade de grupo, como passeios, excurses, festas deaniversrios dos praticantes etc., mesmo nas academias de malhao.Entre as atividades fsicas hard incluem-se as formas de ginstica aerbica,em geral acompanhadas de tecnomusic ou ritmos semelhantes, conhecidasentre os brasileiros como malhao.

    As prticas mais suaves de exerccios fsicos, como o alongamento, ahidroginstica, a yoga, a biodana e outras danas praticadas como ginstica(inclusive a capoeira) comportam outras representaes de corpo e de sa-de, em que energia, harmonia e equilbrio aparecem como base da vita-lidade. O prprio ritmo dos exerccios (e da msica que os acompanha), comsua concepo implcita de tempo mais lento e mais singularizado (indivi-dualizado) dos movimentos, exclui a busca de produtividade, entendidacomo resultado imediato, que caracteriza a fisicultura.

    necessrio ressaltar, entretanto, que a prtica continuada das atividadesfsicas tem como resultado corrente o fato de ampliar os limites corporais,o desempenho de atividades fsicas e mentais, bem como a auto-estima dospraticantes. Como conseqncia, h a aquisio de progressiva autonomiaface a medicamentos, prteses, aparelhos e outros procedimentos tecnolgicoscaractersticos da teraputica mdica ocidental. Os professores e instrutoresde ginstica, alongamento, hidroginstica, dana, ioga, tai-chi etc. insistem,independentemente de seus paradigmas, na necessidade de os praticantesbuscarem superar seus limites, indo sempre um pouco mais alm, nosentido de adquirir mais vitalidade e autonomia. Essa contnua busca desuperao representa uma competio cotidiana do indivduo consigo pr-prio, o qual deve adquirir, com a prtica, a percepo desses limites, evitandodanos sade.

    No contexto das academias de aerbica e musculao, entretanto, osindivduos tm pressa em adquirir um corpo saudvel, isto , modelado,que possa ser utilizado como instrumento de ascenso ou promoo social,ou para a conquista de pares com mesmo nvel de beleza e sade nomercado sexual. E tambm para conseguir insero no setor do mercado detrabalho baseado na forma esttica do corpo, com as profisses de modelo,ator etc. A procura da juventude ou do rejuvenescimento atravs doexerccio fsico a forma fsica vista como sade, e esta como decorrn-cia da beleza, fora e juventude caracterizam o paradigma dessas ativi-dades, bem como as representaes que lhes so associadas. So paradigmase representaes enraizados na cultura de corpo dominante entre jovens de

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    classe mdia das grandes cidades, associadas a uma florescente indstria devesturio, cosmticos, alimentos e frmacos, totalmente voltada para aconservao ou recuperao da juventude, isto , para a forma ou fitness.

    Sob a gide desse paradigma, um nmero crescente de adolescentesdessa classe faz apelo s cirurgias plsticas, no sentido de corrigir defeitosda natureza: a remodelao de orelhas de abano (descoladas) ou narizesgrandes, a reduo ou o aumento de tamanho dos seios configuram umconjunto de intervenes mdicas visando a restituir a auto-estima ou aretirar do isolamento os jovens discriminados por suas imperfeies faceao rgido padro atual de beleza, geralmente custa de grande sofrimentofsico e psicolgico.

    medida que se avana em faixa etria e se desce em estratificaosocial, a nfase nesses valores diminui. A freqncia de mulheres de meiae terceira idades aparece como majoritria, como alis em quase todas asatividades de sade da atualidade. Uma suavizao dos valores individualis-tas pode ser notada em aulas de academias freqentadas sobretudo pormulheres nessas faixas etrias. Aparentemente elas buscam, atravs docuidado com a sade (e de uma sonhada recuperao da juventude), aruptura do isolamento em que caem com freqncia as maduras e idosas,em nossa cultura, vtimas dos valores do corpo jovem e belo como critriode aquisio de status e de ascenso social.

    Mas uma minoria de mulheres maduras ou idosas que deseja fazer aginstica aerbica, praticada geralmente pelos jovens. Nos espaos dasacademias, essas mulheres tendem a se sentir deslocadas e inferiorizadas,em funo da depreciao de seu corpo. Alm disso, os mdicosdesaconselham esse tipo de exerccios para pessoas acima de 40 anos, a noser sob estrito acompanhamento12. As mulheres maduras e idosas que de-sejam praticar exerccios fsicos coletivos buscam modalidades mais leves,como a hidroginstica, a antiginstica e o alongamento. Uma parte crescentedelas, sob influncia da mdia, vem buscando os exerccios ligados s me-dicinas alternativas, como tai-chi-chuan, ioga, hidroginstica, biodana oudana de salo. Neste caso, o paradigma da vitalidade / energia est pre-sente, sendo a sade representada como equilbrio / harmonia. O corpo representado como uma dimenso do sujeito, concebido como unidade bio-espiritual. A busca da beleza e da forma associa-se recuperao dasade, flexibilidade ou rejuvenescimento. A cordialidade e a cooperaoentre as praticantes so muito freqentes, assim como as atividades comunsde congraamento, incentivadas pelas academias, possivelmente para man-

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    ter a unidade e a permanncia das turmas.Desejo ressalvar, entretanto, que no so apenas as mulheres maduras e

    idosas que sofrem o isolamento na cultura dos corpos jovens, belos e fortes,isto , dos corpos saudveis13. Tambm os homens de meia ou terceiraidade embora com menor freqncia que as mulheres, porque raramenteesto ss os obesos, os deficientes fsicos e mentais em menor ou maiorgrau, e os jovens desprovidos de dinheiro e beleza esto, quando no discri-minados, situados em lugares inferiores da escala social, onde o capitalcorpo est, por deteriorao ou incapacitao, depreciado.

    A separao entre juventude e beleza possibilitada no apenas porcritrios estticos, em que a diferena vista como anormalidade ou ano-malia (orelhas de abano, nariz ou seios grandes, excesso ou falta de alturaetc.) mas tambm raciais. Freqentemente um jovem negro ou mulato, maioriano pas, pode ser visto como feio, j que o padro internacional de belezaestabelece, ainda hoje, o branco de olhos azuis ou verdes como medidaesttica a partir da qual os indivduos jovens so avaliados. O problemasocial grave que esse cultivo de valores estticos tende a acentuar oisolamento progressivo de um nmero crescente de pessoas, com a perda desentido e horizonte para suas vidas, o surgimento do pessimismo e da deses-perana, do medo e da desconfiana, com a conseqente incomunicabilidadecom outros seres humanos, e a presena crescente de angstia e depresso,que acabam levando ao adoecimento fsico e mental.

    compreensvel, portanto, que uma parte considervel dos atendimentosem ambulatrios da rede pblica das metrpoles brasileiras acredito mes-mo que de todo o mundo contemporneo estimada s vezes em cerca de80%, seja motivada por queixas relativas ao que poderia ser designado comosndrome do isolamento e pobreza. Acentuo a palavra pobreza para sali-entar sua importncia no momento atual da sociedade capitalista mundializada,com as conseqncias graves e duradouras que tem sobre as condies desade das classes assalariadas do planeta. Quero ressaltar que a situaosocioeconmica vem sobredeterminar o isolamento j propiciado pela culturaindividualista, piorando a situao de excluso e de perda de horizonte vitaldessas classes. Acentuo tambm que pobreza psicolgica e cultural ondevivem vem juntar-se a pobreza material, com seu cortejo de privaes, dehumilhaes e de violncia cotidiana crescente.

    Velhos e velhas, aposentados de ambos os sexos, desempregados detodas as idades e qualificao profissional, jovens empobrecidos pelo no-acesso ao emprego ou por remunerao vil, menores abandonados, mulheres

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    ss ou com famlia a seu cargo, configuram atualmente a populao mundialmajoritria. Tambm essa populao quer ter sade, ou ao menos escapardo fatalismo da doena e da morte precoce. Aqueles que no esto nas filasde atendimento dos servios pblicos despojados de autonomia em relaoa sua sade, irreversivelmente medicalizados14, buscam tambm cuidar desua sade.

    Para essa imensa parcela da sociedade, que inclui estratos mdios ebaixos da escala social, obter sade significa, em grande parte, ser cuidado.A sade , neste caso, representada como preservao da dor, do sofrimen-to, do envelhecimento e, na medida do possvel, da morte precoce15.Por outro lado, estar saudvel poder ter alegria, disposio para a vida,recuperar o prazer das coisas cotidianas e poder estar com os outros (coma famlia, com os amigos). Deste ponto de vista, ter sade poder rompercom o isolamento provocado pelas situaes a que a sociedade contempo-rnea relega uma parte importante de seus componentes, devido idade, doena, ao desemprego, pobreza, considerando-se as principais fontes deisolamento. A sade representa, neste caso, uma vitria contra a mortesocial.

    Em outras palavras, a conquista da sade no deixa de ser, muitasvezes, fruto de uma vitria contra a cultura atual. na faixa da populaomencionada que se encontra uma parcela considervel da clientela dasmedicinas alternativas e naturalistas. tambm nessa faixa que a represen-tao de tratamento mais perceptvel como cuidado. Tambm aqui quese pode encontrar com freqncia a busca de sade como autocuidado, emesmo como troca de cuidados, sobretudo na camada mdia com formaoeducacional universitria, acessvel e sensvel s doutrinas esotricas, natu-ralistas, psicolgicas e morais dos manuais de autocura new age em modana cultura contempornea. A busca contnua e constante de cuidado parte de uma estratgia de ruptura com o isolamento, imposto pelo individu-alismo e pela constante ameaa de perda de status e de pobreza a que essapopulao est exposta.

    Considero importante ressaltar aqui o papel de ressignificao da sade,do adoecimento e da cura que essas prticas ou terapias representam paraseus doentes, e a contribuio que aportam para retir-los do isolamentosocial da pobreza, do envelhecimento e da doena. As prticas ou atividadesde sade propiciadas por esses sistemas, sejam coletivas ou no, favorecemo estabelecimento da comunicao, de interaes sociais, a formao de

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    grupos, redes e mesmo movimentos ainda que muito localizados pelasade, ou ao menos pela cura.

    Relaes de solidariedade, ou de cooperao e apoio mtuo, ainda quelocalizadas, restritas ao espao onde se desenvolvem as atividades de sade,tendem a se estabelecer, tornando-se o ponto de partida para a renovaoda sociabilidade, para a constituio de novos amigos, de trocas (deinformaes, experincias, conselhos e orientaes) que vo aos poucosrestaurando o tecido social comunicativo, com a criao e extenso deatividades para fora do mbito das prticas de sade16. O isolamento aospoucos vencido pelas atividades, e ressurgem nos indivduos o otimismo e aesperana, com o restabelecimento da confiana no outro, mesmo que norestrito grupo onde a atividade exercida. Junto com esses sentimentosressurge a sade, ou a melhora.

    So essas formas de exerccio focais de solidariedade que se tornampequenos e mltiplos pontos de resistncia ao individualismo dominante,colocando a amizade e a cooperao no lugar da competio. Embora essetipo de relaes seja especialmente favorecido pelas atividades mencionadascomo parte da sociedade civil, isto no significa que no apaream tambmem atividades e programas desenvolvidos em instituies mdicas, como ohospital ou o ambulatrio, ou em servios pblicos locais de sade. Nosistema brasileiro de sade descentralizado (SUS) h vrios desses progra-mas, onde tais relaes tendem a aparecer. Podem aparecer at mesmo emfilas de espera de atendimento17. importante assinalar, finalmente, que atendncia a incluir tais prticas na rede pblica de servios ascendente,sendo propiciada pela poltica de sade descentralizadora vigente no pas. Atendncia ao crescimento dessa incorporao est estreitamente ligada, ameu ver, ao papel que a cidadania poder representar na descentralizaodas polticas pblicas nos prximos anos.

    Notas

    1 Tem incio nesse momento uma fase de mobilizao e organizao popular em tornoda questo da sade que no parou de crescer na dcada de 90 e que tem servido comouma das alavancas principais poltica municipalizante do SUS.

    2 Deve ser assinalado que o Brasil se tornou, na ltima dcada, uma das dez primeiraseconomias em volume e dinamismo, o que o situa muito longe de economias esgotadasou em escombros, como as da Rssia e Leste Europeu, ou esqulidas como as da frica.

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  • Polticas de descentralizao e cidadania: novas prticas em sade no Brasil atual

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    3 Esse empobrecimento e seu ritmo tm sido tema dominante de discusses de orga-nismos internacionais, de livros e artigos de cientistas sociais e economistas, deorganizaes no-governamentais, da grande imprensa diria e hebdomadria, noimportando sua tendncia de opinio. Tornou-se um impasse para o avano docapitalismo no longo prazo, definindo-se aqui a expresso longo prazo como poucasdcadas.

    4 Outro sentido do termo neoliberal refere-se s polticas pblicas da fase ps-fordistano capitalismo internacional, com o advento das polticas sociais tatcherianas.

    5 Ver, a este propsito, a matria Deficit atinge 55,53% das prefeituras, da Folha deSo Paulo, de 31/01/2000, onde se assinala, com base em levantamento feito peloIBAM e dados do Banco Central, o endividamento de mais de 50% das prefeiturasbrasileiras, acentuando o papel da descentralizao e da financeirizao do repassede verbas aos municpios nesse processo.

    6 Desde o incio dos anos 90, com o Governo Collor, os responsveis pela poltica desade no pas tornaram-se homens da mdia, comparecendo sob a luz de refletoresde televises a servios hospitalares, maternidades, berrios etc. para dar flagrantesde mau atendimento em unidades totalmente abandonadas de recursos pelo poderpblico, onde os profissionais desempenham suas funes como numa frente de ba-talha. Intil mencionar a manipulao da opinio pblica no sentido de isentar osgovernos de suas responsabilidades, transformando os profissionais em bodes expiatriosda poltica de sade. No pode, por esse motivo, deixar de mencionar que, nos anos90, o Estado tratou sua fora de trabalho na rea de sade ou recursos humanosem sade, para empregar o jargo institucional de forma predatria, pela defasagemcrescente de salrios, pela quase inexistncia de recursos para atender ao crescimentoda demanda por ateno mdica, ou ao menos para repor o contingente de profissi-onais, em funo de mortes e aposentadorias, e pela exigncia de uma crescenteprodutividade desacompanhada de condies mnimas de trabalho adequadas para odesempenho de suas funes. O reflexo dessa situao na sade dos profissionais temsido dramtico, sobretudo entre os mdicos (mas tambm em enfermeiros e auxiliaresde enfermagem), como atestam dados recentes sobre morbidade em profissionais desade.

    7 A representao, entre indivduos das classes trabalhadoras ou assalariados em geral,da sade como capacidade ou incapacidade de trabalhar em outras palavras, comofora de trabalho continua dominante, mas outras, como disposio (no sentidode motivao para as atividades cotidianas), alegria, ausncia de dor so tambmfreqentes.

    8 Este processo vem sendo expresso em ingls pelo termo medical commodification,designando a absoro da medicina pela economia de mercado.

    9 O comedimento da sociedade burguesa no deve ser visto como sinnimo da pru-dncia grega, aristotlica, ou do caminho do meio da doutrina zen chinesa. Ocomedimento , em nossa cultura, uma tentativa de controlar o medo do desvio dosindivduos pelo excesso, e a perda conseqente de limites que pe em perigo a ordem.Medo que ronda sociedades excessivamente normalizadas e disciplinadas como a nos-sa... necessrio assinalar que o comedimento um processo educativo que se iniciaem nossa cultura no sculo XVII, com a disciplina dos sentidos e das paixes.

    10 Uma verso em ingls dessa concepo o termo fitness, to em voga nas revistasde moda e sade, e nas academias de atividades fsicas.

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    11 O padro de beleza das academias bastante indiferenciado em termos de gnero, aponto de levar o escritor Tom Wolfe a referir-se, em entrevista a Revista Veja, em1998, s mulheres praticantes de exerccios fsicos dessas academias como rapazesde seios.

    12 Esta uma forma mdica de evitar os excessos nos exerccios que podem levar atendinites, estiramentos musculares, deslocamentos ou luxaes de vrtebras, ou, piorainda, a enfartes ou derrames nessas faixas etrias.

    13 No Brasil existe uma gria para designar atualmente esses corpos: sarados, queoriginalmente tanto pode representar curados, sadios.

    14 Uma grande parte da populao de idosos, aposentados, e mesmo de homens emulheres trabalhadores que formam a clientela dos servios pblicos de atendimentomdico considerada dependente de frmacos.

    15 Uma representao freqente e tradicional de tratamento e cura em classes populares alvio da dor, eliminao ou diminuio do sofrimento do doente, sendo esterepresentado como um sofredor (um sofre-dor).

    16 impressionante a criao de eventos ou de oportunidades para reunies de confra-ternizao, excurses, passeios ou festas que os grupos de atividades de sade, inde-pendentemente de seu modelo ou paradigma, propiciam. uma forma de insero nogrupo mas ao mesmo tempo um modo de sociabilidade prprio dessas atividades. Naentrada de tradicional academia de dana pode ser lido: "Aprenda a danar e faa novosamigos".

    17 Um mdico, chefe de servios de atendimento no interior de Minas Gerais, que realizouestgio na pesquisa Racionalidades Mdicas, conduziu um survey durante um anosobre as filas de espera de atendimento em sua cidade, Juiz de Fora. Descobriu, atravsde observao participante e de entrevistas, que as filas representavam um locus desociabilidade para os pacientes (e no-pacientes) que ali esperavam, muitas vezesfugindo do isolamento de suas casas. Houve grande movimentao do pblico contrriaao fim das filas devido racionalizao do horrio das consultas.

    Referncias

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  • Introduo

    O que integralidade? Poderamos dizer, numa primeira aproximao,que uma das diretrizes bsicas do Sistema nico de Sade (SUS), insti-tudo pela Constituio de 1988. De fato, o texto constitucional no utiliza aexpresso integralidade; ele fala em atendimento integral, com prioridadepara as atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais(BRASIL, 1988, art. 198). Mas o termo integralidade tem sido utilizadocorrentemente para designar exatamente essa diretriz.

    A Constituio de 88, que se tornou conhecida como a ConstituioCidad, tem como uma de suas marcas o reconhecimento de muitos direitosde cidadania. A sade, por exemplo, reconhecida como direito de todos eum dever do Estado. De acordo com o texto constitucional, deveria caberao Estado a tarefa de garantir a sade para todos, atravs de polticassociais e econmicas voltadas tanto para a reduo do risco de doena ede outros agravos, quanto ao acesso universal e igualitrio s aes eservios para sua promoo, proteo e recuperao. nessa segundaperspectiva que a Constituio reconhece a relevncia pblica das aes eservios de sade, e delineia um sistema nico (o SUS), integrado pelasaes e servios pblicos de sade, mas do qual tambm podem participar,em carter complementar, instituies privadas. O que caracteriza esse Sis-tema nico de Sade (que de modo algum o nico sistema de sade noBrasil) seu financiamento pblico. Esse sistema nico de sade estariaorganizado em torno de trs diretrizes: a descentralizao, com direo nicaem cada esfera de governo; o atendimento integral; e a participao dacomunidade.

    Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexesacerca de valores que merecem ser defendidos1

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    Ruben Araujo de Mattos

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    Esse arcabouo no refletia as posies que poca ganhavam destaqueno debate internacional sobre como deveriam ser as polticas de sade,sobretudo nos pases em desenvolvimento. Pelo contrrio, aps quase umadcada de propostas de ajustes estruturais, de avano das idias neoliberais,o debate internacional parecia sugerir fortemente a reduo da presenagovernamental, tanto na economia como em algumas questes sociais. Pos-tura que ao final da dcada de 80 chegava s propostas de reduo daparticipao do Estado na sade, revertendo as expectativas suscitadas pelaconferncia de Alma-Ata. Assim, em 1987, o Banco Mundial publicava umtexto provocativo, no qual afirmava categoricamente que

    a abordagem mais comum para os cuidados de sade nos pases em desen-volvimento tem sido trat-lo como um direito do cidado e tentar proverservios gratuitos para todos. Essa abordagem geralmente no funciona(WORLD BANK, 1987, p. 3).

    , pois, evidente o contraste entre a posio brasileira e a posio defen-dida, por exemplo, pelo Banco Mundial. Mas no deixa de ser interessanteregistrar que, embora concebidas com perspectivas contraditrias, a propostauniversalista expressa na Constituio brasileira e algumas propostas maisrestritivas (como as defendidas pelo Banco Mundial nos anos 90) partilham dealgumas diretrizes comuns: a defesa da descentralizao e da participaopopular. Isso nos leva a pensar que muitas das suas diferenas girem em tornoda adeso ou no ao princpio da integralidade. Exatamente por essa hiptese que talvez seja oportuno refletir sobre os sentidos atribudos integralidade,com vistas a identificar as marcas especficas das polticas e das prticas querelacionamos integralidade. E, desta forma, contribuir para o debate sobrea existncia de uma certa especificidade na reforma sanitria brasileira e noprojeto societrio que a move.

    Mas o texto constitucional no seno um marco num processo maisamplo de lutas polticas travadas na arena nacional, pelo menos desde adcada de 70. A concepo de sade como direito de todos no Brasil no simplesmente uma abordagem tradicional, como parece insinuar aqueletrecho do Banco Mundial. Ela, assim como o arcabouo institucional doSUS, deriva das reivindicaes postas pelo movimento sanitrio desde adcada de 70, quando, no contexto da luta pela redemocratizao do pas eda construo de uma sociedade mais justa, um conjunto expressivo deintelectuais e militantes se engajou no esforo de construir uma crtica ao

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  • Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexes

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    ento sistema nacional de sade, s instituies de sade e s prticas desade ento hegemnicas. Crtica que alimentou o sonho de uma transfor-mao radical da concepo de sade predominante, do sistema de serviose aes de sade e de suas prticas. Na tentativa de realizar esse sonhoforam forjados os princpios e diretrizes que mais tarde seriam acolhidos notexto da Constituio.

    Voltando pergunta inicial, diramos que a integralidade no apenasuma diretriz do SUS definida constitucionalmente. Ela uma bandeira deluta, parte de uma imagem-objetivo, um enunciado de certas caracters-ticas do sistema de sade, de suas instituies e de suas prticas que soconsideradas por alguns (diria eu, por ns), desejveis. Ela tenta falar de umconjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relacionam a um ideal deuma sociedade mais justa e mais solidria.

    Ainda no respondemos pergunta inicial. O que fizemos foi to-somen-te explicitar um dos contextos de uso da expresso, que exatamente aqueleque nos interessa neste trabalho.

    Colocar a integralidade como parte de uma imagem-objetivo que nosmoveu e nos move tem uma srie de implicaes para este trabalho. Anoo de imagem-objetivo tem sido usada na rea de planejamento paradesignar uma certa configurao de um sistema ou de uma situao quealguns atores na arena poltica consideram desejvel. Diferencia-se de umautopia pelo fato de que os atores que a sustentam julgam que tal configu-rao pode ser tornada real num horizonte temporal definido.

    Enuncia-se uma imagem-objetivo com o propsito principal de distinguiro que se almeja construir, do que existe. Toda imagem-objetivo tenta indicara direo que queremos imprimir transformao da realidade. De certomodo, uma imagem objetivo (pelo menos as imagens-objetivo construdasnas lutas por transformaes sociais) parte de um pensamento crtico, umpensamento que se recusa a reduzir a realidade ao que existe, que seindigna com algumas caractersticas do que existe e almeja super-las. Osenunciados de uma imagem-objetivo sintetizam nosso movimento. Ao enun-ciar aquilo que, segundo nossa aspirao, existir, a imagem-objetivo tam-bm fala, embora sinteticamente, daquilo que criticamos no que existe, e quenos levou a sonhar com uma outra realidade.

    Mas a imagem-objetivo nunca detalhada. Ela no se confunde com umprojeto altamente especfico, que indica as nuanas que a configuraofutura sonhada ter. Ao contrrio, ela sempre expressa atravs de enun-ciados gerais. Por exemplo, voltando para a imagem-objetivo que moveu o

    5_Ruben.pmd 20/10/2009, 13:0745

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    Ruben Araujo de Mattos

    OS SENTIDOS DA INTEGRALIDADE NA ATENO E NO CUIDADO SADE

    movimento sanitrio, ela prope a descentralizao, sem se preocupar emdetalhar se ela assumiria a forma de uma municipalizao radical, ou sechegaria ao nvel dos servios; ela fala em participao popular, sem espe-cificar as formas pela qual tal participao se constituiria. As imagens-objetivo funcionam como tal exatamente por abarcarem vrias leituras dis-tintas, vrios sentidos diversos. Exatamente por isso ela pode, num certomomento, aglutinar em torno dela atores polticos que comungam de indig-naes semelhantes, mesmo que tenham projetos especficos distintos.

    Dito de outra forma, toda imagem-objetivo polissmica, ou seja, temvrios sentidos. Sentidos correlatos, sem dvida, posto que forjados nummesmo contexto de luta e articulados entre si. Mas sentidos distintos, quepermitem que vrios atores, cada qual com suas indignaes e crticas aoque existe, comunguem nessas crticas e, pelo menos por um instante, pa-ream comungar os mesmos ideais. Mais importante do que isso, uma ima-gem-objetivo no diz de uma vez por todas como a realidade deve ser. Elatraz consigo um grande nmero de possibilidades de realidades futuras, aserem criadas atravs de nossas lutas, que tm em comum a superaodaqueles aspectos que se criticam na realidade atual (que almejamos trans-formar).

    Integralidade, no contexto da luta do movimento sanitrio, parece serassim: uma noo amlgama, prenhe de sentidos. Nessa perspectiva, aquelapergunta inicial o que integralidade? talvez no deva ter respostaunvoca. Talvez no devamos buscar definir de uma vez por todas aintegralidade, posto que desse modo poderamos abortar alguns dos sentidosdo termo e, com eles, silenciar algumas das indignaes de atores sociaisque conosco lutam por uma sociedade mais justa.

    Mas deve-se dizer de imediato que a luta pela construo de um sistemade sade justo e que concretize o iderio expresso no texto constitucionalno se encerrou. Certamente temos caminhado muito ao longo desses poucomais de dez anos que nos separam da sua p