Livro contos premiados 2011

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  • 1. OrganizadoraCecilia Ferreira(em nome da Academia Araatubense de Letras)CONTOSPremiados (Contos Escolhidos) 3. EdioAraatuba, 2011

2. Copyright vrios autores Edio: Cecilia Ferreira Editorao e capa: Arlen Pontes CTP e Impresso: Editora Somos - (18) 3636.7790 Secretaria Municipal da Cultura Rua Anita Garibaldi, 75 - CEP 16010-280Araatuba - SP [email protected] - (18) 3636.1270Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil) ,Contos escolhidos / organizadora Cecilia Ferreira. --3. ed. -- Araatuba, SP : Editora Somos, 2011.Vrios autores.ISBN: 978-85-60886-37-11. Contos brasileiros - Coletneas I. Ferreira,Cecilia.11-09058CDD-869.9308ndices para catlogo sistemtico:1. Contos : Coletneas : Literatura brasileira869.9308 3. 24. Concurso Internacional de Contos da Cidade de AraatubaCategoria Nacional1. Lugar Emir Rossoni Cotovelos ao parapeito ......................................... 13Meno Honrosa NacionalJos Carlos Barbosa de Arago Di-Lis ................................................................... 19Guilherme Azambuja Castro O Assessor ............................................................. 23Joo Paulo Vaz Os meninos ................................................................................. 29Marcelo de Campos Lilla Ana dorme............................................................... 30Ronaldo Cagiano Barbosa Sem Natal .............................................................. 41Categoria Regional1. Lugar Tarso Jos Ferreira Amizade Sincera ......................................... 512. Lugar Danieli Elias Richart A Palavra muda ....................................... 573. Lugar Mrio Henrique Silveira Bueno A Travessia.............................. 59Meno Honrosa RegionalRegina Ruth Rincn Cares A magia do circo ............................................... 65Odair Maurcio de Albuquerque A morte no manda recado ....................... 77Ronaldo Ruiz Galdino Uma histria de 2924 .............................................. 85Josiane da Silva Mesquita O gato na janela .................................................. 93Wanilda Maria Meira Costa Borghi Acerto ..................................................... 101Categoria Internacional1. Lugar Tnia Ganho Gomes da Silva Perfeita simetria .................... 105Meno Honrosa InternacionalVitor Manuel Capela Batista As Insnias....................................................... 1115 4. Conto dos JulgadoresCecilia Ferreira Insuflando adgios ............................................................. 121Tito Damazo Perfeccionismo ........................................................................... 1256 5. Prefcio Luiz Costa Lima publicou, alm de muitos outros, o livro Porque Literatura (Vozes, 1969), cujo primeiro captulo recebeo mesmo ttulo. Ali, naquele ensaio, o professor e crtico lite-rrio de renome discute as razes pelas quais a literatura, to antiga quantoa civilizao, subsiste como um organismo vivo, exposto ao tempo, ao espaoe histria. Logo, sempre submetida a questionamentos, ameaas, crises etransformaes. Esses dinamismos e metamorfoses de que se reveste a literatura sefazem, sobretudo, porque sua carnadura essencialmente linguagem. E esta,por sua vez, ser mutante de que derivam permanentemente, inacabadamen-te, seres e coisas, dentre os quais, a palavra, ou seja, a prpria linguagem. pgina 35 deste ensaio, o crtico afirma que A arte e a literatura sejustificam por expressarem, a partir do lcus semntico do polissmico (DellaVolpe), uma viso articulada do tempo. Viso que ao leitor ou ao expectadorconsequente no pode ser apenas motivo de contemplao, elemento de des-frute, prazer dos sentidos, porm mais do que isso, condio para o entendi-mento crtico da realidade. E quando dizemos crtico pensamos em um atoque no se encerra em compreender, mas em atuar a partir desta compre-enso. E mais adiante diz que A tarefa da literatura continuar a ser, agoracomo antes, a de atingir e a de trazer na palavra a raiz das coisas onde sedeposita a raiz do homem. Na esteira destas reflexes, podemos admitir que a literatura hoje, tantoquanto ontem, se constitui um arcabouo de conhecimentos, os quais do realidade uma dimenso outra, quase sempre inusitada, problematizando,confrontando e polemizando com os paradigmas socioculturais e econmicosestabelecidos. verdade que a literatura objeto de linguagem verbal escrita essen- 7 6. cialmente tem perdido o poder e o prestgio que at aqui mantivera, peranteum universo de pluricdigos, como o de hoje, em que a linguagem visual so-fisticada tem poder de comunicao excepcional e avassalador.Todavia, a despeito desta crise inevitvel em que se encontra, segura-mente no perdeu seu fim e objeto, tampouco aqueles valores, os quais sepodem depreender das ponderaes de Luiz Costa Lima acima transcritas.A crise, dentre outros fatores, estabelece a necessidade de se buscaremmecanismos eficazes para superao dos problemas e obstculos surgidos.E a histria mostra que justamente na crise que a literatura, como de restoas outras artes, se redimensiona num refazimento que a renova e a reedifica,como uma fnix restabelecendo-se de sua prpria cinza.Nesse sentido, cremos, que se colocam os vrios certames literrios,artsticos e culturais promovidos por instituies estatais e privadas, como estej tradicional Concurso de Contos Cidade de Araatuba, cujo resultado se con-signa nas pginas deste livro.So dignificadores do bem estar de uma sociedade eventos e aes des-ta natureza, os quais possibilitam literatura espaos em que pode exercersua atuao como um dos fenmenos culturais fundamentais para a com-plexa construo do esprito e pensamento humanos. Autorizar espaos quegarantam aos escritores o estmulo da criao literria, de forma convicta econsciente da importncia de tal acontecimento, como o faz a Secretaria daCultura do Municpio de Araatuba, um contributo de suma relevncia paraa superao de uma crise que, assim, h de soobrar.Escrever literatura no fcil. E o fcil normalmente pode satisfazerinteresses pessoais, quase nunca os da literatura, que um bem de interessesocial. Escrever literatura , antes de tudo, um prazer a quem o faz, mas tam-bm um trabalho que requer empenho criador.A essncia da obra literria consiste em no ser concessiva nem sub-missa. O que no quer dizer que d ou deva dar as costas ao seu contextosocial. Pelo contrrio, sua forma e contedo o refletem e o identificam. Mascom ele se relaciona como um objeto autnomo, que se impe como distinto 8 7. e capaz de polemizar, contestar, denunciar, alm de afetar, enlevando, engran-decendo, sensibilizando e ou incomodando o seu leitor. Esse conjunto de elementos, aqui considerados, foram pressupostosbsicos pelos quais se conduziu a comisso julgadora deste 24 Concurso deContos Cidade de Araatuba ao cumprir esta dificlima tarefa de determinarposies a textos literrios em competio. A presente obra traz no seu bojo a maioria daqueles contos que, se-gundo a comisso, vai na pegada de um fazer literrio que procura preservaro papel de seu objeto e resistir aos contraventores de sua essncia, cujo fim,parece, quererem inutilizar, ou banalizar, autorizando e reverenciando sub-produtos de uma escrita que procuram credenciar como obra literria. 9 8. CategoriaNACIONAL 11 9. 1. LugarCategoria Nacional Porto Alegre - RSEmir Rossoni escritor e publicitrio. Trabalha emagncias de publicidade gachas como redator ediretor de criao, tendo trabalhado um ano emPortugal. Possui publicaes em sete antologias decontos e uma de poesia e recebeu diversas premia-es nacionais na rea da literatura.Cotovelos ao parapeitoEmir Ross Ser que era a eternidade que ele buscava? Alguns pensamentosat me disseram que sim. Mas sua posio esttica a deixarapenas os cabelos moverem-se ao vento, que era forte, desper-tou muitas dvidas. Ele parecia saber o que queria. E queria eu que seus olhos virassem asmeninas de lado um pouco, para eu capturar algum reflexo de suas inspira-es. E como ele no se movia. E como ele parecia decidido. E como ele estavalonge e nada ouvia e ignorava qualquer movimento alheio, era hora de con-tentar-me com a imagem que queimava ao outro lado da rua, no edifcio umpouco mais baixo, onde, do terrao, talvez ele aguardasse o momento certo. O momento, eu sabia ao menos disso eu sabia vivia dentro dele epretendia logo-logo viver fora: fugir das rbitas do que no se pode ver. Descansei minha curiosidade sobre sua imagem; acomodei-me. Fitava,encantado. E minha existncia foi navegando, navegando, navegando; numa 13 10. ponte seca feita de um raio de olhar que unia os dois prdios. E, na ponte, noexistia nenhuma lei, nem a lei da gravidade.Cotovelos ao parapeito.Adormeci meia plpebra; o dia mugia preguioso. Remoa uma tentati-va de querer saber o que o sujeito fazia de braos estendidos na beira do topode um semi-arranha-cus. Firme-leve. Olhos fechados. Boca a sentir o sabordo vento.No. Eu no sentia medo por ele estar ali. Nem calafrios. No mximo,um pouco de tdio que sempre menor que a curiosidade. Ento, a plpebrasonolenta despertou com o assobiar do vento. Vento que bate na vidraa: caicambaleante. Tombeia esmurrado por outro brao de vento que vem no senti-do contrrio: acidentes acontessem: cai morto.Mas l ao outro lado, o vento s encontra cabelos; e cabelos gostam devoar, porm, amarrados cabea do homem, no decolam. Lavava-se com osares. Purificava-se de dedos abertos e coxas contradas. Porque no precisavamais respirar. A cabea tombada deixa o ar entrar por conta. Ele parecia feitode nada. Seus contornos eram soltos como esboos de qualquer coisa. Entovi que ele tinha poros abertos, muito abertos de vida, que saa e entrava e saa eentrava muitas vezes a cada piscar que eu tentava no dar. E quando tentei nopiscar no pisquei por bom tempo, at que agentei no mexer as plpebrase no verter os olhos vi que ele podia no estar l, e vi depois de um timode mim que havia outro ao seu lado, idntico, crente que ia alcanar algumacoisa. E quando a nuvem do no agento mais enegreceu minha vista, elesnovamente misturaram-se. Dois-em-um-em-nenhum-num.No mesmo lugar. A fazer a coisa mesma.Nada.Ento pensei que fosse um louco. Doido. Varrido-sozinho-fugido. Masloucos no fecham os olhos diante do vazio. Cientizam o que vem. Amalucamos terraos aos tropees. Trpegos indecisos. Ele era tudo de qualquer coisa.Menos louco de momento.E o que era eu da janela fechada do apartamento a olhar por horas o14 11. homem que no se movia?Talvez eu fosse o grito que ele no ouviu.Hei!Talvez eu fosse a frase que o vento derrubou enquanto atravessava aponte.Faz o que a?Sobre o que eu era no vale interessar. Quis perguntar-lhe muitas coi-sas; mas o maldito no tinha ouvidos para o mundo que eu morava. E o sermais ntimo que tnhamos em comum era o vento e, esse, no gostava demim no momento. Nem adiantava pedir apresentaes. Ora quando este metentava derrubar, sustentava o homem l de cima; e ora quando eu gritava, elecarregava minha voz para o lado oposto; em compensao, me fazia ouvir osrespirares do homem;Lento-pausados.Respirava, como se o ar o alimentasse.Confesso que por instantes o odiei. Odiei, por me fazer aguardar emposio desconfortvel. Odiei por ter tanto a fazer e no me desprender dajanela. Mas o odiei mais por ele estar l, seguro e satisfeito.Enquanto a impacincia me corroa pelas bordas de dentro.Ele estava por um fio, prestes a cair no precipcio de tantos andares e ocalafrio se dava em mim. Na minha espinha corcunda de roer possibilidades.Porque talvez quisesse ele heroizar-se por coisa-nada. E eu queria estarl, vendo tudo do quase-incio ao fim. Talvez ficar heroizado tambm, maisque ele at, por gravar as imagens com os olhos e contar depois para quemno queria enxergar.Eu tinha esse sentimento de grandeza prxima. Mas, provvel, maiorfosse o sentimento de inveja dentro. De querer que o vento me tratasse como otratava. Mas vejo agora que sua relao com o vento era a mesma que a minhacom o cimento. Com a diferena de que o cimento no inalvel, nem mvel,nem muda de formas nem vai comigo onde o convido.Talvez quisesse o homem fugir do cimento. 15 12. Do alto do prdio-cimento: para o baixo da rua-cimento. Um choque entre dois cimentos distantes e delatores; que nem o ventoconseguiria suavizar. Igual me contorcia para v-lo, torcia para que se fosse. Se fosse logo.Para qualquer. No queria que fosse para fora, alguns segundos andares abai-xo. Mas coava-me para ver isso. Queria. Por qu. Queria? Eu sabia que isso mais cedo ou mais tarde aconteceria. E sentia queele, l dentro da sua ausncia, tambm disso sabia; ficaria l ento a cornetearminha pacincia e minha fome de v-lo espatifar-se no cho. Sentia que elesabia de tudo; e que estaria esperando um lapso de ateno minha para des-pencar l de cima. Assim, ele me venceria. Assim eu pensava. Pensava. Pensava. Na real, eu no pensava. Eu estava cansado. Sei agora que ele jamaisvenceria, nem eu jamais venceria, pois luta nenhuma estava sendo travada. Talvez por isso eu ainda sinta raiva dele, de sua capacidade de ser nada.De aparecer e sumir e desembarcar em minha mente a cada instante que olhoo topo vazio daquele edifcio. E de ser o que bem entender. Foi vento quando pisquei os olhos. Foi pluma na imensido dos segun-dos em que os mantive fechados. Foi pedra quando os abri. E espalhou-se empedaos de mim quando o vi na calada. Braos estendidos, pernas descan-sando, dentes a correr soltos a se perder de vista. Era tudo dele que sobraradepois da minha distrao. A essa hora, muitos pararam para ver. Polcia rodeou. Dondocas colo-caram os indicadores na testa, depois foram tomar caf. Crianas juntaramalguns dentes. Todos o estavam vendo. Todos. Mas havia uma coisa que s eu ainda percebia. Sua cara de deboche. Seus olhos de vo se fu. Seu vento que abrisava de cima a baixo a lateral do prdio sem pontenem lei.16 13. Respirei. Respirei. Fazia horas que no o fazia. E, ento, l de cima, tambm deixei-me despencar. Mas despenqueiapenas os joelhos cama. Os olhos para dentro. Os pensamentos para nada. E, depois de no conseguir ficar encamado, fiz o mesmo trajeto que ohomem, rumo ao cimento da calada, porm, de elevador. Era a primeira vez que pisava a calada naquele dia, e era j fim de dia.No fora por falta de tempo que no o fizera: nem por falta de vontade. Foi porfalta de olhos. Vi o homem l no cho, espatifado. Carregava a mesma expresso denada. Vazio-cheio-de-mundo. E eu cheio-de-olhos-de-todos. No pude evitar que me olhassem. O solj se tinha ido e o dia era noite escura. E na penumbra apareciam dezenas depares luminosos de olhos de todas as cores. Zombeteiros-inquiridores. Queria evitar de ver os olhos. Mas, para isso, deveria olhar o homemacimentado ao solo. J o havia olhado durante o dia inteiro e isso j era de-mais. Para talvez ser agradvel quela multido faminta de mim, abri aboca: Sim, eu vi. Os olhos entreolharam-se, vesgando-se. Vi tudo, desde sempre. Desvesgaram-se na minha direo. Desde manh cedo, tomava vento e estava surdo. Ao princpio senti medo dos curiosos que bebiam a minha prpriacuriosidade. A curiosidade que eu bebera durante o dia todo. Eles tambmqueriam. E eu no sabia por qu. Abaixo dos olhos, apareciam gargantas:abrindo-fechando. Mas eu nada ouvia. S as via. Acho que eu no sabia onde estava, nemo que eu era. Talvez o cimento me pregasse as pernas como o homem me17 14. pregara os olhos.Ento deixei-me derramar, cimento-lquido, e escorri junto ao corpodele. E, como o dia inteiro, quis chegar perto, quis gritar, e no fui ouvido,desta vez ia na direo de um caminho que eu conseguia dominar. Escorri-mesobre as lajes, untadas por cimento seco, escorri-me sobre alguns ps curio-sos. Escorri-me, sob alguns pises. E, de escorrncia em escorrncia, chegueifinalmente onde os olhos no mais me incomodavam; onde o vento no so-prava.Toquei-lhe os ps e nada senti. Agregaram-se a mim--calada. Sentipor bem tocar tambm as pernas e agreguei-as tambm, misturadas com umafria de submundo que emergia em torno. E cheguei s mos secas, apertei adireita com a minha, porosa-suada. E deixei-me ir a cobrir mais o seu corpo,ventre-peito-tronco. E fiz fora para no torcer-lhe a garganta. E fiz fora parano furar seus olhos, mas estavam fechados-fechados. Fechados.Ele que tivera tantas imagens para ir ver. Estava l, de olhos fechados.Um deles esmagado por uma nesga de pedra. E a boca mordia a lngua; estanunca nada falava, podia ser engolida. Antes de cobri-lo por completo, repareiltima vez nos seus cabelos. Estticos. Sem vento que os levasse. Ento, deiuma leve soprada: agitaram-se o suficiente. E escorri-me, em cimento, paraque ningum mais visse vestgio dele na rua.18 15. Meno Honrosa Categoria Nacional Belo Horizonte - MG Di-lis Jos Carlos Barbosa de Arago No tempo dele, Jo de escolher moa pra compromisso,escolheu Di-lis, a mais desejada. Escolha do comum acor-do das partes, que j dividiam rabos-de-olho esconsos; edas famlias.Ele, forte, garboso, cabelo domado a poder de brilhantina, cara qua-drada, de homem-homem, braos que faziam suspirar as casadoiras de aquia acol, no longo de todos os caminhos conhecidos. Di-lis no deixava pormenos e, por ela, tambm suspiravam outros olhares cobiosos, esses, de semeterem no vau profundo daquele colo farto, e daquelas ancas convidadeirasfeito as grunas da cachoeira na estiagem, onde o pacu-de-corredeira era pegode mo.Menina ainda, indantes da primeira volta-da-lua, j lhe crescia os olhoso Acrcio, moo j-feito, passado, talvez, um tanto da idade de augurar prendato jovem. Di-lis, extraindo do olhar do coitado sua vontade represa, tripudiouo que pde, acalentando falsas esperanas que, toda vida, o mancebo nolhe apetecia. Por gosto, s.Outro esse, com ela, regulava idade mais ela at se engraaram,quando nele j desciam os gros e nela os pomos se insinuavam, divisandoum novo tempo. No vingou, que ele, com a famlia, tomou o trem, foi veroutras terras e por l ficou e fez filho e fortuna, longe.Pretendentes, a ela no lhe faltavam, uns declarados, outros recatados;uns falados e conhecidos, outros moita; mas todos querendo a mais-flor, a 19 16. de-lis, Di-lis a nica.Ela seguia adiante. Desfeiteava.Uma primavera: desabrochou. Tempor. Feito fosse outono. Flor ma-dura: fruta. E Di-lis, sabida requerida e desejada, inchava os ares de fruta devez, mais, carnuda, suculenta.Casou de ser a hora de Jo, o tambm cobiado galo do terreiro. Ela osabia de-ver, vez a vez, em festa de coroao e quermesses no largo da igreja;e dos comentrios das outras, cada qual sonhosa de lhe servir at que a morteos separasse, mediante jura de altar. To desejado assim, quanto ela, havia deser aquele, ento. E foi que ficou sendo ele, o escolhido.De resto, foi o tempo de se cruzarem em folguedos na praa, festas desanto e logo o fogo pegar: os dois se assoprando e revirando o prprio carvoem brasa, em furtividades no oito da igreja ou trilha pra cachoeira, beirandoa linha de trem...De parte a parte, celibatrios e virgens disponveis o noivado anun-ciado e os proclamas correndo agora resignados, buscaram consolo emnovenas, rezas, promessas e, h quem no confirme, mas... trabalhos de en-cruzilhada, at.Juntaram as tralhas numa casinhola retirada, de onde, muitas vezes,o sfrego amor uivava e ria e pedia mais at de manhzinha, ao testemunhode quem passava, rumo da roa ou pra abrir o comrcio. Eram felizes e semereciam e se fartavam de suas foras e belezas mtuas. Usufruto do quedesejaram, reciprocamente razo de desfeita aos outros moos e moas des-providos dessas virtudes naturais, de fachada.Tanto empenho e lhes vieram os filhos, em pencas, entra ano, sai ano,sem saltar. Onze, os que vingaram. Um morreu, afobadinho, chutador, na bar-riga de Di-lis; outro, de descuido em barranca de rio.Jo acusou mais o golpe. Descuidou-se da aparncia, largou mo dabrilhantina, rpido encarquilhou-se. Pegou a beber e nunca mais se aprumou.De Di-lis, dispensou o chamego, as desavergonhices consentidas, os incndiosde cada noite, nos lenis de cassa alva. No que tivesse outra: esfriou to-20 17. somente. J da idade, seria. Ou tristeza, puramente. Di-lis no entendia. Culpava-se de no sabia o qu. Teria ficado velhae feia, sem atrativos? O espelho a enganava, talvez, j que ainda a refletia comtalhe de loua fina, valiosa e rara. O colo no era o mesmo, depois de tantosanos e filhos, mas no havia mais moas em pior estado, enfim? Cintura, ca-deira, coxas no exerceriam mais o poder de outrora? No duvidava que assimfosse nem cria. O caso que o golpe que ela sentiu mais foi nem o de perder um filhopras guas, mas o de perder Jo, que lhe fugia como areia fina no espao doentre os dedos. Perder Jo era mais que s perder Jo: era perder a confianaque sempre tivera em si e em seus talentos e beleza de fmea sonhvel. E porqu? E como? Perdera, ela, o vio, devagarzinho, aos bocados, a cada barriga, acada bolsa que rebentava, a cada safra de colostro? Ou fora o eito da casa, criarmenino, dar comida, colo e roupa, o ramerrame de me, sem termo? A relembrana da juventude a levava incerteza do hoje. Era fatal queo tempo lhe roubasse seus encantos, mas ela no se preparou para aquilo:perder o poder que teve, nato, ddiva de Deus. Cresceu-lhe uma vontade deconfrontar o espelho com a verdade vera, mostrar a ele que outros aindahavia capazes de desej-la, com a volpia dos anos idos, com o ardor mesmoque Jo. Testar-se? Que fosse. Oferecer-se a outros que Jo, por tudo e tudo, no merecia e com-provar-se ainda cobivel? Oferecer-se s at o limite de saber, ter a prova, esair limpa, para um sempre ainda possvel desfrute de Jo, tardio? Decidiu-se, enfim, um dia. Fim de tarde, os meninos todos em casa de v, Jo largado no mundo,nas erranas dele. Meteu-se num vestido antigo, discreto, de ala larga e bo-tes na frente, forrados de igual fazenda, do decote barra, poucos, fcil de selivrar. Recendia um perfume distante, quase esquecido. Tomou rumo diverso do arruamento principal, subiu uma encosta demorro por trilhas entre restos de mata e pasto, deu a volta, desceu, subiu de 21 18. novo. Encontrou os vestgios do caminho antigo do trem, que, agora, passavaao largo, numa linha nova, de contorno, longe das casas da vila. Nem estao,parada, ali tinha mais: passageiro mesmo, s de passagem, no saracoteio dotrem entre morro e mata, afastados. Seguiu at encontrar os novos trilhos, noponto mais fechado da curva, parte rasgada em rocha bruta em exploses quese ouviram longe, tempos atrs lembrava-se. Uma pedra grande, esquecida,restou em rea terraplenada, a poucos metros dali, plataforma de observao,elevando-se a dois metros, se muito, em fcil escalada. Subiu. E esperou. O trem apitou ainda longe, confirmao de que l vinha, fiel. Regateouna subida, um pouco, mas logo despontou na curva, j descendo na carreira,no rumo da pedra grande restada Di-lis em riba dela. Di-lis em riba feito um anjo, miragem. Os braos, abertos; mos esten-didas, dadeiras; os ps, firmes, plantados na rocha; o olhar revirado brancoentre cortinas baixando como quem recebe amante convidado. Os cabelos,deixou-os cair, soltos, sobre os ombros, e danavam de par com o vento. Eainda: o colo, o ventre, pernas... e o mais. Durou pouco, tudo. Uma passada de trem, em comboio de catorze,quinze vages se muito. Mais tarde, em casa, Di-lis, exalava ares de felicidade, de novo segurade que ainda lhe restava algum verdor, de que era, enfim, capaz de despertardesejo e, qui, paixes. Ainda sentia na pele o conforto revivaz do fresco toquedos olhares dos mais de cem que a viram e cobiaram, naquela tarde, reluzen-te, nua total, no alto da pedra grande. Flor-de-Lis Maria. Di-lis. Dilcia ainda, aos olhos dos homens nas janelas e varandas do ladoesquerdo do trem, naquela tarde sem par, sequiosos. A Di-lis, a certeza lhe valeu para o resto de sua vida toda. Podia dormirem paz, segura. Jo, nem nunca que ficou sabendo. Nem ningum, na vila. Miragem depassageiro, na certa.22 19. Meno Honrosa Categoria Nacional Porto Alegre - RSO AssessorGuilherme Azambuja Castro A ntes de conhecer o doutor Herculano, meu ofcio era tomar mate com halls na praa, todo santo dia. Acordava seis, seis e meia, punha a chaleira no fogo, limpava a bomba comum grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver oBom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saa. At a praa dava o qu?,quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls pre-to gosto de chupar halls e tomar mate, d um choquezinho dentro da bocaque bem bom , da tomava meu mate olhando o movimento. Quando notinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, al-moava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava praa.Tudo normal.Defronte Cmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, alieu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sesso. Quando notinha, assistia a chegada dos funcionrios, dava no mesmo; importante im-portante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questode ir de bicicleta pra Cmara t que o partido proibisse mostrar carro nafrente da Cmara, mas ele que era exibido me disse que o doutor Herculanoqueria gente pra assessor. No que precisasse de dinheiro, tenho uma casinhaalugada que me basta, todo caso fui at o gabinete do doutor e perguntei sobreesse negcio de ser assessor.Fez uma cara de agora que me lembro e me mandou ficar vontade.Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate. 23 20. Sabes bater mquina, Brizola? Me chamam assim pelas sobrance-lhas, sempre esfiapadas.Com um dedo, doutor, fui sincero.Me conta das tuas experincias, ento, ele prosseguiu.Olha... Ultimamente tenho mais tomado mate na praa, doutor.Ento s um AMH.Sou?Analista de Movimento Humano, me explicou o doutor.Sim, claro, achei interessante essa coisa. Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?, pelo telefone, ele pediu secretria, que logo apareceu com uma folha datilografada.Assina aqui, meu assessor, me disse ele, riscando um xis no p dapginaTermo de Posse, dizia.Assinei.Agora espera que eu te chamo, t?.Queria saber do salrio, quanto era, mas como ele no tocou no assun-to, e nem eu, ficou por isso.Voltei praa, tinha a trmica ainda pela metade, isso dava o qu?,cinco, seis mates.Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci gua, pus erva pra in-char, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor SidneySheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito,oito e meia, sa. Tudo normal.Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar Cmara. Gritei:, chefe! Com as mos, me mandou esperar; o porto, que fechava sozinho,me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou assessor, issoeu sou, pra mim papel assinado o que conta. Segui tomando meu mate echupando halls.Por um ms, mais ou menos, eu gritei , chefe! quando via o doutorchegar Cmara; e ele, com as mos, me dizia: calma, Brizola!24 21. Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dumincndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui at o gabinete.Grande Brizola!, me recebeu com festa. Joice, traz uns coelhinhos,sim?. A Joice trouxe. Trs. Desenhou o mesmo xis no p das folhas: Folha-ponto, dizia.Assina aqui, meu assessor!.Assinei.E aqui.Assinei.Mais aqui.Tudo assinadinho.Te chamo em seguida, fica tranquilo, ele disse, e j me deu as cos-tas.Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei l, alguma coi-sa. Ento ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras:Fica tranquilo!, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado o que vale, e nesse dia assinei trs coelhinhos. No sou de me queixar, mas teve a primeira vez. que fim do msrecebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salrio; con-seguia me manter o qu?, vinte, vinte e um dias, nem isso.Fui ao gabinete. T me faltando erva, doutor, desembuchei, todo corajoso. Foi maisfcil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um diasfolgado; a partir da, ms de trinta sobrava o qu?, um pacote inteiro de erva.Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei.O gravador eu j tinha, um porttil da Gradiente; o crach, mandeiimprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor em-baixo, num canto a minha foto trs por quatro de terno e gravata. A partir da,se perguntassem qual era o meu ofcio, eu respondia: sou assessor do doutorHerculano, e ainda mostrava o crach pra quem no acreditasse.25 22. Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar aPelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos, Missode Estado.Cueca, meia, camisa, cala de brim, japona, trs ou quatro potes deMinancora pra mim, desodorante Minancora , joguei tudo na mala; amateira j carregava, e o crach: raramente tirava do pescoo.Mando teu salrio pelo nibus, fica tranquilo, me disse o Beto.Fiquei mesmo.Entrei no Embaixador. O nibus no passava de oitenta, isso dava oqu?, trs horas, trs horas e meia at Pelotas. Ultrapassado o prtico de CanoaBranca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindode se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofcio, ter de sairde l, eu que s deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avde Camaqu e fui dar em Jaguaro. Todo caso, vida de assessor assim, dura,devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, comeava eu a sonhare um piparote do cobrador me acordou.J estamos chegando?, perguntei, meio dormindo.Vai pra onde, Brizola?Pelotas, respondi.Nem do Taim passamos, ele respondeu. So vinte reais.O doutor havia me dado o qu?, cem, cento e vinte, mais umas quantasbolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigncia mi-nha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo.Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodovi-ria uma quantidade de txi esperando, realmente, que tu pague uma fortunapra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saa p e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado rodoviria, bembonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a caf da manh e tudo: potorrado, caf preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte,e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados Baronesa, proprietriae moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do26 23. boxe, por segurana. E fui dormir com o celular preso ao elstico da cueca,tambm por segurana; pnico de cidade grande. Seis, seis e meia, levantei. Crach no pescoo, gravador com pilha novaque era pro relatrio no desandar na minha primeira manh pelotense. Novi o Bom dia Rio Grande no Naite s tinha rdio , tomei caf, iogurte, eescondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei Baronesa onde era a praa da cidade. A mais prxima?, me perguntou. Ah, tem mais de uma... Olha, daqui? Umas doze quadras. Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira.Resolvi relaxar. Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate.Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. Posso?, perguntou. E eu vounegacear? Cevei um mate pra ela. Dia seguinte cevei outro. Fui cevando, ce-vando, todos os mates que ela pedia eu sevava. s vezes colocava capim cidrna trmica, s porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecidovendo a conta; porque pra mim, mate, s com halls. Mas tinha uns olhospuxados, a Baronesa, tinha uma boca grada ela, uma bunda que me seguravapra no beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhore, no decorrer do qu?, ms, ms e meio, j chamava ela de Bar, s Bar. Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, ine-vitvel isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatrios em pastinhas:por turno, dia, ms, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frentedo Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampearcartes de visita nos recibos dos hspedes, que, alis, eram praticamente dois:seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu. Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porodo Naite. Duas, trs pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa naparede, cartes na praa, unidade pronta. Tirei ento da cartola uns quantoscoelhinhos pra Bar assinar. Que que isso?, perguntou. 27 24. Fica tranquila, eu disse, coisa sria. Beijei a testa dela. Ela amole-ceu e comeou a assinar, um por um, como uma boa fmea deve ser, obedien-te. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola.Te ligo em seguida, minha assessora, disse, apressado, porque o Embaixadorsaa em qu?, uma hora, hora e meia no mximo. Sa a p; txi me nego.28 25. Meno Honrosa Categoria Nacional Rio de Janeiro - RJOs meninos Joo Paulo Vaz N enhum de ns sabe com certeza como e quando os meni- nos comearam a aparecer. Foi durante uma daquelas trguas que podiam se estenderpor semanas ou meses. As trguas eram cada vez maiores e sempre bem-vindas. No incio, descansvamos, lubrificvamos as armas, remendvamosuniformes. Deitvamos na sombra e a satisfao de continuar vivo nos engor-dava. Depois, vinham o tdio e a preguia. Quando me dei conta da presenaconstante dos meninos, essa fase j havia comeado.Nem preciso dizer que nosso acampamento no lugar para crian-as. Na verdade, no lugar para ser humano algum, s ns mesmos, que notemos outra escolha e j quase deixamos de ser humanos.O normal teria sido expuls-los. Mas o comandante no se mexeu eningum se sentiu na obrigao de tomar a iniciativa. Iniciativas de qualquertipo eram cada vez mais raras entre ns. A srie infindvel de pequenas vitriase derrotas sem consequncia havia acabado com a esperana e o medo quenos faziam bravos. Ningum mais esperava vencer essa guerra que se diluiu notempo, na inutilidade dos tiros sem alvo visvel, na falta de sentido das mortesaleatrias. O fato que, mais por inrcia nossa que por qualquer outra coisa,os meninos foram ficando.Dormiam junto porta da cozinha, comiam os restos da nossa comida,faziam pequenos servios apanhavam gua no poo, lavavam as panelas,matavam ratos. A matana dos ratos foi o que primeiro me fez prestar ateno29 26. neles. Passavam horas imveis, atiradeiras nas mos, espreitando a caa. En-to um deles esticava devagar a borracha, soltava e, de algum canto escuro, umguincho de desespero anunciava a preciso da pedrada.Lembro bem da tarde em que eu me debatia num sonho especialmen-te mrbido. As imagens eram as de um filme antigo, mudo, em preto e branco.Estvamos num pntano, cercados pela fuzilaria inimiga. Balas e granadassilenciosas nos arrancavam pedaos, mas ningum morria nem se importavamuito, apenas continuvamos a chafurdar na massa escura onde j no erapossvel discriminar o sangue da lama. De repente, um silvo intermitente dealarme de bombardeio quebrou o silncio do sonho. Acordei assustado. A meulado, aos guinchos, uma ratazana arrastava desesperada a coluna partida e osquartos traseiros paralisados. Antes que eu acabasse de entender o que acon-tecia, um dos meninos surgiu na minha frente e esmagou a cabea do bichocom uma pedrada de misericrdia.O que me surpreendeu naquele dia foi a expresso do olhar dele. Desatisfao com o prprio poder. Durou talvez uma frao de segundo, e imagi-no que s a percebi porque, mal acordado, eu me achava naquele estado emque a intuio ainda no est submetida razo. A surpresa no foi tanto pelaexpresso em si, mas por reencontr-la justo no olhar de um deles. Desejode poder era um sentimento que ningum ali experimentava havia tempo. E,nos olhares dos meninos, at ento, eu s tinha percebido a fragilidade dosfamintos, a pacincia com que esperavam os restos das nossas refeies, asubservincia com que lavavam as panelas.A trgua se prolongou alm da nossa capacidade de contabilizar otempo. Durava tanto que, embora ningum o dissesse nem a si prprio, jcomevamos a dar a guerra por encerrada. Prova disso era o desinteresse pe-las armas empoeiradas, amontoadas num canto. De vez em quando, algumlembrava que era preciso lubrific-las. E ficava nisso. At que um dia, ao acor-dar de manh, dei com um dos meninos desmontando o fuzil do Gomes. Tafazendo o que a? perguntei. O Gomes mandou. Achei estranho. Ningumali mexia em arma de ningum. Aquilo mostrava a que ponto tinha chegado30 27. nosso desleixo. Decidi falar com o Gomes ou com o comandante, mas, comoos dois ainda dormiam, fui tomar caf e acabei me esquecendo do caso.Nos dias seguintes, alguns meninos desmontaram e lubrificaram ou-tros fuzis. O meu pode deixar que eu mesmo fao avisei. Mas continueiadiando a tarefa e, uma semana depois, quando percebi meu fuzil to limpoquanto os outros, no me animei a reclamar. A verdade que meu interessepor ele, quela altura, era nenhum.Pouco tempo depois, num final de tarde, eu acompanhava o percursode uma ratazana, espera da pedrada que a abateria. Atrs da cozinha, haviaum muro baixo sobre o qual se erguia outro mais estreito. A ratazana vinhapelo degrau formado entre o topo de um e a base do outro. Protegida pelasombra, dava alguns passos em direo ao lato de lixo da cozinha, parava,fareja o ar, dava mais alguns passos. Sentado ao lado do lato e encostado nomuro, aproveitando ele tambm a proteo da sombra, o Batista se masturba-va. A ratazana vinha pouco acima dele. Vai cair na cabea do Batista penseiquando ela parou, levantou o focinho mais uma vez e eu esperei ouvir a retra-o do elstico de uma atiradeira.Mas o que se escutou foi um tiro de fuzil.O impacto da bala jogou a ratazana para cima. O corpo se esborrachoucontra o muro e caiu despedaado na cabea do Batista, que, no susto, saltoude onde estava, e, saiu tropeando na cala arriada.Aquilo tinha ultrapassado qualquer limite e a nica atitude razovelera chutar todos os meninos fora do acampamento no mesmo instante. Maso batalho inteiro explodiu de rir com a cena do Batista, aos tropees, carae peito salpicados do sangue da ratazana, tentando suspender a cala. Nossasgargalhadas desarmaram sua fria e ele no fez mais que arrancar o fuzil dasmos do menino e berrar meia-dzia de palavres. curioso o modo como as mudanas acontecem. Embora, entre oincio daquela ltima trgua e agora, o batalho e a prpria guerra tenhammudado radicalmente, no to simples entender como e quando o processose deu. Mas ter permitido o acesso dos meninos s armas foi, sem dvida, um 31 28. divisor de guas.Desinteressados de um poder que no nos levava a lugar algum, dei-xamos que os meninos o exercessem. O poder das armas. No que passaram aandar de fuzil a tiracolo, eles foram mudando de atitude. No esperavam maisos restos das nossas refeies. Comiam junto. No lavavam mais as panelas,no apanhavam gua no poo. Promoviam caadas coletivas em que algunsmeninos revolviam o lixo enquanto os outros alvejavam as ratazanas em fuga,e ns ramos obrigados a buscar proteo contra a fuzilaria.De vez em quando um de ns protestava, mas sempre esperando queos outros assumissem alguma atitude, e a reao no passava disso. O co-mandante no dava uma ordem havia tanto tempo que ningum mais tomavaconhecimento dele. Quando, durante uma das caadas, uma bala ricocheteouno muro e atravessou sua cabea, encaramos o fato como um acidente, nadamais. Enterramos o corpo sem qualquer cerimnia especial, exceto por umasalva de tiros que os meninos resolveram disparar.Hoje entendo que, num ambiente como o nosso, as armas sejam elasfuzis ou atiradeiras so a principal fonte de virilidade e energia espiritual.Sem elas, chafurdamos no pntano da indolncia. No acho que isso expliquetudo. Mas o fato que, dias atrs, quando a trgua afinal terminou, continua-mos lavando panelas.Da guerra se encarregam agora os meninos.32 29. Meno Honrosa Categoria Nacional Campo Belo - SPAna DormeMarcelo Campos de LillaA realidade apenas se forma na memria; as flores que hoje memostram pela primeira vez no me parecem verdadeiras floresMarcel Proust; No Caminho de Swann Eu gostava de olhar Ana dormir. Seu contorno suave, esculpidopela lua na janela, era para mim um litoral conhecido. Muitasnoites eu adormeci perdido nas areias doces de suas praias,sem querer me lembrar que toda felicidade efmera.Aqueles foram anos de indolncia. De preguia. Anos arrastados e fe-lizes. At estranho pensar que morvamos em So Paulo, nesta mesma SoPaulo to rpida, imediata e urgente de hoje. Para mim, aqueles dias sempretero se passado num plano histrico e geogrfico completamente parte, umparntese na vida, como se houvesse uma barragem capaz de represar o riodo tempo. No se trata de nostalgia, de como ramos felizes quando jovens,nem nada disso. Se minhas memrias daquela poca esto tomadas de tonsleves e pastis, onde tudo se desenrola num ritmo lento, de sonho, submarino, apenas porque Ana projetava isso ao redor de si. Sua beleza, ou sua presena,sempre teve a capacidade de distorcer todo ambiente, derreter os relgios, do-brar a realidade e, por consequncia, qualquer memria dessa realidade.Hoje sou um homem amargurado, talvez por ter passado anos demaisprocurando Ana em outras mulheres. Mas nem sempre fui esse homem depedra, nem sempre tive essa rispidez nas respostas ou essa curvatura precoce33 30. no caminhar. Isso coisa recente, mas tambm no importa. Esta histria no sobre quem eu sou, mas sobre quem eu deixei de ser.No tem nada de mais na maneira como eu e Ana nos conhecemos.Amiga de um amigo, um chopinho aqui, um cineminha ali, quando dei pormim, estvamos dividindo um pequeno apartamento no centro da cidade. Napoca, eu ainda era um aspirante a escritor, ainda vivia naquele mundo perfei-to e romntico que todo escritor iniciante habita antes de se tornar famoso ousucumbir s amarguras do fracasso. Era eu, Ana, minha mquina de escrevere nossa cama. Na maioria das vezes, tudo isso ao mesmo tempo. De vez emquando, eu passava dias inteiros deitado na cama, com a mquina apoiada nabarriga, consumindo um mao de cigarro atrs do outro. E Ana ficava sempreali, ao meu lado, lendo e opinando sobre o que eu escrevia, zombando demeus erros de digitao ou da pieguice de algumas passagens. No lembrodo que nos alimentvamos ou como pagvamos nossas contas naqueles dias,mas hoje sei que, para mim, aquele quarto desarrumado foi o mais prximodo paraso que eu jamais conseguirei chegar.Se Deus existe, ele sabe quanto tempo eu passei tentando entender osmotivos que me levaram a fazer o que eu fiz. Talvez eu simplesmente no sejatalhado para a felicidade, afinal. Mas quanto mais eu penso, mais me convenode que eu me apavorei. O velho clich do covarde inseguro que rejeita para noser rejeitado. s vezes acho que ainda vivo preso dentro daquele momento,aprisionado naquele exato instante em que, sob a soleira da porta, carregandoa maleta com a mquina de escrever e nada mais, eu olhei para ela uma lti-ma vez. Dali da porta, estirada sobre a cama, confundindo-se aos lenis, elaparecia um anjo com asas de linho branco. Adormecida, seus traos revelavamuma inocncia e uma pureza que ela disfarava habilmente quando estavadesperta mas que nunca falhavam em me comover. Acordada, Ana era umaexploso de vida, uma daquelas pessoas que se tornam o centro iluminado detodo lugar por onde passam. Mas era observando o seu sono que eu sentia querealmente a amava. Quando ela dormia, eu recebia acesso exclusivo a umaoutra Ana, e era como se s ento eu a possusse de verdade. Provavelmente,34 31. era meu ego covarde e inseguro me dizendo que aquela era a nica forma deAna se tornar previsvel, sob controle, diferente da mulher impulsiva e cheiade surpresas que ela era durante o dia. Mais de vinte anos depois, ainda nosei dizer de onde tirei foras para me voltar e partir, fechar para sempre aquelaporta, mas foi o que eu fiz. Cada segundo que se seguiu depois disso foi comoa reverberao daquele momento, como as ondas circulares na superfcie dalagoa depois que a pedra afunda para sempre na escurido submersa. Cadalivro que eu lanava, cada linha que eu publicava, era para ela que eu o fazia.Tentava escrever como se ela ainda estivesse ao meu lado na cama, retirando,com seu riso provocativo e brincalho, as folhas da mquina enquanto eu ain-da datilografava. Imaginava se ela acompanhava minha carreira, se compravae lia os livros que eu escrevia ou se ao menos os folheava desinteressadamentenas livrarias, pensando que eu havia, enfim, conseguido me tornar um escri-tor. Eu estaria mentindo se dissesse que nunca voltei a procur-la. Mas,quando me decidi por finalmente ir atrs de seu paradeiro, j era tarde. Nin-gum sabia dizer ao certo o que havia sido feito de Ana. Diziam que havia semudado para Nova York ou Paris e que morava com um artista plstico derenome, com quem havia tido um filho. Outros diziam que ela se afundara nasdrogas ou que tinha se tornado puta. Existia at uma verso em que ela haviapartido para a ndia e encontrado a iluminao e a paz na meditao transce-dental. Eu sabia que nada disso era verdade, ou pelo menos no inteiramenteverdade. Foi apenas h cerca de um ano e meio que eu voltei a ter notciasde Ana. Quando li seu nome no jornal, soube imediatamente que se tratavadela. Ela tinha dois sobrenomes que eram bastante incomuns, o primeiro eraitaliano e o ltimo lituano, e a chance deles aparecerem combinados ao nomede outra Ana era mnima. No vou revel-los aqui, em respeito privacidadede Ana e sua famlia, mas sempre achei que do inusitado casamento dessessobrenomes resultava uma sonoridade bonita e extica. O jornal dizia que elae uma amiga haviam se envolvido num acidente de automvel quando volta-vam de uma viagem, no final do ms anterior. A notcia, na verdade, era sobre 35 32. a amiga de Ana. Aps duas semanas internada e mltiplas cirurgias, ela noresistira aos ferimentos e acabara falecendo. Falncia mltipla dos rgos, oucoisa que o valha. O reprter terminava o pequeno texto mencionando rapida-mente que a pessoa que dirigia o carro no momento do acidente, a empresriaAna C**** P****, de 49 anos, permanecia em coma num hospital de SoPaulo e respirava sem a ajuda de aparelhos. No sei quantas vezes eu reli aque-la notinha. O nome, a idade, tudo batia. A certeza de que se tratava de Ana eraabsoluta. Aparentemente, eu a havia encontrado, enfim. Por alguns dias, fiquei absolutamente perdido, sem conseguir desviarmeus pensamentos do fato de que Ana estava num hospital a poucos quil-metros de distncia. Exaltado e ansioso, eu elocubrava mil cenas imaginrias,pesando em minha mente se devia ou no ir visit-la, afogado em labirnticasargumentaes silenciosas. No final, lgico, acabei indo, alguns talvez disses-sem que em busca de algum tipo de redeno, mas todo o tempo eu soubeque o que me movia era a simples perspectiva de v-la novamente, de re-pousar o olhar sobre seu rosto, como se ele fosse um osis para meus olhossedentos. Os anos passaram e eu no fiquei menos covarde por isso; admitoque s criei coragem para ir v-la no hospital por saber que ela estaria desa-cordada, que no haveria possibilidade de confronto ou reconhecimento. Aconscincia de que ela estava deitada, adormecida, da mesma forma como eua havia deixado tantos anos antes, tornava a atrao irresistvel. Acho que nohouve nada que eu tivesse desejado mais em todos aqueles anos do que podervoltar a contemplar o sono de Ana. E agora isso me era oferecido livremente,sem que existissem as desvantagens de um reencontro amargo, sem a aspere-za caracterstica dos amores que ficaram para trs. Ver seu rosto de porcelanamergulhado num sono calmo e profundo, sem que para isso fosse precisorealizar a exumao de nosso relacionamento, inventariar antigas culpas oujustificar o injustificvel. Levei comigo um vasinho de flores s para ter algo nas mos ao entrarno quarto. sempre complicado o protocolo das visitas hospitalares, princi-palmente quando a nica pessoa que voc conhece est num coma profun-36 33. do. No vou me alongar em detalhes da visita, mas posso dizer que foi umbaque. Deitada sobre a cama estava uma mulher de meia-idade, de cabeloscortados bem curtos e pintados de acaju. Achei primeiramente que aqueleinchao fosse decorrente de alguma medicao, mas logo percebi a papadaque pendia de suas faces e a pele molenga de seus braos e cotovelos. Aquelasenhora podia ser uma sndica, uma bibliotecria ou uma diretora de escola.A minha Ana, jamais. Estarrecido, fiquei ali um tempo, que poderia ser umminuto ou uma hora, sentado num sofazinho ao lado de sua cama, buscandoalgum vestgio familiar naquele rosto plido e macilento, marcado por duraslinhas de expresso e olheiras surpreendentemente profundas. Desde o incio,fui absolutamente incapaz de associar aquela mulher desacordada minhafrente imagem forjada, ou talvez deformada, pela excessiva repetio daslembranas que eu tinha de Ana. Jamais me ocorrera que o tempo tambmhavia passado para ela. Para mim ela continuara sendo sempre aquela jovemlnguida, que transbordava sensualidade em todos os seus gestos, e cujos ca-belos cor de petrleo batiam na bunda redonda e arrebitada.Pensando agora, est claro que eu no estava preparado para aque-la cena. Sobrinhos, tios e parentes povoavam o quarto, como uma perfeitafamlia interiorana; crianas e adolescentes conversando, velhos entediados,senhoras oferecendo ch e biscoitos, tudo excessivamente prosaico, tudo emsevero desacordo com a idia que eu preconcebera daquele encontro. Comeceia me sentir oprimido ali dentro. Era estranha a sensao. As pessoas falavambaixinho, como se estivessem incomodando o repouso da mulher na cama,como se a qualquer momento ela fosse abrir os olhos e comear a falar. No algo natural, o coma. cruel e devastador para os que esto de fora. comoum funeral que se estende por meses e anos, sem que ningum possa fecharo caixo, dizer adeus definitivamente e tocar a vida em frente. Mas o pior talvezainda seja aquela inevitvel pitada de esperana, a espera passiva por algumamudana no quadro, a possibilidade, mesmo que nfima, de um milagre. Umverdadeiro inferno emocional. Mas, apesar de reconhecer as dores e afliesdaquelas pessoas, eu no era capaz de compartilh-las. Talvez fosse insensibi- 37 34. lidade de minha parte, mas tudo o que eu conseguia sentir era uma profundae egosta tristeza por ver a imagem da minha Ana maculada por uma realidadeinclemente, eternamente empenhada em destroar o mausolu onde repou-sam aquelas memrias que nos so mais caras e em fazer desvanecer todaforma de sonho. J na porta, ao sair, lancei um ltimo olhar sobre aquela que diziamser a minha Ana, parafraseando o gesto que eu havia feito vinte e tantos anosantes, apenas para me certificar de que eu no sentia nada por aquela mulher.Nada a respeito dela se relacionava comigo ou com a Ana que habitava a minhamemria. Conforme eu atravessava o corredor em direo sada do hospi-tal, fui sentindo um alvio cada vez maior, como se a realidade estivesse aospoucos voltando ao seu lugar medida em que eu me afastava. Ainda no es-tacionamento, fui assaltado pelo pensamento de que naquele exato momentoexistiam duas Anas. Duas Anas igualmente estticas, igualmente aprisionadasnum sono profundo, infinito, irremedivel. Igualmente reais. A primeira erauma senhora desconhecida, vtima de uma batida de carro, e cujo rosto bran-co, iluminado por lmpadas frias de hospital, se desintegrava em minha men-te a uma velocidade impressionante. A outra Ana era aquela conhecida ninfade feies clidas, que dormia eternamente sob o luar, como se este fosse umdossel de prata que suavemente a envolvesse, protegendo o seu sono. EssaAna fora eu, no um acidente na estrada, quem prendera definitivamente nacama. No momento em que fechei a porta do quarto e a deixei dormindo soba janela, a condenei a viver para sempre congelada dentro daquele instante,sem poder jamais acordar. No af de compreender tudo o que havia acabado de acontecer, umaideia comeou a se formar na minha cabea enquanto eu dirigia de volta paracasa. Hoje, est claro para mim que aquela Ana do presente, envelhecida, emcoma, era, afinal, nada mais que um espectro, uma projeo deformada daAna do passado. Um reflexo distorcido da mulher adormecida que eu ha-via abandonado. A outra Ana, aquela que inicialmente no passava de umamemria, ao contrrio, mostrara ser aquilo que havia de mais consistente e38 35. palpvel. Sua presena sorrateira e constante talvez tivesse sido a nica coisaverdadeiramente real em todos aqueles anos. Era como se as paredes que se-paravam matria e memria, passado e presente, houvessem rudo de repen-te. Quando digo que Ana que dedico minha literatura, no me refiro quelasenhora vegetando no hospital ou tampouco memria da jovem esbelta echeia de vida que conheci nos anos de minha juventude, distantes e inacess-veis. Escrevo e continuarei a escrever para a nica Ana possvel, a minha Ana,aquela que de alguma forma conseguiu iludir o tempo e alterar a ordem dascoisas. Intacta e perfeita, indiferente passagem dos anos ou ao embotamentodas lembranas, esta Ana permanece viva e continua a sonhar debaixo de umalua que se mantm cheia no cu de todas as noites. 39 36. Meno Honrosa Categoria Nacional So Paulo - SPSem Natal Ronaldo Cagiano A vspera de Natal trouxe Lindalva do trabalho em meio m vontade do tempo. Seus planos de reunir a famlia, convi- dar os amigos, apesar do cansao de mais de dez horas emfrente ao tear na Companhia Manufatora, pareciam mais uma vez esbarrar noimpondervel. No queria repetir o sem-sal e sem acar dos anos anteriores.Nesse, prometeu-se que seria diferente, guardou o que sobrou do 13 paracomprar uns presentes para as crianas. A Camila no cansava de pedir umvideogame, porm teria que contentar-se com uma boneca; Fabiano buzinou-lhe nos ouvidos durante ano todo, mas o autorama [febre, sonho de consumoda garotada naqueles plmbeos anos 70, tempos de coturno e medo] noviria dessa vez, a grana s deu mesmo para um carrinho movido a pilha, daEstrela, comprado, a perder de vista, no Bazar Ren. Era o que podia ser feito.Meses inteiros de sonhos que seriam concretizados pela metade, afinal, desdeque Amarildo saiu de casa para viver com a amante na Vila Reis, que Lindalvateve que dar duro e tomar a frente de tudo, sem ajuda, sem penso. A fatigantetarefa diria no imenso salo onde mquinas expeliam lnguas de panos, amusculatura compulsria nos braos femininos cevada no empurra-leva-e-traz de carrinhos abarrotados de fardos da tinturaria, tantas vezes vigiada peloscontramestres alcoviteiros, a epiderme ressecada pela nuvem de poeira quenascia das engrenagens, as lanadeiras ziguezagueando diante de seus olhosvidrados na mistura dos fios bailarinos que no teciam outra vida, seno ceva-vam o apetite dos patres, alimentavam dozes meses de cansao, a sobrecarga 41 37. que se revezava a cada manh. Tudo impunha uma terrvel prostrao quelamulher que tanto desejava estar inteira para viver pelo menos uma vez na vidaum Natal em famlia, mesmo com a ausncia do marido empanando o brilhonos olhos dos filhos. Era uma dor que ela no podia aplacar, seno j teriamudado as coisas, passando uma borracha na histria e virando a pgina,mas Fabiano e Camila no se esqueciam do pai. Depois que foi embora, nemmesmo se lembrava, ou aparecia, na data de seus aniversrios.Esperanosos, os dois acordaram pela manh na certeza de que eleviria, um presentinho ao menos, ou um agrado que fosse pelo abrao, peloscumprimentos. Queriam o pai, a visita, ainda que trnsfuga a presena. Afinal,os amigos da vizinhana comemoravam idade com pais e mes presentes,s os dois naquele beco viviam uma espcie de orfandade de pai vivo. Nostrs ltimos anos Lindalva fez das tripas corao para que no desistissem deestudar. Tinha medo de que os filhos arrumassem corriola, no saberia ondecolocar a cara se um deles repetisse de ano ou fosse maconheiro como o Tadeue o Vincius, filhos da Gorete, que desquitou cedo e ficou sem controle sobrea casa, biscateando aqui e ali, e a Vanessa, que ficou falada de tanto biscatear.Ela tinha medo dos lnguas-soltas, por isso era da fbrica pra casa, de casa prafbrica. Por isso seu corao no tinha outro destino. Preocupavam-na as lon-gas horas de silncio com que Fabiano, debruado sobre a janela, a sua carre-tinha de rolim aposentada debaixo da cama, com seus olhos, esquadrinhavafeito um periscpio, a volpia de um louva-a-deus danarino que brincava dedesaparecer com suas coreografias no distante da rua, ou se fixava, emudeci-do, nas lesmas que escalavam os muros altos e musguentos, do minsculoquintal lindeiro ao de seu Durval. Ou, viajante e furtiva, sua ateno migravapara os galhos da jabuticabeira, onde um pequeno enxame de marimbondosprincipiava uma casa, indiferentes dor das redondezas. Tambm doa-lheo corao flagrar calada as tantas vezes em que Camila se amotinava com asbonecas debaixo da cama, fingindo uma conversa com um amigo secreto quevinha hora marcada, substituindo a ausncia paterna, essa noite que sepostergava dentro dela, mais escura que a cabana sob o colcho mijado,42 38. viajava nos mundos que criava, na crina alucinada de uma fantasia que um diairia desmoronar. Aps derrotar o sol, a noite chegava com o festim de insetosnas luzes fracas da rua e uma legio de fantasmas habitando aquele corre-dor de casas. Do 51 era possvel divisar o ribeiro aos fundos, animal ferozque se insurgia em muitos dezembros, batizando as moradas precrias como tumulto de suas guas e a adversidade das cheias que desalojavam tantos,sem parcimnia, oceano de frustraes fustigando a alegria com que muitosidealizavam passar as festas de fim de ano, apesar das privaes. Aquela gentepobre, se no tinha muito o que comemorar as dificuldades prolongadasno prenunciavam que as coisas melhorariam de repente pelo menos umleito encomendado com certo sacrifcio no aougue do Devair podia ser espe-rado, para compartilhar uma parcela mnima de sorriso nos olhos midos desuas existncias proletrias, mas ainda habitados de mnima esperana. Masnenhuma alegria seria completa naquela casa onde alm da gua que tantasvezes secava, faltava algum; e a dor de saber que o pai comemoraria comoutros, achincalhava ainda mais os coraezinhos repletos de iluso. Me, o pai no vem? Quantas vezes Lindalva ouviu, embargada, osorriso interditado pela violncia fulminante da pergunta dos filhos. Cada anomorria, dando lugar a outro, e a incerteza que se cristalizava a cada nova mu-dana de estao, na alternncia do horscopo. Nos ltimos tempos era isso:a felicidade esquiva, o rapto das mnimas emoes pela realidade aquarteladae intransigente, apesar das viglias. insistncia da pergunta que reverberavacomo um chicote no seu peito, Lindalva no tinha o que dizer. Nem meias-palavras, nem uma resposta paliativa que dourasse as circunstncias. Era nabucha, e tentando mimetizar as lgrimas com os olhos vermelhos enquantofatiava uma cebola na cozinha, que ela desenganava a filha ou despistando aconversa, mandando Camila pegar o regador para aguar os vasos de avenca esamambaia da sala minscula: No conte com seu pai, ele tem outra vida, esperem em Deus, queesse no falha e graas sua misericrdia que passamos o ano e com a ajudade sua av, que pude cuidar de vocs. No fosse os seres na fbrica, ela tam- 43 39. bm no teria pago em dia o aluguel de um quase barraco, o Bira era pontual,saa, de casa em casa, o colar reluzente como os dentes de ouro e a mania demascar palitos, cobrando os inquilinos, uma sangria mensal em seu salrio,nem dado conta de quitar em dia a caderneta da venda do Albertino. Fazia dastripas corao para manter a casa, nunca faltar lanche na merendeira, as coi-sas em ordem e as contas sem atraso, quando a brotoeja pintou a face midada filhinha e trouxe uma febre inexcedvel, [e o fantasma dos cortes rondavaa seo de estamparia, o Z Batista foi despedido agora buchicham que oNestor e a Zlia vo pra rua tambm, porque votaram do doutor Agnelo, doMDB] quase perdeu a mo no tear, sua cabea estava na menina, o dia inteirocomendo algodo na fbrica, e ainda ter que agentar a lngua comprida dadona Mundinha e as cantadas do Vadinho, que de seu tamborete apontan-do o jogo-de-bicho tomava conta de quem entrava de quem saa, o uniformesempre bem passado, apesar de surrado, o sacrifcio que impedia que os fi-lhos parassem os estudos, afinal, com quem poderia contar amanh, senoa mnima instruo que lhes abrisse caminhos, Lindalva no descuidava denada, antes de dormir ainda dava uma ltima passada com ferro em brasanos uniformes e uma conferncia dos cadernos, tentava ajudar nas lies, nospara-casa, tomava a tabuada, argua os verbos. E os boletins de classe no fimdo ms no desmentiam, espelhavam seu esforo e sua luta: os meninos iambem. E quando j estavam os dois na cama, depois de ter aspergido o inseti-cida com a bomba de Flit para espantar os pernilongos que vinham acicatartodas as noites, desaninhados do corguinho dos fundos, ainda se desdobravapara uma passada de escovo no piso de vermelho, ainda bem que no tinhamais que recolher as guimbas de cigarro que Amarildo deixava pelos cantosda casa, e uma espanada na moblia pobre e feia e entrando j a madrugada,a leitura de algum salmo, e pedia a Deus que a ajudasse a sair dali, sonhavaum holerite mais gordo e poder financiar uma casa decente pelo BNH ou pelaCOHAB, o socorro da f naquela Bblia surrada e eternizada sobre a cristaleirade ps capengas, vigiada pelo crucifixo de madeira que ela sempre limpabri-lhava com leo de peroba. Tempos escuros aqueles. As indstrias da cidade44 40. eram movidas a eletricidade, leo diesel, carvo e medo. Os Andrades domi-navam a economia, eram donos de todas as tecelagens, das fbricas de papele macarro, da fundio, do matadouro, da Fora e Luz. Controlavam tudo, dasada dos operrios s conversas polticas. A Arena mandava na cidade, ondeos parentes do lder poltico Emanuel Andrade revezavam no poder. No Golpede 64, muita gente foi dedurada por eles ou por seus puxa-sacos, baba-ovos,cheira-peidos. Quando chegava novembro, ms de eleio, o voto de cabrestogarantia-lhes a permanncia. Nada fugia ao controle. Sabiam quantos eleitoreshavia em cada urna, em cada zona eleitoral e no departamento de pessoal dascompanhias, a cpia dos ttulos dos empregados era guardada como moeda detroca. O terror rondava as sees e quando algum voto migrava para [os quin-ta-colunas do Tlio farmacutico e do Larcio do Sindicato] um candidatoa vereador ou prefeito da oposio, o funcionrio recebia o bilhete vermelho,as indenizaes nem sempre corretas, dali em diante no conseguiam maiscolocao na cidade, muitos iam de mala e cuia pra So Paulo tentar empregono ABC ou na construo civil. Quantos natais trouxeram o inferno para tantagente. Lindalva tinha medo tambm de ir pro olho da rua, por isso nunca abriaa boca na poca da poltica, votava em quem os capachos da diretoria ou ospelegos mandavam.Nas casas de paredes-meias - eram doze, seis de cada lado, como eracomum nas vielas do Pouso Alegre - os sons algazarravam cedo. Barulhos delacres de cervejas e refrigerantes em lata se abrindo, garrafas sendo retiradasdos engradados e os estampidos dos abridores se confundindo com a msicaque escapava dos aparelhos de som ligados no mximo volume nas portas dascasas. Pagodes, sambas, boleros e sertanejos se misturavam sem divergn-cias vitrolas vozeiravam Agnaldo Timteo, Nalva Aguiar, Wanderley Cardoso,Lindomar Castilho, Odair Jos, Vanusa, Roberto Carlos, Jane e Herondi, AlmirRogrio. O chiado da carne, semelhante ao som de chuviscos de uma emisso-ra de tev fora do ar, sendo revirada em alguma grelha, disseminava o cheirodo assado que impregnava a pequena ruela que separava as casas. Enquantoadultos disputavam tira-gostos e petiscos na mesa exposta ao ar livre e compar- 45 41. tilhada por toda a vizinhana, a molecada num frmito a correr pral-prac.Um vozerio de homens e mulheres que, alternando gargalhadas e gritos, pa-reciam viver a plenitude de uma felicidade no compatvel com o silncio e amodstia com que Lindalva, Camila e Fabiano viviam noutra casa, quase umjazigo, onde noutra mesa esperava um frango assado recheado com farofa eameixas, acompanhado de uma jarra de ki-suco, testemunhados pela rvorede natal que pisca-piscava discreta num canto, onde dormitavam os presentesque os meninos abririam no virar das horas, sem a efusiva comemorao quese verificava nos outros lares. Ainda estava para sair o turno das dez horas, afbrica era um moedor de gente faltava pouco para o sino da Matriz soaras doze badaladas, alguns insetos bailando em torno da luz fraca dos postesda rua, j se podiam ver os faris dos carros realando os grossos e compactosfios de chuva, deslizando pelo tabuleiro de paraleleppedos j encharcados,uma lua bbada e intermitente entre nuvens velozes j no derramava sequeruma claridade dbil sobre os telhados, indicando que um aguaceiro vinha delonge sem d nem trgua, o campinho t todo tomado, dona Vera corriade um lado pro outro o Valdo doidinho avisando nas casas, mas o movimentodo lado de fora negligenciava o apetite de uma tempestade em ascenso, nin-gum ligava para os corpos molhados, para as nuvens com suas cortinas degua chicoteando os quintais. A noite sem estrelas abria alas para o temporalque assobiava seus ventos nos eucaliptos do morro do cemitrio tudo tocerto e to medido para essa poca do ano naquelas margens do rio Pomba.Nas ltimas dcadas era religioso: a chuva batizava os Natais da cidade e mui-tos foram os reveillons em que o susto e a correria substituam os estourosdos champanhas. A opulncia das nuvens no falhava de novo, trazendo ummedo antigo, papel carbono de conhecidos pesadelos, parindo tragdias nacorroso da madrugada. Desde o final da tarde, os plantes da Rdio Catagua-ses alertavam a populao sobre as condies meteorolgicas, mas ningumsintonizava o dial naquele dia, pareciam todos detidos no clima de final de ano,ensimesmados em algum preparativo. Era preciso comemorar, beber, comero peru que em alguma mesa no faltaria, preparando-se para enterrar o ano46 42. moribundo. Chovia horas sem parar nas cabeceiras do rio, l pelos lados dopico dos Caramons e da Serra da Ona, onde o tempo estava armado e feioso.Ningum deu bola, ningum queria se lembrar de como nos ltimos anos oscus reagiam, revelando toda sua fora e brutalidade, todo seu escrnio noespetculo intimidatrio e caudaloso e suas guas. No acreditavam que maisuma vez, depois da Missa do Galo, muita gente voltaria das igrejas sem poderchegar em casa, sem o milagre da ceia, evacuadas de mais uma esperana.Os veres chuvosos sempre foram desmancha-prazeres da vida prole-tria de Cataguases. As guas de maro sempre adiantavam seu ciclo e apare-ciam no ltimo ms do ano e impunham seu regime de exceo, como nasvelhas ditaduras. Dos subterrneos repressivos da natureza desiludida com oshomens despencava o chumbo torturante das nuvens. Os regatos, ribeires,lava-ps e calhas de esgoto no resistiam presso pluviomtrica e se jun-tavam num subversiva e implacvel coreografia, levando tudo que viam pelafrente. E a calha do Pomba, serpente lquida e tinhosa, j assoberbada pelovmito de outros leitos, no comportando o talinico tempo, decretava seusdesastres. S quando ouviram os estrondos, pleonsticos e ensurdecedores,no vcuo redundante e clarividente dos feixes de relmpagos, perceberam quea natureza, mais uma vez, no brincava em servio e dava suas ordens. Jincua aquela correria repentina, diante de um Meia-Pataca travestido numAtlntico na porta das casas. A tromba-dgua que havia cado a quilmetrosdali, chegava com fria redobrada e toda a vila no passava de uma imensailha da qual zarpava mais um Natal. Naquela correnteza no boiavam confu-sos e sem rumo apenas os presentes que no foram entregues. Uma tristezaabsoluta e irreversvel redemunhava dentro deles. 47 43. CategoriaREGIONAL 49 44. 1. LugarCategorial RegionalAraatuba - SPTharso Jos Ferreira de Minas Gerais, residente emAraatuba, autor de livros didticos, criador darevista infantil Z Limpinho, desenhista, chargis-ta, palestrante, vencedor do 21, e meno honrosano 23 Concurso de Contos Cidade de Araatuba,em ambos na categoria municipal.Amizade Sincera Tharso Jos P ois bem, tentarei contar, embora isso me desagrade muito, mas me encorajo na curiosidade de todos. Se bem, e quero que disso todos saibam, isto no um desabafo e nada doque contarei se afasta da verdade nua e crua, tal como acontecido. E a querome safar de vez dos sorrisos de sarcasmo, quando, vez ou outra, me veem pelarua. isso que me irrita!Aqui todos sabem que Joo era meu amigo! Amizade leal, franca e de-terminada. Comia em sua casa, bebia com ele noite adentro, no raro acordavaembriagado no cho de sua sala. Joo, amigos, era plcido, calmo e reservado,sem capacidade de ferir, nem em palavras nem em aes. Ousam-me? Tinhapor ele uma amizade sincera, honesta, coisa qual eu dirigia esforos empreservar. Em nossa amizade existia de fato uma grande afinidade.Mas bem sabem os senhores que o destino nos faz troa. Brinca com51 45. nossas limitaes e nos fere. Joo tinha uma esposa to jovem que se passavapor filha. Bela, de uma beleza que s se encontra na juventude. Era de falasuave, quase um sussurrar. Sempre de vestido ou saia. Isso lhe dava umafeminilidade que hoje as mulheres j abandonaram. Mas no pensem os se-nhores, nunca tive os olhos para ela! Mesmo quando Joo a maltratava e lhefazia represlias na minha presena. Me interessava mais o vinho da casa, acerveja, o corote de pinga do que sua jovem esposa.Todo sbado eu acabava por l, era l que eu bebia. Joo sabia disso eme esperava sempre, mas naquele sbado ele no apareceu e, quando fiz ogiro para voltar, sua esposa me chamou com sua voz sussurrada dizendo queele voltaria logo, que eu entrasse e aguardasse. Eu, como j disse e os senhoressabem; tenho uma queda pelo lcool, admito, meu ponto fraco. Da, condu-zido pelo vcio, entrei.Quero que me entendam que nunca dei motivos ao amigo, ou a quemquer que fosse, de duvidar de meus respeitos com a esposa dele e essa noseria a ocasio de quebrar tal confiana..., maldito dia!Ela me levou aos fundos, eu me acomodei num velho sof de cor mos-tarda, roto,perto do freezer. Era l que ficavam as cervejas. Casa simples, anosde convvio ali. Quando me levantei, ao pegar uma cerveja, dei de cara com osolhos dela nos meus. Vi de imediato, enorme depresso, dessas que se d emfumadores de maconha. Visvel tristeza. Indisfarvel. Desviei os olhos. Noposso, pensei. Que tormento lhe assolava as faces? Que tinha eu com isso? Masela continuou l imvel feito poste. Eu repelia de meu esprito o demnio dacuriosidade embora tivesse dela penosas impresses e, no proceder dos fatos,vi que ela queria me dizer algo antes que eu me embriagasse. Desviei os olhospara o cho, mas ao levantar l estavam os dela, me fitando com beleza not-vel e expresso to triste que me desconsertou. A brancura da pele e o brilhomiraculoso nos olhos causou-me sincera piedade e transpus o curto caminhoentre a lucidez e a insanidade quando lhe perguntei o que havia. Sabe por que Joo me maltrata? Perguntou com sua voz de fada Sou estril.52 46. Ento era esse o motivo de tamanha melancolia. Ora, Joo nunca mehavia dito nada. E olhem que ele me confiara coisas, perturbadoras, que nemem sonho ouso dizer, mas dessa molstia em seu casamento nem uma pala-vra. Fiz os exames, no sou eu, ele o estril. Menti para ele. Me disseencostando os lbios em meu ouvido. Ele no vir aqui hoje, e eu confio emvoc.Suportei at onde um homem pode. Eu sou um conhecedor de vinho,cerveja, destilados, mas de mulheres, nada! No as entendia e nem queria.Menos ainda eu entendi quando ela se debruou sobre mim se abrindo e meabrindo com a suavidade das penas. Eu me apiedei quando lhe vi as coxasarroxeadas pelo marido e nada disse quando ela me falou que fazia aquilo porele, pois o amava mais do que a si. Eu me converti em pedra, teso, grudado nosof imundo. Fechei os olhos diante do pecado e formei com ela, ali no sof,um nico corpo.Por que falar aqui o que j sabem os senhores? Por que o relato dessavergonha? odioso para mim repetir isso, codificar o acontecido em palavraspara que paire em vocs o entendimento. Ora, pois!Deixem-me apressar e evitar fervura que vejo agora em tantos olhos.Depois disso no deixei de fazer minhas visitas ao amigo.Foram meses de tar-des e mais tardes do mais fino lcool, at que o ventre de sua jovem esposase tornou volumoso e belo. Ele em xtase, alegria total, aberto em sorrisos,atencioso, carinhoso, afetuoso, moderado na bebida. Ela ainda mais bela,mais calada, mais feliz, cantarolando pela casa. Comigo Joo tinha excessivacordialidade. Bebia conversando comigo, tardes inteiras, no se cabia de con-tentamento, tinha assunto sobre assunto, tagarelava o tempo todo, alteraraseus modos para melhor. Eu, oculto,calado, feliz ao extremo, entusiasmadocom a situao. Nossa amizade j viosa obteve mais vigor ainda.Quando o rebento veio ao mundo com a cara da me, Joo se tornouabsoluto como pai, atento e zeloso com me e filho. Eu em estado de graa, se-cretamente. Isto me bastava. Aliana perfeita. O silncio como aliado perptuo.53 47. esta a questo que quero que examinem! Acham que houve mais algumacoisa entre eu e ela? De modo algum! Afeioei-me a ela fraternalmente, erao papel que me cabia. Defendia silencioso a causa de todos, e disso fui meuprprio juiz.Lembram-se do destino? Aquele que traz de surpresa benesses, benig-nidade? Ora, no nos enganemos, ele zomba de ns e traz tambm infort-nios! E infortnios como benesses so to prximos que no os distinguimos.E como o mal e consequncia do bem, o contrrio tambm verdade. E, comotodos sabem, o mal no havia dado as caras. E, como da alegria que nasce atristeza, ela me disse Ele quer outro filho Num sussurro quase inaudvel.Quero ser aqui o mais claro possvel. Tinha cumprido o propsito. To-dos estavam felizes. No havia de minha parte um porqu. Mas admito a todos,tentao havia. justo e provvel que vocs no me entendam, mas eu posso entend-los. E eu no tenho aqui palavras adequadas para esclarec-los do categricoda minha negativa e, aqui, defendo a minha causa confiante.Mas ela falava docemente, devagar e, essa a qualidade submissa queamo nas mulheres. Aquilo tirava a consistncia dos meus nos. Ela sabia, porme conhecer, que tal atitude sobre mim tinha delicioso efeito; ento me tor-turava a cada dia na dose suficiente para que eu perdesse a fora da negativadiante da volpia de sua presena, seus pedidos constantes, seu cheiro. E quehomem no tomba diante do machado do desejo determinado de uma mu-lher?Mas o amor proibido est sempre prximo do perigo. Depois disso,senhores, ela passou a me evitar. No me dirigia a palavra e nem o olhar.Quando eu entrava, ela saia. Procurava ficar sempre fora de minhas vistas,sem disfarce, exagerada. Porque me faz isso? Perguntei.Ela me disse que percebera amor em meus olhos, que meus desejosestavam se tornando uma ameaa ao combinado.Sabendo disso assumi uma personalidade abstrata, neutra, pus de lado54 48. a postura que me dava um pouco de dignidade, se que um bbado sabe oque isso, e esperei com pacincia, afinal ramos todos companheiros. Elasempre atarefada, trabalhos domsticos infindveis, com assuntos e mais as-suntos particulares fora de casa, numa justa tentativa de no me dar ateno. Quando nasceu o beb, uma menina inconfundvel, rplica minha,enormes orelhas de abano, pele branquinha, mos e olhos iguais, senhores!Iguais aos meus! Tal criana arrebatou-me a alma, de imediato, me vi nela. Qualquer coisa agora que fizesse lanaria meu filho a uma condenaoinjusta. Calei-me feito lpide. Passei a ser uma sombra silenciosa e atenta.Minha vontade morreu diante da vida que nascia. Joo espalhava a sua caraalegre em tudo com uma vocao divina em fazer tudo parecer bem. Longe decensur-lo passei a admir-lo ainda mais num misto confuso de sentimentos.Muitas vezes ele chegava e aninhava a filha em meus braos Pratica a apaternidade, um dia voc vai ter o seu! Parecia saber da minha paixo pelamenina. O meu apreo pelos vapores do vinho se foi e ficou um mecanismodesconhecido, uma certa tolerncia a tudo. Nesse trato novo que dei vida,desenhei a gosto o meu prprio conceito de moralidade, honestidade, pecado.Enfim, tudo a meu gosto, ao que me convinha, que me deixasse em vantagenssobre os meus sentimentos, dando cores ao meu destino. Senhores, o que de fato verdade? Pois na verdade todo conhecimento oco e cabe a cada um preench-lo como quiser. Eu sei que o amor se apre-senta cheio de infelicidade para aquele que ama, j que quem ama no troca-ria a iluso do amor pela certeza da indiferena do amado, eu preferia ser oamante infeliz, ignorado, do que estar fora daquela casa, daquelas vivncias. Todos sabem que o adultrio companheiro inseparvel dos longos ca-samentos. Logicamente, se existe entre ns algum advogado ele ter na men-te a atitude legal de representar contra. Argumentao tipicamente jurdica,fria,estabelecida na lei, no papel. E aqui no apetece tecer comentrios, aosdefensores da lei, sim, so farejadores do mal. Acomodei-me na casa do amigo. No saa de l. Vivia uma iluso s55 49. minha. Impvido diante da paixo. Notava a jovem me calada em seus afaze-res pela casa. Mas o amor e a morte, meus caros, so irmos. Minha fissuraamorosa a consumia diante meus olhos de abutre, imoral, insano, perptuoe confuso. Tal doena furiosa infectou por completo toda a casa. Ela notoutudo e acalentou para si tal angstia. Com o tempo emudeceu de vez. Silnciode morte. Quando eu me aproximava ela tinha uma espcie de ataque. Talmolstia crescia dia a dia, sua voz leve sumiu para sempre. Nutrido pela culpapassei a cuidar de tudo desmedidamente. Joo tomou aquilo como respostada nossa amizade e aceitou.Ultrapassei tudo, quebrei regras, me pus servil. De nada adiantou, omal nela evoluiu e nada do que fazamos surtia efeito, e como todos sabema vida lhe fugiu, ela faleceu num dia cinzento de outono, trazendo a mim eao Joo um dor irremovvel. Entendem agora como vocs nos irritam quandoolham, comentam e riem quando andamos os quatro de mos dadas pelarua?Onde est o vinho, Senhores?!56 50. 2. Lugar Categoria Regional Penpolis - SP A palavra muda Danieli Elias V antuiluriel. Nunca entendera porque sua me lhe dera esse nome to incomum. No, pensando melhor, esse era um nome bizar-ro. Por que no se chamava Joo, Carlos ou Ernesto como todos os outros aoinvs de Vantuiluriel? Sempre fora motivo de piadas por isso. Alis, os culosgrotescos que usava tambm no ajudavam muito.Com o passar dos anos acabou se entrincheirando dentro de si. Noqueria que rissem dele, por isso nunca falava ou olhava para os outros. An-dava cabisbaixo, sempre, como que procurando algo h muito perdido. Nopronunciava palavra e ningum conhecia o som da sua voz. A verdade quea vida tornava-se menos encantadora a cada minuto e no importava o quofeliz devesse estar, simplesmente no conseguia. Queria viver uma vida breve esem sofrimento, assim como as borboletas. Simplesmente ser!Vantuiluriel no tinha m aparncia, mas seu semblante triste encobriasua beleza. Seus olhos negros, dotados de uma melancolia extrema, e seusombros encurvados pelo peso da amargura tiravam-lhe o encanto juvenil.No comeo todos se sentiam desafiados por aquele simples garoto. Porque tanta infelicidade? E com o decorrer do tempo, quando Vantuiluriel passa-va, as pessoas sentiam apenas um leve sopro de ar. J no o notavam. Morrera,enfim.Mas se deu que um dia Vantuiluriel teve uma viso divina. Algo que ofez esquecer seus problemas e desejar viver sculos.57 51. Sofia.Seus ps foram a nica coisa capaz de fazer aqueles melanclicos olhosnegros erguerem-se pela primeira vez em doze anos. Aquela era a viso maisdoce que j tivera ou imaginara poder ter. Os olhos de Sofia faiscavam e a pazemanava de seu sorriso. Vantuiluriel foi tomado por um sentimento novo, oqual no podia explicar e que nunca havia sentido. Amor!Passou anos a observ-la, notando cada mnimo detalhe: o modo comoela enrolava uma mecha de cabelo quando estava distrada, sua prefernciapor sorvete de morango com chantilly, seu olhar absorto quando lia. Foramanos alimentando-se daquela viso, sonhando... Seu peito sufocava e por maisque quisesse se prevenir no pde evitar o nico desfecho para aquela situa-o. Seu corao clamava descompassadamente por revelao. Correria o ris-co e falaria a Sofia que a amava.Encontrou-a sozinha numa mesa da biblioteca. Sofia adorava livros.Fora l que a vira pela primeira vez h cinco anos. Sentou-se frente a ela e afitou. Por segundos, Sofia correspondeu-lhe o olhar e depois o voltou para olivro que lia. Romeu e Julieta.Vantuiluriel diria as palavras que o atormentavam. Para os outros sem-pre falta uma palavra, mas para ele no faltaria nenhuma. Sempre fora dife-rente. Sentiu as letras juntarem-se em sua cabea, passarem por seu coraoe se dirigirem para a garganta.Era agora, iria diz-las. De repente ele engasgou-se. Sofia e os outros aoredor se assustaram.Correria.Vantuiluriel ficou roxo e o ar extinguiu-se em seus pulmes. O corao,que antes batia por Sofia, parou. Morreu. E sem dizer palavra. Se para todosfalta uma palavra para ele no foi diferente. Ah, Sofia! Como eu... Foi a pri-meira vez em seus vinte e dois anos de existncia que se sentiu igual aos outrose uma felicidade incomum preencheu o seu ser. Finalmente era igual, mesmose chamando Vantuiluriel e no Carlos, Joo, Ernesto, Csar...58 52. 3. Lugar Categoria Regional Araatuba - SPA Travessia Mrio Bueno Ainda era escuro quando ele acordou com o barulho do des-pertador. Apesar do sono, estava ansioso com a chegadadesse dia e assim tratou logo de sair da cama. Esfregou osolhos, espreguiou-se e caminhou rumo ao chuveiro para o costumeiro banhomatinal.H anos sonhava com essa aventura, mas somente agora que final-mente conseguiria realizar to esperado sonho.Em silncio, para no acordar a mulher, foi at a cozinha e preparouum reforado caf da manh. O dia seria longo e cansativo, portanto precisariaestar bem alimentado.Caminhou at a sala de jantar e por um momento contemplou orgu-lhoso toda a parafernlia espalhada pela mesa e cho. Aos poucos conferiu alista para certificar-se de que no se esquecera de nada e que tudo estava emordem: barraca, saco de dormir, colchonete, rede de descanso e mapas. Nosalforges roupas, calados, produtos de higiene pessoal, ferramentas, peas so-bressalentes, primeiros socorros, fogareiro, panelas, alimentos e tantas outrascoisas necessrias para a viagem.Tinha aproximadamente uma centena de itens, organizados e separa-dos em sacolas diferentes para facilitar a localizao e o acesso de qualquercoisa a qualquer momento.Ele nunca havia feito nada parecido antes, entretanto toda informaoque amealhara durante meses de pesquisa seria mais do que suficiente para 59 53. completar a empreitada com alguma tranquilidade.Enquanto carregava as coisas para fora de casa, a famlia pouco a poucofoi acordando. A mulher, os filhos, o pai, a me.Ainda sonolentos observavam com um misto de resignao e compla-cncia o pedalante ajeitar os ltimos detalhes em sua bicicleta completamentecarregada.Seu objetivo era atingir o pico do Porta do Cu, o monte mais alto dopas, a cerca de cinco mil quilmetros distantes de casa. Faria isso pedalandopor essas estradas do mundo de seu Deus, ao longo de trs ou quatro mesesde viagem, com a inteno de chegar por l no inverno, quando poderia des-frutar de um dos cus noturnos mais belos do planeta.Tudo pronto para a partida, iniciou-se outra rodada de despedidas. Ha-via um clima de tristeza no ar. Os filhos, ainda pequenos, brincavam ao redorda bicicleta, sem entender direito o que se passava. Silenciosamente abraouseus familiares como se fosse a ltima vez; todos com lgrimas nos olhoscomo que pedindo para ele ficar.Olhou para as crianas de modo to direto e profundo, que as palavrasse tornaram desnecessrias, pois as mesmas j haviam sido ditas e reditascomo um mantra, vrias e vrias vezes durante o perodo de incubao dajornada.Finalmente montou em sua bicicleta e, reticente, partiu sem olhar paratrs. Eram seis da manh. Assim que dobrou a esquina, a mulher, j com amo no rosto, correu em prantos para dentro de casa chorando compulsiva-mente.Para o pedalante, entretanto, todo o cenrio parecia novo por mais queainda estivesse a poucos metros de casa. Os velhos e conhecidos caminhos dobairro adquiriam um aspecto totalmente diferente, como se fosse a primeiravez que estivesse passando por ali. Sua prpria existncia ganhava novos con-tornos.Enquanto pedalava lentamente em direo sada da cidade, repassavaem pensamento todo o longo trajeto que percorreria nos prximos meses.60 54. Partindo do litoral onde morava, subiria em direo ao norte, margeando opas pela praia por centenas de quilmetros. Duas semanas de viagem, talvez.Depois, rumo ao oeste, atravessaria vrias cidades, estados, culturas e costu-mes diferentes, percorrendo intrincados caminhos em zigue-zague, subidas edescidas por morros e montes, at finalmente chegar na Porta do Cu, o pontomais alto do pas.Bastaram poucas pedaladas para que o asfalto ficasse para trs. Entroupor uma estreita trilha de terra, bem arborizada, fresca, e aps alguns quil-metros teve acesso praia onde foi saudado com deslumbrante nascer do sol,de alaranjado incandescente.Agora, sim, a viagem comea de verdade, pensou. Com tudo que preci-sava a bordo, e casa nas costas, o pedalante estava por conta prpria.A areia da praia, mida e compactada, era terreno perfeito para pedalarde maneira bem cadenciada, permitindo que a bicicleta atingisse boas veloci-dades. Dessa forma era possvel percorrer dezenas de quilmetros em poucashoras, fazendo rpidas paradas apenas para beber gua, descansar e recuperaras energias.Ao entardecer encontrou um pequeno gramado sob algumas rvores,ligeiramente recuado da praia e bem protegido da brisa martima. Ali montouseu acampamento e rapidamente preparou o jantar, pois a fome e o cansaose manifestavam com intensidade.Sentado porta da barraca, enquanto comia, admirava a noite quecalmamente se anunciava. O cu com lua cheia prometia um espetculo parte.Sacou um pequeno livro do bolso, cujo autor era um renomado nave-gante, e pela milsima vez leu desta vez em voz alta o trecho que poderiaresumir toda a sua existncia: Um homem precisa viajar. Por sua conta, nopor meio de histrias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seusolhos e ps, para entender o que seu. E ele estava ali para isso.Seriam meses que valeriam por toda sua vida. Meses nos quais eleaprenderia muito sobre o desapego e a simplicidade; a descobrir como bom 61 55. viver e ser feliz com pouco.J deitado em seu saco de dormir, adormeceu profundamente enquan-to ainda pensava nas palavras do livro.Despertou com as primeiras luzes do sol e logo percebeu que o relgioj no seria mais necessrio. O sol, a lua, a fome e a sede seriam a partir deagora seus guias.Saiu da barraca e caminhou para o mar.Mergulhou naquelas guas lmpidas, levemente esverdeadas. A areiaquase branca. O lugar era paradisaco, e por ser de difcil acesso ainda manti-nha suas caractersticas originais.Ao sair da gua sentiu forte tontura. Com a respirao ofegante, sentou-se para no cair e assim ficou por alguns minutos at que a cabea voltasseao normal.Logo que a tontura passou, levantou-se, caminhou at o acampamen-to, tomou um rpido caf da manh e desmontou toda a tralha para seguirviagem.Por volta do oitavo dia deparou-se com um imprevisto. Um rio cortavaseu caminho. No era exatamente largo, mas em compensao no era raso osuficiente para atravessar pedalando. Contorn-lo seria impossvel.Sem pestanejar arrancou a camisa, os calados, e entrou na gua paraverificar a profundidade. Vendo que era possvel fazer a travessia, tirou os alfor-ges, bolsas e sacolas da bicicleta e um a um foi transportando sobre a cabeapara que no molhassem, at chegar do outro lado do rio. Por ltimo ficou abicicleta, que tambm foi transportada acima da linha dgua.No dcimo quarto dia encerrou o trecho do litoral e partiu para oeste,em direo ao interior do pas.Quilmetro aps quilmetro as semanas foram se passando. A cadadois ou trs dias parava em alguma cidade, ou vilarejo, para repor os supri-mentos ou fazer pequenos reparos, sempre que chegava com a bicicleta carre-gada, atraa a ateno para si. Os locais perguntavam de onde ele vinha, paraonde estava indo e queriam saber da sua histria, dessa aparente loucura que62 56. era viajar de bicicleta pelo pas afora. Identificando-se com suas aventuras, no raro os moradores lhe ofere-ciam pouso, comida e banho. Faziam questo de t-lo em casa como convida-do, com uma generosidade que h muito tempo ele no via. E sentavam-se sua volta para ouvi-lo falar e contar suas experincias. Quando andamos de bicicleta dizia vamos numa velocidade dife-rente e podemos observar as coisas, sejam as pessoas, os animais e at mesmoa natureza, de uma forma que nunca poderamos ver, caso estivssemos numoutro meio de transporte. Uma das histrias que ele mais gostava de contar era como aprendeusobre o desapego. Quando comeou a viagem levava uma carga de quarentaquilos, alm do peso da bicicleta. Com o passar dos dias foi eliminando quasevinte quilos de coisas pelo caminho. Viajar de bicicleta o obrigava a parar frequentemente, fosse para pedirum copo-dgua ou apenas alguma informao, e conversando com as pes-soas ele aprendia muito sobre a cultura, os costumes locais e o prprio serhumano. O pedalante teve tambm a oportunidade de fazer amizades extraor-dinrias, como o seu Jos e a dona Maria, um humilde casal que, mesmosem saber quem ele era, o acolheu por uma semana quando outra crise detonturas e vmitos o abateu. Teve tambm o seu Joo, da bicicletaria, que ofereceu seus prstimospara realizar um reparo na bicicleta quando esta quebrou bem no meio donada. E no quis cobrar por isso. Foi um prazer, disse-lhe. E assim, de pedalada em pedalada, quilmetro em quilmetro, expe-rincia em experincia, o pedalante chegou ao sop da Porta do Cu. A partirdali seria uma subida extremamente rdua, mesmo com vinte quilos a menosna bagagem. Levaria aproximadamente sete dias para atingir o cume, e j fazia mui-to frio. Com a desculpa de se preparar melhor, preferiu adiar o incio da subida63 57. por dois dias, como se pudesse evitar o inevitvel. Passados os dois dias deu incio subida, e ao fim de uma semana,resignado, chegou ao pico. O local era de beleza arrebatadora. Ali se formava uma paisagem sur-realista, composta de cores que saltavam aos olhos. Tudo era diferente. Haviaflores que pareciam ter sido propositalmente arranjadas para uma festa queestaria por acontecer. J