LUÍSA COSTA GOMES

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LUÍSA COSTA GOMES (1954-) Imagem: aqui A.A. ~ 2010-2011 Prof.ª eli

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Luísa Costa Gomes, "sentado no deserto", in Contos Outra Vez ~ leitura complementar para o 12.º ano ~ e.e. ~ António Arroio ~ Prof.ª eli

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LUÍSA COSTA GOMES

(1954-)

Imagem: aqui

A.A. ~ 2010-2011

Prof.ª eli

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A televisão disse: a época festiva que atravessamos fica sempre

tristemente assinalada por um grande número de acidentes de

viação. Marciana baixou o som e foi ver o peru. Pelo corredor, de

nariz no ar, ainda distinguia o cheiro dos fritos. Detestava a comida

do Natal.

Espetou o bojo do peru e ouviu a porta abrir-se e o Miguel entrar,

falando com alguém. Foi recebê-los à porta da cozinha, de garfo em

punho, curiosa.

– Trago aqui o Pereira para jantar connosco, mãe. Parece que não

tinha para onde ir.

Num relance Marciana avaliou o vagabundo. Pensou que por mais que

o limassem, mesmo esfregado e desinfectado, nunca passaria por um

deles. Quando se sentaram na sala, o Pereira à ponta do sofá, de

punhos rígidos assentes nos joelhos, o Miguel com os ténis em cima

da mesinha de tampo de vidro, Marciana teve uma náusea, uma onda

de pânico, e nem sequer estava ainda a pensar no que diria ao

marido, aos irmãos e às cunhadas. Imaginava a melhor maneira de

limpar a carpete e o tempo que demoraria o cheiro a lixo o que o

Pereira generosamente deitava a desvanecer-se no ar. Sabia que lhe

tinham arruinado o jantar de Natal e não tinha ideia do que fazer a

seguir.

– Talvez o senhor Pereira queira tomar um banho, mudar de roupa.

Tenho um fato do teu pai que lhe deve servir.

O Miguel achou bem e o indigente não se opôs. Assim que o homem

saiu da sala onde ardia a lareira, Marciana desodorizou o ar e

escovou o sofá, procurando a pulga ocasional, o piolho hediondo,

outros insectos sem nome que se agarram à pobreza.

É que o Miguel, educado no mais libertino dos ateísmos, atravessava

aos quinze anos uma fase de cristianismo primitivo. Já em Novembro

começara os ataques à hipocrisia do espírito natalício, denunciara o

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consumismo, acusara de cínicos pais, tios e tias, padres, professores,

figuras públicas – até o Papa! – e anunciara que as coisas se iam

passar de maneira diferente nesse Natal, Marciana levava o filho a

sério, porque ele era um rapaz de convicções firmes, embora

naturalmente pouco duradouras, que não só tomava à letra as ideias

gerais como as punha em prática de forma radical. Marciana temera o

pior. Receara que ele não viesse jantar com a família na véspera de

Natal. Afinal o pior tinha superlativo – o Miguel aparecera

acompanhado de um desconhecido que tresandava a vinho e a

miséria e que apreciara, logo à entrada, com olhar excessivamente

sóbrio, não só a dona da casa, mas também as pratas e as

porcelanas. Marciana fizera uma nota mental de reservar um espaço

na semana seguinte para mandar mudar as fechaduras.

Chegavam os irmãos todos juntos e as cunhadas, brilhantes e

tufadas. Marciana apresentou-lhes o Pereira sem sobressalto e eles,

habituados a uma tradição familiar de autocontrolo e pouco

espalhafato, estenderam-lhe automaticamente a mão, os três de

seguida, apresentando-se: Qualquer Coisa de Vasconcelos, Marciana

compreendia que bichanassem o nome próprio. Ainda hoje a intrigava

que o pai, de costume tão sensato e de perfil em outras matérias

discreto, tivesse marcado os filhos para a vida com o ferro de um

nome confuso de que Aureliano Auspicioso não era senão o mais

equilibrado.

– O teu Miguel é um santo, – disse uma tia, abraçando Marciana na

cozinha.

Um Cristo, disse outra. Um anjo, disse outra. Um arcanjo, troçou o

tio Aureliano. Miguel entrou e pediu que fossem para a sala, que

parecia mal ao Pereira. Marciana ia atrás, pelo corredor, a olhar as

costas do irmão e apareceu-lhe como num ecrã a imagem de um

menino negro sentado no deserto. Era uma dessas fotografias de

choque que passam nas notícias à hora do jantar, mães esqueléticas

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com os bebés mortos no colo, crianças deitadas na terra a olhar de

frente para a câmara que as filma. Marciana lembrava-se desta

imagem de há dois ou três anos: é um menino muito pequeno,

desorbitado de fome, que passa as mãos no rosto uma vez só,

desgraçadamente, como um velho que não vê saída. Sentado no

deserto, ele no meio de outros, à espera de coisa nenhuma.

– Também eu tive os meus pobres quando era nova – disse a tia

Adelina, de volta à cozinha. – Ia às barracas levar latas de feijão e

sacos de açúcar e coisas assim. Não me esqueço da cara de espanto

quando eu aparecia carregada, à chuva, ao domingo.

– Eu levava miúdos da rua a lanchar ao café, – disse Marciana. –

Mas depois a caridade já não se podia fazer. Havia uns ideais

humanitários que impediam os particulares de tomar conta dos

pobres, era ao Estado que competia tratar deles.

– O que é que diz o Zé?

– O Zé não sabe, – respondeu Marciana.

Afinal o Zé até achou graça, quando chegou a casa. Não deu

importância ao olhar de dramatismo que a mulher lhe lançara à porta

de entrada, ofereceu mais uma rodadas ao Pereira e deu um longo

abraço ao filho. Era evidente que já tinha estado a celebrar com os

amigos da vela.

A televisão disse: devido ao adiantado da hora este período noticioso

será mais breve que o usual. Mostraram distúrbios de rua, um motim,

algures no mundo. Marciana teve um arrepio: aquele menino sentado

no deserto podia ser o dela; ela podia, ao acaso, sem razão, ter

nascido destinada àquele deserto.

– Temos de sofrer imagens horrorosas, – disse, impaciente. Põem-

nos os problemas à frente e não nos dão os meios para os

resolvermos.

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- É muito desagradável, de facto, - confirmou o tio Refulgêncio.

– O Tao não é bom nem mau, está para além do bem e do mal, –

disse o Zé.

– Sabem aquela do menino rico a quem a professora mandou fazer

uma redacção sobre os pobres? – perguntou o Pereira, para

desanuviar.

Os irmãos mexeram nas gravatas. Conte lá, Pereira, pediu a tia

Adelina. O Pereira não parou, e como os copitos circulavam céleres e

abundantes, as anedotas foram subindo de tom até Marciana dar

ordem de jantar.

– Não está a correr mal, hã? – disse o Miguel na cozinha, pronto a

carregar reforços para a travessa do bacalhau. – Não estás chateada

comigo, mãe?

Só por aquele sentimento cristão do filho, dirigido à sua própria

família, Marciana repôs o prato de bróculos e abraçou-o.

– Eu também já tive os meus pobres. Fizeste bem. O ideal era que

ele não fizesse tanto barulho a comer.

O Miguel riu-se. À mesa, o Pereira contava a sua história aos irmãos

que o ouviam em silêncio, atentos aos pratos respectivos, e Marciana,

ao entrar respirou fundo e tomou coragem – era preciso continuar a

imaginar que o Pereira não era o Pereira e que se fosse o Pereira não

estava ali, no meio da família, a dominá-los com um relato banal e

lamentações. Era preciso ver e não ver o menino, e continuar.

Depois o Miguel levou o Pereira, que usava já um walkman e se

despediu em gritos joviais. Nunca mais tirava os auscultadores,

acabei por lho dar, disse o Miguel. Mas foi uma prenda minha,

queixou-se Marciana.

– Finalmente! – desabafou Adelina, quando eles saíram.

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O Zé pôde fazer a pergunta tradicional: se estavam todos prontos

para as pastilhas contra a indigestão? Mas o Deodato achou que

ainda era capaz de comer mais um sonho.

Luísa Costa Gomes, “Sentado no Deserto”, In Contos Outra Vez

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