Luz Das Estrelas

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Título: À luz das estrelas Autor: Elizabeth Bailey Título original: Misfit Maid Dados da Edição: Editora Nova Cultural 2001 Publicação original: 1999 Gênero: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida 29À luz das estrelas Elizabeth Bailey Parecia ser uma boa idéia... Mary Hope recusava-se a aceitar um marido de quem não gostasse. Por conta própria, apresentou-se a Erasmo, o visconde Delagarde, e pediu-lhe que a escoltasse durante uma temporada na alta sociedade! Erasmo ficou perplexo. Sendo solteiro, era a pessoa menos indicada para aquela incumbência! Mas sua tia tinha outra opinião! Com a casa

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Parecia ser uma boa idéia...Mary Hope recusava-se a aceitar um marido de quem não gostasse. Por conta própria, apresentou-se a Erasmo, o visconde Delagarde,e pediu-lhe que a escoltasse duranteuma temporada na alta sociedade!Erasmo ficou perplexo. Sendo solteiro, era a pessoa menos indicada para aquela incumbência!Mas sua tia tinha outra opinião! Com a casa subitamente inundada por mulheres, Erasmo teve de resistir. Mas acabou se surpreendendo com Mary Hope, que se transformou completamente.De desajeitada e mal vestida, ela tornou-se uma jovem deslumbrante

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Título: À luz das estrelasAutor: Elizabeth Bailey Título original: Misfit MaidDados da Edição: Editora Nova Cultural 2001Publicação original: 1999Gênero: Romance HistóricoDigitalização e correção: NinaEstado da Obra: Corrigida

29À luz das estrelasElizabeth Bailey

Parecia ser uma boa idéia...Mary Hope recusava-se a aceitar um marido

de quem não gostasse. Por conta própria,apresentou-se a Erasmo, o visconde Delagarde,

e pediu-lhe que a escoltasse duranteuma temporada na alta sociedade!

Erasmo ficou perplexo. Sendo solteiro, eraa pessoa menos indicada para aquela incumbência!

Mas sua tia tinha outra opinião! Com a casasubitamente inundada por mulheres, Erasmo teve

de resistir. Mas acabou se surpreendendo comMary Hope, que se transformou completamente.

De desajeitada e mal vestida, ela tornou-se

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uma jovem deslumbrante.

CAPÍTULO I

Será que ainda dormia? lorde Delagarde perguntou-se, sem acreditar no que ouvira. Apoiou-se no consolo da lareira, talvez para não cair. Pôs a outra mão na cintura e observou a jovem petulante sentada à sua frente, na cadeira dourada da sala.Ela não parecia filha de um conde. Malvestida e com um pedaço de vestido preto aparecendo por baixo da peliça verde. Usava um chapéu cor de mostarda com pala e sem enfeites que nenhuma mulher de classe ousaria exibir. Encarava-o com seus olhos cinzentos de uma maneira enervante.— Acho que não entendi. Por favor, repita.— Pois não, milorde. Preciso que o senhor organize meu début.— A senhorita precisa...— É. Assim poderei estabilizar minha vida.— Estabilizar...Lorde Delagarde sentiu uma pontada na cabeça. Desejou que a cena fosse fruto de sua imaginação.Fora tirado de sua cama muito cedo, obrigado a vestir-se e tomar apenas alguns goles de chocolate quente antes de descer. Para escutar uma exigência grotesca de uma mulher desconhecida e de aparência nada ortodoxa!Com certeza, ainda não acordara. Os efeitos da bebida que ingerira na véspera deveriam estar lhe provocando alucinações, Delagarde falou para si mesmo.— O senhor não está sonhando, milorde.Delagarde não se dera conta de que verbalizara os pensamentos.— Ah, devo estar sim... Ou então estou ficando louco.— Pode ter certeza de que minha presença aqui nada tem a ver com o que o senhor bebeu ontem.— A senhorita está insinuando que me embriaguei? — Delagarde irritou-se.— E não?— Não, eu... E mesmo se eu estivesse, não seria de sua conta. — Não.— Sendo assim, por que mencionou isso? — Para ajudá-lo.— Ajudar-me?!— Para mostrar-lhe que o senhor não está nem louco, nem sonhando.Delagarde levou as mãos às têmporas.— Estamos andando em círculos, senhorita.— O senhor verá que tudo é muito simples, quando estiver melhor:O que não se daria em pouco tempo, ele refletiu. Não deveria ter ficado curioso com os comentários desairosos de seu criado pessoal. Liss afirmara que a tal jovem senhora, lady Mary Hope, só trataria do assunto, uma incógnita, com lorde Delagarde.— Por que Lowick deixou essa mulher entrar? — Delagarde perguntara, com os olhos embaçados.Parecia que um porteiro, novato no serviço, fora o responsável pelo descuido. Furioso, Delagarde repreendera o mordomo por não ter indicado à moça a porta da rua.— Ela mostrou-se intransigente, milorde — Liss explicara - e permitiu-se usar termos inadequados a uma lady. Além do que, o sr. Lowick entendeu que a faria sair só se usasse a força. O que, devo dizer, ele estava pouco inclinado a fazer, em vista da possibilidade remota de a alegada identidade dela ser verdadeira.Suspirando, o visconde tornou à realidade.— Como posso ter certeza de que a senhorita é lady Mary Hope?— E quem mais eu poderia ser?— E eu é que sei?! Pode ser qualquer coisa, ora essa! Uma aventureira, uma intrigante, uma impostora. Sei lá!— Mas que droga! Como membro da aristocracia, o senhor deve saber quem é quem. Se sou uma Hope, sou aparentada do conde de Shurland.— Se a senhorita for lady Mary, suponho que seja filha de Shurland ou de seu predecessor. Mas não tenho provas de sua identidade.— Se for o caso, posso fornecer-lhe provas suficientes.— Ali, sim? E onde estão elas?— Poderei trazê-las, assim que resolvermos tudo.

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Não se deixaria intimidar por aquela atrevida, Delagarde decidiu. Devia ser a enxaqueca pavorosa que o impedia de controlar a situação absurda.— Minha jovem, não há nada para resolver. Deve tratar-se de algum engano ou a senhorita procurou o homem errado. Seja lá quem for a senhorita, não tenho a menor intenção de...— Rogo-lhe para que não percamos tempo. O senhor pode aceitar minha palavra. Sou quem digo ser. Ponto final.— Lamento, mas estou longe de vir a aceitar sua palavra.— Não sei por quê. Milorde pode ver muito bem que sou lady Mary.— Imagine! Só vejo uma estranha que veio a minha casa, em horário impróprio...— Já passam das dez!-...para visitas. E permita-me dizer-lhe que uma pessoa que pretendesse ser tratada com gentileza não sonharia em aparecer na residência de um fidalgo...— Qualquer uma o faria, se estivesse em minha situação.-...exigindo ser atendida. Se a senhorita fosse mesmo lady Mary Hope, saberia a extensão dessa indelicadeza.— Sei disso, mesmo que eu nunca tenha entendido os motivos.— São óbvios, minha cara. Além dos danos a sua reputação, a senhorita está sozinha e desprotegida.— O senhor está pensando em atacar-me?— Claro que não!— Desse modo, por que estamos discutindo tal pormenor?— Bom Deus! — Erasmo Delagarde andou de um lado para outro por alguns momentos, antes de achar os termos certos.— Isso não vem ao caso. O que estou querendo que entenda é o absurdo de uma desconhecida entrar, sem ser anunciada, no lar de um cavalheiro e atirar-lhe na face uma demanda tão ridícula!— Não se trata disso!— Se a senhorita não vê, a loucura está de seu lado, o que, aliás, começo a suspeitar que seja a mais pura verdade. Providenciar o seu début... Francamente! Mesmo que eu soubesse como dizê-lo, e não tenho a mínima idéia de como, seria impossível.— Por quê?— Porque não estou preparado para isso. A senhorita não quer dizer que está falando sério, não é? Minha jovem, eu sou solteiro! A senhorita precisa de uma senhora respeitável para ser sua madrinha. Uma dama de companhia.Mary afundou na cadeira.— Isso é tudo o que o está perturbando? Não se... — Não é tudo!— ...preocupe, eu pensei em tudo. Vim, com efeito, com minha dama de companhia. Ela é sua prima. Assim, não haverá inconveniente se ficarmos em sua casa.Por alguns instantes, Erasmo perdeu a fala. Depois, jogou-se na cadeira do outro lado da lareira, com o rosto entre as mãos.Mary observou-o, interessada. Antecipara algum tipo de resistência, mas quanto a sua identidade. Não podia entender tamanha celeuma por nada.Lorde Delagarde parecia ser inteligente e poderia ser considerado bonito, com seus traços fortes bem delineados, a testa larga e os cabelos castanhos ondulados. Observou o culote de cor creme bem talhado e o casaco azul. Embora Mary não fosse muito versada no assunto, entendeu que ele era elegante, não só no vestir.A mansão ficava na melhor parte da cidade, e a decoração impressionava pela simplicidade. Viam-se papéis de parede em tons suaves de damasco, combinando com as listras finas das cadeiras estofadas. Mary gostou dos móveis de linhas singelas, do tapete bege e da decoração sóbria da cornija ao redor da lareira.Mas descobrir que lorde Delagarde tinha temperamento incerto não a agradou. Não era um bom augúrio para seus planos.Talvez ela não houvesse vindo em boa hora. Esperara quase quarenta minutos para o visconde acordar, vestir-se e descer com um semblante que denunciava uma noite de dissipações. Até mesmo o tio-avô ficaria rabugento na manhã seguinte a uma ingestão excessiva de seu vinho do Porto favorito.— Quer que eu peça café? — Mary indagou, solícita.Erasmo se esquecera da presença dela por alguns minutos. Abraçou-se para contemplá-la.— Café?— Meu tio-avô diz que é a melhor coisa para esse seu estado. Delagarde abriu a boca para soltar uma imprecação, mas conteve-se.

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— Não quero café nenhum.— Mas eu...— Não. — Uma pausa providencial. — Obrigado.— Como quiser.Erasmo endireitou-se, resoluto.— Agora, lady Mary, sejamos sensatos. Mary animou-se. Enfim, ele usara seu nome. — Nada me alegraria mais, milorde.— O que a senhorita deseja está fora de questão. Sem duvida haverá outras pessoas muito mais indicadas do que eu para apresentá-la.Mary meneou a cabeça.— Não há ninguém. O senhor, lorde Delagarde, é meu parente masculino mais próximo. E, como um Shurland, nada mais estará fazendo do que seu dever.— Mas nunca a vi antes! Quanto a ser seu parente, não tenho a mais remota ligação com os Hope.— Quem falou em Hope? O parentesco é com o lado materno. Mamãe era uma Burloyne.— Nunca ouvi falar neles — afirmou, aliviado. — Nada a ver com a família Delagarde.Mary estalou a língua. — Eu disse isso? — A senhorita falou...— Não importa. A verdade é que, mesmo se o senhor recusar-se a reconhecer o parentesco, não escapará da obrigação. — Do que está falando?Mary mexeu-se no assento e encontrou a bolsa escondida debaixo da peliça. Tirou dela um pedaço de pergaminho amarelado e dobrado que mostrava restos de um lacre, levantou-se e estendeu-o, sem pestanejar.Erasmo ergueu-se, apanhou a mensagem e abriu-a.— É de sua mãe, milorde. O senhor vê o nome da sra. Egginton, a quem é endereçado? Ela era minha vizinha e muito amiga. Depois que meu pai morreu, a sra. Egginton fez o pedido a lady Delagarde. O senhor pode ver que milady prometeu apoiar-me quando eu estreasse na vida social.Delagarde leu rápido. Era mesmo uma carta escrita por sua mãe.— Mas por que razão a sra. Egginton escolheu logo minha mãe?— Sua mãe não nasceu lady Dorinda Otterburn? — Sim, mas...— Aí está. A ligação com os Burloyne veio por intermédio dos Otterburn. Como vê, somos parentes.Delagarde nada disse. Burloyne nada significava para ele, embora tivesse de admitir sua ignorância em relação às ramificações da família da mãe.— O relacionamento, lady Mary, se é que há algum, é remoto ao extremo. O que é essa oferta que minha mãe mencionou de mandar alguém morar com a senhorita?— Não lhe falei que minha dama de companhia é sua prima?Delagarde ponderou sobre a possibilidade de esbofetear-lhe as orelhas, e mais uma vez conteve-se.— Lady Mary, mesmo que isso me impeça, infelizmente, de repudiar algum tipo de parentesco com a senhorita, devo chamar-lhe a atenção para o fato de esta missiva ter sido escrita há mais de dez anos, quase o tempo que minha mãe está morta.— Sei disso, milorde. Desse modo, a obrigação passou para o senhor. — Apanhou o papel e apontou para uma sentença. — Veja. Ela declara aqui contar com o senhor para ajudá-la na missão.— Por Deus, minha jovem! Eu mal completara dezoito anos na ocasião! Tire essa coisa de minha frente antes de que eu a rasgue em pedaços! Isso não tem propósito. Nunca soube de nada disso, nem pretendo saber. De qualquer modo, minha situação não me faz a pessoa adequada para o que a senhorita deseja. Por que não pede o auxílio de Shurland? Por que ele não pode apresentá-la?— Porque está morto.— Impossível. Ele conquistou o título faz um ano.— Não estou falando do atual Shurland, mas de meu tio-avô, o quinto conde, que era meu tutor.— E por que o conde não providenciou seu début? — Porque era excêntrico.— Deve ser um mal de família.Mary o encarou com os olhos arregalados, dobrou a mensagem e devolveu-a à bolsinha em forma de rede. Tornou a sentar-se e fitou-o, como se fosse a dona do lugar.

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Delagarde pensou em chamar Lowick para que retirasse a deplorável moça à força. Mas, afinal, era um cavalheiro. O que não impediria de não aceitar a imposição absurda.Voltou até o consolo da lareira.— E essa tal sra. Egginton?— Também morreu.— Quanta sorte! Bem, a outra, então?— Quem?— Sua dama de companhia. Não tente matá-la também, porque já ameaçou trazê-la para morar aqui.Pela primeira vez, Mary riu.— Pobre Ida... E por que o faria? Ela não tem mais ninguém, a não ser o senhor. É uma de suas parentes pobres. Ouso dizer que sua mãe tinha isso em mente, quando sugeriu que Ida viesse comigo.O semblante iluminado de lady Mary fazia esquecer o aspecto desalinhado. De súbito, ela ergueu as sobrancelhas, de novo séria.— Milorde está pensando que tenho outra parente mulher que pudesse ajudar-me? Asseguro-lhe que não. Dependo tão-só do senhor.— Se tudo o que diz é verdade, então o encargo é de Shurland. E não queira dizer-me que ele não pode fazer isso, porque sei que é casado.Mary ergueu o queixo.— A verdade é que Adela e eu não nos toleramos.— Adela é a mulher dele?— É, e nós tivemos alguns atritos.— O que não me surpreende.-Adela tratou-me de maneira abominável até eu completar a maioridade. Como nada sucedia, tratou de mandar-me embora, com todo o carinho.— Então por que a senhorita veio até aqui?— Porque ela decidiu casar-me com Eustace Silsoe.Delagarde sentiu outra pontada na têmpora.— E quem é esse fulano? E por que tem de desposá-lo contra sua vontade?-Trata-se do detestável irmão dessa mulher. Como ele interessou-se por mim, Adela ofereceu-o para apresentar-me à sociedade.— Espere um pouco. — Erasmo sentou-se. — Quer dizer que está tentando envolver-me nesse esquema indecente e impossível, sabendo que tem uma opção aceitável, só para escapar de um casamento que não deseja?— Sim!— Mas...— Adela e Eustace estão muito enganados se pensam que podem fazer-me cair em uma armadilha. E o senhor vai ajudar-me. Já arquitetei tudo. Diremos que milorde é meu curador e que não poderei casar-me sem seu consentimento.— Não diremos coisa nenhuma. — Delagarde levantou-se. — É uma proposta absurda, e eu nada tenho a ver com esse embuste.A determinação dele fez Mary temer pelo sucesso do pedido.Ela também ergueu-se, consternada, e aproximou-se dele. — Mas o senhor precisa ajudar-me. Sua mãe prometeu! — Minha mãe está morta.— Por isso vim falar com o senhor.— Estamos andando em círculos...— Lorde Delagarde, nunca imaginei que pudesse recusar-me auxílio! — Mary deu mais um passo à frente.— Porque deve estar fora de si, senhorita. Como eu ficaria se consentisse em partilhar desse esquema monstruoso. — Mas eu dependo do senhor!— Sinto muito, terá de pensar em outra coisa. — É tão pouco o que o senhor faria por mim... — Pouco?!— Eu lhe asseguro que será recompensado, milorde.— Por morar com a senhorita? Impossível.

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A porta abriu-se. Era uma senhora idosa, bem trajada com um traje de cintura alta em musselina verde, que trazia nos ombros um xale escuro. O chapéu, parecido com um turbante, enfeitado com renda, fitas e penas, não escondia os cabelos brilhantes como os de Delagarde, embora com mechas brancas. Mary percebeu a semelhança com as feições do visconde, embora tivesse aparência mais amável.— Tia Hester, que prazer em vê-la! — Nunca Erasmo fora mais sincero. — Por favor, diga a esta senhorita lunática que não posso apoiá-la e tornar-me seu tutor fictício.— Por Deus, do que está falando? — Hester fitou a ambos. — O que a jovem está fazendo aqui? Veio sozinha?— É isso o que me pergunto, titia.Mary sentiu-se examinada por dois pares de olhos. Um deles, intrigado; o outro, severo. Recusava-se a desistir. Se a senhora era tia do lorde e morava na casa, não havia motivos para os escrúpulos de Delagarde.— Mas isso é ótimo! — Mary adiantou-se para cumprimentar Hester. — A senhora é tia dele?— Tia-avó.— E a senhora mora aqui! — Mary virou-se para Delagarde, entusiasmada. — Não entendo por que milorde está fazendo tanta confusão. Qual o obstáculo que me impede de ficar?— Todos! E minha tia não mora aqui. Sinto desapontá-la, mas ela está apenas de visita.— Mas milady poderia prolongar a estada, não é mesmo? — Mary indagou, aflita. — O negócio não vai demorar muito. Aliás, espero isso. Estou tão ansiosa para voltar ao campo quanto lorde Delagarde para ver-me pelas costas.— Viu? Essa moça é louca! — Erasmo cruzou a sala e foi até seu posto, ao lado do consolo da lareira, e fitou Mary. — A senhorita está perdendo seu tempo. Não terá o apoio de minha tia. Ela, decerto, me dirá para mandá-la embora.— Posso falar por mim mesma, Erasmo.Mary sustentou o olhar interessado da velhinha, imaginando se conseguiria atrair a benevolência da dama para combater a inflexibilidade do visconde.Mary não se considerava uma intrigante, como Adela. Mas o que mais poderia ter feito? Teria preferido não pedir nada a ninguém. Era o que pretendia fazer, com Ida como acompanhante. Mas isso estava fora das convenções, e tivera de pedir ajuda.— Perdoe-me, milady, por ainda não ter me apresentado. Sou lady Mary Hope, filha do falecido John Hope, quarto conde de Shurland. E sobrinha-neta do falecido Reginald Hope, quinto conde de Shurland, meu tutor. Sou parente de lorde Delagarde por parte de mãe, que era uma Burloyne.— Tia, temos algum parente chamado Burloyne? Preciso saber. Ela diz que é por intermédio dos Otterburn.— Temos, sim, embora há algumas gerações.— Remoto demais — ele concluiu.— A senhora é uma Otterburn, madame? — Mary animou-se.— Sou lady Hester Otterburn, tia da mãe de Delagarde. — Hester sorriu com simpatia e tocou o braço de Mary. — O que a senhorita deseja?— Que lorde Delagarde se encarregue de meu début.Hester espantou-se, primeiro, e depois caiu na risada.Mary encarou-a, perplexa, enquanto a dama sentava-se na cadeira antes ocupada por Delagarde.— Perdoe-me, minha querida, mas é a coisa mais engraçada que ouvi nos últimos anos.— Não sei por que, senhora — Mary contestou.— Nem eu. Do que está rindo, titia?— E que o imaginei no papel de ama-seca de uma donzela. Lamentável! O que a levou a cogitar isso, minha criança? Erasmo dirigir os passos de uma jovem que se inicia na vida social é tão inverossímil quanto o homem ir à Lua.— O que prova que pouco sabemos do cosmos — Mary redargüiu, resoluta.Ambos a observaram. Teria ela dito uma bobagem? Adela sempre se queixava da falta de modos da prima. Aliás, Mary importava-se muito pouco com a sociedade. Se pudesse, não perderia tempo com convenções.— Podemos voltar ao ponto inicial da discussão?— Claro, minha menina. Pode dizer-me por que pensou no pobre Erasmo para a tarefa de apresentá-la?— Não foi por acaso. — Mary tirou a carta da bolsa e entregou-a a lady Hester. — É de lady Delagarde.— Obrigada. Sente-se, filha.Mary obedeceu, e Delagarde acomodou-se no pequeno sofá em frente à lareira.Ambos lançavam olhares de soslaio um para o outro. Ele, sem nenhuma simpatia, embora Mary nem fizesse questão disso. Se ela tivesse outra saída, teria abandonado o plano, que tinha certeza seria complicado. Via-se que o lorde era um homem acostumado a agir a seu modo.

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— E mesmo a caligrafia de Dorinda.— Nunca duvidei disso, tia — Delagarde respondeu. — Também pude reconhecer a letra de minha mãe. E daí? A senhora não escutou a metade dessa história maluca. Essa mulher... — Lady Mary seria melhor, Erasmo. — Se ela for lady Mary.— Temos certeza de que ela é, sobrinho.— Obrigada, milady. — Mary comoveu-se. — Não sei por que milorde duvida de mim.— Porque sua conduta não condiz com seu título!— Erasmo, cale-se, por favor! Deixe que a garota conte sua história.— O que ela está falando é um imbecilidade, titia. Essa moça não quer casar-se com um certo homem. Por isso abandonou seu protetor e veio até aqui, para eu apresentá-la, com a desculpa da carta. Uma coisa estúpida!— Quieto. Deixe-a falar.Lady Hester escutou a história, sem comentários, e tratou de impedir que o sobrinho-neto interferisse.— Creio ter entendido, mas gostaria de esclarecer alguns pontos — a dama pediu, ao término do relato de Mary. — O parentesco entre nós é facilmente detectável.— Ah, sim? — o visconde admirou-se. — Mesmo se fosse, estou certo de que há outros homens mais próximos a ela do que eu.— Mas nenhum deles, meu querido Erasmo, é um visconde.— Não é isso o que tem valor para mim — Mary foi franca. — Sou filha de um conde.— E como achar um marido de alto nível?— A posição social dele é irrelevante. Não é o que vai determinar minha escolha. Acho que meu título torna mais fácil encontrar alguém que deseje casar-se comigo.— Pode acreditar — lady Hester assentiu, amável. – Diga-me, lady Mary, por que deseja casar-se?— Para falar a verdade, não gostaria de me casar. Quando Eustace começou a cumular-me de atenções e Adela forçou-me a aceitá-lo, percebi o que me esperava se escolhesse permanecer solteira.— Bem, eu também sou solteira, e hei de assim permanecer. Mas o que é que teme?Mary deu de ombros.— Ser o objeto de cortes incessantes. Uma vez que transpire o segredo da herança, não terei mais paz. Então, achei que a melhor solução para mim seria encontrar um marido complacente, que não me impedisse de continuar com meus outros interesses.— Que legado? — lady Hester quis saber.— Por ocasião de minha maioridade, a fortuna de minha mãe virá para mim.— Sério?— Sim. E é por isso que Adela mudou o comportamento comigo.— Imagino... — foi o comentário seco de Erasmo.— Claro que eu estava contente de ter independência — Mary continuou. — Assim, seria possível, para mim, fazer o que desejasse, em vez de tornar-me uma dama de companhia.— O quê? Bom Deus, é isso o que quer?— Não. Mas seria o único jeito de deixar de ser escrava nas mãos de Adela. Contudo, fui forçada a reconhecer que a mesma independência que me oferece a liberdade também me faz um alvo para os cavalheiros que desejam casar-se bem.Será que a pensativa lady Hester entendia os motivos de Mary?Delagarde, de cenho franzido, encarou-a e ergueu-se.— Por mais interessante que essa história possa ser, lady Mary, não faz a menor diferença...— Erasmo!— O que foi, tia Hester?— Por favor, sente-se. Estou achando a história muitíssimo interessante. Tornaremos a examinar a questão de nosso parentesco.— Mas a senhora já admitiu que os Burloyne são aparentados com os Otterburn — Mary protestou.— Entretanto, não tenho muita certeza sobre os parentes de sua mãe. Ouvi dizer que um dos primos Burloyne se casou com uma Shurland, mas não lembro qual. Se não me falha a memória, havia três irmãos Burloyne de minha geração. O pai deles casou-se na família Otterburn com uma das filhas de minha tia-avó.— A senhora sabe de tudo, tia Hester.— Gosto de manter-me informada, querido. Qual dos três irmãos foi seu avô Burloyne, minha criança?— O segundo: Brice.

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— Mesmo? — Lady Hester suspirou e afundou na cadeira. — É isso. A neta de Brice Burloyne. Sem parentes masculinos. -Todos os Burloyne já morreram. Não tenho tios, nem primos. — Exceto Shurland.— Mas eu lhe disse, milorde...— Basta! — lady Hester interveio. — Não entremos em uma discussão sem fim. Agora, minha querida Mary... se é que posso chamá-la assim.— Claro, milady.— Muito bem. Conte-me mais sobre Adela.— Eu não diria que ela é mais desagradável do que lorde Delagarde.— A senhorita obrigou-me a agir assim. Lady Hester achou graça.— Mary é bem objetiva, Erasmo. Não pretendeu ofendê-lo. — E a senhora acha que ele se importa, milady? — Nem a senhorita, não é mesmo? — Hester sorriu. — Não vim aqui para granjear a boa opinião dele. – Mary empinou o nariz.— Não, a senhorita veio aqui para conquistar meus serviços. Mas eu gostaria de saber o que Shurland estava fazendo, enquanto Adela a impelia para casar-se com o irmão.— Sim, e por que não recorreu a ele? — lady Hester indagou.— Mas eu o fiz. O conde respondeu-me que meu tio-avô e eu havíamos acabado com a herança dele e, portanto, eu não podia contar com sua assistência.— Acabado com a herança? — Delagarde espantou-se.— Bobagem. Na verdade, isso seria conveniente para ele. Meu dinheiro iria parar nas mãos da família do conde. Se eu me casasse com outro, meu primo não iria usufruir nada.— Mas é pouco provável ganhar direto do cunhado – lady Hester deduziu.— Sim, e estou certa de que ele e Eustace fizeram algum acordo. De outro modo, não iria dar apoio ao esquema de Adela. — Todavia, o que a levou a essa atitude drástica, minha filha? Não que eu a esteja culpando, mas Adela não, poderia forçá-la a aceitar o irmão. E ela o fez e ofereceu-se para apresentá-la.— Foi para manter as aparências. Adela receava a opinião pública quando soubesse que casei-me com o irmão dela, sem chance de escolher entre os outros. E Eustace também não queria posar de caça-dotes.— Sendo assim, por que não deixou que sua prima a apresentasse? Assim, poderia escolher outro.— Milady, eu não fui criada em círculos sociais elegantes, mas tenho honradez.Lady Hester tentou desculpar-se:— Não tive intenção de aborrecê-la, criança. Mas está sugerindo que teria obrigação moral para com lady Shurland, se aceitasse ficar uma temporada com ela?— É isso.— No entanto, a senhorita está querendo impingir-me uma falsa obrigação.— Não é verdade, milorde! Se eu não tivesse a carta de sua mãe, jamais o teria envolvido nisso.— Ah, não?— Não sou uma impostora! — Mary retrucou, indignada.— Essa conduta seria mais condizente com Adela. Eu jamais a enganaria, fazendo-a pensar que aceitaria Eustace, para então escolher outro. Não, não. Tenho de arranjar-me de outra forma ou permanecer solteira.— Porém, a senhorita está contando comigo para arranjar-se.— E é o que fará, meu querido sobrinho.— O quê?!— Meu querido Erasmo, não há como furtar-se em matéria de honra. Não seria adequado a um cavaleiro deixar a pobre Mary Hope entregue à própria sorte. Por outro lado, sei que o visconde de Delagarde não deixaria de atender a um desejo de sua amantíssima mãe. Não vejo outra solução a não ser encarregar-se da apresentação social de lady Mary.

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CAPÍTULO II

Estupefato, Delagarde ouviu a tia recomendar a Mary que se apressasse até a estalagem da Maddox Street, onde deixara a governanta e a bagagem, e retornasse com tudo. O visconde só se recuperou quando a porta fechou-se atrás de Mary, e a tia voltou ao salão.— A senhora perdeu o juízo, tia Hester? — Ele estava furioso.— Não vejo por quê.— Eu, sim! O que foi que a levou a dizer-lhe que voltasse? Está muito enganada se imagina que vou ceder ao pedido idiota daquela maluca!— Se for assim, estará se portando como um grande tolo! — Como é?— Meu querido Erasmo, se não é capaz de ver o que está debaixo de seu nariz, não me intrometerei mais.— Isso seria ótimo. Pare de falar por enigmas, tia. — Oh, Deus, acho que não sabe, mesmo! — Não sei o quê?A tia riu.— Como se faz para apresentar uma jovem, é claro. Não importa. Aprenderá rápido, querido.— Mas eu não quero aprender nada! E, de mais a mais, não vou fazer isso.— Vai, sim, eu já decidi.— Não diga! Dê-me apenas uma boa razão para eu tomar esse encargo detestável.— Posso dar-lhe várias, mas uma será suficiente: você é preguiçoso e hedonista.— E posso saber por que tem de mim essa opinião?— Há muito venho refletindo que seu modo de viver é um desastre. O senhor não tem responsabilidade, e nada faz que não esteja relacionado a seu próprio prazer. Esforçar-se só lhe fará bem, e pensar em outra pessoa será uma boa mudança.— E mesmo? Pois deixe-me chamar sua atenção para alguns detalhes, caso eu concorde.— Não seja bobo, Erasmo! Já pensei em tudo.— Caso a senhora não se lembre, é preciso uma mulher para apresentar uma jovem à sociedade.— Certo. E eu o farei.— Não nesta casa! — Delagarde objetou. — Por outro lado, não pode tomar essa atitude, tia, porque não tem mais projeção social.— Isso pode ser remediado.— E também a saúde delicada não lhe permitiria adequar-se às exigências de uma temporada em Londres.— Nunca me senti melhor.— Ainda há mais — o sobrinho não se intimidou. — Não a convidei para ficar aqui mais do que os dias que a senhora pretendia.— Isso me lembra de que não vim preparada para ficar tanto tempo. Minha camareira terá de voltar já a Berkshire. Ah! E você terá de abrir todos os salões. Não podemos receber visitantes matutinos no salão, e se dermos um baile...— Baile? Deixe-me dizer-lhe...— Não vai dar. É muito em cima da hora. Talvez uma pequena festa, e nesse meio-tempo apresentaremos Mary sem muito espalhafato.— Não pode fazer isso, titia! E não serei o padrinho de uma garota com a aparência de Mary Hope! Eu seria alvo de chacota.— Tem razão. — Lady Hester tocou o braço do sobrinho. — Há mais esse detalhe. Mas pode ficar tranqüilo. Mary não fará objeções em comprar roupas novas. Não tema, Erasmo. Farei com que ela não o envergonhe.— Pelo comportamento dela hoje, não sei, não.Hester mudou de assunto:— Não podemos causar muito rebuliço, para não malograr o intento. Um sarau no próximo mês será admirável.— Tia Hester!

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— Primeiro, contudo, teremos de visitar as anfitriãs principais. Como padrinho de Mary, você terá de acompanhar-nos.— Se a senhora pensa que irei atrás das duas todas as manhãs... — Erasmo! Os criados! Jamais nos arranjaremos com esse número reduzido deles. Você precisará ir a Berkshire. Espere! Lowick poderá ir e resolver tudo.— Tia Hester...

— Meu Deus, há tanta coisa para ser feita! Preciso achar Lowick agora mesmo. Temos de raciocinar rápido e organizar... — Tia Hester, por favor, poderia escutar-me por um minuto? Ela encarou-o, surpresa, saindo do transe. — Pois não, Erasmo.— Tia Hester, pare! Não tenho intenção... Oh, meu Deus, acho que ficarei louco! Tia, se a senhora trouxer aquela infeliz para morar aqui, prometo que me mudarei!— Absurdo. Mudar-se de sua própria casa? Por outro lado, nós precisamos do senhor.— Nós? O que a senhora está fazendo comigo?Lady Hester encaminhou-se para a porta, rindo.— Meu querido Erasmo, me importo muito com seus interesses. Brice Burloyne era um nababo.— O que isso tem a ver?Hester já o deixara.Delagarde permaneceu boquiaberto, sem entender o significado da última declaração.— Não acredito no que está acontecendo.Sua vida virara no avesso em questão de horas. Maldisse a época da visita da tia, que se comprazia em ficar em Delagarde Manor, onde vivera por generosidade da mãe de Erasmo, mesmo antes de ele nascer.As críticas da tia o exasperaram. Seria ele mais indolente e egoísta que a maioria? Seria tão irresponsável? Afinal, era dono de uma vasta propriedade. Para ser mais exato, Erasmo empregava um administrador para cuidar de tudo, com autonomia para fazer o que fosse necessário.Qual o motivo das queixas da tia? Seria por ele ficar longe de Berkshire a maior parte do tempo? Santo Deus, não se podia desejar que alguém ficasse no campo o ano inteiro! Por que não passar uma temporada na cidade?Era certo que teria de casar-se um dia, mas a linha sucessória dos Delagarde estava garantida por seus primos, pelo menos por enquanto.Bem, ainda não concordara em ser padrinho daquela jovem pavorosa. E também não entendia o que fizera tia Hester correr em auxílio dela. Suspeitou que ela houvesse sido apenas impulsiva.Hester dissera que Brice Burloyne era rico?Bom Deus! Ele, como padrinho, deveria afastar os caça-dotes. Adeus existência ordenada e agradável! Não, não seria coagido!Puxou o cordão da campainha e foi para o hall, ao encontro de um lacaio que entrava rápido pela porta de baeta verde.Já se notava um ar de confusão na residência.A dama de companhia de lady Hester corria escada acima, acompanhada por uma criada e pela robusta governanta, que apenas parou para fazer uma mesura para o amo, que saía do salão.— Onde está Lowick?— Subiu para falar com milady, milorde.— Ah, é? Então suba e traga-o até aqui. E também procure Liss!— Estou aqui, milorde — o criado pessoal anunciou-se, entrando no hall, enquanto o lacaio subia a escadaria.— Meu casaco, Liss! Meu chapéu!— Estão aqui, milorde. — E ajudou o patrão a vestir o sobretudo.Delagarde estava em frente ao espelho do hall ajeitando o ângulo do chapéu na cabeça, quando o mordomo desceu correndo.— Ah, Lowick! — Delagarde voltou-se. — Escute, se aquela mulher voltar, você...— Lady Mary, milorde? Não se preocupe, milady deixou instruções precisas. Tudo estará pronto para recebê-la.— Mas eu não quero receber ninguém!O mordomo fez uma mesura e permitiu-se um sorriso.— Ela me disse que o senhor estava preocupado com a inconveniência, milorde.— Eu o quê?

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— Isso é muito natural, tenho certeza, sir. Entendo que é uma obrigação que milorde está determinado a honrar.Ora! Tia Hester excedera-se em tomar decisões. Não havia dúvida de que ela enganaria toda a criadagem, sem perda de tempo. Como ele poderia recuar, sem parecer grosseiro e ignóbil? Apanhou a bengala que o criado lhe estendia.— Lowick, estou saindo.— Sim, milorde. Não se preocupe, pois tudo sairá a contento. A governanta já está recebendo ordens quanto às acomodações de lady Mary.— Não quero ouvir nada disso. Deixe-me sair.— Milorde não vai tomar o desjejum antes de ir? — O mordomo abriu-lhe a porta da frente.— A única coisa que serve agora é um liquido, e dos mais potentes! — Erasmo saiu e virou-se no primeiro degrau. — Se lady Hester perguntar por mim, informe-lhe que deixei esta casa de loucos. Para sempre!Nesse meio tempo, Mary chegava à estalagem, feliz pelo sucesso da missão.Houve momentos em que duvidara que fosse possível, mas a chegada de lady Hester Otterburn mudara tudo.Lorde Delagarde a teria repudiado. Nem queria pensar no que aconteceria se não fosse a visita inesperada de lady Hester. Talvez tivesse de retirar-se para a mansão de Sussex, que nem era mais seu lar. Ou continuar na casa da cidade de Shurland e aparecer para Adela e Firmin, que não tinham a mínima idéia de que ela estava em Londres. Terrível!Mas, graças à intervenção de lady Hester, não teria de fazer nada disso. Mary pôde comprovar que ela exercia influência suficiente no sobrinho.Assim que abriu a porta do quarto, apressou-se a relatar os acontecimentos para a dama de companhia e ouviu um discurso inflamado.— Eu gostaria que não fosse! — Ida implorou, quase às lágrimas. — Você se impôs ao lorde, e nem quero imaginar o que o visconde deve estar pensando.— Não importa o que ele pensa de mim, Ida — Mary falou, impaciente. — A menos que prefira que eu me case com Eustace Silsoe.— De jeito nenhum! Estou convencida de que aquele rapaz não a fará feliz. E depois da maneira como lady Adela a tratou, não posso culpá-la por procurar outro caminho.— Bem, e então?— Mas não desse jeito, Mary! Desafiar lorde Delagarde em sua própria casa! O visconde deve pensar que você perdeu todo o senso de decoro. E nem ouso imaginar o que dirá de mim, por tê-la deixado comportar-se de maneira tão inescrupulosa.— Não tema, Ida. Acalme-se. Deixei bem claro a milorde que o plano foi meu. Não se aborreça pelo que ele possa estar pensando. Use seu tempo refletindo em como vamos agir, uma vez instaladas na mansão dele. Você terá de acompanhar-me, pois não podemos esperar que lorde Delagarde faça isso. Não seria apropriado.— Eu deveria agradecer a lady Hester. — Ida Wormley suspirou, com a palma da mão sobre o colo palpitante.Puseram-se a arrumar os pertences.— Lorde Delagarde não ficou muito aturdido, Mary?— Ah, sim! — Tirou o chapéu e alisou as fitas que amarravam as tranças. — Mas não me importei.— Posso imaginar. A valise grande, Trixie. — Ida levantou-se e indicou à moça como arrumar as roupas de sua senhora, depois de fechar a mala menor com as suas.Ida Wormley era urna mulher descorada, de idade incerta, e reconhecia que, mesmo após quase onze anos de convívio, tinha pouca influência nas decisões de lady Mary Hope, apesar da afeição que Mary lhe dedicava.— Talvez você devesse atender aos desejos de lorde Delagarde.— Que coisa, Ida! Sabe muito bem que meu tio-avô aconselhou-me a não me deixar impressionar pela posição social.Ida teve vontade de repreendê-la pela fé inabalável nos conselhos do finado conde.— De qualquer modo — Mary teimou -, Delagarde é apenas um visconde.— O quê?!— Mas ele é tão elegante, senhora — Trixie emitiu sua opinião. — Não é, srta. Wormley?— Sim. Lorde Delagarde é sempre mencionado nas colunas sociais dos jornais londrinos. Vi seu nome com freqüência nos Gentlemerr Magazine de seu tio-avô.— E também nas páginas de escândalos, onde se dizia que ele feria corações a torto e a direito, saltando da cama de umas e de outras.— Trixie!— Isso é verdade, Ida?

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— Não é a mim que deve perguntar, Mary — Ida retrucou, vermelha. — Trixie não deveria ter falado. Tudo não passa de mexericos.— Mas é verdade? — Mary insistiu. — Posso até acreditar, já que o visconde é bem-apessoado.— Descreva-o, milady — Trixie pediu. — Alto, moreno e rabugento!— Mary, por favor! Tenho certeza de que lorde Delagarde é amável, mesmo tendo seu nome ligado a... Querida, não deveria dizer isso.— Você é levada a elogiá-lo, porque é parente mais próxima dele do que eu. Acho que Delagarde é temperamental em excesso. Só espero que não interfira em meus interesses. Minha dependência será devida a lady Hester.Ao voltar à mansão da Charles Street, Mary comprovou isso. Animou-se com o entusiasmo das saudações de lady Hester e com o forte abraço com que ela recebeu Ida.— Minha querida Ida Wormley, precisamos conversar. Somos primas, mas eu gostaria de descobrir o parentesco exato, se pudermos relacionar nossos antepassados.— Lady Hester, a senhora é tão bondosa! E o que fez pela querida Mary Hope...— Bobagem! Venha, vou mostrar-lhe seus aposentos.Vários criados ocupavam-se em transferir os baús e as caixas da carruagem de Mary para dentro, que deu as últimas instruções ao cocheiro que aguardava no hall e seguiu a anfitriã, agradecendo a todos que carregavam suas coisas para cima.As acomodações ainda estavam sendo preparadas, e Mary descobriu, após subir dois lances da grande escadaria e passar por dois corredores estreitos, que seu quarto estava decorado à moda do Sul.— Uma sacada! — exclamou ao abrir um par de portas francesas.— É muito pequena — lady Hester disse -, mas dá vista para os jardins. Poderá usá-la para tomar ar.Ida mostrava-se atenta à chegada da bagagem e na organização dela.— Que delícia! — Mary, entusiasmada, saíra para o balcão de sessenta centímetros de largura e o dobro de comprimento.Dali avistava-se uma bela paisagem. Mary fitou o céu e o horizonte. No segundo andar, as construções circundantes não atrapalhavam a visão. Os áticos poderiam ser melhores, mas tratava-se de uma inconveniência temporária. Pelo menos, ela poderia continuar o trabalho. Tivera medo de não poder fazê-lo.Voltou ao quarto, orientou Trixie para fechar de novo as janelas e procurou uma mesa conveniente. Havia uma estante pequena do outro lado da cama de baldaquino. Poderia deixar os diagramas ali bem à mão.— Gostou de seu dormitório, Mary?— Na verdade, é muito lindo, milady.— A srta. Wormley ficará perto de você.Lady Hester levou-as até um aposento contíguo, depois de Mary tirar a peliça e o chapéu.Mary notou o olhar de Hester para as suas roupas quase modestas e os cabelos trançados. Alisou os trajes, mas lady Hester nada comentou.O recinto estava muito bem arrumado, e Ida Wormley desfez-se em agradecimentos. Hester mostrou o próprio quarto, situado no corredor em frente, para o caso de precisarem dela.Lorde Delagarde ocupava um dos quartos principais, localizados no primeiro andar, junto aos salões.— O outro será para a esposa, quando Erasmo decidir-se a fazer sua escolha.A dama conduziu-as escada abaixo, e entraram em um salão conjugado a uma sala de jantar.— Se Dorinda não houvesse morrido, já o teria convencido a casar-se há muito tempo. Suponho que eu deveria ter me empenhado mais, mas você deve ter notado que ele é um homem difícil."E como!", Mary pensou, mas não se interessou muito pelo casamento dele. Afinal, se Erasmo já fosse casado, a campanha dela teria sido melhor aceita.Logo, estavam na confortável sala de estar, decorada em tons creme e palha nas paredes e no consolo da lareira. Os sofás e as cadeiras eram estofados em estilo chippendale.— Agora, minha querida Mary Hope, temos de fazer alguns planos.Elas acabavam de tomar chá, quando lady Hester comentou: — Depois que houver descansado um pouco, poderemos ir visitar uma das lojas de confecção mais discretas.— Discretas? — Mary repetiu.Ida Wormley murmurou qualquer coisa ininteligível, e milady não pareceu notar.— Não pretendia sugerir uma viagem a Bond Street, no momento. Sei que não gostaria de provocar comentários; pelo menos até ser oficialmente apresentada a uma das anfitriãs mais proeminentes.— A senhora quer dizer que não estou vestida de modo adequado.

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Lady Hester caiu na risada.— Você é muito franca, Mary. Eu tentava ser diplomática. Mary encolheu os ombros.— Prefiro conversas diretas. Por outro lado, mesmo que Adela nunca se referisse a meu modo de vestir, sei que terei de apresentar-me bem, se pretendo aparecer na sociedade.— Lady Mary nunca se preocupou muito com a aparência — Ida Wormley interveio. — Ela tem pontos de vista muito especiais a respeito.Isso tornou-se evidente quando as três mulheres entraram no edifício tranqüilo em Bloomsbury, que havia três anos abrigava as criações de Cerisette, uma francesa que escapara das confusões de Paris.A modista separou vários vestidos que achava indicados para o début, todos de cintura alta e confeccionados com a então popular musselina, em cores suaves, estampados ou lisos.— Não, estes não!— Minha querida Mary — lady Hester protestou -, estas peças são excelentes. As jovens devem vestir trajes modestos. O que há de errado com eles?— Não é o estilo, madame. Também gosto de roupas simples. O que não aprecio são as cores.Mary percebeu o olhar crítico da tia de Erasmo. Mas, afinal, por que tinha de importar-se com a opinião dela? — Por quê, minha filha?Sem responder, Mary foi até um dos grandes espelhos do salão mobiliado com luxo e tirou o chapéu de cor mostarda. Desatou as fitas e tirou os grampos que prendiam as tranças grossas. Os cabelos ruivos e encaracolados despencaram como uma cachoeira sedosa. Desalentada, fitou o efeito no reflexo.— Bon Dieu! — Cerisette exclamou, ao ver a massa de fios revoltos.Mary conteve as lágrimas teimosas, ergueu o queixo e encarou lady Hester.— Filha, não é tão ruim assim.— É horrendo! — Mary murmurou. — Parece uma juba. Quando lorde Delagarde vir isto, na certa me mandará embora.— Erasmo não fará tal coisa, prometo. E também daremos um jeito nisso, antes que ele a veja.— Será que se pode fazer alguma coisa? — Uma ponta de esperança iluminou a tristeza de Mary.— Com certeza.— Vê, meu amor? — Ida Wormley consolou a pupila.— Um bom corte fará toda a diferença — Hester explicou. — Hoje mesmo chamaremos meu cabeleireiro.— A senhora pode até achar que eu deveria mantê-los trançados, e eu também não me importo com o que pensam a respeito. Mas não devemos esquecer que meu objetivo é atrair.— Não podemos — lady Hester concordou, com um brilho divertido no olhar.— Quando uso tranças presas com firmeza, não se nota tanto.— Minha filha, não se pode enganar os prováveis candidatos fingindo ser o que não é.— Claro que não, milady.— Sempre fui partidária de fazer da necessidade uma virtude. Sei que se sentirá mais confiante se vir que ficou bonita.Mary duvidou, mas rendeu-se aos conhecimentos de lady Hester. Além do que, nem gostava de se lembrar de seus cabelos.— Tudo por culpa de meu tio-avô Reginald — afirmou, com candura. — Sei que ele não é culpado por este legado, mas foi o único da família que herdou os cabelos de meu bisavô, e eu também fui premiada com eles.— Milorde gostava muito da querida Mary Hope — a srta. Wormley acrescentou — e não via nada de errado com o fato de ela ser ruiva, não é meu amor?— Mas para ele, que era homem, não fazia muita diferença.— Isso não deve ser um problema.Cerisette não concordou com Hester. Se soubesse que Mary tinha personalidade tão forte, não teria mostrado aqueles trajes. Decidiu que Mary tinha toda razão. O branco seria muito mais conveniente.— Pois para mim não é — Mary retrucou, teimosa. — Não posso usar branco.— Nesse caso, não poderei vestir mademoiselle.— Não se preocupe, minha querida. — Lady Hester sorriu. — Não se aborreça com os caprichos de Cerisette. As modistas francesas são assim mesmo. Vamos comprar em outro lugar.Mas Mary não aceitou sair sem desabafar:— Um momento, por favor, milady. — E encarou a modista. — Talvez a senhora não saiba, madame, mas sou filha do falecido conde de Shurland. Também sou muito rica. Como pretendo um guarda-roupa novo para a temporada, a senhora deveria refletir o quando poderia ganhar comigo.Mary ficou feliz ao ver o espanto da francesa, e foi em direção à porta.

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De imediato, Cerisette correu atrás dela, pedindo mil desculpas. Apressou-se a desfazer o lastimável erro e, apressada, bateu palmas para chamar os assistentes, distribuindo ordens.— Mary Hope, a senhorita é terrível! — lady Hester a fitava, risonha. — Não sabe que é de muito mau gosto alardear a fortuna e a posição social?— Sei, mas a senhora não pode negar que funcionou.— O tio-avô de milady era um tanto excêntrico — Ida explicou a lady Hester. — Receio que tenha incutido nela alguns critérios impróprios.— Ele podia ter lá suas manias, Ida, mas devo agradecer a titio por muitos ensinamentos. Reginald não gostava de hipocrisia, e eu também não gosto.— Bem, não vamos discutir sobre o conde. — lady Hester meneou a cabeça. — Vamos nos concentrar no problema dos trajes adequados.Apesar do entusiasmo renascido de Cerisette, Mary e lady Hester escolheram as cores mais apropriadas à tez da debutante.Mary optou por musselina verde-musgo e seda azul-marinho. A sempre sábia conselheira sugeriu um vestido de crepe castanho-avermelhado que ressaltava o brilho dos cabelos, além de tecidos leves de cor pêssego e damasco, para o mesmo fim.Mas Mary revoltou-se quando a modista e lady Hester propuseram uma roupa em tons de verde-limão e lantejoulas prateadas.— Será preciso um mais apropriado para o baile, filha.— Pode ser, milady, mas me recuso a usar uma vestimenta que seria mais bem empregada em um palco. E também não sou nenhuma fada.Para espanto de todos, inclusive dela mesma, Mary caiu de amores por um longo de cor creme enfeitado com ramos de renda preta. E insistiu em levá-lo, apesar dos protesto dos mais velhos de que o decote era inadequado.— Tenho de confessar que é magnífico — Hester rendeu-se, quando Mary rodopiou em frente ao espelho.— E vai tirar a atenção de seus cabelos — a srta. Wormley calculou.— Está longe de ser um traje de debutante, mas ouso dizer que Mary Hope não se importa com isso — lady Hester concluiu.E, se alguma coisa pudesse ser feita com seus cabelos, Mary achou que não ficaria tão horrível.— Nunca acreditei que pudesse ficar tão bem — Mary confidenciou à lady. — Começo ter esperança de encontrar um marido que queira desposar-me.— Minha querida, nunca duvidei disso. Com sua fortuna, não lhe faltarão pretendentes, a despeito do que possa estar usando.— E por que estamos fazendo tudo isso?— Ora, minha menina! Para dominar Erasmo, é lógico! Não podemos fazer nada sem ele. Decerto meu sobrinho não terá objeções a ser visto com uma jovem usando esse traje.— O que equivale a dizer que o pobrezinho morreria se fosse de outro modo — Mary deduziu.Delagarde voltou no começo da noite. Entrou na sala de visitas, onde as mulheres estavam reunidas, antes do jantar. Parou, estupefato. Mary assustou-se e deu um pulo.Ela usava o vestido de seda azul-marinho de mangas longas e cintura alta. Teve consciência do busto um tanto exposto, mas aquilo não era nada em comparação à ansiedade que sentiu por estar com os cachos soltos.A massa de cabelos fora cortada. Mechas pequenas estavam soltas sobre o rosto, e o restante amarrado com uma fita de veludo azul enfeitada com penas, cujas pontas caíam, junto com caracóis ordenados, sobre os ombros e as costas. Eram os efeitos milagrosos de uma tesoura inteligente.Em vão, Mary lembrou-se de que não se importava com a opinião dele. Afinal, entendeu que Erasmo fitava seus trajes, e não os cabelos.— O que é isso?! Vocês todas ficaram loucas? — Encarou a tia, furioso. — O que quer dizer isso, Hester? Decote! Penas! pensei que ela fosse fazer o début. Mary mais parece uma matrona cheia de filhos, em vez de...Nisso, ele notou a cabeleira. E tornou a espantar-se, mas, agora, mais calmo.— Bom Deus!Mary não suportou. Cobriu como pôde os cachos, que considerava horríveis.— Ele odiou! Eu sabia!— É surpreendente — Erasmo admitiu, achando que olhava para uma estranha.— Bem, o senhor não pode odiar isso mais do que eu. — Mary baixou as mãos. — Deve dar graças aos céus por não ter visto antes.Erasmo riu.

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Mary afastou-se, e ele rodeou-a, com o olhar fixo nos cabelos incomuns.Inacreditável. A jovem desmazelada que vira pela manhã se transformara. E a cor dos cabelos era tão singular que ele não se lembrava de ter visto coisa semelhante.Mary corou.— Para o senhor é fácil achar graça, milorde. Mas eu tenho de conviver com eles. Já tentei livrar-me dessa inconveniência, sem resultado.— Tentou? — Delagarde perguntou, surpreso.— Ela o fez — Ida Wormley confirmou. — Cortou tudo.O visconde nem havia reparado na dona da voz. Fitou a fisionomia desbotada, o vestido cinzento e discreto, e concluiu quem seria. Chegou até a cadeira dela e estendeu-lhe a mão. — A senhora é a dama de companhia de lady Mary? — Ida Wormley, Delagarde — lady Hester apresentou. — Nossa prima.— Como está a senhora?Ida ergueu-se depressa, aceitou a mão estendida e murmurou infindáveis referências à bondade dele e às esperanças de que o visconde não se sentisse ofendido.-A senhora quis mesmo dizer que ela os cortou, srta. Wormley? — É verdade. Quando tinha treze anos. — Ida, não!A senhora sucumbiu ao sorriso encantador dele.— Mary apareceu para jantar quase tosquiada, mas de maneira desigual. Eu enregelei, mas lorde Shurland gargalhou até não mais poder.— É mesmo — Mary confessou, com amargura. — Nunca perdoei tio Reginald por isso. Depois que tornaram a crescer, sempre os usei bem presos... até hoje. Sinto que não deveria ter deixado lady Hester persuadir-me do contrário.— Minha jovem, não seja tola! Solte esses bandós ridículos e deixe-me vê-la melhor.— Ela não vai fazer isso — lady Hester interveio, para alívio de Mary. — Deixe-a, Erasmo. Não vê que Mary está angustiada?Não foi o que pareceu a Delagarde. A impressão era de rebeldia. Mas o que levara tia Hester a permitir que Mary se vestisse daquela maneira, com uma estranha combinação de azul-marinho e seda, fitas e penas? Quase a preferiu desmazelada. A sofisticação madura de feminilidade era perturbadora.Mary o observava, com os olhos arregalados.— Não pretendia ofendê-la.— É preciso mais do que sua reprovação para ofender-me. O que o senhor pensa é irrelevante para mim.— É mesmo? Se é que a senhorita se lembra, não fui eu quem foi oferecer-lhe o apadrinhamento. Em vista disso, é melhor levar em conta minha opinião, sim.— Não sei por quê. Não lhe solicitei que interferisse em nada, além do que lhe pedi.— Ah, é? E o que foi exatamente que especificou? Devo lembrá-la de que ainda não concordei com nada.— E por que estou aqui?— Eu é que sei?— Bem... já chega. Será que vão ficar sempre em desacordo? — Hester viu a expressão desolada da dama de companhia. — Ida Worinley, não ligue. Se a senhora estivesse aqui hoje pela manhã, já estaria acostumada à contenda entre eles.— Mas Mary Hope não deveria... Não é certo, depois de milorde ter demonstrado ser tão magnânimo.— Acontece que ele não foi nada disso! — Mary sentou-se perto de Ida. — Foi lady Hester quem pediu-me para ficar. Lorde Delagarde não teve o menor problema em recusar, quase com violência, e não foi nada bondoso.— Claro, foi uma idiotice minha — Erasmo disse, ressentido. — Onde já se viu objetar por minha casa ter sido invadida, minha paz perturbada e minha vida virada de pernas para o ar? Tudo para satisfazer os caprichos de uma jovem insolente, que nem teve a cortesia de fazer um pedido. Ela chegou e foi logo exigindo que eu organizasse seu début. Se alguém apresentar-me um motivo pelo qual eu poderia ser generoso depois disso, agradeceria muito.Ao desabafo, seguiu-se um pesado silêncio.Ida parecia arrasada. Se bem conhecia lady Hester, ela estava a ponto de rir. Será que vira um traço de arrependimento na expressão de Mary?— É verdade — Mary admitiu, um tanto rouca. — Não tinha visto a situação dessa maneira. Suponho que não posso culpá-lo por eu ter sido tão desagradável.

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Erasmo enterneceu-se.— Mary, eu...Ela se levantou.— Agora sou eu quem vai falar, milorde.Mary precisou conter uma emoção desconhecida.— Tenho sido uma egoísta. Se o senhor acha que não pode hospedar-me, entenderei.Antes de lorde Delagarde poder dizer algo, entrou um lacaio, que anunciou a visita:— Lorde e lady Shurland.

CAPÍTULO III

Uma morena elegante entrou, seguida por um homem corpulento e mais velho. Lady Shurland relanceou um olhar ao redor, viu Mary e apontou-lhe um dedo acusador.— Então é verdade! Mary, como pôde?Mary previra aquela invasão. Adela e Firmin não aceitariam seus planos. Mas tinha de ser justo naquele momento? Nada poderia ser pior...Adiantou-se, mas, antes de poder falar, lady Hester interveio.— Boa noite, lady Shurland. — Estendeu-lhe a mão. — Sou lady Hester Otterburn.Delagarde, de cenho franzido, viu a mulher virar-se para a sua tia, aborrecida. Pelo jeito, os Shurland tinham vindo para levar Mary. Uma oportunidade enviada dos céus!Mas, assim mesmo, Erasmo não simpatizou com Adela, que se esmerava nos olhares ferozes na direção de Mary, mesmo quando trocava saudações com tia Hester. Ele fitou o sexto e atual conde de Shurland, a quem conhecia ligeiramente.— Perdoe-nos a intromissão — ele dirigiu-se a Delagarde, impassível. — Nós saímos para um excursão e, ao voltar para casa, tivemos a informação, por nosso cocheiro, de que lady Mary viera para a cidade e estava em sua casa. Ficamos consternados. Apressamo-nos em vir até aqui e averiguar por nós mesmos.— E agora que descobriu, o que pretende fazer?— Ora, levá-la conosco, é claro! — Adela se intrometeu.— E se Mary se recusar a acompanhá-los?— Ela o fará — Shurland afirmou, seco. — Essa sua escapada, Mary Hope, era desnecessária. Não sei com que propósito veio incomodar lorde Delagarde, mas...— Fiz isso para o visconde apresentar-me — Mary explicou, sem cerimônia.— Mary! — Lady Shurland engasgou. — Que dizer que teve a ousadia de... de...— Sim, tive. Mas pode ficar tranqüila.— Lorde Delagarde, estou mortificada! Mary não sabe o que é recato! E depois de eu ter me oferecido para trazê-la a Londres! Ausentou-se de nossa residência durante nossa ausência, atirou-se sobre um estranho, mesmo após termos feito tudo o que estava a nosso alcance. Não sei como pode fitar-me!Mary a encarava com coragem e repugnância.— Por favor, Adela, não assuma ares de benemérita em frente a lady Hester e lorde Delagarde. Eu já lhes contei os motivos por que se ofereceu para fazer meu début.— Não tenho dúvida de que fez o melhor para denegrir minha imagem. Enquanto não fizer de mim um objeto de censura perante a sociedade, não terá sossego.— Como assim, minha querida senhora? — lady Hester quis saber.— Todos pensarão que sou medíocre e egoísta. O que é uma inverdade. Fiz o impossível para beneficiá-la, a despeito de suas tentativas de pintar-me como uma inimiga. Agora vejo a paga! Apunhalando-nos pelas costas!— Adela, deixe isso comigo — lorde Shurland pediu. — Mary, quero pedir-lhe que pare de comportar-se de uma maneira que, deve reconhecer, é reprovável ao extremo. Segundo fui informado, a mocinha tratou de fixar residência aqui.— Não fale comigo como se eu fosse uma estudante, Firmin. Você não tem autoridade sobre mim.— Ao contrário. Como chefe da família, considero-me responsável por seu bem-estar. — Ele voltou-se para a infeliz Ida. — E se eu precisava de uma prova de sua total ineficiência, srta. Wormley, para tomar conta de lady Mary...— Pode dizer o que quiser para mim, mas não ouse falar assim com minha querida dama de companhia, Firmin!— Oh, Mary, não diga isso. Milorde tem razão. Eu... Ah, meu anjo!— Não se preocupe, Ida. Ninguém a está acusando. — Mary cruzou o salão e abraçou a srta. Wormley. — Pobre Ida, implorou tanto para eu não vir! Ela ficou ainda mais atordoada pelo que fiz do que lorde Delagarde.

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— Lorde Delagarde! O que posso dizer? Como desculpar-me o suficiente?— Não vejo motivos para isso, milady — Erasmo afirmou, com hostilidade. — A senhora não é responsável pelos atos de lady Mary.— Milorde é muito tolerante. — Adela foi efusiva. — Mas só posso lamentar a maneira como nossa pequena Mary foi instruída quanto a sua conduta.— O que lhe dá crédito, minha querida lady Shurland — lady Hester interveio.Erasmo perguntou-se o que a tia estava pretendendo, ao notar-lhe o piscar malicioso.— Poucas mulheres seriam tão altruístas — ela prosseguiu, com voz doce — a ponto de oferecer-se para apadrinhar uma jovem tão perdida nas noções do que é adequado. Eu não a culparia se desistisse do intento.Delagarde teve de conter o riso.— Independente de meus sentimentos, sei qual é meu dever — Adela disse, fingindo-se virtuosa. — Aliás, deveria ter me empenhado mais para ensinar-lhe a comportar-se com mais comedimento. Não me causa surpresa que a srta. Wormley tenha sido incapaz de convencê-la.— Ela nunca teve autoridade sobre a jovem — o conde salientou. — Mas talvez Ida pudesse explicar por que não me informou do que ia pela mente de lady Mary.— Eu não podia. — Ida estava em lágrimas. — Quero dizer...— Claro que não. Primo Firmin, como pode ser tão idiota? Acha que Ida iria trai-me, e logo com você?— De jeito nenhum — Adela revidou, sarcástica, falando pelo marido. — Seria pedir demais que ela se lembrasse de quem é seu patrão.Adela voltou-se para o marido.— Eu lhe falei para despedi-la, Firmin. Avisei-o do que poderia acontecer. Mas você nunca me escuta.— Fique quieta, Adela! — Firmin fitou os anfitriões. — Minha esposa está muito nervosa. Peço que levem isso em consideração.— De minha parte — Hester mirou o sobrinho e piscou para Mary -, estou pronta a fazer qualquer concessão. Para ser franca, Shurland, eu o aconselharia a deixar a jovem comigo. É evidente que Mary precisa de orientação. Uma senhora de minha idade e que conhece o mundo está longe de ficar perturbada. Simpatizo muito com lady Shurland, e ficaria feliz de tirar esse encargo de seus ombros.Apesar de conhecer a amiga havia apenas um dia, Mary entendeu sua intenção. Mas convivera com Adela, e lady Hester, não.Adela começava a discutir de novo, apoiada pelo marido, mas só havia uma coisa que faria Mary desistir: se lorde Delagarde insinuasse para os Shurland levarem-na consigo.Mary não entendeu o significado do olhar de Delagarde. Na verdade, nem se preocupou em tentar adivinhar, tão interessada estava em observar-lhe os cabelos brilhantes e os olhos escuros. Engraçado como não notara isso antes...Perguntou-se por que Erasmo ainda estava solteiro. Concluiu que as mulheres, e deviam ser muitas, deviam ter percebido o quanto ele era descortês e irritadiço.Delagarde sorriu para ela, e Mary aborreceu-se por sentir que corava. Ele alargou o sorriso e ergueu uma sobrancelha, questionando. Para alívio de Mary, Erasmo atentou para a conversa.— Deixar Mary Hope a seu encargo jamais me passaria pela cabeça, milady — Adela disse e depois falou com o conde: — Vamos, Firmin, Mary já passou dos limites. Voltemos com ela para casa e acabemos com essa situação ridícula.— Passar dos limites? Oh, não, minha querida — lady Hester contestou. — Ela está aqui como minha convidada.— Pode até ser, mas tenho certeza de que Delagarde não gostaria disso.— Pelo contrário — Erasmo manifestou-se com energia. — O senhor deve saber, milorde, que, há muitos anos, minha mãe confiou lady Mary a meus cuidados, e eu não me perdoaria se não honrasse a promessa.— Confiar a seus cuidados? — Shurland repetiu, sem entender. — E por que ela fez isso?— Meu caro senhor, nada mais natural. Quando uma jovem parente fica órfã...— Parente? Do que o senhor está falando?— Os Burloyne são aparentados dos Otterburn. Foi minha mãe quem enviou a srta. Wormley, nossa prima, para cuidar de lady Mary, quando ela perdeu a mãe em tão tenra idade.Adela estava com os olhos tão esbugalhados quanto o marido.— Como é que nunca ouvi falar disso? — Shurland encarou Mary com raiva.— Não mesmo? Então isso deu-se antes de seu tempo, por certo — Delagarde desculpou-se. — Talvez o último conde não tenha tido oportunidade de informá-lo.

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— Reginald Hope não achava necessário relatar nada do que fosse relativo a minha herança. Nunca falava em outra coisa que não fosse seu hobby infernal.— Como ousa falar assim de tio Reginald, Firmin?! — Mary enfureceu-se e viu as expressões espantadas de lady Flester e de Delagarde, mas não se conteve. — O senhor não é nem metade do homem que ele foi. Tio Reginald foi o melhor dos homens e o mais bondoso dos tutores. E um pai para mim, assim como Ida, uma mãe. Não quero que falem mal deles. O que titio me ensinou foi muito mais que um hobby, e de valor muito maior do que você sequer pode imaginar.— Importante para outros tão excêntricos quanto ele — Shurland retrucou.Delagarde divertiu-se ao descobrir que lady Mary era voluntariosa.— Muito bem, já se falou o suficiente — Firmin retrucou, alto.— De qualquer modo, não é ocasião para discutir-se sobre o passado. Vá arrumar suas coisas, Mary, porque vai voltar conosco. Mary esforçou-se para manter a calma.— Eu lhe agradeço, Firmin, mas não irei. Se lorde Delagarde estiver disposto a ser meu padrinho...— Mas é claro! — Erasmo anuiu. — E não só isso. Eu me tornarei seu curador.Shurland perdeu o fôlego e corou.— O senhor não vai fazer nada disso, sir! Estou a par de todas as circunstâncias da fortuna de Mary. O senhor não tem direito nenhum.— Nem o senhor. Lady Mary é maior de idade e pode fazer o que quiser. E acho que nem eu e nem o senhor poderemos impedi-la. Se ela escolheu vir morar com minha tia e comigo, não vejo empecilhos nisso.— A não ser — Adela interveio, amargurada — com isso nos fazer parecer idiotas.— Quanto a esse fato, nada posso fazer -o visconde respondeu.— Ah, milorde, mas eu não queria abusar! Claro que Mary inventou mentiras sobre mim. — Adela voltou-se para Mary. — E se acha que conquistará um marido com um traje desses, que a envelhece, e com esses cabelos horríveis...— Horríveis?! — Delagarde a fitou. — Minha prezada senhora, não posso concordar. Os cabelos de lady Mary são, sem dúvida, seu maior encanto, e o vestido combina muito bem com ela. E digo mais: eu expressava minha admiração, quando milady chegou.Mary engasgou ao ouvir a lorota, e reparou que lady Hester mal continha o riso.— Mesmo assim, milorde, o senhor há de convir que a indumentária não é adequada para uma debutante.— Se a senhora reprova tanto... -Mary pôs as mãos na cintura. — ...deve ficar satisfeita por não ter de aparecer comigo na sociedade.— Isso é um absurdo! — lorde Shurland contestou, irado. — Estou longe de aceitar a invencionice sobre sua mãe, Delagarde, e quero informar-lhe que isso não ficará assim!Mary sentiu a mudança de atmosfera. Lady Hester já não se divertia, e Delagarde endurecia o semblante, estreitando os olhos.— Verdade? E o que fará, senhor?— Adivinhe, se quiser. Milorde sabe muito bem o que eu quis dizer. Não preciso rebaixar-me para dar-lhe explicações.— Muito prudente — Delagarde ironizou.O conde ficou vermelho.— Se está falando em prudência, deixe-me avisá-lo: o senhor não a conhece, Delagarde! Eu, sim.Antes de Mary protestar, lady Hester adiantou-se:— O senhor está confuso, meu caro Shurland. Eu lhe asseguro que meu sobrinho está apenas agindo como um cavalheiro. — Pôs a mão no braço de Adela. — Temo que esteja aborrecida à toa, milady. Não tema a opinião dos outros. Diremos que a jovem veio para ficar comigo por vontade da mãe de Erasmo, e por Reginald Hope ter sido um amigo muito querido.— A senhora pode fazer tal afirmação. Eu, não. Ninguém encontrará motivos para Mary estrear na vida social sob sua égide, em vez da minha. Serei ridicularizada perante todos, e é uma desumanidade Mary sujeitar-me a essa humilhação. — Depois disso, lady Shurland rompeu em soluços e correu para fora do recinto.— Espero que esteja satisfeita! — o atormentado marido acusou Mary e em seguida resolveu encarar Delagarde. — Quanto ao senhor, pode inventar as histórias que quiser, mas eu não as endossarei!— A única coisa que desejo, milorde, é que o senhor mantenha silêncio sobre a fortuna de lady Mary, para não provocar especulações na sociedade.— Nada direi sobre isso, mas devo alertá-lo. O senhor será mais prejudicado do que eu, se isso transpirar.— Se a notícia vier à tona, direi que milorde tentou casar lady Mary com o seu cunhado.

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— Se o senhor pensa que Eustace está louco para casar-se com ela, engana-se. E quem pode culpá-lo, não é? — Depois da ofensa, Firmin se foi, deixando Mary mergulhada em emoções conflitantes.Ficava feliz por Delagarde ter aceitado apadrinhá-la. Porém, não sabia qual o teor das ameaças do primo. Nisso, ouviu lady Hester gargalhando.— Você é um mentiroso de primeira, Erasmo!— Veja quem fala, tia Hester! — Ele fitou Mary. — Bem, já conseguiu o que queria, não é mesmo?— Sim, mas não posso compreender por que fez isso.— Digamos que gostei menos do casal Shurland do que envolver-me na tarefa.— Eles são detestáveis! E Firmin também estava mentindo. Acho até possível que Eustace não queira se casar comigo. Afinal, ele gosta de mim tanto quanto eu dele. Mas a idéia de pôr as mãos em meu dinheiro venceu sua relutância.— E assim haverá muitos. Por isso, precisamos manter segredo.— E como é que conseguirei um marido?— Terá de contar com sua aparência e seu charme natural. — O senhor pode ser sarcástico, milorde, que não me importo.— Sei disso.— Afinal, o senhor concorda com Adela no que se refere a minha roupa.— É mesmo?Sem dar-lhe tempo de protestar, Delagarde aproximou-se de Mary e soltou-lhe os cabelos. Ela tentou impedi-lo, mas ele segurou-lhe os pulsos, enquanto Mary se debatia.— Fique quieta! Acha que vou machucá-la?Espantada e muda, ela sentiu Erasmo ajeitar-lhe os cachos soltos.— Agora está melhor. — Ele sorriu, dando um passo atrás. — Com aparência mais jovem e uma roupa perfeita. Lady Hester bateu palmas.— Muito bem, Erasmo! — Chegou perto de Mary. — Não fique tão assustada. Meu sobrinho está certo. As fitas e as penas foram um erro.— Mas eu odeio esta cabeleira! — Mary piscou várias vezes. — Sei que ele disse uma bobagem para Adela, mas...— Seja o que for que eu tenha dito, milady, não os detesto. Por outro lado, já que a senhora está desejosa de arrumar um marido, eles servirão como uma boa atração. E estou certo de que haverá alguém que se encante com eles. E quanto antes, melhor!— Quanto a isso, nós temos a mesma opinião. — Mary suspirou e sorriu para Delagarde.Ele levantou as sobrancelhas. O efeito fora surpreendente. Talvez não fosse tão difícil alguém apaixonar-se por ela. Isso se não conhecessem o seu temperamento, é claro.— Milorde, tenho de agradecer-lhe por ter me dado apoio. Não entendo por que o senhor fez isso, mas não importa. Tive medo de que encorajasse Adela e Firmin a me levarem embora.— É, eu deduzi. E não tenho a menor idéia de por que não o fiz. Espero que não me arrependa.O bom relacionamento entre eles não foi o único motivo para Delagarde ter se oferecido para acompanhar Mary ao advogado. Já refletira no porquê de deixar-se arrastar para uma missão que não desejava para si.Mary era a mulher mais furiosa que já conhecera, e não duvidava de que o deixaria louco. Mas não poderia expulsá-la. Gostaria de descobrir mais verdades sobre aquela jovem. O pedido para acompanhá-la ao advogado fora providencial.Na sexta-feria pela manhã, eles saíram na carruagem de Erasmo. Mary, que na véspera fizera mais compras com lady Hester, vestia unia peliça marrom e um chapéu combinando, enfeitado de rosas de cetim. Estava muito atraente, com os cabelos soltos.— A senhorita está muito bem — ele elogiou, ao ajudá-la a subir no veículo leve e descoberto, conduzido por quatro cavalos. — A escolha foi sua?— Não, de lady Hester. — Mary ficou satisfeita por Erasmo ter aprovado. — Ainda não aprendi o suficiente para confiar em mim mesma.— Aprenderá.Erasmo subiu em seguida e anuiu para o cavalariço, que soltou os arreios e pulou para dentro, com os cavalos já em movimento. — Foi muita bondade sua levar-me para ver o sr. Bagpurze.— Tenho boas razões para ir com a senhorita. — O que quer dizer?— Desde que fui alçado à posição de curador, é melhor que eu conheça os fatos relativos a sua herança.

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— Mas eu já lhe disse. O senhor supõe que eu esteja mentindo? — Milady falou muito pouco sobre isso. Terei informações mais corretas com o advogado.— Como quiser; não tenho nada a esconder. Será uma boa oportunidade de negociarmos.— O que quer dizer?— Ora! Não espero que o senhor faça tudo isso por nada. Tenho certeza de que achará a carga menos pesada se concordarmos no quanto lhe pagarei para servir-me.— A senhorita pretende pagar-me?! — Delagarde estava aturdido.— Qual o problema? Milorde não precisa envergonhar-se de admitir que está em dificuldades. Achei que ficaria contente com a oportunidade de poder ganhar algum dinheiro.Delagarde continuava atordoado. O que se passava na cabeça de lady Mary?Incapaz de achar uma resposta conveniente, agarrou-se à primeira idéia que lhe ocorreu:— É evidente que qualquer coisa que eu receba por servi-la será ganho arduamente, milady. Contudo, devo dizer-lhe que está mal informada. Meus bolsos estão até bem recheados.Mary encarou-o.— Então o senhor esteve ganhando nas mesas de jogo? -Ah, é isso que pensa? E suponho que desaprova a jogatina. — E por que deveria? De que outra forma um homem poderia sustentar-se como um cavalheiro? A menos que se case com o dinheiro. Há poucas mulheres com uma fortuna decente como a minha, para um excesso de cavalheiros.— Sendo assim, quanto antes a senhorita achar um para socorrer, melhor! Permita que eu diga, milady, que não ganhei meu dinheiro nas mesas de pôquer e que tenho o suficiente para manter-me como o lorde que sou. Mas receio que deixarei de ser um, se a senhora continuar na minha casa!— Por causa de meu temperamento? — Mary perguntou, com inocência. — Bem, posso ser pouco convencional, milorde, mas sou bastante respeitável. E asseguro-lhe que não trarei nenhum descrédito a sua honra.— Isso nada tem a ver com sua respeitabilidade, mas sim com a perda completa da lucidez quando eu estiver sendo arrastado para a forca por assassinato!Um risinho abafado lembrou Delagarde que o cocheiro os acompanhava.— Sampton, se não consegue controlar sua risada, pelo menos segure a língua — Erasmo ordenou por sobre o ombro. — Se uma palavra dessa conversa for repetida...— Milorde pode confiar em mim — Sampton apressou-se a dizer. — Não direi nada.— Assim espero. — Percebeu que Mary fitava-o, intrigada. — O que foi?— Milorde é um homem muito estranho.— Pelo contrário, sou bem normal. A única coisa estranha é eu estar atrelado à senhorita.— Não é bem assim, visconde. Só pretendo que o senhor me instrua quanto à etiqueta. Uma vez apresentada, pode fazer de conta que eu não existo.— Impossível!— Mas que diferença isso faz para o senhor? Lady Hester... — Eu lhe direi qual a diferença. Até agora, tenho sido um homem de reputação ilibada.— Não há nada que o impeça a continuar dessa maneira. — Não havia, milady.Delagarde sabia que, ao apadrinhar a entrada de Mary na sociedade, se exporia à censura de seu círculo de amizades, pelo comportamento nada ortodoxo de Mary. E seu renome cairia por terra. Ela, era evidente, não tinha noção disso. Se tivesse, sem dúvida aumentaria a oferta da recompensa.Ele não pôde deixar de sorrir.Mary ouviu a risada e começou a suspeitar que devia estar certa a respeito do visconde. Sem pagamento, o lorde não poderia interferir.Ela fizera a oferta porque não queria dever-lhe favores. Mas se Erasmo não precisava de dinheiro, Mary poderia aceitar o patrocínio como uma obrigação a ele imposta pela mãe. E nada mais.Não demorou, e eles alcançaram a cidade.Mary distraiu-se com a visão e os sons de uma parte de Londres que não conhecia. As pessoas se acotovelavam nas calçadas. Muitos pareciam apressados, e alguns nada faziam. Vendedores ambulantes anunciavam suas mercadorias.Atravessaram um trecho mais tranqüilo, onde via-se a preponderância de indivíduos com aparência de abastados.

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— Estamos chegando, milady. Aquela área é quase toda tomada pelos profissionais liberais. E Gray's Inn Gardens.Mary olhou para onde ele apontava. Era um parque agradável, com uma alameda no centro.— Portpool Lane. — Delagarde desceu rápido e ajudou Mary a apear.Dali a momentos, eles entraram nos escritórios apertados do sr. Bagpurze. Um funcionário apressou-se, atrás da porta de vidro, a anunciar tão nobres clientes. O advogado veio recebê-los em pessoa e conduziu-os a sua sala.Era um homem robusto, de cerca de cinqüenta anos e usava peruca. Mordeu o lábio ao ouvir a determinação de lady Mary em desprezar a proteção de lorde Shurland.— Milorde já veio me ver. — O sr. Bagpurze lançou um olhar aborrecido por cima da mesa de carvalho.Mary sentara-se em uma das duas cadeiras de treliça e palhinha, reservadas para clientes. O visconde preferiu se manter em pé, de frente para a poltrona de braços de madeira polida, onde o causídico se acomodara. Atrás da escrivaninha havia duas estantes enormes com livros, caixas, arquivos amarrados com fitas e manuais de advocacia.— Firmin veio vê-lo? Eu já imaginava isso. O que ele queria?— Seu primo contou-me sobre sua saída imponderada da casa dele, milady. Mas não foi esse o propósito da visita.— Prossiga.— Lorde Shurland quer descobrir se há maneiras legais de impedir que a senhora troque a proteção dele pela de lorde Delagarde.— E há? — Erasmo quis saber, de braços cruzados, encostado na parede perto de uma janela encardida.— Creio que não, milorde.— É uma pena...Mary fitou-o com o olhos muito abertos.— Por que o senhor diz isso? Pensei que...— Aceitá-la em minha casa não é o mesmo que resignar-me.— Bem, eu lhe ofereci pagamento. — Ela virou-se para o advogado. — Não esperava que lorde Delagarde fizesse nada de graça, mas ele não aceitou nada. O que o senhor acha, sr. Bagpurze? Poderia pagá-lo, não poderia?— Milady pode fazer o que desejar, mas isso não encobre a natureza ultrajante de sua oferta.Divertido, Erasmo aproximou-se da mesa.— Esqueçamos o assunto, sr. Bagpurze. O que me interessa saber é se tem havido controle baseado nos termos do testamento. Não me olhe como se eu estivesse interessado na fortuna de lady Mary. Se eu me considerar responsável por seu bem-estar, tenho de saber o que enfrentarei.O advogado acalmou-se e não viu a expressão intrigada de Mary.Firmin teria dito isso? A última coisa no mundo que passaria pela cabeça dela e de lorde Delagarde era casarem-se um com o outro.— A fortuna foi deixada integralmente para lady Mary, e ela pode dispor dela da maneira que melhor lhe aprouver. Há apenas uma cláusula restritiva. Quando lady Mary vier a casar-se, apenas uma parte dela poderá ser legada. O restante ficará assegurado e a sua disposição. Depois de sua morte, passará para aqueles que não tiverem direito a alguma outra propriedade.— Em outras palavras — Delagarde concluiu -, uma salvaguarda para um casamento inadequado e para garantir o futuro dos filhos que ela possa vir a ter.— Isso mesmo, milorde.— Parece que o falecido lorde Shurland não era tão excêntrico como supus que fosse.— Não foi tio Reginald quem elaborou o testamento.— É verdade, milady. Os papéis foram elaborados por John Hope, pai de lady Mary, quando a esposa estava muito doente. Não demorou muito e John também morreu. Se o encargo tivesse ficado para o tio e herdeiro, o quinto lorde Shurland, receio ter de dizer que tal disposição sensível não teria sido tomada.— Oh, não! — Mary meneou a cabeça. — Tio Reginald tinha assuntos mais importantes para resolver.— Lógico. — Delagarde perguntou-se quais seriam eles, dos quais se falava tanto.— Fico feliz de saber que meu pai estipulou tudo para mim, mas não posso culpar titio. Eu também sou esquecida quando estou absorta. Na verdade, sinto muita falta dele, e nem sei como consigo viver sem seus conselhos.Pensativo, Delagarde foi até a vidraça. Se Mary não pudesse contar com sua fortuna para conseguir um marido, seria obrigada a usar os atrativos pessoais. O que, tinha de admitir-se, eram frágeis.

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E, com a sobrecarga de seu modo peculiar de agir, deixava descrença quanto a um matrimônio para ela. Eustace Silsoe devia estar informado de todas as cláusulas, e sua insistência era de admirar. Para onde teriam ido os cálculos envolvidos?Saiu da janela e viu Mary estudando, com o sr. Bagpurze, uma maneira de ter acesso aos próprios fundos. O advogado advertiu-a de que ela deveria enviar-lhe todas as contas para pagamento e conjeturou na melhor maneira de provê-la com a soma para as despesas ordinárias.— Não seria mais simples se o senhor me fizesse uma procuração? Eu poderia tirar dinheiro para lady Mary dos banqueiros Hope.— Por que o senhor iria fazer tal coisa? — Mary indagou, suspeitando dele.— Ora, a senhorita está pensando que vou fugir com sua fortuna? Estou tentando ajudar!— Bem, eu não podia saber, podia?— Acho melhor continuarmos essa discussão em um momento mais apropriado. Enquanto isso, tenho uma pergunta para o sr. Bagpurze.— Sim, milorde?— Não duvido que lady Mary encontrará algum motivo escuso em minha pergunta.— Não precisa ser irônico, milorde! — ela irritou-se.-...mas gostaria de saber com que tipo de pessoas estamos lidando. O senhor, assim como lady Mary, podem supor que sou motivado por interesse pessoal. Mas tenho recursos suficientes e por conseqüência...— Eu nunca disse isso!— ...o legado não me tenta.— Lorde Delagarde, chega! — Mary ergueu-se, indignada. — Essa idéia nunca me passou pela cabeça! Dispenso seu sarcasmo! — Então, que seja uma lição para a senhorita não ser mais tão desconfiada!Mary abriu a boca para responder, mas Erasmo ameaçou-a, apontando-lhe um dedo.— Não diga nada!Ela comprimiu os lábios e se calou. Ao observar o espanto e o queixo caído do advogado, Delagarde esqueceu a zanga. Mary era impossível. Tirava-o do sério!— Desculpe-nos, sr. Bagpurze. Lady Mary e eu temos a mania infeliz de discutir nos momentos mais impróprios.— O senhor é detestável, mas admito que eu também estava provocando.— Bastante, mas não se incomode. Mary Hope, será que poderia permitir que o sr. Bagpurze explicasse qual é a extensão de sua fortuna?Mary anuiu.— Claro. Pode dizer, sr. Bagpurze.O advogado mordeu o lábio e hesitou, antes de obedecer.— A maior parte está em investimentos, mas o rendimento é substancial. Lady Mary tem o beneficio de seis a dez milhares de libras ao ano, dependendo da porcentagem de retorno sobre o capital investido.— Mas isso significa una montante de mais de cem mil! — Correto, milorde.— E a doação permissível com o casamento?— Menos da metade. Quarenta e cinco mil, para ser preciso. Quarenta e cinco mil libras?! E ele se fizera responsável por aquela jovem. Como é que entrara em tamanha confusão?— Oh, Deus! — Erasmo gemeu. — Preciso de um trago!

CAPÍTULO IV

Delagarde, apesar de ter dito que não o faria, acompanhou a tia-avó e a protegida a um circuito introdutório de visitas matinais.Para desgosto de Mary, o visconde não saía de perto, e ela mal teve oportunidade de abrir a boca, nem para responder às mais inocentes questões.Naquela terça-feira, lady Hester ocupou-se com outro visitante, e a anfitriã, lady Wingrove, perguntou a Mary o que a levara a morar na Charles Street.— Ah, lady Wingrove — Erasmo impediu-a de responder -, tia Hester soube da orfandade de lady Mary. Escreveu várias vezes para o falecido lorde Shurland, Reginald Hope, seu amigo, pedindo para ele confiar-lhe a

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menina. A senhora bem pode imaginar como minha tia adorou ter a oportunidade de apresentar nossa pequena parente.Lady Wingrove desculpou-se pelo convite improvisado e rogou para que comparecessem ao jantar que ela ofereceria na quinta-feira. Em seguida, perdeu o interesse pela "menina" e passou a conversar com Delagarde num tom que, aos olhos críticos de Mary, mais parecia um flerte. Teve de ficar sentada e muda, desejando que Ida estivesse por perto.

— Por que o senhor fez aquilo? — Mary inquiriu-o, quando estavam instalados no coche de Delagarde.— Aquilo o quê?— Milorde impediu-me de falar com lady Wingrove. E eu gostaria de saber o que o senhor quis dizer com "pequena" parente. — Ele fez isso? — lady Hester parecia divertir-se. — Minha querida, era só para corroborar a história que tramamos.— Nada disso! O visconde estava com receio de que eu dissesse alguma coisa que o deixasse envergonhado. Não é?— Isso nem me passou pela cabeça, milady. Estava mais era preocupado que a senhorita deixasse escapar alguma insinuação sobre sua fortuna espantosa.— Considera-me incapaz de guardar um segredo, Erasmo Delagarde?— Acho que sua língua é um tanto imprudente, Mary. Não me incomodo com o que, nem a quem fala. Mas tremo só em imaginar as conseqüências de alguma palavra indiscreta.— Não seja tolo, Erasmo! — tia Hester admoestou-o, antes que Mary pudesse mostrar sua indignação. — Não pode esperar que a pobre criança permaneça em silêncio nos encontros sociais. Mary tem de deixar sua própria impressão.— Mas é isso o que temo!— Além do que, a menos que você permaneça colado nela, Mary tem de desembaraçar-se por conta própria. Ela pode muito bem fazer isso desde o começo.— Obrigada, lady Hester. E tem mais, lorde Delagarde. Nenhum cavalheiro se aproximará de mim se imaginar que o senhor é um guardião severo. Seria melhor se cuidasse de seus interesses e me deixasse a sós com lady Hester.Mas o visconde não atendeu ao pedido.Na ocasião seguinte, ele não interferiu de maneira tão óbvia, mas Mary esteve consciente de seu olhar crítico nas proximidades, a cada opinião por ela emitida.Na primeira aparição oficial na festa de lady Wingrove, na quinta-feira à noite, após o anúncio de seus nomes, eles entraram nos salões verdes e dourados do primeiro andar da mansão, e Mary ficou aliviada ao ver que Delagarde foi requisitado por dois cavalheiros.— Ainda bem — lady Hester murmurou. — Enquanto Erasmo conversa com os amigos, nos deixará um pouco sozinhas.Mary concordou em silêncio e preparou-se para saudar os Wingrove. Foi apresentada a várias pessoas e limitou-se a ficar ao lado de lady Hester, sussurrando frases convencionais à medida que passavam de grupo em grupo.Mary iniciou a noite animada com o traje cor de damasco escolhido por lady Hester e entregue naquela manhã. Mas, com o passar do tempo, começou a achar que o tom chamava mais a atenção para seus cabelos. Notou o olhar surpreso dos convidados e desejou não ter sido persuadida a deixar as madeixas soltas, enfeitadas apenas com uma casquete de renda e flores.— Todos estão olhando para meus cabelos, milady.— Talvez seja admiração. — A boa senhora deu uma piscadela.— Impossível. Como poderiam?— Facilmente. Não se aborreça, querida e esqueça isso. Eles podem olhar, mas lhe prometo que ninguém dirá nada.Mary tentou descontrair-se e, naquele momento, aproximou-se delas uma mulher com vestido de cetim roxo, turbante de penas e muitas jóias de ouro. Alta, arrogante e macilenta, foi meter o nariz adunco nos assuntos de Mary.— Por Deus, Hester, é verdade o que tenho escutado? Você saiu da toca só para apresentar a filha de John Hope? Quais serão as virtudes peculiares dessa jovem que a fizeram agitar-se depois de tantos anos?

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— Julgue por si mesma, querida Selina. — Hester observou que sua protegida contraía os maxilares. — Lady Mary Hope, esta é lady Rankmiston, uma das mais famosas anfitriãs de nossa sociedade. Selina, esta é Mary Hope, nossa parente.— Deve ser distante, Hester. — A mulher fitou os cachos avermelhados. — Não há nenhuma cabeça semelhante em sua família.— A senhora está certa, milady. A cor de meus cabelos vem dos Hope, e não dos Otterburn. É uma anomalia que nos acompanha desde os Tudor, mas não aparece com freqüência. Trata-se de uma tradição familiar que provém de um ancestral, filho ilegítimo de Henrique VIII.— Verdade?! — a mulher exclamou, surpresa.— Bem, não sei se a lenda é verdadeira. Mas devo dizer que é de certo modo uma honra ter o rei Henrique como antepassado. Segundo meu tio-avô Reginald, muitas pessoas só conseguem chegar até Carlos II, que deixou tantos bastardos na nobreza que isso tornou-se um lugar-comum.Muda, lady Rankmiston apenas fitava Mary, e lady Hester ria.— Selina, a senhora pode ver quais são as "virtudes peculiares" que me atraíram nesta jovem debutante nada convencional.— É... Lorde Delagarde também é seu padrinho, criança?— Sim, embora com relutância. Estou muito agradecida, mas não desejo sobrecarregá-lo. Lady Hester é que tem me orientado.— E tenho advertido lady Mary para não abdicar de sua deliciosa franqueza. Não suporto donzelas fingidas.— Entendo, Hester, mas eu também não encorajo a impertinência da juventude.— Perdão, milady, se fui impertinente. Meu tio-avô detestava falsidades. Ele sempre aconselhava-me a dizer tudo o que eu pensava, por isso não sou muito de refrear minhas palavras. E é isso o que lorde Delagarde não aprecia em mim.— Posso até perdoá-lo.— Lady Mary foi criada por Reginald Hope. Ele era um tanto recluso e quase nunca freqüentava a sociedade. Lady Rankmiston lembrou-se dele.— Reginald Hope? Aquele velho lunático foi quem tomou conta da senhorita? Oh, Deus, pobre criança! Mary zangou-se.— Ele não era nada disso! Era o mais inteligente e bondoso dos homens. E eu o amava demais. Acho um horror a senhora dizer tais leviandades. Meu tio estava certo. Afirmava que a sociedade estava cheia de pessoas que nada mais tinham a fazer além de falar mal da vida alheia. E vejo que a senhora é uma delas.E Mary deu-lhe as costas e afastou-se. Mal dera dez passos, sentiu-se agarrada pelos cotovelos.— Venha comigo! — Delagarde ordenou.O visconde conduziu-a por entre as pessoas que cochichavam atrás dos leques. Dali a instantes, viram-se sozinhos em uma pequena antecâmara no final de um dos salões. Furioso, ele soltou-a e fechou a porta.— Que droga! O que a senhorita pensa que está fazendo? Não sabe fazer nada melhor de que insultar uma das rainhas da sociedade?— Não me importa quem ela seja. Aquela mulher não tem o direito de injuriar meu tio. Se eu a insultei, foi mais do que merecido!Lágrimas de ódio afloravam aos olhos de Mary, apesar de todo o esforço para contê-las.— Não precisa chorar, Mary — ele falou, em tom mais suave. — Não estou chorando!Delagarde evitou dar risada e estendeu-lhe um lenço. Mary hesitou, fungou e acabou aceitando o oferecimento.— Estou apenas com raiva. — Ela disfarçou e escondeu o lenço no bolso da saia. — O senhor também ficaria, se alguém chamasse sua tia Hester de lunática.— É verdade, Mary. Mas há hora e local certos para mostrar o temperamento. Não se pode perder o beneplácito de senhoras como lady Rankmiston. Você pode não entender, mas essas mulheres podem arruiná-la socialmente.— E daí? Não quero fazer figura na sociedade, mesmo... — Acredite. A sociedade é que vai tratar de ignorá-la. — Não me importo!— Mas eu, sim!— E o que o senhor tem a ver com isso?— Acontece que prezo minha posição social e não quero vê-la arruinada por seu comportamento idiota.— Pode ficar sossegado. Já expliquei a lady Rankmiston que você não aprova minhas atitudes. Não duvido que...

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— Disse o quê? Ficou louca?! Não tem noção do que está em jogo?— A culpa é sua, porque irritou-me tanto que nem sei o que estou fazendo. Só quero ficar sozinha!— Isso mesmo, Erasmo. Deixe-a só. — Lady Hester entrou na saleta, demonstrando divertir-se com a situação.— O que há de tão engraçado, tia?— Nunca vi Selina tão desconcertada. — Bateu no ombro de Mary. — Não se aborreça, querida. Sempre tive implicância contra aquela mulher, e acho que foi uma lição merecida para ela.— Não acredito! Se a senhora aplaude a má educação desta jovem em vez de corrigi-la, então nada mais tenho a dizer! — Fico feliz em ouvir isso.— Seria inútil, e não vou gastar minha saliva à toa. Lembre-se, tia Hester, os resultados serão devidos aos méritos dela. — E a meu título.— O que não vai adiantar nada, se Mary continuar a comportar-se de maneira tão descortês.— Não se preocupe, Erasmo, já dei um jeito. Disse a Selina que Mary estava muito abalada pela morte do tio; aliás um fato muito normal.— Muito bem. Mas se Mary pretende informar ao mundo que ela e eu não nos...— Meu querido, ela não precisa dizer nada. Qualquer um pode comprovar isso.— Viu? Não falei?! — Mary exclamou. — Ele é o culpado! — Se eu acabar por estrangulá-la, mocinha, aí poderá afirmar que a culpa é minha.— Erasmo, vá embora! Por favor, deixe a menina a sós para que ela desenvolva as próprias aptidões. Mary nunca fará isso, se continuar a rosnar como um cão bravio.— A senhora esquece que tudo o que ela disser haverá de recair sobre mim? Suponho que ninguém se importa com isso!— Não, Mary, não responda!Mary obedeceu, embora a contragosto, e controlou a ira.— Erasmo, você já falou demais. Deixe estar. Ficarei com ela aqui um pouco, para que se acalme.— Como queira. Eu lavo minhas mãos! E se Mary acabar conosco, não se queixe! — Abriu a porta e bateu-a atrás de si.— Duvido que ele faça isso. — Lady Hester divertia-se a valer.O visconde tinha mesmo a intenção de fazê-lo, mas não conseguiu deixar de pensar nos erros que Mary cometeria. Mal prestava atenção aos que falavam com ele. Não deixava de procurá-la com o olhar, e suspirou, mais tranqüilo, ao ver tia Hester ao lado dela, embora a paz de espírito o tivesse abandonado.— O que está acontecendo? — Everett Corringham, seu amigo, quis saber. — Mal responde ao que lhe pergunto!— Deve estar pensado na criança desamparada que adotou — outro amigo deduziu, com malícia.— Ela não é abandonada, Peter, nem eu a adotei. Sou apenas seu padrinho.— Uma nova atividade para meu amigo: apadrinhar mulheres jovens — lorde Riseley prosseguiu, dando uma piscada.— Interessante... — Corringham cofiou o bigode. — Em geral, Erasmo evita-as como uma praga. Há casamenteiros demais na cidade.— Tome cuidado para não acabar flechado, meu amigo.— Não seja ridículo, Riseley! — Delagarde estremeceu à sugestão. — Lady Mary e eu não nos toleramos. Tive de aceitar ser seu padrinho, pois tratou-se de um desejo de minha mãe, expresso há muitos anos. Além disso, titia é que está encarregada dela.— Pelo que pude escutar, não foi lady Hester quem ralhou com ela por ter enfrentado a mexeriqueira.— Por Deus! Então a notícia já se espalhou?— Meu camarada, o que esperava? — Corringham o encarou. — Muitos adoraram ver lady Rankmiston receber uma lição de sua ruivinha.— Eu não gostei, e lady Mary não é "minha ruivinha"!— Ela disse que herdou os cabelos de um dos bastardos de Henrique VIII.— Céus, Riseley! O que mais ela dirá?!— Mas onde é que a lady conseguiu aqueles cabelos? É uma cor surpreendente.— Lady Mary herdou do homem que lady Rankmiston chamou de lunático.— E ele era mesmo, Erasmo?— Como que posso saber? Não o conheci. Devia ser excêntrico, mas Mary Hope o tem em alta conta.

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— Se eu fosse o senhor, meu amigo, trataria de afastar-me disso. Não vai querer ficar acorrentado a uma mulher candidata a um hospício.— Peter — Delagarde gemeu.— É o que todos pensarão, Erasmo — Everett avisou-o, solene. — Sobretudo se continuar se comportando como um grude enquanto ela estiver por perto.— Pois estão errados! — o visconde afirmou, irado.Delagarde notou um grupo animado que incluía Mary como o centro das atenções, além de tia Hester. Pelos sorrisos e gargalhadas, Mary devia estar divertindo a todos. Era absurdo, mas Delagarde ficou contente com o fato de ela demonstrar confiança, mesmo sentindo-se deslocada.— Fico contente por ver que lady Mary está conquistando seu espaço. Assim ficarei livre para divertir-me à vontade. Vamos à sala de jogos?Mary, envolta em sentimentos conflitantes, observou a partida do visconde. Estava satisfeita por ter expressado sua independência. Também não se importava por ele só a censurar.Parecia que seus cabelos já não despertavam curiosidade, e ela também esqueceu-os por algum tempo. Na verdade, estava até se divertindo, apesar de as pessoas que estavam a seu lado serem as do tipo que tio Reginald chamaria de vazias.Não entendia por que eles riam toda vez em que ela abria a boca. Mas isso também tinha seu lado positivo. Serviria para Delagarde ver que ela estava bem. Quem sabe relaxaria a sua vigilância opressiva?— Conte-nos mais alguma coisa sobre as estrelas, lady Mary — o jovem Darby Hampford pediu.Mary franziu o cenho. Não gostaria de falar sobre isso. As mulheres, que só conheciam os signos zodiacais sob os quais haviam nascido, davam gritinhos de alegria quando um cavalheiro que sabia latim traduzia o nome das estrelas e constelações.— Bem, elas estão situadas a uma grande distância. Devemos ao reverendo James Bradley os cálculos da localização da maioria delas.— Não parecem estar tão longe... — uma das damas comentou.— Isso se dá porque a luz que vemos parece estar próxima. Diz-se que a luminosidade das estrelas viaja milhões e milhões de quilômetros antes de alcançar-nos. O Sol está muito mais perto do que qualquer uma da outras estrelas.Mary notou o espanto a seu redor. Quanta ignorância!— Minha querida Mary, não incomode os outros com as suas malditas estrelas.Mary virou-se e encontrou Adela com seu sorriso falso.— Os senhores não devem encorajar lady Mary. Senão ela passará a noite inteira falando sobre isso. — Adela agarrou o braço de Mary e deu-lhe um beliscão. — Nós ainda não tivemos chance de conversar. Venha, Mary.Relutante, mas sem conseguir soltar-se, Mary seguiu Adela até uma outra sala, esta mais vazia.— O que quer comigo, Adela?— Calma, Mary. Será que precisamos ser inimigas? Pelo menos em público, poderíamos manter uma aparência de cordialidade. Eu lhe asseguro que fui obrigada a responder a várias questões sobre sua ausência.— E o que foi que disse?— Contei a história de lady Hester. O que mais poderia fazer? Não seria tola a ponto de declarar meus erros para todos.— Quer dizer que Firmin instruiu-a comportar-se com prudência. Fico feliz que ele tenha entendido a situação.— Não sem apreensão, minha querida Mary. Meu marido não credita muito empenho a sua discrição, uma opinião que ratifico. Aliás, seu comportamento de hoje não me permite duvidar disso. Só posso ficar agradecida por não ter sido eu o alvo de sua insolência. Não tardará para que as pessoas entendam que você foi malcriada.Que noite! Primeiro, lady Rankmiston, depois Delagarde, e então Adela. Outro insulto para Reginald.— Por que todos tem de dizer-me como devo agir? Tenho uma posição social superior à da metade das damas aqui presentes, e ainda assim, devo alterar meu caráter para harmonizar-me com elas. Se não fosse por lady Hester, abandonaria todo o esquema.— Não espere minhas simpatias. E, além disso, não tenho a menor idéia do que trata esse seu precioso esquema.— Não seja fingida, Adela. Sabe muito bem que estou aqui para arranjar um marido, como qualquer outra donzela.— Desse modo, me admiro da tolice de suas ações inadequadas, que só poderão arruinar suas chances. Porém, nem sei por que me queixo. Sua atitude só pode afastar os possíveis interessados, pois nenhum homem tolera uma mulher que fala sem rodeios. Mais uma razão para que reconsidere o pedido de Eustace. A menos, é claro, que tenha alguma intenção de agarrar Delagarde.

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Mary dormiu mal. Aquilo era tão absurdo que nunca lhe passara pela mente. Mas, depois do que Adela dissera, já não podia deixar de pensar nisso. Corou, no escuro.Graças ao bom Deus que ninguém mais, além de Adela, estava a par de como Mary enfrentara Delagarde, infiltrando-se em sua vida e se colocando a sua mercê.O pior era saber que ela teria feito isso mesmo sem a presença de lady Hester. Esperava que a bondosa senhora não houvesse pensado em semelhante coisa, em vista de Mary ter mencionado sua vontade de independência. Seria por isso que lady Hester a apoiara? Apenas para tirar proveito?Seria tudo um plano eivado de malícia?, perguntou-se, com os olhos marejados. Os protestos de amizade, a diversão que não ofendia, por causa da bondade que trazia inerente, os cuidados, a atenção, o apoio contra as impertinências de Delagarde...Na verdade, o que conhecia daquelas pessoas com quem convivia fazia apenas duas semanas?Não podia ter se enganado tanto. Não podia ser assim. Seria lady Hester uma impostora? Nesse caso, Delagarde...Mary apanhou o lenço de baixo do travesseiro e enxugou o pranto das faces. Nisso, lembrou-se. Sentou-se de um pulo e afastou o lenço dele. Não o usaria mais.Abriu as cortinas do baldaquino e se levantou. Foi até a janela e espiou a escuridão.Não era uma noite muito clara, mas uma ou duas de suas amigas piscavam-lhe por entre as nuvens. Começou a acalmar-se. Ali estavam Betelgeuze e Rigel, as estrelas mais brilhantes e afastadas da constelação de Arion.O cinturão e a espada do Caçador não estavam visíveis. Ao localizar Aldebarã, a jóia das estrelas de Taurus, Mary lembrou-se de como aquelas considerações eram pouco importantes se comparadas à grandeza da esfera celestial. Tio Reginald ensinara-lhe isso, e estava certo.Cerrou as cortinas da vidraça e voltou para o leito, onde retomou as considerações que a incomodavam.Não tinha a mínima intenção de atrair Delagarde em uma armadilha. Mas e se ele estivesse pensando em iludi-la?Claro que o visconde rejeitara a possibilidade. Ninguém poderia acusá-lo de ter a menor inclinação por ela. Poder-se-ia dizer, até, que a aversão dele era ainda maior que a dela.Todavia, isso não impediria que tivesse intenção de desposá-la. Tio Reginald explicara que, no meio social deles, muitas vezes o casamento nada tinha a ver com atração ou amor. Os matrimônios eram na maioria das vezes realizados por conveniência. Era comum pares se casarem sem nenhum ou com apenas um ligeiro conhecimento, o que levara Mary a conceber seu plano. Mas nada o impedia de ter a idéia de desposá-la pelas quarenta e cinco mil libras.Mary estava desapontada. Não imaginara isso dele. Considerou a maneira como Erasmo se preocupava com a conduta dela em público. Por acaso não mencionara temer a integridade da própria reputação?Mary bem poderia supor que o visconde estaria se preocupando com o comportamento de uma futura viscondessa...Essas cogitações deixaram Mary com forte dor de cabeça. Na sala de almoço, onde era servido o desjejum, ela tratou de evitar Erasmo.Ele já estava sentado, mas levantou-se a sua entrada. Franziu o cenho ao vê-la procurar o outro lado da mesa.Erasmo apenas respondeu ao cumprimento e não se esforçou para integrá-la na conversa, até Lowick servi-la com um prato de ovos com bacon e pão com manteiga. O mordomo retornara de Berkshire com um séqüito respeitável e muitos suprimentos necessários, de modo a abarrotar a mansão de Londres.Delagarde deixou o matutino de lado e espiou Mary bebericar o chá. Lowick ofereceu-lhe mais café, que ele não aceitou. Fez sinal para o serviçal retirar-se.— Importa-se de sair comigo esta manhã, lady Mary? — convidou-a, assim que ficaram a sós.— Para quê?— E por que não? — Erasmo riu. — Para março, o dia está ótimo, e é quase uma moda ser visto dirigindo no parque. Você está aqui para ser vista, não é?— Mas por que tem de levar-me?— Quem mais a levaria? A menos, é claro, que tenha conquistado uma corte de admiradores.— Isso jamais acontecerá se for vista sempre em sua companhia.— Não seja intratável e encare isso como quiser! Estou apenas tentando ajudar.— Não pretendia ser grosseira. Estou com enxaqueca, só isso.— Não se preocupe com desculpas. Já estou familiarizado com seu modos, e eles não me espantam mais.— Não se preocupe em acostumar-se. Sairei de sua casa assim que for possível.— Ótimo! Mesmo fazendo tanta questão de nela entrar, você agora a despreza, com sua costumeira indelicadeza.

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Mary corou, olhou para o prato e mordeu o lábio.Delagarde fitou-a, surpreso. Afinal, o que acontecera com ela? Talvez estivesse mesmo sentindo-se mal.Estudou-lhe o perfil. Não estaria um tanto pálida? E onde estaria o olhar direto que a caracterizava? Ela mal o fitava!De repente, Mary voltou-se, e Erasmo comoveu-se com o que se viu no olhar cinzento. Seria sofrimento?— Acha que sou mal-educada, milorde?Ele sorriu.— Não, Mary. Apenas não tem freio na língua.— Mas você passa o tempo todo criticando minha conduta.— Porém, ela não é intencional. Duvido que alguém possa acusá-la de dizer o que diz com alguma intenção maliciosa.— Já é alguma coisa, suponho. — Mary suspirou. — Contudo, ainda não posso entender por que ser como sou é prejudicial a sua reputação. Acho apenas que sou autêntica.— E é mesmo. Escute, Mary, existem regras que governam a conduta das mulheres. Sem intenção de crítica, ouso dizer que seu tio Reginald deixou de dizer-lhe muitas coisas que a srta. Wormley teve de ensinar-lhe.— Pobre Ida... Ela bem que tentou. Temo que eu não seja uma aluna aplicada.— Posso bem imaginar que os esforços dela não foram aceitos com entusiasmo.Durante o silêncio que se seguiu, Mary apenas brincou com a comida no prato. O visconde queria mesmo ensinar-lhe boas maneiras. Mesmo que o motivo dele fosse o que suspeitava, ela poderia, com vantagem, aprender com ele.Afastar os possíveis candidatos não estava nos planos dela. Por outro lado, adaptar-se para ser aceita não era de seu feitio.— Não é nada agradável, só por se ser mulher, que alguém tenha de sujeitar-se a restrições.— Posso assegurar-lhe que também há muitas condições restritivas para os homens. Porém, somos menos sujeitos à censura de que vocês.— Tio Reginald garantiu-me que minha posição e minha fortuna garantiriam minha aceitação.— Com certeza. E sua riqueza, quando o mundo souber dela, recompensará sua franqueza devastadora. Mas a dose de incivilidade que utiliza quando perde as estribeiras não será esquecida, mesmo em se tratando da herdeira de um conde milionário.— Não perco a cabeça, milorde — Mary afirmou, com dignidade. — Pelo menos, não com freqüência.— Perdão, mas eu mesmo já fui testemunha disso várias vezes.— Só acontece por que o senhor me provoca demais. — Mary empinou o queixo.— Permita-me que retribua o cumprimento.— É estranho que eu não possa ser perdoada por ser temperamental, mas todos estão prontos a perdoá-lo por beber e desperdiçar seu dinheiro em jogatinas.— Quase nunca bebo em excesso, lady Mary. Quanto ao segundo item, sou um jogador moderado, se é que posso considerar-me como um.— Não pode dizer o mesmo de seus casos, milorde — Mary desafiou-o, com candura.— Pelo amor de Deus! Essa é uma coisa desagradável de dizer, embora seja típica! Como ousa mencionar esses assuntos? Nenhuma mulher que se preze teria a audácia de se referir a essa parte da vida de um homem, da qual, além de tudo, ela nada sabe!— Não era o que meu tio dizia. Reginald preveniu-me para ser astuta o suficiente para julgar o que um marido é capaz de fazer. Desse modo, eu poderia usar isso como vantagem quando quisesse a concessão de algum pequeno favor que ele porventura não pretendesse conceder.— Seu excêntrico tio-avô deu-lhe uma educação singular e irrefletida.— De jeito nenhum. Titio não queria que eu crescesse como uma daquelas mulheres piegas que não sabem fazer nada.— Não vejo nenhuma pieguice em uma jovem bem-educada, com maneiras calmas e gestos comedidos, e que não tenha a cabeça cheia de notórios disparates.— Então por que o senhor não se casou com nenhuma?Delagarde encarou-a, jogou o guardanapo no tampo, ergueu-se e saiu da sala.Mary entrou no salão verde superior algum tempo depois e encontrou as duas senhoras mais velhas que haviam descido depois de tomar o desjejum na cama. Um costume que agradava a lady Hester, que convencera Ida a acompanhá-la.Ambas conversavam animadas, sentadas em cadeiras em estilo chippendale. De frente para a janela, aproveitavam um pouco do sol de fim de inverno que por ali penetrava.

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— Mary Hope! — lady Hester saudou-a, com os braços estendidos. — Venha ouvir como traçamos nossa árvore genealógica com sucesso.— Ah, minha querida, é tão reconfortante! — Ida sorria. — Parece que lady Hester é prima em primeiro grau de meu pai. Eu não tinha idéia de que éramos parentes tão próximas.Mary aproximou-se da dama de companhia e beijou-a no rosto.— Fico feliz por isso, Ida. — Depois, voltou-se para a lady, com reservas. — Bom dia, milady.— Mas o que é isso, Mary? Por que essa frieza?— Eu... Veja, é que...— Minha jovem, já discutiu com Erasmo de novo?— Não! Sim, mas não foi nada... É que eu... ele...— Meu amor. — Ida a encarava, atônita. — Você não parece a mesma Mary. O que houve?Tio Reginald não lhe ensinara um pouco da arte da dissimulação, o que era uma pena. Mesmo porque, a retidão fora seu princípio de vida.— Querida menina, o que há de errado? — lady Hester quis saber, preocupada.— O que foi? O que aconteceu? Como posso ajudar? — Ida afligiu-se.— Nada, nada! Só estou com um pouco de dor de cabeça. — Mary, meu amor, venha sentar-se. — Ida levou-a até uma cadeira. — Deve haver algum motivo para essa indisposição. Mary protestou e tentou afastá-la. Mas quem conseguiu fazê-lo foi lady Hester, que então curvou-se diante dela. A boa velhinha ergueu-lhe o queixo e examinou-lhe as feições. Mary mal a olhava. — Deve ser um princípio de enxaqueca. Não quer deitar-se, Mary? — Ah, sim, eu gostaria muito, milady. — Venha, subiremos juntas e...— Não, Ida, obrigada. Prefiro ficar só.— Está bem. — Lady Hester e sentou-se em um sofá próximo. — Vá descansar. Não temos compromissos esta manhã. Ida e eu continuaremos nossas agradáveis confabulações.— Certo. — Mary levantou-se, petulante. — Será bem mais confortável em minha ausência!Lady Hester fitou-a, espantada, e Mary arrependeu-se do rompante.— Mary, meu amor... — Ida protestou.— Não precisa olhar-me desse jeito, lady Hester. Sei muito bem que ninguém se compraz com minha companhia. — Meu amor!— Minha menina, como pode dizer uma coisa dessas?— Em que mais posso pensar, quando todos o demonstram? — Mary olhou para lady Hester, e o remorso atingiu-a.— Estou incluída nesse "todos", Mary?Ela voltou a sentar-se e escondeu o rosto, em lágrimas. A aia aproximou-se, ansiosa e balbuciante.— Minha cara Ida — lady Hester interveio -, deixe-a.Ida parou de lamentar-se, e Mary espiou por entre os dedos. Agradecida, viu um lenço estendido e enxugou o pranto. Encontrou dois pares de olhos que a observavam, preocupados.— Agora, minha querida menina — lady Hester segurava Ida pelo braço -, conte-nos o que aconteceu.A bondade dela enterneceu Mary.— Milady, por que tornou-se minha amiga? Foi por causa de minha fortuna? — Ela deu mais um soluço. — Nem sei por que lhe pergunto isso. A senhora negará, é claro.— Não, Mary, não negarei.

CAPÍTULO V

Mary não esperava por aquela resposta. — Não há necessidade de ficar tão surpresa, minha filha. Por essa razão, instiguei Erasmo a ser seu padrinho. Quando soube que era a neta de Brice Burloyne, logo suspeitei que sua herança devia ser substancial. Brice era um milionário que havia feito a fortuna na Índia.— É verdade. — Mary sentiu o coação apertado. — Não tinha idéia disso, pois minha mãe morreu quando eu ainda era pequena.— Não me espanta seu ressentimento, filha, mas raciocine comigo. Lógico que imaginei casá-la com Erasmo. Sou humana, e há um pouco de casamenteira em cada mulher. Mas seria uma grande tola se continuasse a pensar nisso, em face de sua antipatia por Delagarde.

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— Sim — Mary Hope consolou-se, com um fio de esperança.— Minha querida menina, não acredita que a acolhi por ter uma natureza mercenária, não é? Não posso responder por Erasmo, mas a pequena Mary Hope ganhou meu coração muito depressa.As lágrimas escorriam pelo rosto de Ida.— Ah, senhora, me perdoe!— Bobagem, Mary, não há nada para perdoar. Apenas lamento que tenha se aborrecido com essa idéia.— A senhora é muito boa. Fico feliz por ter me enganado.E quanto à outra suspeita? Tinha de saber!— Então não foi lorde Delagarde quem...— Imagine, minha filha! Erasmo poderia suspeitar de minha intenção, mas ficou bastante claro para todas nós que apadrinhá-la não lhe agradava.Mary não entendeu por que aquilo a aborrecia. Mas não se deteve no assunto, pois Lowick entrava com os visitantes matutinos: Adela e seu irmão.Mary levantou-se e correu para a janela, para que não lhe vissem os olhos úmidos. Enquanto tratava de recompor-se, ouviu os cumprimentos atrás de si.Quando se virou, Adela estava sentada e conversava com lady Hester. Ida, ao lado da anfitriã, não participava da camaradagem.Eustace permanecia em pé, a pouca distância das senhoras, e estudava Mary com olhar aborrecido.Ela ergueu o queixo e encarou-o. A um observador desavisado poderia parecer estranho Mary recusar um pretendente tão bem-apessoado. Eustace Silsoe era jovem e mais bonito que a irmã. Era esguio, tinha estatura acima da média e vestia-se bem. Só os olhos azuis, frios e calculistas, destoavam da primeira boa impressão. E afastavam uma moça de mente aberta como Mary.Eustace se aproximou dela.— É uma pena que eu a tenha perturbado com minha presença, Mary.Uma suposição conveniente, que ela sentiu-se tentada a não desmentir. Mas a honestidade inata não permitiu.— Estava assim antes de vocês chegarem. Virei-me de costas para que nem você nem Adela percebessem.— Sinto muito ouvir isso. Sua permanência nesta casa não tem sido tão agradável como esperava?— De modo algum. Estávamos apenas esclarecendo um mal entendido. — Mary lembrou-se das palavras da prima que lhe haviam despertado a suspeita e viu-a conversar com lady Hester. — O que Adela pretende com esses ares de amizade com milady?— Manter ligação com esta família só poderá ajudar-nos. Desculpe-me a franqueza, Mary.— Eustace, não hesito em dizer-lhe que ambos estão perdendo tempo. Não mudarei de opinião.— Mary, não brigue comigo. Guarde as discussões para Adela. Não só não quero discutir como também estou pronto para permitir-lhe qualquer tipo de estouvamento. Gostaria que pensasse com seriedade a respeito.— Já fiz isso, e repito: não voltarei atrás. — Sua persistência é louvável.— Não me importo com seu julgamento, Eustace.— Não imagine que a estou acusando. Contudo, você poderia reconsiderar melhor o assunto. O prêmio pode ser tentador, mas só será um triunfo se alcançar sucesso.Não havia dúvida de que Eustace também acreditava que Mary se lançava à conquista de Delagarde.— Está enganado, Eustace.Ele achou graça.— Alegra-me que seja assim. Ou será o orgulho o que a faz dizer isso? O visconde não a vê com bons olhos, não é mesmo?A dor de cabeça de Mary piorava.— E se o lorde a favorecesse, você não seria a primeira a converter a afeição em vantagem para ele. Diz-se que o visconde é um tanto imune, sabia? Está na cidade há mais de doze anos, e as donzelas mais resolutas e belas já pensaram em conquistá-lo. Parece que Delagarde prefere divertir-se com um desfilar de amantes.Seria um ataque direto ou a tentativa de denegrir a imagem de Erasmo?— Para mim, pouco importa. — As têmporas latejavam sem cessar.— Ainda bem, Mary. Não lhe devem interessar nem os boatos sobre um possível sucesso em relação a ele, nem um marido que a contrarie. Por outro lado...— Obrigada, mas você já me disse isso.— E direi tantas vezes quantas forem necessárias. Não se esqueça, Mary. Estou disposto a conceder-lhe o que quiser para sua vida. Para que procurar mais?Ela apertou a testa.

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— E eu direi mais uma vez, Eustace: gostaria que desistisse.— Por ora, sim. No entanto, aposto que você logo mudará de opinião.Era impossível tolerar mais aquela conversa. Assim, Mary foi até o centro da sala.— Lady Hester, perdoe-me, mas a enxaqueca está insuportável. Permita que eu me retire.— Pobrezinha! Vá, minha filha, vá. Ficarei conversando com lady Shurland.— Obrigada, milady. Tenha um bom dia, Adela.Ao chegar a seus aposentos, Mary tocou a campainha para chamar a criada. Agarrou-se em uma coluna e sentou-se na cama.A noite mal dormida, o encontro com Eustace e as insinuações de Adela deviam ser os responsáveis por aquela cefaléia. E ainda por cima o ressentimento de saber, isso dito por Eustace e por lady Hester, que o visconde jamais se casaria com ela. E o que Eustace quisera insinuar com "boatos"?Trixie entrou, ajudou-a a despir-se sem tirar a camisa e amparou-a até Mary deitar-se. Ida Wormley chegou em seguida, trazendo um chá fumegante de ervas. Obrigou Mary a recostar-se nos travesseiros e tomar a bebida.— Eles já foram embora? — ela perguntou, assim que Trixie saiu.— Não sei, meu amor. — Ida sentou-se na beirada do leito. — Fui atrás da governanta em busca do chá e não voltei ao salão.— Ah, Ida! — Procurou pela mão enrugada. — Aquele horrível Eustace não desiste! O que faço para convencê-lo de que não quero casar-me com ele?— Mary, o sr. Silsoe acabará por aceitar o fato, quando você ficar noiva. Rezemos para que possa logo encontrar um homem respeitável.— Entretanto, isso é pouco provável, Ida. Ainda mais que Delagarde insiste em manter minha fortuna em segredo. Não conseguirei atrair ninguém.Os soluços de Mary foram seguidos por afagos da dama de companhia, antes da batida na porta.— Melhorou, minha filha? — Lady Hester assomou à soleira. — Deus me livre de agüentar a companhia daquela mulher! Minha pobre criança, não sei como suportou viver com ela.— A senhora nem imagina o que Mary passou quando se instalou em East Dean.— Sério? E o que é que Adela fazia?— Ah, Ida, não conte, já passou... — Mary protestou, mas Ida não a atendeu, pondo-se a relatar todos os detalhes para lady Hester.Arrasada depois da morte do tio-avô, Mary passara meses difíceis. Na verdade, só saíra da apatia quando defendera, com unhas e dentes, a ameaça de Adela de despedir Ida.Lady Shurland voltou-se contra as duas e fez com que se desdobrassem em todo tipo de trabalho para "deixar em ordem esta casa imunda". Elas consertaram roupas, poliram e arrumaram, classificaram gavetas e mais gavetas cheias de documentos, até Adela dar-se por satisfeita.A crueldade maior fora desmantelar o observatório de Reginald. Mary chorara sem parar, enquanto empacotava tudo com todo o cuidado. Para sua surpresa, fora Firmin quem, embora condenando o desperdício de recursos com um hobby, permitiu-lhe ficar com o que quisesse. Mary entendeu o motivo algum tempo depois, por ocasião de sua maioridade. O que também coincidiu com um súbito acesso de amabilidade por parte de Adela.A mudança viera tarde demais. A antipatia por Adela já tomara conta de seu coração. O propósito de ir embora de East Dean tornara-se uma obsessão.— Mas que mulher detestável! — lady Hester disse, ao final da narrativa de Ida. — Havia razões mais que suficientes para vir procurar o auxílio de Erasmo, filha.— Não tenho tanta certeza se fiz bem. — Mary recordou-se de seus ressentimentos. — Nunca recebi demonstrações de afeto. A menos que Delagarde permita notícias sobre minha fortuna, eu não...— Mary, na verdade, a noite passada foi a primeira ocasião em que poderia ter encontrado um jovem interessante.— Mas não encontrei. Pelo menos, ninguém se deteve para falar comigo, exceto o sr. Hampford.— Isso não quer dizer nada. Nós marcamos vários compromissos para as próximas semanas. Com certeza conhecerá muitos cavalheiros.De novo a lembrança dos "boatos" deixou-a intrigada, e ela não se conteve:— Não vai adiantar nada encontrar esses homens, se Adela e Eustace estiverem convencidos de que estou tramando apanhar Delagarde em uma armadilha.— O que quer dizer com isso?Mary enrubesceu.

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— Eu não pretendia dizer nada, milady. Entretanto, Adela tocou no assunto ontem à noite, e Eustace, hoje. Mas juro que nada disso me ocorreu. Aliás, é exatamente o contrário. E os Shurland poderão muito bem espalhar essa notícia.— Ah, lady Hester — Ida interveio. – É bem do feitio de lady Shurland fazer uma coisa dessas.— Não precisa temer que eu possa acreditar, meu anjo. Conheço muito bem as pessoas. Esqueçamos isso.— Milady acha que o visconde pode ter a mesma suspeita?— Claro que não, Mary! — Hester suspirou. — Mas não garanto pelos outros. Precisamos fazer alguma coisa.

— Por que a senhora quer que eu me afaste, titia? O que está planejando? Acha que não percebi sua intenção de fazer um casamento entre nós?— E é por isso que está tentando provar que a detesta?Lady Hester conduzira Erasmo até a pequena sala fria e envolta na penumbra. A lareira não fora acesa, e ele estava com fome. O visconde conhecia-a o suficiente para saber quando ela tramava alguma travessura.— Não tenho tentado provar nada, titia. O que fiz até agora foi só reagir contra as posturas inadequadas de lady Mary.— Então será um refrigério se puder manter-se afastado dela por alguns dias.— Para quê?— Ah, está bem. — Ela riu. — Imaginei que não o afastaria se não lhe desse uma razão.Hester sentou-se na cadeira que Mary ocupara no primeiro dia. Uma réstia de luz iluminou-lhe o rosto, então bastante sério.— Tenho receio de que lady Shurland e o irmão estejam querendo criar problemas.Erasmo escutou a história, que considerou absurda, das possíveis intenções de Mary. Tão ridícula quanto ele ter a mesma idéia em relação a ela.Bom Deus, só um idiota poderia achar que Erasmo estaria atrás das quarenta e cinco mil libras! Sua própria fortuna em investimentos e rendas de suas propriedades amealhava muito mais do que isso por ano, embora Mary não soubesse dessa realidade.Mas pensara muito nisso, depois de haver concordado com o plano de lady Hester de frustrar Adela e Eustace. A tia era de opinião que eles não mencionariam o assunto se nada tivessem a ganhar com isso. Se Erasmo e Mary não fossem vistos juntos, os rumores maledicentes não teriam razão de ser.Delagarde acatou o pedido de Hester, mesmo suspeitando que ela não lhe revelara toda a verdade.Não valeria a pena, ele disse a si mesmo, perder tempo e irritar-se para evitar que Mary cometesse todo tipo de imprudência. Não havia necessidade de ir ao concerto no sábado, em vez de ficar no Boodle's. Era melhor sair duas noites para ver uma luta de boxe, em vez de comparecer a festas insípidas. Não cogitava deixar seus prazeres por causa de Mary, mas também não concebia abandonar o dever que assumira.Agradou-lhe livrar-se do encargo e imaginou o que Mary faria sem sua presença. Sua ausência iria impedir Silsoe e Adela de espalhar rumores. Ninguém acreditaria neles, se não vissem Mary e ele juntos por alguns dias.Quarta-feira pela manhã, Delagarde voltou à cidade e encontrou Mary tomando o desjejum, pouco disposta a conversar com ele. Ficou tentado a perguntar sobre seus progressos, se estava aproveitando a temporada e se conseguira algum pretendente. Mas não o fez. Recorreu a tia Hester.— Ela vai indo muito bem, Erasmo, agora que não há ninguém para provocá-la, Mary está determinada a não ganhar a fama de mal-educada, e faz o impossível para pensar antes de falar. Estou orgulhosa de seus esforços e acredito que vai alcançar êxito. A melhor coisa que tem a fazer, meu sobrinho, é deixá-la em paz.— Quanta gentileza! Será que Mary está rodeada por uma corte de admiradores?— Quanto a isso é difícil opinar. Mary é encarada com uma certa estranheza, mas...— O que não me surpreende!-...ainda é cedo para afirmar se as atenções são significativas.— Mas então houve atenções?Delagarde desprezou o próprio interesse e não pôde evitar uma ponta de animosidade contra os homens desconhecidos. Convenceu-se de que, no papel de protetor, deveria assegurar-se do valor de qualquer candidato à mão de Mary.Aborreceu-se por tia Hester não responder à indagação e reiterar o pedido para ele manter-se afastado até a festa em sua mansão.— Mas isso será só em abril, tia! Terei de ficar afastado por mais duas semanas?— Quem foi que afirmou que não agüentava andar atrás de Mary dia após dia?— Lógico que não é agradável, mas sou o padrinho dela. As pessoas acharão muito estranho.

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— Meu querido, então esperaremos mais uma semana.Ainda assim, Erasmo irritou-se com as restrições.Às primeiras horas da noite de sexta, enquanto conversava com Corringham e Riseley no Boodle's, o visconde Delagarde recebeu um recado dizendo que a tia precisava dele com urgência. Sem saber no que pensar, deixou a St. James Street, voltou para a Charles Street e subiu os degraus correndo.A porta abriu-se assim que Erasmo chegou ao alto da escada. Lowick já o esperava. Então era sério!— Milorde, lady Hester está aguardando o senhor na sala do pavimento inferior.Erasmo encontrou Ida Wormley e lady Hester muito aflitas. — O que houve, tia Hester?— Mary sumiu! — Hester agarrou as mãos do sobrinho. — O quê?!— É isso mesmo.— Bom Deus, como pôde acontecer tal coisa?— Não a vemos desde a manhã, e Mary sabia que tínhamos um compromisso no teatro, hoje.Delagarde reparou que a tia estava em traje de gala. Um vestido de seda turquesa cruzado no busto e um véu de renda sobre os cabelos.— Isso é um absurdo, tia. Mary pode ter se ausentado por inúmeros motivos. Tem certeza de que não está em casa?— Procuramos em todos os lugares. Ninguém a viu sair, e ela não levou a criada, nem o lacaio.— Mas será que Mary sabia que, em Londres, deveria tomar esta precaução? Aliás, quem a conhece não se admiraria de que nem houvesse pensado nisso.— Milorde, Mary não agiria assim! — Ida Wormley franziu o cenho. — Tenho receio de que haja acontecido o pior. — Mas o quê?— O sr. Silsoe raptou-a!Delagarde gargalhou.— Não se ele estiver em seu juízo perfeito. — Erasmo notou que não convencera a srta. Wormley. — Por favor, senhora, isso é uma ofensa criminal! Quer sugerir que o homem estaria desesperado a esse ponto?— Nem sei o que aquele sujeito seria capaz de fazer, ajudado e instigado por sua irmã!— Convenhamos, srta. Wormley. Lady Shurland não se submeteria a um esquema desses. É um absurdo!— Não lhe disse, Ida? — Lady Hester conduziu-a até uma cadeira. — Sente-se, minha querida. Delagarde irá procurar Mary e...— Vou coisa nenhuma!As duas o encararam com reprovação, e ele ergueu as mãos. — Repito que é um absurdo! Não esperem que eu vasculhe Londres à procura dela. Por onde começar a busca?— Você é responsável por ela, Erasmo — lady Hester criticou-o, severa.— Isso é discutível.— De qualquer maneira, aceitou a incumbência.— Como a senhora diz isso, sendo que me manteve afastado por todos esses dias?— Uma coisa nada tem a ver com a outra. Em uma hora dessas, deve lembrar-se de suas obrigações.— Obrigações! — Ele suspirou, agastado. — Muito bem, vou procurá-la. Mas aposto dez contra um que Mary entrará assim que eu tiver saído.Erasmo mal chegou ao hall, quando Lowick atendeu a uma batida na porta. Era Mary, como previra. A volta teve um efeito calmante sobre o visconde, mas resolveu interpelá-la com raiva. — Então a senhorita voltou! O que pretendeu fazer, Mary? Como ousa sair sem avisar ninguém? — Agarrou-a pelo braço e conduziu-a, sem cerimônias, pelo vestíbulo. — Não imaginou que todos ficariam preocupadíssimos? Tive de sair do clube e ia vasculhar a cidade a sua procura.Erasmo, ao entrar na sala, soltou-a. — Eu não disse?— Mary, graças a Deus! — Muito comovida, Ida envolveu-a em seus braços. — Estava tão angustiada!— Mary, que susto nos pregou! Onde esteve?Ela, espantada por aqueles ataques improcedentes e nervosa por encontrar Delagarde a sua espera, fitou todos em silêncio. Talvez fosse providencial Delagarde comportar-se com ela, em público, daquela maneira. Mas também não pôde deixar de agradá-la a preocupação dele.Quando todos se calaram, Mary explicou: — Fui apenas a uma conferência.

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Os três a encararam, abismados. Apesar do terror que a envolvera, Ida foi a primeira a recuperar-se: — Uma con... fe... rência.— Conferência! — Delagarde gritou. — Não espera que acreditemos nisso!— Que tipo de palestra ouviu? — lady Hester quis saber.— Foi na Royal Society. Sinto que seja tão tarde, mas é que houve discussões posteriores com o palestrante e alguns de seus colegas. Todos eles conhecidos de tio Reginald, não é maravilhoso? Perdi a noção do tempo. Um senhor teve a bondade de encontrar um coche de aluguel e vim assim que pude.Mary notou que nem lady Hester e nem Delagarde a compreendiam.— Qual o problema? Houve uma palestra na Royal Society, e resolvi comparecer. Elas são feitas com regularidade. A de hoje foi ministrada por um especialista em Herschel, e não pude resistir.Delagarde piscou.— Isso me parece pura fantasia. Você encontrou uma explicação ridícula, mas quero que nos conte a verdade.— Foi o que acabei de fazer. — Mary arregalou os olhos e voltou-se para Hester. — Sinto muito, milady. Esqueci-me de que iríamos ao teatro. Subirei já e me trocarei num instante. Não quero jantar!Mary saiu correndo. Delagarde deteve Ida, que se preparava para segui-la.— Veja se arranca os fatos dela. Não sou tão idiota para acreditar nesse monte de tolices!— Milorde, sinto que eu não tenha pensado nisso. Decerto Mary deve ter me avisado... Mas não importa, tudo acabou bem. Perdoe-me, sir. Vou ajudá-la a trocar-se, para não atrasar lady Hester.Ida se foi, e Delagarde fitou a tia, irado.— Não sei por que a senhora fica rindo, tia Hester! Tudo isso não passa de um contra-senso, ou a jovem perdeu o juízo!Hester controlou-se e prometeu averiguar o caso.Delagarde não contou à tia o que o preocupava. De qualquer maneira, informou sua determinação em romper o exílio e acompanhá-las ao teatro.Dirigiu-se a seus aposentos e trocou as botas de cano alto, a calça de couro e a sobrecasaca, vestindo um traje mais apropriado: calção de cetim preto e um casaco azul sobre um colete florentino.Não abandonou a suspeita, mas não fazia a mínima idéia de por que Mary imaginara aquela história fantástica para cobrir a verdade. A menos que estivesse com um cavalheiro que tinha certeza teria desaprovado.Até o primeiro intervalo, Erasmo não conseguiu ficar a sós com Mary. Contudo, o plano de tirá-la dali não foi bem-sucedido.Primeiro, foram interrompidos por conhecidos de lady Hester que ocupavam o camarote ao lado. Depois, pela entrada de Eustace Silsoe. Ele viera a pedido da irmã, que pedia a companhia da prima por alguns momentos.Sair dali de braço com o padrinho desprezado era o que Mary menos desejava. Mas concordara com lady Hester que seria melhor o mundo pensar que a amizade permeava entre as duas famílias. Assim, levantou-se e sacudiu as saias de musselina cor de pêssego.Seu vestido era simples, com decote discreto e mangas três quartos. Usava ainda um xale bordado norueguês sobre os ombros e um pequeno véu de renda. Aceitou o braço de Eustace e saiu do camarote, rumo ao corredor.Arrependeu-se de imediato, pois Eustace disse-lhe que não tinha intenção de levá-la para conversar com Adela.— Vamos subir para o foyer, Mary. Juntos.— E por quê?— Assim as pessoas poderão supor que estamos adorando a companhia um do outro. Tudo o que tem a fazer é sorrir, anuir e parecer interessada no que tenho a lhe dizer.— Suponho que não tenho escolha.Mary precedeu-o até uma área aberta atrás dos camarotes, que dava acesso às escadas e aos balcões.Eustace sorriu e inclinou-se até a orelha dela.— Falarei com ar zeloso, para dar a impressão de maior intimidade.— Você é detestável! — Mary tentou afastar-se dele. — Pensa que pode convencer-me com essas táticas de...— Há muito desisti de persuadi-Ia. Estou apenas deixando uma trilha para investigação futura.— Não entendo. Não quero continuar esta conversa. Leve-me de volta até lady Hester!— De forma alguma.Mary ponderou bater nele, soltar-se e sair correndo. Porém, um momento de reflexão mostrou-lhe a inconveniência disso. Havia muitas pessoas por perto. A temporada na cidade lhe ensinara que a balbúrdia decorrente de uma atitude assim só aumentaria as atenções indesejáveis e os comentários maldosos.Assim, lançou um olhar ao redor, à procura de um rosto conhecido. Nada. A salvação veio de uma voz atrás dela:— Ah, vocês estão aqui! — Era Delagarde.

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Mary voltou-se, agradecida. O visconde não poderia ter vindo em melhor hora, com um copo na mão. Ela percebeu que o encontro fora proposital.— Estava procurando a água que você queria, Mary. — Erasmo cumprimentou Eustace com um gesto de cabeça. — Muita bondade sua, senhor, trazê-la para fora do ambiente enfumaçado. Pode deixar, agora eu cuido dela.Para admiração de Mary, Erasmo ignorou Eustace, que não conseguia disfarçar seu despeito.Delagarde conduziu-a pelo braço até uma das cadeiras encostadas na parede.— Sente-se e beba. Dê-me seu leque.Mary obedeceu, sem parar de fitá-lo. De soslaio, viu a indecisão de Eustace, que por fim afastou-se. Mary sorriu para o visconde, esquecida das rixas e dos ressentimentos.— Muito obrigada, lorde Delagarde. Foi tão inteligente! — Ambigüidade, Mary. — Ele sorriu. — E muito útil em certas ocasiões.— Eu vi. — Ela achou graça. — Não consegui pensar em como afastar-me dele sem fazer uma cena.— Bem, graças a Deus que não o fez!— Sei que não esperava isso de mim, mas aprendi uma grande lição, desde que vim para a capital. Por exemplo, se você continuar a abanar-me e eu fingir um desmaio, ninguém se aproximará.— Muito bem, Mary. Será que então eu poderia fazer-lhe algumas perguntas?— Se acha que eu me zangarei...— Zangar-se, Mary? Não é de seu feitio — caçoou. Ela deu algumas risadinhas.— Exceto quando você me tira do sério.— Talvez seja melhor eu reservar minhas questões para quando estivermos em casa.— Mas agora estou intrigada. O que queria perguntar-me?— Será que posso arriscar?Um brilho de bom humor iluminou o semblante de Mary. Delagarde piscou, tomado de uma emoção desconhecida que lhe invadia o peito. Vira-a sorrir tão poucas vezes...— O que acha de um teste, sir? Se eu conseguir manter a calma, poderei ser mais tolerante.Erasmo tirou-lhe o copo das mãos e ajudou-a a erguer-se.— Seria demais para um teste. Além do que, já anunciaram o segundo ato. Retornemos. — Devolveu o cristal vazio ao garoto que convidava os presentes a voltarem a seus lugares, e deu o braço para Mary.— O que queria saber, milorde?Entraram no corredor estreito.— A verdade sobre sua escapada de hoje.— Eu já lhe disse...— Não me iluda com artifícios. Será que não foi algum encontro clandestino?Mary se deteve e tirou a mão do braço dele.— Um o quê?— Não precisa ficar brava.— Não estou. Queria apenas saber se ouvi direito.— Venha cá.Erasmo puxou-a com delicadeza até a porta do camarote, onde um candelabro iluminou o rosto de Mary. O comportamento dele era estranho, bem diferente do usual. Era uma conduta surpreendente, e ela nunca supôs que o visconde tivesse tanto charme quanto o que acabava de demonstrar.— Um encontro, Mary. Não minta para mim, sim? Teve algum encontro?A pergunta era tão incrível que a deixou atônita.— Com quem?— Como é que vou saber, Mary? Diga! Encontrou-se com algum homem?— Sim, é isso.— Eu sabia! — Ele apertou-lhe o braço.— Todavia, não é o que está pensando, Delagarde. Não conheço ninguém com quem poderia ter um namoro secreto. Você está enganado. Fui ver um homem, na presença de muitos outros. O senhor, por certo já ouviu falar de Herschel.— Quem?— O astrônomo. Não é possível que não saiba. Herschel descobriu um novo planeta.— Não espera que eu creia que se interessa por astronomia. Por que está me olhando com todo este espanto?— E em que mais eu poderia estar interessada?!

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Mary desvencilhou-se dele e entrou na frisa. Erasmo seguiu-a e fechou a porta.O segundo ato começou, mas Delagarde mal via o que se passava no palco. Aliás, já vira aquela companhia diversas vezes.Não podia acreditar que uma jovem passasse os dias vasculhando os céus. Pelo que sabia, a astronomia era o foco de interesse do antigo lorde, e, pelo visto, Reginald influenciara a sobrinha.Nenhuma das jovens que o visconde conhecia, mesmo aquelas com as quais mantivera relacionamentos mais íntimos, manifestara outra curiosidade que não fossem os últimos ditames da moda, o círculo de admiradores ou os mexericos escandalosos. Se havia alguma pendência literária ou artística, também não era fato notável.A maioria das debutantes era insípida e tola. Erasmo nunca se sentira tentado a abdicar de sua tranqüilidade de solteiro a favor de uma existência fútil e monótona. Preferia a companhia dos amigos, com quem podia manter conversas interessantes.No futuro, talvez, tivesse de casar-se com alguma criatura sem graça, que interpretasse seu papel com elegância e que não tivesse vontade própria.Conhecia muito bem as mulheres para acreditar no que Mary dissera. Certo que Mary era uma moça diferente. Mas daí a comparecer a conferências da Royal Society havia uma grande distância.Delagarde decidiu que não faria mais comentários. O tempo revelaria a verdade.Três dias depois, Erasmo arrependeu-se da decisão, quando veio jantar, na noite de segunda-feira, antes de levar as damas a um baile, o primeiro de Mary.Ele estava vestido com um casaco de cetim azul-claro e calção combinando. Um colete de seda canelada floral, porém discreta, acompanhava uma gravata de laço impecável.Erasmo encontrou a tia na sala de estar, trajada com muita elegância de cinza e prata, e penas do mesmo tom no penteado. Não se surpreendeu por Mary ainda não estar pronta. Era normal o atraso no dia do primeiro baile.Virou-se, ao ouvir passos.— Lady Hester! Oh, milorde! — Ida Wormley entrou, esbaforida.— O que foi, Ida? — Hester levantou-se.— Mary está adoentada? Ou muito nervosa para descer?— Nada disso, milorde. Acho... Ah, se eu ao menos não estivesse deitada! Levantei-me só para desejar boa noite a minha querida Mary, e...— Ida, o que aconteceu?!— Vai dizer-nos ou não? — o visconde irritou-se.— Outra vez? — lady Hester murmurou.O nervosismo de Ida era a resposta.— Já mandei Trixie à procura dela. Até a repreendi por não ter me avisado antes. — Ida fungou e sacudiu a cabeça. — Lorde Delagarde, lady Hester, não posso esconder dos senhores. Mary não está aqui.

CAPÍTULO VI

— Oh, Deus! O que foi que eu fiz? — Delagarde lamentou-se.— Não adianta zangar-se com Ele, Erasmo — Hester admoestou-o, divertida.O visconde irritou-se com a tia e ainda mais com Ida, que, chorava sem parar.— Não desperdice suas lágrimas, srta. Wormley. Pode ter certeza de que nada de grave aconteceu. Trata-se apenas de uma desatenção lamentável com os compromissos.— Não estou chorando — Ida protestou. — Trata-se de coriza.— Pobre Ida, está gripada... — Hester pôs a mão sobre o ombro da amiga. — Pode voltar para a cama. Não há nada que você possa fazer.— Eu não conseguiria descansar, lady Hester. Ouso dizer que milorde está certo. Mary chegará a qualquer momento. Sei que minha menina cometeu um erro. Vou repreendê-la, quando nos encontrarmos.— Poupe seu fôlego — Delagarde recomendou. — Eu me encarregarei da tarefa por nós três.A ansiedade do visconde aumentava com o passar do tempo, e nem sinal de Mary. Recusava-se a sair a sua procura, convencido de que um pouco mais de paciência seria o suficiente. E também nem saberia por onde começar.Já escurecera. Não a descobriria nas ruas. Um lacaio fora enviado à Royal Society e voltara de mãos vazias. O local estava fechado, e um cartaz na porta não indicava palestras naquele dia.Delagarde não aceitou a sugestão de Hester para procurarem nas casas de conhecidos, pois Mary não fizera amizade com nenhuma das anfitriãs.— E também, titia, não precisamos dar ensejo a falatórios.

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— Concordo.Pelo mesmo motivo, não permitiu que Ida Wormley fosse até a residência dos Shurland.— Mas desconfio de que há alguém que sabe onde ela se encontra, milorde. Receio que seja o sr. Silsoe.— Não está sugerindo que ele a tenha raptado...— Milorde, já não sei mais em que pensar! Mary contou-me que Silsoe não aceitou a recusa. Após a conduta dele no teatro, ela já não sabia o que fazer para desencorajá-lo de novo.— Seria muito doentio Eustace planejar uma coisa dessas, Ida. — Hester meneou a cabeça.Por fim, conseguiram convencer Ida a retirar-se para seu aposentos, pois ela não parava de espirrar e fungar. Lady Hester prometeu mandar-lhe um tijolo quente e um drinque, assim que fosse possível, e alguma comida, se ela quisesse.— E então? — Erasmo indagou, assim que ficaram sozinhos.— A fome não deixa que raciocinemos. Vamos pedir o jantar. Toque a campainha.— Mas onde é que Mary pode ter se metido?— Também não tenho a mínima idéia, meu rapaz. Mas ficar sem comer não resolverá o problema. E muito menos ficar andando de um lado para o outro. Eu diria que está ansioso, querido.Delagarde jogou-se em uma cadeira.— Ninguém está sofrendo de ansiedade, titia. E não posso fazer nada, se Mary pretende comportar-se de maneira tão inconveniente. Só estou irritado por ter de chegar tarde ao baile.Depois do jantar, por volta das nove horas, no salão de estar, Delagarde sugeriu à tia que mandasse uma nota à anfitriã, dizendo que Mary estava indisposta.— Obrigada, Erasmo, mas sou bastante capaz de inventar uma história convincente para lady Pinmore.Hester sentou-se à mesa do pequeno escritório ao lado, com um maço de papel timbrado a sua frente. Delagarde teve de aparar uma pena, para que Hester conseguisse escrever, mas seus dedos trêmulos pareciam não querer obedecê-lo.— Vá mais devagar. — Hester achou graça de seu nervosismo. — Se não pode esperar com certa dose de tranqüilidade, por que não vai até o clube?— Se a senhora acha que vou sair daqui antes de aquela tresloucada voltar, está provado que não conhece meu caráter. Pronto, pode usar.Lady Hester aceitou, sorriu para si mesma e mergulhou a ponta no tinteiro.Delagarde viu o sorriso, resmungou e saiu em seguida. Não tinha a menor idéia de como a tia podia manter a calma quando ninguém sabia onde Mary estava, nem do que estaria fazendo. Ela não poderia ter esquecido o compromisso daquela noite, pois seria seu primeiro baile.E era isso o que o deixava cada vez mais apreensivo. Não acreditava na rapto, mas uma outra idéia o atormentava.Tocou a campainha e pediu a Lowick para trazer uma bebida refrescante.Não adiantou. A medida que as horas passavam, as visões ficavam mais aterrorizantes. Mary poderia ter sofrido um acidente, sido atropelada por uma carruagem e estar em um hospital público. Ou atacada por assaltantes e deixada indefesa e sem dinheiro em um bairro pobre da cidade, onde pessoas malvadas poderiam praticar qualquer tipo de violência contra sua integridade, como vendê-la corno escrava, drogá-la ou mesmo levá-la a uma vida de prostituição.O último pensamento o fez engolir a bebida de um só gole. Cruzou o recinto e pegou a garrafa que Lowick havia trazido urna hora atrás.— Será preciso tudo isso? — a tia perguntou, contentando-se com apenas uma dose.Erasmo tornou a encher a taça e fitou o relógio sobre a lareira.— É quase meia-noite, tia Hester. Mary está em algum lugar, sozinha. Só espero que nada terrível tenha lhe acontecido, senão não poderei estrangulá-la quando ela voltar para casa!— Erasmo, se acontecer alguma coisa grave com Mary, jamais me perdoarei por ter insistido para ela morar aqui.Ele largou a garrafa e o copo, aproximou-se da tia e prendeu-lhe as mãos entre as suas.— Não fique assim, titia. Pela manhã, irei direto à Bow Street. — Nesse instante, ele ouviu um tropel. — Cavalos! Deve ser uma carruagem!Erasmo soltou Hester, correu até o hall e antecipou-se ao porteiro sonolento, que acaba de sair de sua cadeira.Abriu a porta da frente. Um coche antigo e pesado parara ao lado da mansão. Um servo desceu os degraus, e a porta do veículo abriu-se, mostrando Mary em seu interior.O visconde correu, enquanto Mary curvava-se para descer. Num impulso, ele pegou-a pela cintura e deixou-a no chão. Espiou para dentro do coche. Não vendo mais ninguém, voltou-se e agarrou-a pelos ombros.

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— Onde esteve, Mary? De quem é essa carruagem? Está ferida? E não me olhe deste jeito! Se soubesse... — Interrompeu-se, com vontade de sacudi-la ou, para sua surpresa, de abraçá-la. Não fez nada disso. — Entre. Minha tia está ansiosíssima.Mary subiu os degraus correndo, perseguida por um forte remorso que superou o assombro pelo comportamento de Delagarde. Se ele a houvesse acusado, ela teria entendido. Mas agarrá-la daquela maneira! Experimentou uma sensação de desamparo e uma forte palpitação.Ela entrou na residência, com o coração batendo forte no peito e encontrou lady Hester no saguão.— Milady, sinto muito! A senhora esteve preocupada, e Delagarde também. Juro que não pensei em ficar até tão tarde. Não pretendia ficar lá até agora. Perdoe-me, mas deve ser um ato remanescente de meus tempos com tio Reginald. Esqueci tudo!A senhora idosa abraçou-a com força e, quando soltou-a, tinha os olhos marejados de lágrimas.— Mary, Mary, não faça mais isso, minha pequena. Talvez não entenda a violência que isso pode representar no sentimento dos outros. Todos estávamos tão preocupados com sua segurança...Mary deixou-se conduzir até a sala.— Milady, Ida não disse nada?— Minha filha, Ida está doente. Estava tão nervosa como qualquer um de nós, e mal consegui persuadi-la a ir para a cama.— Não entendo. Hoje pela manhã eu expliquei a ela o que pretendia fazer, para que não se repetisse o episódio desagradável daquela ocasião.— O que foi que disse a Ida? — Delagarde acabara de entrar no recinto. — E quem é esse tal de Wilberfoss que a senhorita esteve visitando?A voz do visconde atrás dela fez acelerar mais uma vez a pulsação de Mary.— O que disse, Erasmo?— Sir Granville Wilberfoss — ele disse, fechou a porta e postou-se diante da lareira. — Mary acabou de chegar na carruagem dele.— Bem, graças a Deus que Mary estava em um coche, e não perambulando pelas ruas.— Como é que soube o nome dele? — Mary indagou, inquieta. — Perguntei ao cocheiro, é claro. Poderia ter a bondade de responder ao que perguntei?A irritação de Delagarde teve o estranho poder de acalmá-la.— Sobre sir Granville? E um amigo de meu tio-avô. Ele soube que eu estava na cidade por um dos colegas presente à conferência daquele dia, e convidou-me para visitá-lo.— É mesmo? E o entretenimento que ofereceu-lhe foi tão cativante que fez com que se esquecesse de seu primeiro baile?— O baile! — Mortificada, Mary voltou-se para lady Hester, e só então percebeu que tia e sobrinho estavam em trajes de festa. Não se lembrara do compromisso. — Sinto muito, milady, muito mesmo! O baile de lady Pinmore! Nem me passou pela cabeça!— A festa não importa, filha. O importante é que esteja sã e salva.— Mesmo? Suponho que não deve ser nada o fato de Mary ter passado a noite sabe-se lá com quem! Uma conduta imperdoável!Mary não se abalou com o mau humor dele. A atitude anterior é que teve o dom de não enervá-la.— Milorde acha que Wilberfoss fez amor comigo? Eu já lhe disse que ele é amigo de meu tio-avô.— Ah... então não é um jovem?— É bastante venerável.— Mesmo assim. É conhecido o gosto de homens mais velhos em tirar vantagem das jovens. Você poderia estar em grave perigo.— Que absurdo! — Mary apertou a mão de lady Hester. — Milady tem todo o direito de ficar brava comigo. Eu não pretendia ficar a noite inteira. Mas... — Encarou Delagarde. — ...foi tão delicioso! Fazia tempo que eu não me divertia tanto. Ficamos entretidos em observações. Sir Granville construiu um telescópio ainda mais potente do que o de tio Reginald. O espaço tornou-se mais visível. Tantas cores e tantos agrupamentos! Estrelas que eu pensava conhecer bem e que, na verdade, mal via. É de tirar o fôlego. Maravilhoso!Delagarde ficou embasbacado com a transformação de Mary.Ela transbordava felicidade. Era inacreditável. Ele imaginara os piores desastres, e Mary estivera o tempo todo entretida com um...— ...telescópio!Mary parou de repente com as reiteradas desculpas a lady Hester e virou-se, surpresa.— Qual o problema?

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Erasmo riu, sem alegria.— Ainda pergunta? Esteve desaparecida por horas e horas. Ninguém tinha a menor idéia de onde andava.— Mas eu disse a Ida!— E, além de atrasar por mais de uma hora nosso jantar, fomos lançados em uma agonia sem fim, sem saber nada sobre sua segurança.— Você deveria saber que...— Em vez de divertir-nos em um dos eventos mais promissores da temporada, fomos obrigados a andar de um lado para o outro a noite inteira, Mary, imaginando a quantas situações nefandas poderia estar exposta, tola do jeito que é!— Bem, não posso imaginar que tipo de...— E, para coroar, volta para casa à meia-noite, e o que encontrou para nos dizer resume-se a uma observação em telescópio! — Acabou?— Mal comecei!— Bem, então deixe-me dizer-lhe uma coisa, sr. visconde. — Mary — lady Hester interveio -, não se deixe levar por argumentos sem sentido. Mas, afinal, uma reação deveria ser esperada. Erasmo estava muito preocupado. É natural que o alívio produza uma explosão.— Obrigado, tia Hester. Contudo...— Preocupou-se mesmo comigo, milorde? — Mary sentiu de novo os batimentos acelerados.— Que tipo de homem eu seria se assim não fosse? De certa maneira, sou responsável por seu bem-estar.— Ah! — E o que mais ela esperava? Não que se importasse.Mas também não precisava estragar sua alegria. Era típico dele. Mas o remorso foi mais forte que sua indignação. — Perdoe-me pelo inconveniente que lhe causei.— Bobagem, filha! Sinto apenas que tenha perdido seu baile, Mary.— Eu perdi o baile! — Delagarde criticou a tia. – Alguém se lembra disso?— Ninguém impediu-o de ir, milorde. Não tenho culpa se você decidiu que era seu dever permanecer aqui com lady Hester e esperar por mim.— Deveria tê-la estrangulado, como tive vontade de fazer! Mary deu uma risadinha.— Oh, Delagarde, não exagere! O baile ainda não terminou. Pode ir para sua festa.— Sua solicitude me comove, mocinha, mas já perdi a vontade de me divertir.Mary estendeu a mão.— Estou arrependida de verdade, milorde. Amigos? Erasmo segurou-lhe a mão, sem apertá-la.— Tudo bem, mais ainda não estou satisfeito. Não espera que eu acredite que passou o tempo todo perscrutando os céus, não é? Mary soltou-o.— Mas isso é uma loucura! Nada o convencerá de que minha vida é dedicada à astronomia?— Não!— Terá de mostrar-lhe, Mary — lady Hester recomendou, dando uma piscada.— Mostrar o quê? — Erasmo ergueu uma sobrancelha.Delagarde fitou, atônito, o pequeno telescópio de bronze montado bem no meio da janela francesa do aposento de Mary.— Não posso deixá-lo em seu tamanho normal sem abrir as portas de vidro. — Ela descobriu a lente e ergueu-o. — Era o instrumento de viagem de tio Reginald, quando saíamos para o que ele chamava de "expedições".— Você ia com ele?— Sempre. Ida insistia em nos acompanhar, mas titio raramente deixava. Exceto uma vez, quando acampamos no deserto durante uma semana. "Como beduínos", Ida dissera. A partir daí, ela preferiu ficar em casa.Mary foi até a estante e apanhou uma pilha de diagramas, alguns impressos e outros desenhados a mão. Folheou-os e explicou os propósitos à luz do candelabro, que Erasmo, fascinado, deixara sobre a cômoda.Eram mapas do zênite noturno, representando estrelas em suas constelações. Configurações cobertas com rabiscos incompreensíveis. Tabelas de nomes e figuras, rotuladas com períodos e posições em graus, e por lugares de origem. Havia muitos esboços a lápis, para recordar os dados observados.— O que está buscando aí? — Enfim, Erasmo se convencera de que ela não mentira.

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— Estou perseguindo um cometa. — Mary mostrou o esboço. — Hoje descobri que meus cálculos estavam errados. No telescópio de sir Granville, achei seu caminho verdadeiro. Eu nem tinha idéia de quanto ele era maravilhoso... Agora sei que preciso ajustar meus prognósticos de seu provável trajeto, em uma larga margem.— Mas por que um cometa?— Para ser franca, eles não são minha grande paixão. Mas tio Reginald era louco pelos cometas. Titio e Charles Messier se corresponderam, até a morte dele.— E do que você gosta mais?— Sou fascinada pelos planetas e seus satélites. Meu maior herói é Galileu, que provou que a Terra gira ao redor do Sol.O entusiasmo iluminou as feições de Mary. Aquela foi a primeira exposição inteligente que Delagarde escutou dos lábios de uma jovem.Teorias e um emaranhado de nomes desconhecidos permearam o discurso de Mary. Não havia duvida de que Reginald Hope fizera germinar aquele interesse e forjara a personalidade da sobrinha. Ela não só era diferente, mas única e merecedora do mais profundo respeito.A gargalhada de lady Hester, sentada na cama, interrompeu a narrativa de Mary.— Minha querida, daqui a pouco Erasmo estará tonto!Levada pelas perguntas, Mary se esquecera de que não falava com um entusiasta da matéria. Seu tio sempre a advertira de que a maioria das pessoas se aborrecia com o que lhes parecia fascinante. E Delagarde era um aristocrata, o oposto de tudo aquilo.— Perdão, milorde. Você não deveria ter me perguntado sobre isso. Adela diz que perco a noção do mundo quando mergulho na astronomia, e ela está certa. Tento lembrar-me de que a paixão de alguém pode não ser de interesse de outro.— Não! — Delagarde sorriu de maneira desconcertante. — Eu é que tenho de pedir que me perdoe por duvidar de sua palavra. Começo a entender por que reluta em envolver-se socialmente.— No princípio, relutei muito, mesmo, irias devo admitir que agora até estou gostando. Interromper o trabalho de rastrear o cometa para meu tio não me aborreceu tanto quanto imaginei.— E também se ocupava rastreando um planeta? Ela achou graça.— Ninguém faz isso com um planeta, milorde. Devo dizer que tive de suspender minha pesquisa, porque precisava de um telescópio mais potente. Pensei que seria melhor esperar até ter minha própria casa, para depois construir um. Eles são muito pesados, e não gostaria de ter de mudá-lo de lugar.— Tem razão. Deve fazer isso quando estiver muito bem instalada e contar com a ajuda de seu marido.— Eu não pediria isso a ele. O homem que se casar comigo poderá ficar com meu dinheiro, só para não interferir. Um cavalheiro à procura de casamento por interesse gostará mais de cartas, ou esportes do que de astronomia.— E isso não a incomodaria?— E por que deveria? Assim, ele não se importará com o fato de eu me esconder no observatório.— Que garota estranha! — Delagarde meneou a cabeça. — Nunca ouvi razão mais absurda para um matrimônio. Por que não procurar um rapaz entre os que se interessam pelo assunto?— Bem que eu gostaria. Mas não há muitos astrônomos solteiros.— Pode ser, mas não acho que será feliz com outro alguém. Mary, está para cometer um grande erro. Acha que um homem, mesmo sendo um caça-dotes, será tão complacente a ponto de permitir que sua esposa o abandone para convertê-lo num recluso excêntrico como seu tio-avô?Mary sempre pensara em casamento como um meio para atingir um fim. Só queria ser deixada em paz.Precisava de liberdade para continuar seus estudos. Apesar de que a vida da capital tinha lá seus atrativos. Se não tivesse vindo a Londres, não teria ido àquela conferência ou encontrado sir Granville.Na Inglaterra, o clima era muito instável, e a observação, muitas vezes, frustrada. O tempo ocioso poderia ser ocupado com reuniões sociais, em vez de com cálculos matemáticos e desenhos de mapas e diagramas. Tarefas que Mary considerava tediosas.— Então, sugere que eu permaneça solteira, milorde?— Deus me livre, Mary, se isso significar que terei de ficar com você para sempre!Ouvir aquilo foi para Mary como uma facada no peito. Ela virou-se e tratou de arrumar os papéis na estante.Não podia entender por que o comentário a machucara tanto. Que rematada tolice! Mas logo quando começavam a entender-se?Delagarde não se conformou por ter dito aquilo. Não conseguia achar nada decente para apagar a frase tão pesada. Só pretendera explicar como seria difícil para Mary arranjar um companheiro com o qual tivesse interesses em comum.

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— É muito tarde para uma discussão desse tipo. — Lady Hester levantou-se da cama. — Vamos embora, Erasmo. O procedimento impróprio já esgotou-se.— Impróprio, milady?— Por Erasmo estar em seu quarto, Mary.— Ah... — Mary enrubesceu.— Não há nada demais, pois que a senhora estava junto. — Erasmo, zangado com o comentário, cumprimentou-as e saiu.— Talvez tenha sido uma pena que eu tenha perdido o baile, milady. Poderia ter feito progressos. Lorde Delagarde não acredita em minhas chances.— Que nada, minha filha! — Lady Hester acariciou-lhe o rosto. — Erasmo não acredita na metade do que ele mesmo diz. Não lhe dê atenção. Venha comigo, vamos contar para Ida de sua chegada. E também quero perguntar-lhe por que ela não nos disse nada sobre a visita que você foi fazer.No aposento ao lado, Ida ardia em febre. Hester e Mary trataram de cuidar dela. Depois de uma dose de láudano, a senhora adormeceu.— Por isso que Ida nem escutou o que eu lhe falei. Eu mesma deveria ter dito a milady. Não a perturbemos por isso. Deixe-a pensar que a culpa foi minha.Lady Hester concordou com Mary, e elas saíram do dormitório.— Logo de manhã, chamaremos um médico — lady Hester decidiu.Mary cancelou os compromissos para os próximos dias, para fazer companhia a Ida, um sacrifício que fez seu padrinho nutrir melhores sentimentos a respeito dela.— Mary é uma jovem bondosa — ele disse à tia, quando saíram, na terça-feira à noite.— Não acho que ela se incomoda de perder uma festa.— Será que Mary está usando a srta. Wormley como desculpa? — Eu não diria isso, querido. Mary a adora. Sua preocupação é genuína.— A srta. Wormley pode considerar-se uma felizarda. Há poucas coisas, fora a astronomia, que fazem Mary preocupar-se.— Não o entendo. Há pouco você louvava seu bom coração. O que foi agora?— Nada.Delagarde sofria com a imensa insatisfação que o acometia havia alguns dias. A vinda de Mary perturbara sua existência metódica e sua mente ordenada, e provocava seu temperamento. Mas não eram essas as raízes de seu descontentamento, que se agravara ao descobrir a cruzada de Mary pelos céus.— Não sei o que fazer com ela, titia.— Como assim?— A senhora gosta dela, não é mesmo, tia Hester? Mas poderia afirmar que a entende?— E você, meu sobrinho?A resposta, como sempre enigmática, irritou-o.— Não acabei de dizer isso? Aquela coisa de observar as estrelas, por exemplo...— O que é?— Deve-se admirar sua inteligência e força de vontade. Porém, fora o restante, não gosto dessa obsessão. Não é natural, nem feminino. Faz as pessoas se sentirem... excluídas. Mary nunca se casará. Nenhum homem agüentará isso!— Então, devo dizer que Mary está certa em insistir em um casamento de conveniência.— Pode ser. Eu lhe desejo sorte. E tenho pena do tolo que dormirá sozinho em uma cama fria, enquanto sua esposa se aquece com a luz do firmamento.No sarau de quinta-feira na casa de lady Riseley, Erasmo mantinha-se distante de Mary. Lorde Riseley fez as honras da casa e apresentou a ela Everett Corringham.Everett conduziu-a a uma cadeira de uma das alcovas formadas pelo vão das janelas. O salão, muito bonito, era decorado em marrom, creme e dourado.— Nosso amigo é muito descuidado por não tê-la apresentado antes, lady Mary.— Talvez porque a senhorita não se importe com pessoas que não se interessam por astronomia.— Isso não é verdade, lorde Riseley.— Estamos impacientes por ouvir alguma coisa a respeito, não é, Everett?— Com certeza, lorde Riseley.— O assunto é muito vasto, senhores, e eu mesma ignoro vários aspectos. Além do que, tio Reginald sempre me aconselhava a não aborrecer os outros com coisas que não lhes despertam a atenção.— Mas Everett gosta — Riseley zombou. — Vamos, lady Mary, disserte apenas sobre os tópicos principais.

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— Lorde Riseley, não brinque. O que o senhor quer de mim?Os dois cavalheiros se entreolharam, e Riseley voltou-se para ela com inocência.— A senhorita é muito astuta, lady Mary. Deixarei Everett explicar. Preciso circular, a festa é de minha mãe.Depois de piscar para Mary, Riseley afastou-se, e Mary encarou Corringham.— Então, senhor?Corringham pigarreou, puxou outra cadeira e sentou-se ao lado dela.— Tenho receio de que seja óbvio demais, milady. Ouvimos falar muito na senhorita.— Por lorde Delagarde?— E por outros. Não se alarme. Um rosto novo na cidade é algo que desperta curiosidade.— Já não sou novata.— Talvez não, mas ainda é um enigma. Pelo menos para Riseley e para mim. Estamos loucos para saber que tipo de moça atraiu... isto é, induziu nosso amigo Delagarde a tomá-la sob sua proteção.Mary não desviou o olhar. Corringham deixava claro que o amigo fizera uma escolha inadequada.— Não houve nenhuma atração, milorde. Delagarde nem mesmo gosta de mim. O senhor está certo, ele foi induzido, portanto, não teve muita escolha, visto que lady Hester me apoiava. É, eu não deveria ter lhe dito isso.Mary sentiu o nariz coçar. Espirrou.— Perdão. — Procurou um lenço no bolso. — Lorde Delagarde não me aprova, mas achei que pudéssemos nos tornar amigos.De novo, aquela sensação irritante, e sobreveio um ataque de espirros.Quando cessou, Mary concluiu que havia se contaminado com a gripe de Ida. Sua cabeça doía, ao ver lady Hester que caminhava em sua direção.Dali a alguns momentos, Mary estava na carruagem de Delagarde, a sós com ele.— Onde está lady Hester?— Ocupada com amigos. Voltarei para buscá-la, depois de deixar você na mansão.Mary não entendeu. Era estranho que lady Hester a abandonasse, ainda mais estando ela gripada.— Sinto pelo trabalho que estou lhe dando, milorde. — Não seja boba.Ela deu uma risada leve.— Parece que sou destinada a fazer com que perca as festas. — Como é que sobreviverei a isso?— Não pretendia interferir em seus assuntos — balbuciou, melindrada pelo sarcasmo. Levou o lenço ao nariz e espirrou. — Mas não parece que se perturbou tanto assim.— Se ouvi direito, é óbvio que não tem noção da vida que eu levava antes de você entrar nela.— Pois volte a fazer o que gosta. Não tenho intenção de impedi-lo.— Talvez não tenha percebido, mas é isso mesmo o que está fazendo.Mary fungou para conter as lágrimas ameaçadoras. A enxaqueca era forte. Apertou as têmporas, procurando aliviar-se.— Se soubesse que você pretendia vir comigo, não teria permitido, milorde. Posso muito bem me arranjar sozinha.— Nesse estado? Duvido.Por causa de mais um acesso de espirros, Mary não pôde responder. Só conseguia gemer, com a cabeça recostada na almofada.— É melhor que não fale, Mary. Logo chegaremos à Charles Street.— É fácil para você dizer isso, depois de fazer-me sentir culpada. Não tenho culpa se me resfriei.Delagarde empurrou-a para trás, ao vê-la tentar ficar ereta. — Pelo amor de Deus, descanse essa cabeça! E tem culpa, sim. Por que dormiu junto dela?Mary assoou o nariz de novo.— E você acha que eu iria abandonar a pobre Ida?!Delagarde não compreendia por que estava se comportando como um adolescente rabugento. Afinal, Mary não era culpada por ter adoecido e não se importava de retornar com ela.A propósito, fora ele quem se oferecera para vir, no lugar da tia. Por que torturava tanto a pobre moça?Enfim, a carruagem diminuiu a marcha e virou na Charles Street. Logo, os cavalos pararam em frente à residência.Erasmo abriu a portinhola, pulou para fora e virou-se para ajudar Mary.Ela parecia ter dificuldades para manter-se em pé, mas recusou o auxílio.

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— Pode deixar, obrigada.Erasmo afastou-se, furioso. Mary lutou para erguer-se, segurando firme no batente da porta. Oscilou um pouco, antes de inclinar-se para trás.— Acho que vou...Delagarde, lesto, a amparou em seus braços.

CAPÍTULO VII

Mary abriu os olhos, pois não perdera por completo a consciência. — Não precisa carregar-me, milorde. Eu posso andar.— Poupe seu fôlego. — Erasmo pôs-se a subir os degraus com ela no colo, entrando na mansão. — Lowick, mande alguém avisar a srta. Wormley!Mary aquietou-se e encostou a cabeça naquele ombro providencial. Mas logo o calor humano foi trocado por uma cadeira, enquanto Ida e Trixie, apressadas, preparavam o leito. Mary tentou desvencilhar-se, ao ver que Erasmo ainda a amparava, e agradeceu.— Fique quieta, milady. Poderá falar quando estiver debaixo das cobertas.A febre nem ao menos a deixou perceber que Erasmo saía e seu vestido era tirado.Depois de alguns minutos de repouso, Mary sentiu-se melhor. Ergueu as pálpebras e contou para Ida o que sentia.— E pensar que é por minha culpa que minha querida menina está acamada... — a dama de companhia lamentou-se, em lágrimas, e apressou Trixie, que entrava trazendo um chá.— Bobagem, Ida. Eu é que quis ficar a seu lado.Mas a srta. Wormley não se conformou e continuou a repreender-se a cada acesso de espirros de Mary, até o retorno imprevisto do visconde ao aposento.— Milorde!— Pensei que tivesse voltado para a festa, sir — Mary interrompeu os protestos de Ida. — É melhor ficar longe de mim. Não quero ser acusada de passar-lhe uma gripe.Indiferente aos apelos de Mary, Delagarde sentou-se na beira do leito, com um copo na mão.— Eu lhe trouxe um remédio.Mary pegou-o e sentiu-lhe o aroma.— O que é isto?— Suco de limão quente e açúcar. E uma dose de rum.— Não posso tomá-lo! — Mary engasgou e devolveu a bebida, espirrando.— Rum, milorde?! — Ida escandalizou-se. — Oh, não, não!— Prezada srta. Wormley, este é um remédio muito eficiente contra gripes, e também ajudará Mary a dormir. Garanto-lhe que é bem menos prejudicial de que o láudano.— Você enlouqueceu? — Mary o encarou de olhos arregalados.— Beba! — Erasmo segurou-lhe os dedos no copo e encorajou-a a levá-lo aos lábios.Mary experimentou e sorriu.— Não é ruim.— Claro que não. Está bem adoçado.Mary continuou a concentrar-se na bebida, que, a cada gole, tornava-se mais agradável. Ninguém prestou atenção aos murmúrios desconsolados de Ida. Delagarde observava, divertido, as faces coradas da jovem lady.— Espero não acordar amanhã com...-...dor de cabeça — ele completou, rindo. — E se assim for, espero que aprenda a lição e não atormente mais viscondes indefesos com pedidos irracionais, antes de eles terem a chance de despertar do sono.Mary deu uma risadinha e um soluço. Ouviu Ida repreendê-la.— O senhor está insinuando que estou bêbada?— Eu não diria isso. Um pouco alegre, talvez.Entre mais alguns espirros, Mary escutou sussurros. Quando abriu os olhos, Ida estava no quarto. E a vontade de chorar foi substituída pelo sono incontrolável.— Como vai a sua protegida, Erasmo? — Corringham quis saber. Delagarde viera com a tia à residência de Riseley, trazendo as explicações sobre a saída repentina de Mary e a necessidade de a jovem conservar-se acamada por um ou dois dias. — É só uma gripe, Everett. Por quê? — Nada, meu amigo. Nada.

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Delagarde zangou-se com a insinuação.— Everett, eu o conheço. O que quer dizer com isso?Lorde Riseley deu risada.— Meu caro, é melhor falar comigo. Everett é muito reservado. — Muito bem, o que há com vocês?— Não se aborreça conosco, Erasmo. Não é nossa culpa se teve de dar assistência completa a lady Mary, só porque ela se resfriou.— Não seja ridículo!— Então por que convenceu lady Hester a ficar, enquanto a levava para casa?— É o que qualquer um teria feito — Delagarde protestou. — E, de mais a mais, titia foi quem sugeriu.— Sério? — zombou Corringham. — Por falar nisso, o que lady Mary pensaria a esse respeito? Lorde Riseley se adiantou.— Quem pode saber, Everett, se você, o encarregado de descobrir, falhou?— Também, o objeto de minha pesquisa não parava de espirrar!Delagarde olhou os dois com hostilidade.Pensou na hipótese de Mary também ter interpretado de maneira errônea seu gesto. Precisaria aprender a ser mais circunspecto. Como cavalheiro, não poderia permitir que uma moça se iludisse.Uma estranha compaixão envolveu-o, ao lembrar-se da fragilidade de Mary, na véspera. A familiaridade solapava seu antagonismo. Será que começava a gostar dela? Até já achava graça em suas esquisitices. Aonde isso o levaria?Suas conjecturas foram interrompidas por Adela:— Lorde Delagarde, posso falar-lhe um momento? Estou ansiosa para saber notícias de minha prima.Apesar da desconfiança, Erasmo concordou em afastar-se um pouco com ela.— O que quer saber, lady Shurland?— Como Mary está passando, é lógico. Ouvi dizer que ela foi obrigada a voltar para a mansão na noite passada, devido a uma indisposição.— Não era nada de grave. A srta. Wormley esteve gripada, e lady Mary contaminou-se. Foi só.— Ainda bem. — Adela suspirou. — Mary está dando muito trabalho ao senhor, não é mesmo?— De jeito nenhum. — Erasmo jamais diria outra coisa para Adela. — Nossa casa reviveu com a presença dela, e minha tia tem grande prazer em sua companhia.— O senhor não?— Não sei por que milady imagina isso.— Não precisa fingir para mim, lorde Delagarde — a condessa insistiu. — Conheço bem Mary, e suponho que qualquer homem acharia difícil conviver com ela.— É mesmo? Então por que a senhora encoraja seu irmão a cortejá-la?Adela não se abalou.— O que quer que eu faça, milorde? Meu pobre Eustace está apaixonado!Enojado, Erasmo teve vontade de sair dali no mesmo instante. Mas Adela o deteve, segurando-o pelo braço e inclinando-se para confidenciar:— Milorde, é por isso que desejo falar-lhe. Não precisa agüentar a presença de Mary em sua casa. Minha prima será uma fonte contínua de problemas para o senhor. Por que não usar de sua influência?Que ousadia! Quem lhe dera o direito de fazer tais suposições? Mesmo que fosse verdade, nada tinha a ver com lady Shurland. Erasmo não iria rebaixar-se e discutir, mas seu sorriso foi tão falso quanto o dela.— De acordo com sua visão sobre nosso relacionamento, milady, não posso imaginar como deduziu que eu poderia ter alguma influência sobre lady Mary.— Com ela não. Com lady Hester. As duas se dão muito bem, e Mary a escuta. Além do mais... sua tia também é sua hóspede.Delagarde ergueu as sobrancelhas, incrédulo.— Está sugerindo que eu use minha tia para favorecer seu irmão?Adela suspirou de novo.— Só espero que possa fazer isso. Tenho certeza de que milorde pode induzir Mary a aceitar Eustace. Ele é um rapaz respeitável e é muito admirado pessoalmente. E ama minha prima, lorde Delagarde. Isso não conta?— Lógico. — Ele estreitou os olhos, ameaçador. — Mas não sou tolo, lady Shurland. Se Eustace está apaixonado não é por ela, mas sim pelas quarenta e cinco mil libras.O visconde deu-lhe as costas e tornou a reunir-se com os amigos, irritadíssimo. Demorou alguns segundos para perceber que Riseley dirigia-lhe a palavra.

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— O que foi, Peter?— Perguntei o que lady Shurland disse que o deixou tão bravo. A raiva era difícil de conter. Por isso, Erasmo mal esboçou um sorriso.— Ela me toma por um idiota! Imagine se vou acreditar que o detestável irmão dela tem outra intenção que não seja apoderar-se da fortuna de Mary!— Fortuna? — Corringham repetiu.— Como assim? — Riseley interessou-se. Delagarde praguejou.— Nem uma palavra a ninguém, vocês dois! Se aquela mulher não me tivesse tirado do sério, jamais teria mencionado isso. — Pode confiar em nós, amigo.— Sei disso muito bem, Peter, mas esqueçam. Espero não ter de desencorajar uma fila interminável de caça-dotes, nem de ser acusado de cobiçar o dinheiro para mim.Os amigos assobiaram quando souberam do montante da herança de Mary e caçoaram por não poderem ser os pretendentes.Corringham tinha uma família feliz, e Riseley ficara noivo no final do ano anterior. Para desgosto de Delagarde, eles o exortaram a ficar com Mary, antes que outros o fizessem.— Muito obrigado, mas agora tenho de deixá-los. E, se voltarem a tocar no assunto comigo, podem esquecer de minha amizade!Na segunda-feira, Delagarde voltou do Boodle's, como de costume, de madrugada. Já no quarto, escutou um barulho vindo do pavimento inferior. Assim, ergueu o castiçal que o porteiro havia deixado sobre a mesa, cruzou o hall e abriu a porta.Em um dos cantos iluminados por uma vela, viu Mary como um espectro, envolta em uma capa. Não a via fazia três dias pois, segundo Ida, mantivera-se em repouso para recuperar-se.Mary vestia um penhoar, tinha os cabelos soltos e remexia em uma das gavetas da mesinha do escritório. Engasgou ao ouvi-lo:— O que está fazendo, Mary?— Ah, é você... Milorde assustou-me.— Por que não está na cama? O que está procurando?— Perdi meu lápis. Deixei-o cair no balcão e não o encontrei. Isto não serve. Não gosto de usar tinta para as anotações. — Estava com uma pena na mão. — E se eu cometer um erro?Resmungando, Erasmo largou o castiçal sobre o aparador, agarrou-lhe o pulso, tomou-lhe a pena e guardou-a na gaveta.— Vai me dizer que estava fazendo observações a esta hora? Ficou louca?!Mary piscou e, à luz tênue, Erasmo notou que ela franzia o cenho.— Não vejo nada de mais nisso, sir. Costumo ficar trabalhando até o amanhecer.— Não em seu atual estado de saúde. Bom Deus, o que está pretendendo?!— Esta é a noite mais clara que tivemos durante semanas, milorde. Além do mais, asseguro-lhe que estou ótima.— Contudo, não permanecerá assim por muito tempo, se continuar exposta ao frio noturno. Parece estar à procura de uma pneumonia, Mary. Volte já para cama!Mary abriu outra gaveta, indiferente ao comando. — Não existem lápis nesta casa?Delagarde não estava com disposição para tolerar indagações idiotas. Portanto, pegou-a pelos ombros e virou-a, para que o encarasse.— Mary, não me provoque. Você vai se deitar nem que eu tenha de carregá-la!Erasmo apanhou as duas velas e entregou-lhe uma. Depois, empurrou-a em direção à porta.— Por que não posso ter um lápis? — Mary não se deu por vencida.— Oh, meu Deus!Delagarde soltou-a e retornou ao escritório, onde vasculhou por todo lado, até achar o bendito lápis.— Aqui está, sua teimosa. Agora, me obedeça!Mais contente, Mary deixou-se levar escadaria acima, falando sem parar:— Você nem pode imaginar como estou frustrada. Acabava de localizar aquele cometa de novo, quando deixei cair o lápis. Ele se movera muito, e não tive oportunidade de mudar seu caminho no diagrama, depois que o vi no telescópio de sir Granville. Creio que o lápis caiu através da balaustrada, porque me ajoelhei para procurá-lo no piso e não achei.

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— Mãos e joelhos na pedra fria do balcão? Sem dúvida é o que qualquer médico recomendaria!— Juro que nem notei a umidade, sir. Estava tentando não esquecer a configuração.Erasmo parou à soleira dos aposentos dela, segurando o castiçal no alto.— Bom, escreva-a agora e depois volte para o leito.— Não adianta mais. Já esqueci. Espero que o telescópio não tenha se deslocado em minha ausência. — Mary...— Gostaria de vê-lo, milorde? O cometa, quero dizer.Delagarde pensou em vetar o projeto e mandá-la para a cama. Mas, sorrindo, Mary segurou-lhe o pulso e arrastou-o para dentro do dormitório.— Veja, Delagarde! Que coisa mais linda!Ele não foi capaz de recuar. Talvez por causa do vinho, sentiu-se lisonjeado com a amabilidade. Mary, que parecia nem notar a friagem que entrava pelas portas escancaradas, soltou Erasmo e apressou-se até a cadeira diante do telescópio. Deixou a vela e o lápis na estante a seu lado.Delagarde hesitou à entrada. Não duvidava da impropriedade do ato, mas precisava certificar-se de que Mary só faria as anotações e voltaria a se deitar. Não queria a morte de ninguém em sua consciência. O licor devia ser o responsável por ter concordado com aquele procedimento.— Deve entender que a natureza do convite é quase chocante, lady Mary.Ela se virou na cadeira e, embora ele não pudesse ver-lhe o semblante, sentiu, por sua entonação, que Mary ficara embaraçada. — O que quer dizer com isso, sir?— Ora, ora, Mary! Este é seu quarto, e estamos desacompanhados. Se tem o hábito de convidar homens para observar as estrelas, sua reputação irá por água abaixo.— Ah, sim! Mas o senhor não é um homem.— Como é? Preciso dizer-lhe que está enganada! Mary riu.— Sabe o que quero dizer.— Sim, e você também me entendeu. Vestida com apenas um robe, sozinha com um rapaz solteiro, e a altas horas. Quase já amanheceu. Devo estar fora de meu juízo!Atenta ao telescópio, Mary não respondeu, e o visconde duvidou que ela tivesse sequer ouvido. Erasmo foi até a cômoda onde estava o candelabro, acendeu as velas, e o quarto iluminou-se.— Apague isso, por favor. Ou leve para mais longe.Delagarde reparou que ela apagara a vela do castiçal e entendeu o motivo. Aproximou-se de Mary e espiou o céu noturno.Era claro, e as estrelas brilhavam. Imaginou como Mary podia distinguir o cometa dos demais astros.Mary ergueu-se. Os cabelos caíam em cachos, emoldurando-lhe o rosto, que refletia a luz pálida das estrelas.— Mostre-me seu cometa — ele sugeriu, com suavidade.Mary pediu que se sentasse, e Delagarde espiou pela lente do aparelho.No começo, só distinguiu uma réstia de luz. Seguiu as instruções de Mary, olhou para um lado e viu o formato do cometa na periferia de seu ângulo de visão. Pelo menos, ela garantiu-lhe que aquilo era um cometa, pois, para ele, parecia apenas uma grande bolha.Erasmo escutou as explicações e tornou a olhar. Dali a pouco, começou a fazer sentido, e ele admitiu um certo encantamento.Logo, porém, se levantou, agradeceu e insistiu para Mary fechar tudo. Ela assim o fez, enquanto discursava sobre o fenômeno que o visconde estivera examinando. Depois, falou sobre Tycho e Kepler, e o velho debate sobre as órbitas planetárias em relação ao Sol.Delagarde logo ficou desnorteado e fez um supremo esforço para não se confundir mais. Creditou a questão a seu conhecimento escasso e à memória incompleta. Fechou as janelas francesas, depois de Mary encurtar o telescópio e proteger sua lente.Ela continuou falando, muito animada, as feições ainda iluminadas de alegria.Suas palavras não foram registradas por Delagarde, que a observava como que hipnotizado.-...não inteiramente estabelecido até os princípios de Isaac Newton, e as pessoas continuaram a acreditar na teoria de Ptolomeu por muitos séculos, mesmo depois de Copérnico...De repente, Mary o encarou. Quando foi ela dissera que ele não era um homem?Mary fitou os cabelos em suave desalinho, a gravata meio desatada, o casaco e o colete desabotoados, revelando uma camisa de seda e a pele por baixo. Mechas castanhas caíam-lhe na testa. Os olhos pareciam marcá-la como ferro em brasa, ela experimentou uma sensação estranha.

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— E quanto a Copérnico?Foi apenas um sussurro que a envolveu como um nevoeiro. Mary engoliu em seco.— Esqueci, sir.Delagarde estendeu a mão, que ficou parada no ar. Nisso, a expressão dele modificou-se, e baixou o braço.— Eu não deveria estar aqui! Erasmo deu-lhe as costas e a deixou.Mary ficou parada, sofrendo um forte sentimento de perda.Dois dias mais tarde, Mary reapareceu na sociedade, na festa de lady Hester, na residência da Charles Street. Encontrava-se ao pé da escada, junto de Hester e Delagarde, durante alguns instantes de calmaria.-O que quer dizer isso, Erasmo? Tenho certeza de que não enviei tantos convites assim.— Também acho estranho, titia. — Ele franziu a testa, muito sério. — A senhora não disse que seria uma pequena reunião? — Não entendo por que todos estão tão amáveis comigo. — E por que não deveriam estar, Mary?— Sir Delagarde, não conheço metade dessas pessoas. Até mesmo lady Wingrove ou lady Pinmore nunca me deram atenção. A resposta que lady Hester ia dar foi impedida pela chegada de mais uma convidada.— Deus do céu, mas aquela é Selina! Tem razão, Mary. Alguma coisa está acontecendo.Atônita, Mary observou lady Rankmiston subir a escadaria, muitíssimo bem vestida em cetim cor de bronze, acompanhada do filho mais novo.— O único solteiro — lady Hester sussurrou.Mary escutou Delagarde praguejar e estudou o perfil sério. Ela não ousou perguntar o porquê.Na véspera, Mary acordara pensando na visita do visconde a seu aposento e ficara muito envergonhada. Atribuiu sua conduta ao fato de ainda não estar curada. Como podia ter perdido todo o senso de decoro?Estremeceu ao imaginar a reação de Ida e não ousou mencionar o assunto para lady Hester. Desde então, mal vira Delagarde e, mesmo assim, sentiu-se enrubescer. Deu graças por ele não mencionar o assunto, nem ficar muito tempo a seu lado.Nessa ocasião, Mary resolveu aparentar normalidade, uma traição ao código de tio Reginald. Paciência... Estava se tornando perita em falsidades. O medo de que lady Hester a visse vacilar fez com que olhasse para o visconde sem perder a pose.— Só pode haver uma explicação — lady Hester disse, enquanto Delagarde conduzia lady Rankmiston, que saudara Mary com efusão, a um dos três salões abertos e cheios de gente.— O que a senhora acha, milady?— Mary, o boato sobre sua fortuna deve ter se espalhado.— Não! Bem... talvez seja melhor. Foi Delagarde quem insistiu no segredo.— Se não me engano, minha filha, logo virão as conseqüências. Uns três ou mais caça-dotes inveterados deram um jeito de comparecer. E eu é que não os convidei.Mary sentiu um frio no estômago. Mas não era essa sua intenção? Por algum motivo, no entanto, a idéia não lhe parecia mais tão agradável— Mas como eles vieram, se não receberam convite, milady? — quis saber, irritada.— Nada mais fácil, meu bem. É só encontrar uma tia, irmã ou amiga da família e oferecer-se para acompanhá-las. Imagino que deve ter duplicado o número esperado de pessoas.Tornar-se o centro das atenções era uma novidade para Mary, que duvidou que o motivo fosse sua aparência, apesar de haver gostado do efeito do vestido castanho, com mangas três-quartos e decote que permitia aos cachos ruivos enfeitar seu pescoço. Todos a assediavam e só saíam de seu lado para dar lugar a outros.Mary teve saudade dos primeiros dias, quando podia circular com toda a liberdade entre as pessoas. Darby Hampford, a quem já conhecia, chegou perto dela, o que de início a deixou aliviada.— Enfim alguém que conheço!— E acredito que conhecerá melhor ainda. Querida lady Mary, desde aquela noite desejei ouvir mais sobre os céus. Nunca estive tão encantado.— Verdade? — A cordialidade se apagava.— Milady duvida? Pois dê-me o prazer de ouvi-la. — Darby aproximou-se mais, para desconforto de Mary, e sussurrou: — Mas não aqui. Vamos nos encontrar em um lugar mais... privativo.— Como assim?-Preciso tê-la só para mim. Ninguém pode conversar direito, em uma festa. Sei que é nova em Londres, mas há lugares onde se podem ignorar as conveniências.— O senhor perdeu o juízo, sr. Hampford?!

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— Pode apostar, milady! Gostaria de poder abrir-lhe meu coração, mas não posso. Não aqui, onde qualquer um pode ouvir-me.Lady Hester estava certa.— O senhor deve tomar-me por uma idiota, sr. Hampford. Darby sorriu, julgando-se vitorioso.— Longe disso. Acho a senhorita um perfeito anjo.— Que absurdo! Não estou interessada nessas conversas. Por favor, vá embora ou serei obrigada a requisitar lorde Delagarde para fazer isso.Mary o deixou, indiferente aos risinhos abafados ao redor deles, escondidos por mãos ou leques. Esperava que Darby Hampford se retirasse e que o desconcerto dele desencorajasse os demais.Enganara-se, todavia. Outras tentativas semelhantes se sucederam, embora não tão espalhafatosas como as de Hampford.— Isso é intolerável! — ela disse a lady Hester, quando o anúncio do jantar permitiu um breve intervalo.A anfitriã retardou-se, enquanto a multidão de convidados saía devagar dos salões. Mais tarde, lady Hester seria obrigada a descer e apresentar-se. Ela pediu a Lowick que provesse todos, apesar do grande número de gente.— Não tem sido fácil, não é, minha filha?— E terrível, milady! Nunca ouvi tamanha coleção de falsidades como as que fui obrigada a escutar hoje. Tio Reginald sempre me prevenia de que a sociedade estava cheia de decepções. Agora vejo que estava certo. O que mais me deixa furiosa é que eles imaginam que ignoro suas intenções. Como se eu fosse uma paspalha!Lady Hester desatou a rir.— Querida, não se desespere. Verá que essas atenções definharão em alguns dias. Sobretudo se pretende tratar todos com firmeza, como fez com Hampford.— Lady Hester, a senhora deveria tê-lo ouvido. Senti-me nauseada. Vejo agora que devo ser grata a lorde Delagarde por manter o segredo, no início. Por outro lado, eu deveria considerar essas atitudes como normais e não me aborrecer tanto.— Está mesmo agradecida a seu protetor?Lady Hester e Mary voltaram-se para ver quem falava. Era Adela.— Esta é uma discussão particular — Mary irritou-se aindamais. — Você não deveria ouvi-la.— Minha querida Mary, longe de mim imiscuir-me em assuntos que não me dizem respeito, mas neste instante sinto-me moralmente obrigada.— O que quer dizer, lady Shurland? — lady Hester interferiu.— Eu não queria causar problemas, mas acho que Mary deveria ser informada da participação de lorde Delagarde nisso.— Nisso o quê?— Vamos lá, lady Hester... Ambas estão tentando adivinhar como o segredo de Mary veio à tona.— Está sugerindo que lorde Delagarde... Que absurdo! — Mary alvoroçou-se em defesa do padrinho.— Não digo que foi intencional. Talvez um pouco de descuido... ou estupidez.Hester apertou o braço de Mary para que não respondesse.— Esclareça-nos, por favor, lady Shurland.— Foi na festa de lady Riseley. Indaguei a milorde sobre a saúde de Mary e acabei mencionando Eustace. Lorde Delagarde fez um comentário imperdoável e incisivo sobre os motivos de meu querido irmão.— Mencionou minha fortuna? — Mary não acreditou.— Sem querer, eu acho. Mas isso não foi tudo. Ele acabou discutindo o assunto com aqueles seus amigos.— Corringham e Riseley?— Sim, lady Hester. — O sorriso de Adela era de pura maldade. — Os resultados apareceram esta noite.Mary não duvidou da história. Entretanto, poderia jurar que o boato era mais devido a Adela ou Eustace do que a Delagarde. Mas e a seriedade do visconde ao ver o grande número de convidados? Na certa recordara-se da conversa com os amigos.— O que agora se comenta é que lorde Delagarde quis guardar do mundo o segredo de sua fortuna porque a desejava para si.— Isso é mentira — lady Hester afirmou, gélida.— Se foi você quem espalhou isso, Adela...— Eu, Mary? O que eu teria a ganhar com uma coisa dessas?— Talvez nada. — Lady Hester ergueu uma sobrancelha. — Porém, serviria para denegrir a imagem de lorde Delagarde. Por sorte, a reputação ilibada de Erasmo não permitira que alguém acredite nisso.

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— Só um imbecil poderia supor uma coisa dessas — Mary falou, um tanto insegura. — Se dissessem isso a lorde Delagarde, ele gargalharia.— Não a entendo...— Adela, lorde Delagarde é muito educado para deixar que percebam, mas ele nem queria apresentar-me. — Mary! — lady Hester advertiu-a.— Deixe-me falar, milady. — Mary estava corada e com os olhos brilhantes. — É bom que todos fiquem sabendo dos fatos, para evitar falatórios. O visconde não quer nada comigo, Adela, e não vê a hora de ver-se livre de mim!O que antes lhe parecia normal, naquela hora mostrava-se angustiante. Mary estava pronta para desabar em pranto, só em lembrar-se do olhar de Delagarde sob a luz das estrelas.— Não estou dizendo isso para censurá-lo, Erasmo -Hester falava com ternura, na manhã seguinte à festa.Delagarde, de costas para a tia na pequena sala de estar do pavimento inferior, olhava pela janela sem nada ver.— A senhora tem todo o direito de fazê-lo. — Ele voltou-se. — Acha mesmo que não percebi tudo ontem?Erasmo chegara mesmo a supor que os amigos o haviam traído. Procurou-os para entender-se com eles, e ambos negaram com veemência, sentindo-se ofendidos. Delagarde desculpou-se e ganhou a solidariedade de Corringham e Riseley. E até aquela manhã não pensara em lady Shurland.— Foi ela, meu filho. E agora nada mais pode ser feito.Erasmo foi até o consolo da lareira e ali apoiou o braço.— Mary está muito aborrecida, tia? Ontem ela demonstrou firmeza.-A desilusão é maior que o aborrecimento. Reginald advertiu-a muito quanto a isso.— Aquele homem era terrível! O que devemos fazer para convencê-la de que uma pessoa elegante e até mesmo, frívola não tem de ser hipócrita?— É isso! Aquela mulher é muito maldosa! — Lady Shurland? Por quê?Lady Hester suspirou.— Adela deseja estigmatizá-lo como um sujeito falso. Ela afirmou que você guardou segredo da fortuna de Mary porque a desejava para si.Delagarde caiu na risada. Com seu título e sua posição, seria incapaz de submeter-se a um estratagema tão insignificante. Além do que, não tinha a mínima intenção de ligar-se a Mary.— A senhora não acredita nisso, não é mesmo, tia?— Claro que não! E Mary estava certa.— Como assim?— Ela disse que o senhor riria da idéia.— É mesmo?— Também afirmou para lady Shurland que você nem mesmo a queria aqui e que mal podia esperar para ver-se livre dela.Delagarde franziu o cenho. Talvez ele houvesse expressado tal desejo, mas Mary devia saber que não falara a sério.Ao contrário, se acostumara à presença de Mary. E naquela noite... Bem, era melhor não pensar nisso. A bebida decerto o fizera adotar um comportamento impróprio, embora ele se esforçasse para agir de outro modo.A luz das estrelas tinha o efeito de um feitiço, e Mary adotara uma postura diferente daquela que o irritava com tanta facilidade. Não queria refletir sobre as sensações que ela lhe inspirara.— Por que Mary falou para lady Shurland uma tolice dessas?— Imagino que para dissuadi-la de consolidar o boato. E sou obrigada a concordar com Mary. Ninguém que os visse juntos poderia imaginar que pretendia esposá-la.— Bom Deus, espero que não! Casar-me com ela? Isso nunca me passou pela cabeça.— Mas deveria.— Tia, a senhora não pode estar falando sério. Sei que já pensou assim, antes de conhecer Mary direito.— Pois é. E por isso mesmo acredito que deve ponderar a sério sobre o assunto, Erasmo.

CAPÍTULO VIII

Delagarde fitou a tia, aturdido demais para ficar com raiva. Hester sempre fora sua aliada e nunca pretendera forçá-lo a casar-se. E ainda por cima com Mary Hope!— A senhora não pensou que ela acabaria por me deixar louco? Mary desintegrou minha vida, e nem meus pensamentos são mais meus. Crê mesmo que eu poderia agüentar por muito tempo essa confusão, essa

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desordem, esse... desconforto? Não tive um dia de paz desde que essa moça entrou nesta casa. Se isso continuar, não terei outro remédio a não ser pôr fim a minha existência.Lady Hester achou graça.— Tão ruim assim? Ah, meu querido...— É péssimo! Bem, talvez eu esteja exagerando. Mas garanto que estou feliz por o segredo ter vazado. Pelo menos terei uma chance de ver-me livre dela.— Achei que tivesse dito que não queria livrar-se...— Isso foi antes de saber que a senhora arquitetava esse plano ridículo de me ver casado com Mary.— Não tenha medo. Não tocarei mais no assunto. Vejo que me enganei.— E muito — acrescentou, sem muita convicção, e procurou acalmar-se.Naquele exato momento, Mary abriu a porta e espiou para dentro.Delagarde correu para a janela, sem saber bem o porquê. Seria para afastar-se dela ou por receio dos próprios sentimentos? Forçou-se a falar:— Bom dia. Espero que a festa de ontem não tenha sido demasiada para a senhorita.— Decerto ele se refere a seu período de convalescença — lady Hester interveio. — Dormiu bem, minha filha?— Não, milady, não dormi. Nem poderia, depois do que aconteceu. — Virou-se para Delagarde, angustiada. — Sinto-me tão culpada, milorde! Jamais imaginei que o senhor seria exposto ao ridículo por minha causa.— Não seja boba, Mary. Eu é que sou responsável por tudo o que houve.— Ah, é? Por permitir que eu o atormentasse com minha apresentação, por acaso? Eu é que lhe trouxe toda essa confusão, e não sei como Adela tem coragem de lançar suspeitas sobre seu caráter.Delagarde riu.— Não se preocupe, ela pode tentar. Mesmo que acreditem nisso, não tocarão no assunto conosco. Então por que nos aborrecermos? — Ele a viu arregalar os olhos. — Não acredita no que digo?— Não acho que o senhor queira que alguém imagine que pretende casar-se comigo.Erasmo sentiu calor e fitou de soslaio a tia, que, para seu alívio, não o olhava. Dirigiu-se à saída.— Não se preocupe com isso — repetiu e fez menção de sair.— Lorde Delagarde?— Sim, Mary?— Agora que tenho tantos pretendentes, farei o possível para escolher alguém logo, para deixar você sossegado. Não quero tornar-me um fardo ainda maior do que tenho sido.Delagarde não soube o que dizer. As maneiras dela estavam tão diferentes... Seria pelo que ocorrera na véspera?Uma estranha inquietação invadiu-o, e ele disse a primeira coisa que lhe ocorreu:— Faça uma escolha cuidadosa. Lembre-se: com quem quer que venha a casar-se, será para sempre. — E se foi.Mary lutou com uma sensação que se apoderou dela, semelhante à que sentira naquela noite inesquecível, quando Erasmo deixara o quarto: desolação.Perplexa, ela não se entendia. Era bem verdade que dormira mal, pensando em como proteger Delagarde dos boatos. Adela espalhara uma verdade ou uma mentira? O que seria pior? Mary adormecera de madrugada, sem respostas.Lady Hester achara por bem contar a Ida sobre os acontecimentos, o que deixou a pobre senhora assustada. Mas foi ela quem sugerira a solução que Mary apresentara a Delagarde. Se bem que não exatamente da maneira como a srta. Wormley recomendara.Mary convencera-se de que, apesar da fortuna e dos títulos, seus poucos atrativos a condenariam a uma união de conveniência. Teria, portanto, de esquecer aquele que poderia tocar-lhe a sensibilidade.Ida estava certa. Pouco importava com quem viesse a se casar. Teria de fazer a escolha logo, para deixar Delagarde livre de sua presença naquela mansão.Foi interrompida em seus tristes devaneios por lady Hester:— Uma moeda por eles!Mary foi até a vidraça.— Não é nada, milady. Estava apenas pensando em como resolver os problemas.— Espero que não tome decisões precipitadas, Mary.Ela a encarou e forçou um sorriso.— Lorde Delagarde não deve concordar com milady. Mary surpreendeu-se com o jeito melancólico da anfitriã. — Menino tolo! E eu que começava a ter esperanças para Erasmo!

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— O que foi que milorde fez?— Foi o que ele não fez. Achei que meu sobrinho começava a gostar de você.Mary sentiu a garganta seca.— Gostar? De mim? Acho que a milady deve ter se enganado.— Pode ser. Mas não esperava mesmo que desse certo. Afinal, seus sentimentos também devem ser levados em conta.— Bem, eu jamais... — Mary desviou o olhar, sentindo as faces quentes. — Milady, a verdade é que não sei o que pensar de Delagarde. Sinto-me horrível por haver provocado censuras sobre seu caráter. Devo confessar que milorde... tem um efeito perturbador sobre mim.— É, eu já havia notado.— O visconde pode ser bondoso, e já me fez rir uma vez. Contudo, tem o temperamento tão incerto! Nem sei por que me queixo, porém. O meu também é ruim.— Tem razão, minha filha. De fato, há um ponto em comum.— Ficou louca, milady? Desculpe-me, por dizer isso, mas... Um ponto em comum? Somos pólos opostos!Mary, agitada, se pôs a andar de um lado para o outro no pequeno recinto, apertando as mãos.— Nós não concordamos em nada, milady. As idéias de Delagarde são opostas às minhas. Senso comum e prático para ele são excentricidades. Milorde se alegra por conviver em uma roda de compromissos sociais, os quais eu desprezo: Não é bem assim, mas não acho muita graça neles. E é muito autocrático! Tem de fazer prevalecer sua vontade, não importa como. Não imagino conviver sob o mesmo teto com seu sobrinho. Quanto antes encontrar um marido e sair daqui, melhor será.— Parece que Erasmo é da mesma opinião.— É? — Os olhos de Mary faiscaram. — Pois milorde não precisa preocupar-se. Farei o impossível para resolver tudo o mais depressa possível.Mary parou de perambular e parou no meio da saleta, determinada e desafiadora. Por que caíra naquela tristeza? Tio Reginald se viraria no túmulo. Ela sabia o que queria, e por isso viera até ali. Por que hesitava, então, quando tudo estava a seu alcance?— Não jogue a vida para o alto, minha filha. Claro que tem razão em perseguir suas metas. É conveniente que tenha tomado uma decisão, mas receio que não terá paz, com seus pretendentes.— Sim, milady, mas tenho uma vantagem sobre eles.— É certo. Mas concordo com Erasmo. Minha menina, faça uma escolha cuidadosa, pois não conhece nada do mundo. Tenho certeza de que Delagarde se desincumbirá do dever com honradez.O vazio no peito de Mary era mesclado com pontadas de ressentimento.— O que isso representa, milady?— Que Erasmo fará tudo o que puder para evitar que sua protegida leve desvantagem no casamento.— E como ele fará isso?— Se puder, a desaconselhará a uma união imprudente.O salão de lady Wingrove estava lotado de gente, e Mary notou, satisfeita, que era digna da atenção de olhares masculinos. Saiu do lado de Hester e sentou-se em um pequeno sofá, determinada a encorajar os candidatos a se aproximar.Indignava-se com a idéia de sujeitar-se à aprovação de Delagarde na escolha de um marido. Mary não deixara claro desde o início que a função dele era de padrinho? Aliás, o visconde interferia sempre que possível.Casar-se com ela? Isso não! Mas Erasmo se reservava o direito de decidir por Mary. Não que Mary quisesse casar-se com ele, mas era um preceito errôneo. E Delagarde não teria a chance. Ela mesma cuidaria disso.Para tanto, havia se preparado com esmero, e pusera vestido de seda azul que Erasmo desaprovara. Trixie penteara-lhe os cabelos para cima, com finas mechas enfeitando-lhe o rosto. Examinara-se ao espelho, coisa que não costumava fazer. Insatisfeita, jogara um xale de renda sobre os ombros e dirigira-se para o jantar.Delagarde quase não conversara com Mary. Hester se encarregara de distraí-la com conversas leves, às quais Mary respondia desatenta. Não podia conter a apreensão ao pensar em como seria a reação dele pelo que ela pretendia fazer.O primeiro alvo de sua coqueteria foi lorde Bulkeley, que foi convidado a sentar-se ao lado de lady Mary. Apesar de idoso, ele não se fez de rogado e tratou de espalhar seu charme duvidoso:— Como está, lady Mary? Acabei de saber que a senhorita sofreu de uma gripe terrível. É preciso cuidar-se mais.— Obrigada, milorde, mas já estou bem. — Mas não se conteve: — Não se alegre, pois não pretendo morrer e deixar-lhe minha fortuna.Bulkeley ficou vermelho e boquiaberto.

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— Eu protesto, lady Mary! A senhorita se engana comigo! — É mesmo? Milorde não tem pretensões de casar-se comigo? Fui informada de que seus bolsos andam meio vazios. Ou isso não é verdade?O infeliz Bulkeley permaneceu sentado, rilhando os dentes, incapaz de responder.— Bem feito, Bulkeley! Pode ir embora. Deixe o lugar para os outros!— Sir? — Mary não reconheceu quem falava.— Lady Mary, por favor mande-o cuidar dos negócios. — O homem era simpático e jovial.— Lorde Bulkeley, por hoje chega, obrigada. Gostaria de falar com este cavalheiro.Sem jeito, Bulkeley ergueu-se, bufando, e se foi.O recém-chegado sentou-se ao lado dela e apresentou-se: — Wiveliscombe. Às suas ordens, lady Mary. — Ainda não ouvi seu sobrenome. O senhor tem título? — Não, milady. Sou humilde e paupérrimo. Confio em sua caridade.— Não estou disposta a fazer caridade, senhor. — Sorriu.— Nem para Delagarde?— Não. E devo dizer-lhe que visconde também não tem essa expectativa.— Mas que ótimo! Assim não precisarei ter escrúpulos em apresentar-me para sua avaliação.Mary gostou da maneira franca do rapaz e não pôde deixar de rir.— Então terei de submetê-lo a um interrogatório, milorde.— Pode perguntar o que quiser. Minha vida é um livro aberto, mas tenho receio de que minhas respostas poderiam soar um tanto presunçosas.— Aliás, o senhor é um pretensioso. — Darby Hampford havia se aproximado, sem que eles percebessem.— Meu caro Hampford, o senhor não sabe aceitar uma derrota? Lady Mary, a senhorita permite que ele me insulte?— Ela o fará, pois é muito bondosa e não me negará a oportunidade de uma remissão.Wiveliscombe ergueu-se.— Não tenho costume de aproveitar-me das situações, sr. Hampford, e tenho certeza de que lady Mary terá bom gosto suficiente para dar preferência a minhas pretensões.Wiveliscombe não era um impostor como Hampford, e Reginald Hope na certa desaprovaria o segundo.Depois de Wiveliscombe fazer uma reverência e afastar-se, Mary notou um jovem envergonhado a poucos passos de distância. Com um movimento brusco, ela impediu Hampford de sentar-se.— O sr. Lugton está ali e preciso falar com ele. — Mary acenou, e o jovem aproximou-se.— Mas, lady Mary, a senhora vai preferir Sholto Lugton a mim?— No momento, sim, sr. Hampford. Poderemos conversar outra hora. Agora, vá, por favor.Ofendido, Hampford afastou-se.Mary sorriu para Lugton, que era desengonçado, tinha a língua presa e uma timidez proverbial. Mas os cabelos ruivos logo ganharam a simpatia de Mary.— Sente-se a meu lado, Sholto. Posso chamá-lo assim?Ele anuiu.— Claro, lady Mary.Na tentativa de deixá-lo à vontade, Mary quase se esqueceu de que se tratava de um pretendente. O pai dele havia morrido, a mãe era doente e Sholto não tinha renda suficiente para sustentar duas irmãs. Mary condoeu-se.— Milady, eu poderia falar um pouco com a senhorita... a sós?Delagarde estava atrás dela, mas Mary não ouvira seus passos. Não teve como não aceitar a mão estendida, e o visconde a ajudou a erguer-se. Sem lhe soltar os dedos, Delagarde passou a mão dela em seu braço e virou-se para o pobre Lugton.— Por favor, desculpe-nos.— Sim, senhor... Claro...Erasmo a conduziu para fora do salão, até uma varanda mais afastada.— O que pensa que está fazendo, Delagarde?— Era o que eu ia perguntar-lhe. — Largou-a e virou-se para encará-la. — Posso perguntar-lhe que exibição revoltante era aquela?— Não, não pode! Além do mais, não tenho a mínima idéia do que o senhor está falando.— Então eu lhe direi. Você se pôs a entrevistar todos os caça-dotes, um após o outro, como se os passasse em revista...

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— Mas era isso o que eu pretendia!— Essa é uma conduta que não se espera de uma jovem aristocrata. Como ousa ter o atrevimento, a indelicadeza, o mau gosto...— E como é que eu iria saber quem é o marido mais conveniente? — Do jeito como fazem todas as outras moças. Com indagações discretas e procurando conhecê-los durante a temporada. Uma mulher não resolve o assunto ela mesma!— Mas eu resolvo! E o que o senhor tem a ver com isso? Delagarde proferiu uma blasfêmia e segurou-a pelos ombros. — Não ficarei impassível, vendo-a passar-se por uma tola, Mary Hope. O que dirão ao vê-la flertando com um sujeito como Wiveliscombe?— O que você tem contra ele? — Mary tentava desvencilhar-se. — Trata-se de um jovem divertido e amável.— É mesmo? — Delagarde deu uma gargalhada e soltou-a. — E, de mais a mais, eu não estava flertando. — Sério? E o que eram aqueles risinhos afetados?— Não faço isso! E sabe o que mais? Se eu resolver flertar com ele no futuro, eu o farei!— Não se eu puder impedir!— Mas não poderá!Eles se encararam. Mary nunca sentira tanto ódio. Surpresa com a própria ferocidade, afastou-se do visconde, para não agredi-lo. Erasmo deu alguns passos para trás.— Nunca estive tão perto de bater em uma mulher.— Se lhe servir de consolo, milorde, eu pretendia fazer o mesmo.Durante alguns minutos eles não conversaram, cada um olhando para o outro, de relance.— O que tem contra o sr. Wiveliscombe? — ela repetiu, seca.— Ele é um vadio e um libertino. Duvido que vá casar-se com alguém.— Mas então o que iria querer comigo?Delagarde arrependeu-se do que afirmara, pois se baseara apenas em um comentário feito por uma jovem. Mas, se não advertisse Mary, quem o faria?A ingenuidade de lady Mary era um risco. Erasmo não se perdoaria se a deixasse cair nas garras daquele espertalhão.— Wiveliscombe vive à custa da amante, Mary.A resposta dela surpreendeu-o:— Por isso você o tem como um pretendente inadequado?— Acha que não falei sério?— Não sei... — Mary arregalou os olhos diante da idéia que lhe ocorreu.Delagarde estaria com ciúme? Impossível!Mas a fúria dele fora desmedida. Só se justificaria se o que ele dissera sobre Wiveliscombe fosse um fato comprovado.Claro que não se tratava de ciúme. O visconde deveria sentir-se responsável, só isso.Com o coração apertado, Mary afastou-se.Será que Wiveliscombe a impressionara tanto em tão pouco tempo?, Delagarde perguntou-se. E por que se aborrecera tanto? Devia ser pelo fato de vê-la encorajando uma coleção de partidos indesejáveis. Mary merecia coisa melhor e tinha de aprender a valorizar-se.Nisso, Erasmo viu lady Hester vindo em sua direção.— Erasmo, como você é tolo!— O que foi que deu na senhora, tia?— Meu filho, se continuar a agir assim, isso só servirá para alimentar os boatos.— Não sei do que está falando.— Você arrebatou Mary, afastou-a dos pretendentes e trouxe-a para cá, onde ninguém poderia ver sua luta. É isso.— Imaginação sua.— De qualquer forma, aviso-o para refrear seus ímpetos, pelo menos em público.— Mary contou-lhe alguma coisa?— Ela nem teve chance. Assim que voltou à sala, foi detida por Adela e aquele seu irmão insuportável. Receio que Mary acabe caindo nas garras dele.— O quê? Ela não pode fazer isso!— Meu caro Erasmo, basta comparar as opções.

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Naquele instante, Delagarde deu-se conta de que o desagradava tanto ela casar-se com Wiveliscombe quanto com Silsoe.— Minha pobre Mary... Sinto muito. De verdade.Mary suspirou. Agüentar Adela e ainda por cima o irmão dela era desgastante.— Posso saber por quê, Eustace?— Ele se refere à atitude de lorde Delagarde, Mary — Adela explicou, com olhar piedoso.Sem disposição para reagir, Mary deixara-se levar pelo salão, com Adela de um lado e Eustace do outro, até uma pequena alcova formada pela janela, no corredor que ligava dois ambientes.— Todos viram quando ele a arrastou daqui — falou Eustace. — Isso só aumentará a especulação sobre o caso.— Se o senhor acha que me importo com que os outros...— Sabemos que não, Mary. Mas e quanto a Delagarde? O visconde parece preocupar-se com o que a opinião alheia a seu respeito.Teria a discussão deles sido ouvida? Em todo caso, não devia permitir que aquela criatura odiosa a perturbasse. — E daí, Adela?— Escute os conselhos de uma prima, Mary. Acredito que, se soubesse das intenções de Delagarde, você não ficaria na casa dele.— Não estou entendendo.— Não mesmo, pobre Mary? — Eustace meneou a cabeça.— E a senhorita costuma ser uma jovem inteligente...— Pare de chamar-me de "pobre Mary"! Se vocês têm alguma coisa para dizer-me, digam logo ou me deixem em paz!— Muito bem. Adela, explique para ela.— Mary, abra os olhos! As intenções de Delagarde ficam bastante claras pela maneira como ele bem agindo.— Quer dizer que o visconde está com ciúme?— Como se você fosse propriedade dele, nada mais — Eustace foi ferino. — Não por você como ser humano, lógico.— Afinal, dificilmente viria ocupar um lugar ao lado de Delagarde na sociedade — Adela acrescentou, com maldade. — E ele sabe disso muito bem.— Erasmo precisa de uma herança — Eustace assegurou -, e a manterá ocupada com o observatório que mandará construir em sua mansão. E tratará de convencê-la a dar-lhe um herdeiro.— Quer conveniência maior? — Adela a encarou. — O belo nobre terá as vantagens de sua fortuna e nenhum dos inconvenientes de sua presença na vida dele.Mary estava enojada e suas têmporas latejavam. Por que se sentia tão arrasada? Eles apenas haviam delineado um programa que, algumas semanas atrás, a teria deixado satisfeita até aquele momento, contanto que não fosse com Delagarde.Reuniu forças para não sucumbir. Afinal, aqueles dois execráveis queriam induzi-la a casar-se com Eustace. Não devia deixar-se influenciar.— Mesmo se tudo isso seja verdade, em nada ajudará Delagarde se eu resolver casar-me com outra pessoa.— Resolver? — Eustace gargalhou.— Que tolinha! Você colocou-se sob o poder dele, prima, e não poderá impedi-lo de tirar vantagem da situação.Aquilo foi demais para Mary.— Delagarde não manda em mim, nem em minhas decisões!— Mary, a senhorita está morando na casa dele!— E o que tem isso, Eustace?— O fato a coloca em tão grande desvantagem que nem lady Hester poderá ajudá-la.— Sua inocência, minha prima, só pode aumentar sua vulnerabilidade. — Adela suspirou. — Ainda bem que estamos aqui para protegê-la.— Contra quem?— Ainda não entendeu, Mary? — Eustace deu um sorriso gelado. — É muito simples para Delagarde conquistar a vitória... mediante sedução.Mary fitou-o, aturdida, e sentiu um forte calor invadi-la. Uma série de imagens passou por sua cabeça, as últimas tão impróprias que teve de piscar para afastá-las.— Que absurdo! Recuso-me a acreditar que Delagarde seria tão desprezível. Ele não quer casar-se comigo, nem com minha fortuna.— Se acredita mesmo nisso... — Adela deu de ombros. — Mas o propósito dele logo se tornará óbvio. Vamos ver como milorde se comporta quando você escolher casar-se com outro.

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CAPÍTULO IX

Mary correu para a sala de descanso das mulheres, atordoada, assim que Adela e Eustace foram embora.Demorou a voltar para o salão e, pelo resto da noite, só pensou na presença odiosa de Delagarde, que, ainda bem, não se aproximou mais dela.Não saberia dizer como conseguira conversar, tranqüila, com lady Hester, na volta para casa, nem como evitara as perguntas insistentes de Ida.Por fim só, estirou-se na cama e permitiu que as lágrimas insistentes descessem por suas faces.Criticou-se por ser uma tola, mas sem entender por que chorava. A não ser que fosse pelas palavras cruéis ditas por aquelas criaturas horríveis. Claro que sabia não ser uma pessoa preparada para ser esposa de um homem refinado. Mas precisavam ter lhe dito isso? E quanto à idéia ridícula de que Delagarde procuraria seduzi-la?Mary escondeu o rosto no travesseiros para abafar os soluços e a dor.Acordou tarde, na manhã da sexta-feira, exausta pela tarefa que enfrentara ainda no período de convalescença. Com dor de cabeça, aceitou a sugestão de lady Hester, corroborada por uma ansiosa Ida, de permanecer deitada.Com tantos mimos, Mary começou a melhorar. Recusava-se a admitir que seu estado de ânimo devia-se ao visconde, apesar de uma ou duas vezes ter se desiludido com as batidas na porta, ao ver entrar Trixie ou Ida.Levantou-se mais disposta no sábado, e pronta para retomar a busca a um marido, conforme informou a lady Hester, durante um passeio no parque.— Duvido que necessite procurar. — Hester sorria. — Os candidatos caem a seus pés.Assim que retornaram, mais uma vez Mary teve de dar razão a Hester. Ao entrar, encontraram um semblante conhecido, mas que Mary não soube precisar de onde seria.— É o filho de Selina, meu rapaz? — lady Hester perguntou.Ele adiantou-se e fez uma mesura.— Sim, madame. Sou Oliver, o filho mais novo de lady Rankmiston.— E o que está fazendo aqui? — Ela fitou Mary, matreira. — Será que veio visitar lady Mary?O rapaz corou.— Sim... bem, eu... esperava por isso. Mas... encontrei lorde Delagarde... — Oliver deu uma tossidela.Mary deu-se conta do motivo ao ver a expressão divertida de lady Hester.— Quer dizer que o senhor veio ver-me?— Sim, lady Mary. Isto é, vim fazer-lhe uma pergunta de natureza particular. Claro que nem poderia sonhar em candidatar-me e...— O senhor veio para fazer-me uma oferta? — Mary arregalou os olhos.O jovem Oliver enrubesceu mais ainda, olhando de uma para outra.— Sim, milady, eu vim. Mas lorde Delagarde recusou a permissão, assim...— O quê? Não entendi!— Querida, calma — lady Hester interveio, ao ver o queixo do rapaz tremer.Mary não lhe deu atenção e continuou, incrédula:— Está me dizendo que pediu permissão a lorde Delagarde para casar-se comigo?— Isso mesmo, milady.— Mas isso nada tem a ver com lorde Delagarde!— É que... Na verdade, ele, como seu curador... Ora, era natural que eu pedisse ao visconde.Mary respirou fundo.— Lorde Delagarde disse isso ao senhor?— Não com esses termos. Eu já ouvira falar e ele não negou, além de proibir-me de falar com milady.— Ele deu alguma razão para a recusa? — Mary estava furiosa. — Delagarde acha que sou jovem demais para milady. — Ah, é? E onde foi que o senhor encontrou-o? — No quarto de vestir. O visconde havia retornado de uma cavalgada e se trocava.Mary passou por Oliver e subiu as escadas. Escutou lady Hester gritando, pedindo para ela esperar, mas não obedeceu.Alcançou o patamar principal, passou pelas portas dos três salões e chegou ao corredor onde lady Hester dissera estarem situados os aposentos de Delagarde. Segurou a maçaneta da primeira porta, abriu-a e entrou. Estacou, assombrada.Delagarde estava em pé na frente de um espelho e dava um nó na gravata, em mangas de camisa, calça de couro e botas. Ele a viu. O criado, que segurava várias gravatas brancas e engomadas, desaprovou com o olhar.

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Mary corou, mas foi incapaz de mover-se. Passou a ponta da língua nos lábios, inconsciente do que fazia, e eles se fitaram. Por um momento, Delagarde não conseguiu desviar-se, e o palpitar acelerado de seu coração o assombrou. — Eu... queria falar-lhe.A voz ofegante de Mary fez o sangue dele ferver.— Muito bem, milady, a encontrarei no salão verde.— Sim... — Mary fechou os olhos, virou-se depressa, saiu e fechou a porta sem fazer ruído.Por um momento, permaneceu parada, arfando, sem condições nem de raciocinar. Depois, como um autômato, arrastou-se até o salão verde.Foi até a janela e espiou, sem nada ver. Sentiu as faces em fogo.Comportara-se sem nenhum decoro. O que foi que dera nela? Lembrou-se do semblante do jovem Rankmiston e da indignação que a levara àquele impulso desastroso. Tinha todo o direito de ficar irada. Mas não era raiva que sentia. Encostou a testa na vidraça, que lhe pareceu puro gelo. Por que sentia tanto calor e desespero? Entendeu que, se Delagarde resolvesse seduzi-la, não encontraria resistência. — Eu devia esperar uma visita sua. Ao ouvi-lo, ela estremeceu.A pulsação de Mary disparou. Por que Erasmo tinha de ser tão rápido? Nem lhe dera tempo para recompor-se.O visconde estava completamente vestido, impecável com o casaco azul-marinho e o colete de seda azul, que escondia a masculinidade perturbadora de seu físico. Os olhos escuros pareciam tristes.— Suponho que tenha encontrado o garoto Rankmiston.— Sim. Olhe, sir, eu não queria... Acho que perdi a calma e...— Correu para encontrar-me e queixar-se de minha conduta. Ainda bem que eu havia terminado os preliminares de minha toalete!Mary tornou a enrubescer e deu-lhe as costas.— Não precisa caçoar, milorde. Sei muito bem que foi um ato impróprio.Delagarde encaminhou-se até a lareira, pensando em como minorar-lhe o embaraço. Sentiu-se culpado pela atitude que tomara.— Convenhamos Mary, não foi nada de mais. Afinal, moramos sob o mesmo teto. Acidentes acontecem. Afinal, não faz tanto tempo que a vi de penhoar.De haver observado as estrelas em seu próprio quarto com ele era a última coisa que Mary desejava lembrar-se! Tratou de mudar logo de assunto:— Por que deu a entender a Oliver que era meu curador?— Eu não disse isso, mas também não desmenti.— E por quê? — Ela encarou-o, já no centro do salão.— Por que Riseley e Corringham é que espalharam o boato.— O senhor lhes...Erasmo esperara um protesto veemente, e Mary, pelo visto, estava atordoada por havê-lo encontrado semivestido. Surpreendeu-o descobrir que Mary tinha instintos femininos. Mas naquele momento, ela o encarava com suspeita.— E não foi o que você sugeriu no princípio? Com o conhecimento de sua fortuna, isso até seria mais conveniente.Mary o fitava de um modo estranho. Seria repugnância o que o visconde via? Erasmo deu um passo na direção dela.— Mary, fiz isso para sua proteção. Sei que acha que pode administrar seus interesses, mas sua inocência a faz um alvo fácil do perigo. Tenho obrigação moral de não deixar que se atire nas mãos de algum vadio namorador que pretenda desperdiçar sua herança.Mary desviou o olhar, imersa em dúvidas. Sentiu as pernas bambas, sentou-se no pequeno sofá listrado e apertou as mãos sobre o colo. Descobriu que era tão doloroso acreditar quanto duvidar dele. Afinal, Delagarde se preocupava com o dinheiro, e não com ela.— Mesmo que você não aprove um pretendente, sir, não tem o direito de recusar sua permissão sem falar comigo. Como é que sabe que não pretendo casar-me com esse tal de Oliver?— E pretende?— Não sei, mas poderia. Mal o conheço, mas não é esse o ponto principal.— Entendo. — Disfarçou a raiva. — Pode ficar sossegada, milady. Quando aparecer alguém que lhe convenha, tratarei de comunicar-lhe.

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— E é você quem julgará isso, indiferente a minha opinião? — Pelo amor de Deus, Mary! Dê-se por muito satisfeita por eu considerá-la com inteligência suficiente para não querer casar-se com um menino de vinte anos! Ela ergueu-se.— Nesse caso, você deve supor que sei decidir sozinha.— Não, pois não confio em seu julgamento. Milady é impulsiva, imprudente, e sua candura é um convite a um desastre. — Isso é problema meu, não seu! Delagarde aproximou-se e pegou-a pelos ombros. — Não creia que vou deixá-la arruinar sua vida!— Deixe-me em paz! Já lhe falei inúmeras vezes que isso nada tem a ver com você. Erasmo a sacudiu.— Depois de me fazer assumir uma responsabilidade que eu não desejava, mulher obstinada?! Se não gostou das conseqüências, culpe a si mesma.Mary desvencilhou-se e deu um passo atrás.— Não pense que pode dominar-me, milorde. Sabe muito bem que não quero interferências.— Isso era antes. E, para demonstrar que preciso interferir, é só consultar a fila de anomalias que você permitiu que a bajulassem.— Anomalias?!— Isso mesmo. E deixe-me adverti-la de que, se aquele palerma chamado Lugton resolver falar comigo, levará um tapa nas orelhas!— Ele não fará isso, porque não permitirei. Se eu resolver me casar com Lugton, nada do que o senhor fizer ou disser poderá impedir-me!Erasmo deu uma risada. cínica.— Não conhece meus poderes, Mary.Ela lembrou-se do que dissera Adela: "você colocou-se sob o poder dele". Arregalou os olhos e começou a gaguejar:— Se acha que pode levar-me a fazer o que quiser, milorde, está muito enganado! Não tenho... medo de você... e sei defender-me sozinha!— Sobre o que está falando?Que idiotice! Não deveria deixá-lo perceber suas suspeitas e muito menos dizer que acreditava que ele pudesse estar planejando induzi-la ao casamento.— Nada. Basta entender que me casarei com quem eu quiser, seja um caça-dotes ou não, e você nada tem a opinar sobre isso.— Se é esse seu ponto de vista, Mary Hope, não sei por que me procurou. Podia muito bem ter desposado o irmão de lady Shurland. Se quer saber, faça o que bem entender. Pouco me importa! — E deixou a sala.

Três dias depois, nos quais não vira o visconde, Mary, inquieta e tensa, saiu para o baile dos Rankmiston. Era o ponto alto da temporada, e por isso lady Hester não aceitara sua recusa em não participar.— Será muito embaraçoso, senhora. Oliver nem poderá erguer o olhar.— Tolice, minha filha. — Lady Hester riu. — Se todos os homens que foram rejeitados resolvessem não aparecer na sociedade, os salões ficariam vazios.— E tem outra coisa. Lady Rankmiston deve ter ficado ofendida. Tenho certeza de que ela não gostará de ver-me em sua mansão.— Pelo contrário. Selina deve achar que, por o filho ser da casa, terá maiores chances de monopolizá-la. Selina não é mulher de recuar ante a primeira negativa. Ainda mais que Oliver deve ter lhe contado que foi Erasmo quem tomou a iniciativa. Ela a receberá de braços abertos, escute o que digo!Mary logo descobriu que lady Hester, mais uma vez, estava com a razão. Após saudações efusivas, lady Rankmiston insistiu para que aceitasse a mão do envergonhado Oliver para abrir o baile.Ela envergava, pela primeira vez, o vestido creme com o grande decote. Quando chegou, acompanhada por Ida, à sala onde lady Hester e Delagarde a esperavam, sentiu-se agitada ao notar o olhar avaliador do visconde. Erasmo observou o penteado alto que Trixie amarrara com fios de pérolas e depois o busto.Mary sentiu de novo aquela onda de calor que se tornara sua conhecida. Não conseguiu decifrar se o havia agradado ou não. Nisso, Erasmo a encarou.O brilho inconfundível dos olhos dele a confundiu e tocou-lhe o coração. E Mary entendeu que seria preferível casar-se com outro e viver sem Delagarde do que conviver com ele e ser tratada com frieza.

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Mais tarde, Mary notou que ele não participara dos cumprimentos que se sucederam. Esforçou-se para aparentar normalidade. Refletiu que nem tio Reginald teria detectado o quanto aquela situação era falsa. Era no que se convertera, naquelas poucas semanas.A dança com Oliver terminou, e logo Mary viu-se rodeada de admiradores. Dentro de minutos, aceitava dançar outra vez. Mas, antes de que o fizesse, Eustace segurou-a pelo cotovelo.— Ai de mim! Pelo jeito, esta noite estou condenado à tristeza. Não tenho oportunidade de dançar com a senhorita. Querida Mary, vamos caminhar um pouco.Ela aceitou, suprimindo a forte aversão. Não podia fazer uma cena em função disso.Por outro lado, tinha de casar-se, e não podia esquecer que Eustace era o mais fiel de seus pretendentes. Para ser sincera, não gostava nem um pouco dele. Mas tinha certeza de que, assim que Eustace tivesse acesso a sua bolsa, a deixaria em paz.De braços dados, eles foram até os sofás do enorme salão de baile.— Eu me pergunto — ele falou, assim que ela sentou-se — a que devo o mérito de você não ter rejeitado minha companhia. Mary olhou para cima e detestou aquela expressão ferina. — Não sei ao que se refere.— Não mesmo? Milady deve supor que Delagarde, tendo estabelecido sua autoridade a todos, cortará minhas pretensões pela raiz. Ou será que já não aceita mais a imposição dele?— Conhece-me muito bem, Eustace, para saber que eu não aceitaria nenhum tipo de despotismo masculino.— Nem mesmo de seu marido em perspectiva?— Está falando de si mesmo ou de Delagarde?Eustace sorriu, satisfeito.— Mal posso acreditar em uma mudança tão rápida. Por que está agindo de maneira tão estranha a si mesma?— Estou apenas tentando ser cortês. — Aborreceu-se por corar.— Vamos lá, Mary, invente uma desculpa melhor. Acho que tenho uma. Por algum motivo inexplicável, você decidiu que, apesar de tudo, poderia aceitar-me. E por quê? — Riu, ao ver a indignação de Mary. — Ora, por que tenho de sofismar? Minha oferta permanece. Não sou maldoso. Não alimento sentimentos de vingança por sua cruel recepção.— Quanta generosidade!— E não é? Lembre, Mary, case-se comigo e poderá fazer o que quiser, com uma única condição: que eu possa levar o tipo de vida com o qual sempre sonhei. Muito embora não ache que quarenta e cinco mil libras serão suficientes.— Quanto me custará casar-me com você? Eu gostaria de saber, antes de decidir.— Espero não estar interrompendo.Mary estremeceu ao ouvir Delagarde, e viu o despeito estampado na fisionomia de Eustace, que não conteve uma exclamação de aborrecimento.— O senhor me perdoa se eu levar minha... protegida, lorde Shurland? — Erasmo abaixou-se, pegou Mary pelo antebraço e a fez levantar-se.Sem uma palavra, afastou-a de Eustace até as cortinas que escondiam uma das janelas francesas aberta. Conduziu-a até o pequeno balcão do lado de fora.A cortina fechou-se, e Mary viu-se mergulhada na semi-escuridão. Forçou-se a fitar Delagarde, que a soltara e encostava-se no parapeito.— Você perdeu de vez o juízo, Mary.— Só por que concedi um tempo a Eustace?— Não seja tola... Estava a encorajá-lo a pensar que havia reconsiderado a oferta dele.— E por que se incomoda com isso, milorde? Não disse que eu poderia escolher quem eu quisesse?Com um movimento rápido, o visconde puxou-a pelos ombros:— Sabe que eu não quis dizer isso!Mary não podia responder. O toque e a proximidade desencadeavam. sensações desconcertantes. O coração batia tanto que a sacudia.— Você está tremendo!— Não estou, não!Mary sentiu os dedos dele deslizarem do ombro até seu rosto. Erasmo ergueu-lhe o queixo, procurando ver-lhe as feições no escuro.— Mary... — Inclinou-se e roçou-lhe os lábios.

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Quando Erasmo se afastou, Mary segurou-se na grade, com medo de desmaiar. Não o encarou, mas ouviu-o murmurar uma imprecação.— Perdão, Mary. Eu não queria... não pretendia... Isso é culpa desse vestido! Deixa-a tão desejável! E esta penumbra... Oh, Deus, sinto muito! Esqueça, foi um erro.As últimas palavras deixaram-na a ponto de chorar.Agarrou-se com força na balaustrada. Não podia demonstrar que o beijo leve a afetara tanto. Fitou o céu estrelado e procurou suas amigas. Rígel. Betelgeuse. O ponteiro indicou a constelação de Touro, e a paz começou a voltar a seu interior.— Aldebarã. — Mary, em seguida, voltou os olhos para Cão Maior. — Sírius.— O que está dizendo?— Veja aquela faixa, milorde. Aquela mais brilhante é Aldebarã. Daquele lado vê-se Rígel. A menor o levará à Cão Maior, e lá encontramos Sírius. Vê como brilha?Erasmo havia se aproximado para seguir a indicação dela.— Linda! — sussurrou, junto ao ouvido delaSe Mary não se escondesse no conforto de seu mundo celestial, teria derretido com a força da presença de Delagarde.O calor que emanava dele, o braço que quase lhe tocava e, busto, a mão que descansava de leve em seu ombro...Erasmo prestava atenção às explicações de Mary com interesse crescente. Procyon e as gêmeas Castor e Pólux. Mas isso não o impedia de tremer de desejo.Aquilo era uma loucura! Por que ela não tentara escapar, fugir dele? Imaginou o que poderia ter feito naquela noite, no quarto dela.— O que estou fazendo?! — O visconde afastou-se, para não ceder à vontade de tomá-la nos braços.Mary riu.— E é a mim que pergunta?Ela recriminou-se por permanecer sozinha ao lado dele, mas não se mexeu.As cortinas se moveram e deram passagem. a lady Hester. Sem pensar, eles se afastaram rápido, cada um para um canto da sacada.— Meus queridos, será que pararam para pensar que estão alimentado os boatos?— Eu não... — Mary não sabia o que dizer.— É melhor entrar, Mary — Hester a advertiu. — Os músicos estão começando a tocar, e imagino que esteja comprometida para a próxima dança.— Sim... Para todas. — Sem olhar para Delagarde, Mary se foi.Erasmo ergueu a mão, na defensiva.— Não precisa falar nada, titia. Sei que fui o culpado.— Muito bem. Mas assim mesmo preciso dizer-lhe algo. Se não pretende mesmo casar-se com essa jovem, procure ser mais discreto no futuro. — Deu-lhe as costas e foi atrás de Mary."Deus, permita que Mary encontre logo um camarada decente para casar-se", Erasmo implorou em silêncio, depois da tia sair.Não saberia dizer o que o levara a agir daquela maneira. Mais alguns encontros e ele não responderia por si. Mas o que estava pensando? Aquilo fora um equívoco estúpido e nada significara. Fora resultado apenas da combinação da luz das estrelas e daquele vestido abominável.Mary, no salão, foi direto até Eustace, que estava ao lado de Adela, e perguntou-se se ambos haviam sido também testemunhas do idílio no balcão.— Desculpem-me; mas estou procurando Wiveliscombe. Prometi-lhe a próxima dança.— Na certa, ele estará a sua procura — Adela comentou, enquanto ela e o irmão empurravam Mary contra a parede.— É só por um minuto. — Eustace esboçou um sorriso maldoso.— O que você quer?— Não vou perguntar o que aconteceu atrás daquelas cortinas — foi Adela quem respondeu -, mas posso supor. Não importa. Lembre-se, Mary, de que nós conhecemos as circunstâncias verdadeiras.— E se fôssemos tentados a dizer a verdade ao mundo? — Eustace ergueu uma sobrancelha.— Que Delagarde não tem um controle real sobre o que você faz e, de fato, não pode impedi-la de casar-se com quem lhe aprouver?— Então todos saberão que o visconde está interessado apenas em sua fortuna. — Eustace deu um suspiro.— O que a sociedade pensará de um homem que mente só para aproveitar-se? — Adela meneou a cabeça.

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O fato de Erasmo ser culpado ou não pelo que o acusavam perdia a importância para o momento. Sem saber por que, Mary sentiu o clamor da injustiça.— Ninguém pensará em nada, quando souberem de meu compromisso com outra pessoa.— Outro? — Adela espantou-se. — Que não eu? — Eustace sorria.Mary livrou-se de responder assim que avistou Wiveliscombe. — Desculpem-me, por favor. Meu parceiro aproxima-se. — Livrou-se de ambos e foi na direção do rapaz, com a satisfação de vê-lo estampada no rosto.Enquanto dançavam, Mary esforçou-se para manter uma conversa animada, mas não conseguia esquecer os momentos com Erasmo.Por que defendera Delagarde? Sabia que a torrente de emoções a tornava vulnerável. E ele? Seriam seus atos mesmo não intencionais? A suspeita quase a fez errar o passo.— Calma! — Wiveliscombe murmurou e estendeu a mão.— Não se preocupe. Foi uma irregularidade no piso.Delagarde teria fingido para perturbá-la? Bem, quanto ao beijo, ele se desculpara e dissera que se tratava de um engano. Mas e depois? Por que a puxara para si? Decerto ele percebera como Mary reagira e pretendera fazê-la perder o controle. Se lady Hester não houvesse entrado, sem dúvida teriam se beijado de novo.Sentiu um arrepio só ao pensar nisso. Fez um esforço supremo para concentrar-se em Wiveliscombe. Foi quando reparou que a música já havia parado e ele fazia a mesura.— Obrigada, senhor. — Ela fingiu alegria. — Foi muito agradável.— O que há, lady Mary? Estava tão abstraída!— Um pouco só. Perdi alguma coisa importante? — Isso depende.— Do quê?— De qual ponto de vista estamos considerando. — Wiveliscombe deteve um garçom. — Vinho, milady?— Água, por favor.Ele apanhou um copo da bandeja. — Parece que é limonada.— Obrigada... O que o senhor dizia sobre o que eu perdi? — Ah, sim! Milady não respondeu a meu pedido. — Perdoe-me. E qual era?— Que me honrasse com uma resposta afirmativa.— Não vá me dizer que me fez uma oferta e eu não o escutei. Wiveliscombe gargalhou.— Não me ouviu, e eu lhe fiz uma... espécie de oferta. Mary recordou o que Delagarde falara. O homem era contra casamentos. Mas então do que se tratava?Antes de ela pensar em possibilidades, uma idéia ocorreu lhe. Ali estava a solução para suas dificuldades. Poderia confundir Delagarde e ao mesmo tempo salvá-lo das maquinações de Eustace e Adela. No intervalo, pediria desculpas e se afastaria. Esquecendo-se de que não gostava de fingimento, esboçou um sorriso brilhante.— Muito bem, sr. Wiveliscombe. Darei a resposta que me pediu. Aceito casar-me com o senhor.Se não pretendesse usá-lo, Mary teria recuado. Ele fitou-a, atônito.Bem feito, aprenderia a ser mais cauteloso no futuro!Mas Wiveliscombe recompôs-se num instante e levou a mão dela aos lábios.— Milady me fez o mais feliz dos homens. Mas não seria necessário... primeiro pedir a autorização de Delagarde? Claro que o jovem pensaria que isso seria um obstáculo. Ela não refletira sobre o detalhe. E na certa ele contava com a recusa do visconde. Por que não acreditara em Eustace e Adela? O plano de Delagarde era evitar que os rapazes se aproximassem dela. — Não tenha receio, senhor. Não haverá oposição. Eu mesma irei falar com o visconde. Agora.Mary virou-se, à procura de Erasmo. Avistou-o passando pela porta do salão de baile e correu atrás dele. Alcançou-o no corredor do lado de fora.— Delagarde, preciso falar-lhe.Erasmo fitou-a com frieza. Nada daquele afeto que ela presenciara no balcão. E para quê? Em público, ele nada esperaria dela.— Pois não. — Erasmo conduziu-a até um canto e dali até uma pequena antecâmara.

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Deixou a porta aberta e olhou para Mary, que demonstrava nas feições todo o conflito emocional que lhe ia pela alma. E ele decidiu que o ataque de paixão idiota não se repetiria.— Do que se trata, milady?Ela ergueu o queixo.— Vim dizer-lhe que você pode considerar-se desobrigado dos deveres para comigo.Era do que ele suspeitara.— Prossiga.— Estou noiva.Erasmo sentiu uma pontada no peito, segurou o fôlego e seus olhos chamejaram.— Que garota esperta! De quem, se me permite perguntar? — Wiveliscombe!— Vamos ver! — E Erasmo retornou ao salão.Mary o teria seguido se o músicos não houvessem começado a tocar. O filho de lady Pinmore aproximou-se, e ela foi obrigada a aceitar o convite.Mary não saberia dizer o que Delagarde faria, embora houvesse ficado claro que pretendia interferir. Não pôde conter um sentimento de alegria pela reação dele, embora isso pudesse provar que ela agira contra os planos dele de tomá-la por esposa.Aliás, essa idéia até a agradaria, se não fosse a lembrança de que o ciúme aparente era fingido. Inútil sonhar que Erasmo pudesse ser sincero. Se assim fosse, por que não se declarara?Como seria possível que Delagarde, no auge do sucesso, pudesse apaixonar-se por alguém tão sem graça quanto lady Mary Hope? Não, a única explicação possível fora dada por Adela e Eustace.A dança chegou ao fim, e ela viu-se face a face com Wiveliscombe, que fitou-a com ar conspirador e fez-lhe uma mesura.— Peço-lhe que me perdoe, Pinmore, mas tenho de tirar lady Mary do senhor.— Não faça isso!— É o que eu farei, meu rapaz. Não tema, será por pouco tempo.Mary afastou-se com Wiveliscombe.— O senhor encontrou Delagarde?Ele era a própria imagem do desalento.— Ai de mim! Encontrei. O visconde proibiu os proclamas. Estou frustrado. É minha sina...Era lógico que Wiveliscombe aceitaria a recusa, pois nunca pensara em desposá-la. Furiosa com a atitude de Delagarde, Mary resolveu dar o troco. Desculpou-se como pôde e saiu à procura de Sholto Lugton. Era o próximo nome da lista dos que dançariam com ela.— Sholto!— Lady Mary, a senhorita não se esqueceu de mim! — ele falou com alegria.— Imagine! Venha rápido, Sholto. Preciso falar-lhe, antes de o número começar. — Levou o rapaz até a mesma antecâmara para onde Delagarde a conduzira e foi direto ao assunto: — Sholto, não há nada que queira pedir-me?Ele fitou-a espantado.— Lady Mary, nem sei como dizer isso!— Seja franco, Sholto. Não gosto de rodeios.O jovem engoliu em seco e desviou-se. Mary começava a fica impaciente.— Lady Mary...— Sim, Sholto?— Lady Mary...— Estou escutando.Os músicos começaram a tocar.— Vamos logo, Sholto! Temos pouco tempo!Ele hesitou, deu um longo suspiro e, para espanto de Mary, ajoelhou-se diante dela.— Milady, imploro que consinta em se casar comigo.Apressada, Mary deu-lhe as mãos para que ele se levantasse. Mas Sholto agarrou-as, quase puxando Mary para baixo.— Por favor, case-se comigo! Se a senhorita não aceitar, acho que me matarei!— Que absurdo! Isto é, não é preciso chegar a tais extremos. Claro que me casarei. Por favor, levante-se!Em vez de obedecer ou demonstrar alegria, Sholto continuou imóvel, fitando a porta. Mary virou a cabeça e quase gritou, pela irritação que sentiu.

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Delagarde, parado na entrada, observava a cena com um riso sarcástico.

CAPÍTULO X

Mary endireitou-se e tentou disfarçar o embaraço. — Esta é uma entrevista particular, milorde. Delagarde mal lhe deu atenção, e dirigiu-se a Sholto: — Levante-se, meu rapaz, e pare de fazer-se de tolo, ou serei obrigado a enxotá-lo!O jovem ergueu-se, humilde.— Desculpe, senhor, mas devo dizer-lhe que lady Mary consentiu em... casar-se comigo.— Isso mesmo — Mary confirmou.Delagarde nem mesmo a olhou, fitando o rapaz de alto abaixo. — Talvez o senhor não saiba, Lugton, mas lady Mary não pode se casar sem meu consentimento. — Isso não é...— E devo ser categórico: me recuso a consentir. — Milorde não tem o direito... — Eu tenho, milady!Mary calou-se, ao ver a expressão aterrorizada do rapaz. — Sir, eu não sabia.— Nesse caso, perdoarei sua conduta, Lugton. — Como o rapaz não se moveu, Delagarde acrescentou: — O senhor não precisa esperar.— Mas e nossa dança? Quero dizer, lady Mary está...— Lady Mary ficará sentada durante a próxima música. Ela observou, furiosa, o garoto bater em retirada.— Quer dizer que se acha no direito de decidir também com quem devo dançar, milorde?— Não me importo com quem você resolve dançar, Mary, mas tenho de falar-lhe. Se crê que permitirei que encontre outro tolo para iludir com um noivado falso, engana-se.— Falso?— Isso mesmo, e feito para desafiar-me.— E o que eu teria a ganhar com isso?— O mesmo lhe pergunto em relação a esses compromissos idiotas. Qual a finalidade deles? E nem perca seu tempo dizendo que pretende se casar com aqueles pretendentes desqualificados, pois não acreditarei.— Não me importa em que você acredita! Já lhe disse que eu é que escolherei o marido!— Repito que está subestimando meu poder, milady.Mary fitou-o, impotente. Sentindo vontade de chorar, deu-lhe as costas.De que adiantava atacá-lo? Erasmo não confessaria seu intento, por achar que a afugentaria. Talvez ela devesse mesmo fazê-lo. E se ele fosse atrás e a trouxesse de volta?Erasmo a fez virar-se e depois afastou-se, mas Mary não ousou encará-lo.— Mary, por que está se comportando dessa maneira? Não há necessidade de enfiar-se num noivado desse tipo. Só estou tentando, impedi-la de cometer um erro do qual irá arrepender-se para sempre.— Pretende recusar todos os meus pretendentes?— Até que encontre o homem certo.— E você será o juiz.— Sim, já que milady é incapaz de fazer um julgamento sensível.— Sendo assim, nada mais há para ser dito.— O que está planejando, Mary? Devo adverti-la de que cumprirei o prometido. Não tente enganar-me. Você força-me a agir como um tirano.— Se eu é que o estou irritando, será melhor livrá-lo de minha presença.Erasmo reconheceu aquela rispidez que escondia os sentimentos, quando Mary era surpreendida em uma falta. E, sob esse desafio, ela devia estar muito ferida.O visconde sentiu remorso. Lembrou-se de sua conduta no balcão. Tentara o abraço para confortá-la, o que foi impossível. No futuro, deveria contentar-se apenas em falar.— Não quero ser privado de sua presença, Mary.Será que ela acreditaria na sua sinceridade?— Por que me olha dessa maneira?Mary estremeceu e desviou o olhar.— Como eu deveria fitá-lo, milorde? Do mesmo modo como você fez comigo na sacada?

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— Claro que não. Já lhe disse, foi um acidente.— Sei... Então meu compromisso com Wiveliscombe também foi.~

— Não sei o que a senhora quer dizer, lady Hester. Não é nada disso, lhe asseguro. — Mary não sabia disfarçar.Lady Hester, de frente para ela, trocou olhares descrentes com Ida, ambas sentadas no mesmo sofá. As três estavam na sala verde.— Diga-me, querida, por que Ida me disse que a ouviu chorar à noite?— Minha querida Mary, não fique zangada comigo. Tive de pedir ajuda a lady Hester, já que se recusa a confiar em mim. — Não há nada para dizer, Ida.— Sei que não é verdade — lady Hester protestou. — Vi muito bem quando afastou-se com Erasmo pela segunda vez. — E o que tem isso?— E tem mais — lady Hester prosseguia, inexorável. — Quando saiu da antecâmara, pela terceira vez foi Erasmo quem a seguiu.— Por que a senhora não pergunta a seu sobrinho o que aconteceu? A culpa é dele, afinal.— E por quê?— Por eu ainda não estar comprometida. E se o visconde continuar desse jeito, nunca me casarei.— Sou obrigada a duvidar disso.— Por quê? Milorde contou-lhe alguma coisa?— Mary, não seja tão desconfiada. O que se passa?— Nada.— Por que então chorou até quase o amanhecer, filha? — Ida hesitou, antes de revelar a descoberta: — Deus do céu! Acho que está apaixonada!Mary ergueu-se do sofá e correu para a janela, na tentativa de esconder os soluços que lhe subiam pela garganta. O silêncio atrás dela foi significativo. Que tola fora! Ela mesma se condenara.Naquele momento, negativas seria inúteis. Mas se admitisse a verdade, as duas não tentariam descobrir quem seria o homem a quem se afeiçoara?— Diga-nos quem é ele.Mary respirou fundo, uniu as defesas e virou-se. Hester e Ida haviam se levantado.— É um dos que lorde Delagarde descartou? — Ida suspirou. — Se for isso, tenho certeza de que lady Hester poderá persuadi-lo a mudar de idéia. Não é verdade?— Não sei se o faria. — Hester aproximou-se de Mary, que permanecia consternada. Tocou-lhe o rosto com as mãos, estudando-lhe a fisionomia. — Parece abatida, meu anjo. Se eu soubesse que haveria de trazer-lhe tanta infelicidade, nunca teria encorajado tudo isso.Mary não queria enganá-la, e piscou para afastar o pranto.— Ele... não gosta de mim.Lady Hester baixou a mão.— Não sei se posso concordar com isso.— Milady está pensando na determinação com que ele se recusa a ver-me casada com outro. Mas não é nada disso. — Uma esperança súbita a iluminou. — A menos... que lhe tenha dito alguma coisa.— Não disse, querida. Mas já toquei no assunto com meu sobrinho, e sua conduta confirma o que eu havia suspeitado.— E o que foi que suspeitou, milady?— Que Erasmo está mais atraído por você do que ele mesmo pode imaginar. — Hester sorriu.— Pode até ser. Entretanto, isso, milady, não é suficiente.Com grande força de vontade, Delagarde conseguiu manter-se afastado de Mary por dois dias, desde o baile, aproveitando a falta de compromissos. Esperava dar-lhe a sensação ilusória de liberdade, pois não tinha a mínima intenção de deixar de lado sua missão de guardião. Isso a impediria de assumir outros noivados e, se o fizesse, teria de rompê-los.Riseley informara que a intervenção dele na mansão dos Rankmiston reduzira o número de pretendentes à mão de Mary. Corringham afirmara, que a notícia da conduta de Delagarde se espalhara e conferira-lhe a pecha de ter seus próprios interesses em relação a Mary.Que o mundo pensasse o que quisesse. A segurança de Mary significava mais para ele que um arranhão temporário em sua reputação. Se sua integridade estava em jogo, a vida dela também estava.

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Suprimiu a vontade de apreciar a companhia dela. Mary desconfiava dele, e não pretendia ser provocado a ponto de ter de dar mais explicações.Naquele momento contudo, havia sido programado um evento musical. Erasmo convenceu-se de que teria de resistir a qualquer tentativa de Mary de levá-lo a outra discussão.Vestido com um traje apropriado, o visconde entrou na sala de estar, à espera do anúncio do jantar. Lá, encontrou apenas lady Hester e a srta. Wormley.— Onde está Mary, tia?— Foi de novo visitar sir Granville Wilberfoss. — Ela não virá conosco hoje?— Pelo jeito, não.— Suponho que Mary não corra perigo lá.— Imagino não pretende casar-se com um adorável velhinho, se foi isso o que quis dizer.— Será que notei uma ponta de censura, titia? Achei que ficaria contente de ver que estou dando o melhor de mim para impedi-Ia de arruinar o próprio futuro.— Ah, sim...— O que quer dizer com "ah, sim"? — Delagarde indagou, irritado.— Imploro que acredite, milorde — Ida balbuciou, nervosa -, que, na verdade, estou muito contente com sua atitude. Erasmo agradeceu e ignorou a malícia que vislumbrou na tia. Já quase terminavam de jantar, quando chegou um bilhete endereçado a lady Hester. Ela quebrou o lacre e leu. — Jesus! — exclamou, espantada. Delagarde e Ida franziram o cenho. — O que foi, titia?— Ela não foi à residência de sir Granville.— Mary? — Delagarde alarmou-se. — Onde está? — Fugiu para casar-se com Sholto Lugton! — O quê?!Delagarde levantou-se, e Ida deixou o copo de vinho cair. Sem importar-se com os queixumes da dama de companhia, o visconde deu a volta na mesa e arrancou o bilhete das mãos da tia.— Mas o que diabos... — Leu a missiva. — Mary ficou louca? Por Deus, eu a matarei!— Terá de achá-la primeiro, querido. Crê que poderá fazê-lo? A jovem saiu há pelo menos três horas.— Mas para onde? — Ida quis saber, com voz trêmula.Aproximou-se do lorde e tirou o papel de suas mãos.— Imagino que deve ter ido para o norte — ele deduziu. — Não para Gretna Green!— Não, Ida — lady Hester interveio. — Mary é maior de idade. — Mas Lugton não é.— Sim, Erasmo, mas basta ele pedir a permissão da mãe. Eles não precisarão tomar medidas tão drásticas.— Mesmo? — Delagarde desdenhou. — A senhora acha que aquele idiota tem noção de como conseguir uma licença especial? E Mary, então? Claro que eles estão indo em direção à Escócia! — Mas isso é terrível! — lady Hester gritou, mais alto que os lamentos de Ida. — Precisa detê-los, Erasmo!— É o que pretendo fazer.O mordomo permanecia em pé, segurando a salva de prata, onde trouxera a nota fatal. Delagarde sacudiu-o pelo ombro. — Lowick, diga a Sampton para aprontar meu faetonte... já! E mande Liss ao meu quarto de vestir!Delagarde saiu correndo e subiu os degraus de dois em dois. Gritando ordens para seu criado, levou menos de cinco minutos para tirar o traje de noite e vestir culotes, sobrecasaca e botas. Pôs o chapéu e desceu a escadaria, com Liss bufando atrás dele. Embaixo, foi detido por lady Hester e Ida, que chorava às costas da prima. Com um gesto impaciente, Erasmo apanhou as luvas das mãos de Liss e começou a vesti-las.— O que foi, tia?— Uma palavra antes de partir. Em particular.— Seja rápida.Foram até o pequeno escritório, entraram e fecharam a porta.— Sim, titia?— Meu filho, tem idéia de por que Mary resolveu fugir dessa maneira?Ele riu, irônico.

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— E eu é que sei? Ela está determinada a arruinar a própria vida!— Ou a escapar de seu controle, Erasmo. — Talvez por temer o que eu poderia fazer. — E o que seria?— Mary suspeitava que eu tinha um propósito não ligado a seu possível casamento.— E isso é verdade?— Só quero vê-la feliz, tia. Para isso farei tudo o que permitir meu dever para com Mary.— Dever? É só isso?Erasmo deu de ombros. Tinha pressa.— E o que mais poderia ser? No momento, estou só preocupado em salvá-la da própria idiotice. — Ele abriu a porta. — Preciso ir!Lady Hester seguiu-o.— Trate-a com gentileza, Erasmo!— Mary poderá dar-se por satisfeita se não for esganada!Depois de percorrer alguns quilômetros de estrada, a raiva cedeu lugar à ansiedade, e o visconde assumiu a culpa pelo que ocorrera. Ele a provocara e fizera pouco de sua inteligência e... a beijara.De repente, compreendeu por que a evitava. Era para não ceder ao desejo de beijá-la de novo. E sua intolerância aos pretensos noivados dela nada tinham a ver com a inadequação dos escolhidos, embora fossem mesmo ridículos. A verdade era que imaginar Mary casada com outro provocava nele um ciúme violento.Queria-a para si. O calor que sentiu fez com que estalasse o chicote. Os cavalos deram um arranco, e o cavalariço fitou-o, preocupado. Delagarde tratou de controlar os animais.— Quer que eu pegue as rédeas, milorde?— Não se preocupe, Sampton, sei lidar com a parelha.O mesmo não poderia dizer quanto a seus pensamentos. O que deveria fazer? Não podia imaginar desejo mais despropositado.Deveria casar-se com Mary por isso? E ela? O aceitaria?Mary não queria um marido no verdadeiro sentido da palavra. Pretendia ter ao lado um homem que a deixasse em paz com suas estrelas. E era muito difícil aceitar ser trocado por um cometa!Porém, Mary correspondera ao beijo, ele lembrou-se, e teve de lutar contra a quentura que ameaçava a sua estabilidade.Se houvesse feito uma tentativa, decerto a teria ganho. E para quê? O casamento era o único caminho viável. E se casar com Mary não lhe parecia uma solução atraente. Fora a forte atração que sentia, nada mais estava de acordo na vida de ambos.Por que estava à procura de Mary? Para impedi-la de casar-se com Lugton? Afinal, era o que ela queria. O rapaz, que só pensava no dinheiro, não a atrapalharia. Mary continuaria a observar os astros.Pouco importava se Mary se aborrecesse com a juventude e inexperiência de Sholto. Ela jamais saberia o que era a entrega total a um homem que se deliciaria em dar-lhe prazer.Erasmo endireitou-se ao perceber aonde havia chegado. Ofegante pelas imagens que se formavam em seu cérebro e ferviam-lhe o sangue, entendeu que não poderia suportar aquilo. Mary não se casaria com Sholto Lugton!Delagarde parou a carruagem a alguns quilômetros ao norte de Welwyn. Teve notícias de um casal de irmãos, pois os cabelos ruivos dos dois fariam qualquer um pressupor isso, que havia trocado os cavalos de uma caleche. Eles haviam falado em viajar mais um pouco, antes de parar para dormir. Não podia haver engano.Passava das onze horas, quando o faetonte de Delagarde entrou na aldeia de Knebworth e deteve-se em frente a uma estalagem simples. Sampton entrou, para as perguntas habituais.— Eles estão aqui, milorde — Sampton disse, ao voltar. — Lady Mary descansa, e o rapaz está no café.Delagarde pulou do veículo, e o cavalariço segurou os arreios.— Dê-lhes água e faça-os descansar, Sampton.— Milorde ficará aqui esta noite?— Acho que não. Podemos fazer uma troca em Welwyn.Erasmo entrou na hospedaria, e o estalajadeiro, que já fora advertido por Sampton, levou-o até o café.Era um recinto pequeno, com uma lareira e uma mesa no centro rodeada por cadeiras. Em uma delas, aparecia a cabeleira vermelha de Sholto.O rapaz ergueu os olhos do copo. Ao ver Delagarde, deu um pulo do assento e engasgou. O visconde foi obrigado a bater-lhe nas costas várias vezes, até o moço se recuperar. Tornou a sentá-lo na cadeira e ofereceu-lhe água.

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Sholto bebericou, pronto a se desfazer em lágrimas. Divertido, Delagarde esqueceu o ressentimento.— Não pense que vou desafiá-lo, garoto. Sei muito bem que a idéia da fuga não nasceu em sua cabeça. Onde é o quarto de lady Mary?— Eu... não sei, sir. Milady subiu com a hospedeira há poucos momentos.— Muito bem. — Delagarde foi até a porta e voltou-se. — Fique aí, Lugton. Ainda não conversamos!O rapaz fitou-o com receio, e Delagarde saiu. Um pouco de pavor não lhe faria mal, mesmo sendo certo que Sholto apenas cedera à vontade de Mary. Seria uma lição para que aprendesse a não andar atrás de herdeiras excêntricas.Logo encontrou a dona da hospedaria e mandou por ela uma mensagem a Mary. Não demorou, e ela desceu a escada correndo. Parou ao vê-lo no hall e fitou-o em silêncio, pálida e cansada. Infeliz? Erasmo sentiu o coração apertar-se.— O que você fez com Sholto?— Nada, milady, a menos que possa acusar-me de ter lhe causado um forte engasgo.Mary virou-se e foi em direção ao café. Delagarde seguiu-a e viu o jovem levantar-se. Ela foi até ele e tomou-lhe as mãos entre as suas.— Você está bem, Sholto? O visconde o ameaçou? O rapaz corou.— Não... eu... isto é... milorde foi... tem sido muito compreensivo. Mary acariciou o rosto de Sholto.— Sinto muito, Sholto. Não devia tê-lo metido nisso. Pode perdoar-me?— Não. Isto é, sim... Eu estava tão feliz! — Lugton fitou Delagarde, entre apreensivo e desafiador. — Lady Mary, eu iria com você para qualquer lugar. Mas não acho que deveria... Sabe como é. Não é certo.— Sei disso.Delagarde estremeceu. Aquela garota melancólica não era a Mary que ele conhecia. A vida parecia tê-la abandonado. Não tinha a aparência de uma mulher frustrada em sua fuga com o amante. Estava... inerte.A maioria das jovens naquela situação ficaria histérica. Mary, entretanto, comportava-se com uma calma surpreendente. Educada, pediu-lhe para aguardar, até resolver algumas pendências.— Sholto, eu paguei pelo aluguel do coche. Você poderá utilizá-lo para voltar a Londres. Acho que deveria sair agora mesmo. Será preferível acordar em sua cama. Assim, os acontecimentos de hoje parecerão um pesadelo, e poderá esquecê-los com facilidade.Ela pediu que Delagarde mandasse o estalajadeiro aprontar o coche alugado e ajudou Sholto a pôr o casaco, o chapéu e as luvas, e foi com ele até o lado de fora.Na porta da hospedaria, Delagarde divertiu-se ao vê-la acenar para Lugton e ficar no pátio, até o veículo sumir na estrada. Depois, Mary voltou para o lado do visconde.— Está cansado, milorde? Não gostaria de restaurar as forças antes de partirmos?— E você?— Quero tomar um copo de vinho.Delagarde fez uma mesura, e ela entrou. O visconde pediu vinho e biscoitos para Mary, e cerveja e um sanduíche para si mesmo. Estava cansado, mas não pernoitaria ali, sozinho com ela. Teria sido melhor se Mary ficasse com Lugton do que com ele.— Vou arrumar minhas coisas. — E Mary subiu a escada.Em instantes, voltou, trazendo uma pequena valise e uma capa de viagem. O lanche já estava na mesa.Delagarde deixou a caneca de estanho, ergueu-se e tomou a maleta da mão de Mary. Observou-a sob a luz dos dois candelabros que o dono do estabelecimento pusera sobre o consolo da lareira.Mary estava muito pálida, e Erasmo percebeu os olhos vermelhos. Ela estivera chorando. O visconde apiedou-se e conduziu-a até uma cadeira.Por um momento, eles permaneceram sentados, em silêncio. Abstraída do mundo, Mary tomou um gole e esfarelou um biscoito entre os dedos. Nem parecia notar a presença dele, que não pôde mais tolerar aquela indiferença.— Pelo amor de Deus, Mary! Repreenda-me, insulte-me se quiser, grite! Mas diga alguma coisa!— O que eu deveria dizer? Agradecer-lhe por resgatar-me de minha insensatez? Na certa é o que você pensa ter feito.— E quer dizer que isso não é verdade? Por acaso está apaixonada por Lugton?Um riso imperceptível aflorou-lhe aos lábios.— Ah, Delagarde, francamente!— Fico feliz por ver que seu coração não está partido — caçoou, com vontade de rir.

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Mary reprimiu um soluço. Voltou-se para o copo e bebeu o vinho em grandes goles, com dedicada concentração.Desanimado, Delagarde fitava-a, imaginando se deveria expressar o que lhe ia no íntimo.Não, não podia. Ela estava mesmo apaixonada! Mas por quem? Se não era Lugton, então... Sentiu um frio na espinha e desejou estrangular o homem que despertara a paixão de Mary.— Não está na hora? — A voz de Mary despertou-o.Na azáfama da partida, Erasmo não teve tempo de se ocupar mais do assunto.Contudo, assim que o faetonte ganhou a estrada iluminada pela luz do luar e Mary mostrou-se bem agasalhada contra o frio noturno, os pensamentos odiosos retornaram.Mary não seria a primeira moça a sucumbir sob o charme de Wiveliscombe. As conquistas dele eram notórias, e o visconde recordou a expressão de Mary, quando falaram pela primeira vez sobre ele. Talvez até não houvesse sido um desafio ela envolver-se em tal compromisso com Lugton.Parecera-lhe óbvio que Wiveliscombe seria o único a regozijar-se por ter sido salvo do noivado, pois fora Mary quem o arquitetara. O que Erasmo não imaginara era que ela engendrara a fuga por estar apaixonada por Wiveliscombe.Mary era muito inteligente e devia ter reconhecido a relutância do janota, o que justificava a depressão atual. Teria ensejado fugir com Lugton por achar seu caso insolúvel?Delagarde fitou Mary e viu que ela adormecera. A cabeça estava caída para a frente e balançava sem conforto.Erasmo segurou as rédeas com uma só mão, encostou-a em seu ombro e puxou o capuz, para protegê-la do vento.Quando pararam para a última troca de animais, eram quase quatro horas da manhã. Sampton teve de descer, passar pelo pátio e acordar o empregado no estábulo.Dali a instantes, o visconde notou que Mary acordara e estava chorando.— Mary, Mary... Por favor, não chore!Sem ponderar sobre o que estava fazendo, Erasmo colou os lábios nos dela e sentiu o gosto das lágrimas salgadas. Mary correspondeu ao beijo, e Delagarde aprofundou-o, abrindo-lhe a boca aveludada com a língua. Ambos gemeram.Nisso, o som de passos e o ruído de cascos fez Mary mexer-se, inquieta. Relutante, o visconde soltou-a e viu o cavalariço voltando com dois homens e uma parelha. Entregou as rédeas nas mãos de Sampton para a troca.Ao voltar-se, Mary já havia se afastado dele e virado o rosto.Bom Deus, o que fizera? Tirar vantagem da tristeza de uma dama era um ato de patifaria. Erasmo quis pedir desculpas, mas que explicação daria? Que não pudera resistir?Quando retomaram viagem, Delagarde iniciou uma conversa sobre estrelas que só terminou quando chegaram à Charles Street.

Mary derramou-se em pranto ao encontrar lady Hester e Ida, que disseram mal haverem cochilado desde que souberam de sua partida. Antes de ser levada para seu quarto, ela soluçou desculpas sentidas.No dia seguinte, acordou tarde. Trixie contou, ao ajudá-la a vestir-se, que lady Hester e a srta. Wormley tinham dado ordens para ela não ser perturbada e que as duas haviam saído para um passeio no parque.— Milorde também me deu instruções, milady.— Ah, sim? E quais são?— Ele a espera assim que a senhorita houver tomado o desjejum.Aquilo tirou o apetite de Mary. Sentiu enjôo ao pensar no que o nobre teria para dizer-lhe.Inútil seria negar a si mesma que ela não houvesse esperado, e mesmo desejado, que Erasmo fosse em seu encalço. Porém imaginara uma reação mais indignada, de alguém que se visse ferido em seus sentimentos.Qual nada! Erasmo tivera uma atitude quase de indiferença, como se estivesse apenas cumprindo seu dever. Que diferença do comportamento de lady Hester e Ida, que se preocupavam com ela! E aquele beijo odioso? Seria para ela entender que a fuga não havia posto em risco os planos dele?Então, depois de havê-la reduzido a uma entidade gelatinosa e trêmula, o visconde se pusera a falar sobre astronomia! Pela primeira vez, discutir estrelas fora o que menos lhe interessara. Se não estivesse tão apaixonada por Delagarde, poderia tê-lo odiado por isso.Imagine, pedir-lhe para apontar as constelações daquela noite! Depois, a conversa prolongara-se e Mary demonstrara conhecimento, apesar de toda sua perturbação. Quando ela comentara que os astrônomos do leste juravam predizer o futuro, Erasmo lhe perguntara se poderia fazer o mesmo, sugerindo que predissesse o dele. Para sua sorte, nesse ponto alcançaram a Charles Street.

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Mary deixou as lembranças de lado e dirigiu-se ao salão onde o lorde a aguardava. Respirou fundo para criar coragem de entrar. Girou a maçaneta e o avistou, de costas, olhando pela vidraça. Recordou, melancólica, a ocasião em que o vira, ainda tonto de sono.Delagarde virou-se como se lhe houvesse sentido a presença. Estava pálido. Parecia mais velho e sua voz soou formal:— Descansou, Mary?— Sim, obrigada.— Eu é que agradeço por atender a meu chamado. — Erasmo deu alguns passos e apontou uma cadeira. — Sente-se.Mary o obedeceu e acomodou-se na poltrona ao lado da lareira, e Delagarde, no sofá em frente.Por alguns momentos, o silêncio imperou. Delagarde cruzou as pernas e contemplou sua bota. Mary observou com interesse o dourado do consolo.— Isso é um absurdo! — ele falou, de repente, levantou-se e deu uma volta na sala.Erasmo sentiu que Mary estudava-lhe os movimentos e tornou a sentar-se.— Mary, pensei muito sobre tudo. Tenho mesmo sido tão restritivo? Nem sei por que pergunto. Claro que fui!— Sei que apenas zelou por meus interesses, milorde. — Gostaria que isso fosse verdade. — E não é?— Não... sim! Pelo menos, eu... Bem, o que queria lhe dizer é que retiro minha objeções. Você tem o direito de julgar e resolver o que é melhor para si. E de casar-se com quem preferir.

CAPÍTULO XI

Mary fitou-o, espantada. Por que Erasmo lhe dizia isso? Fugira com Sholto Lugton por não suportar a idéia de um matrimônio de conveniência com o único homem com quem queria casar-se de verdade. E ainda por cima, o visconde demonstrava não querer nada com ela! — Se pensa assim, milorde, por que impediu que eu me casasse com Sholto?— Foi sua fuga que me fez entender como eu estava errado. Nem posso dizer que estou arrependido por minha interferência, pois você não o ama. Só espero que seu interesse esteja voltado... ou melhor, se volte para alguém que valha a pena. Mary entrelaçou os dedos com força no colo.— Não tenho interesse por ninguém — mentiu, num sussurro. — Não acredito no que diz.Ela ergueu o queixo.— E por que eu mentiria? Por que fugiria com um homem se gostasse de outro?— Talvez porque o outro não queira casar-se com você. — Ele pensava em Wiveliscombe.Mary levantou-se, e Erasmo também.— Fico feliz por deixar-me livre para fazer a escolha, milorde. Lamento por ter lhe dado tanto trabalho.— Há mais uma coisa — Erasmo disse, quando Mary alcançou a porta.— O que é?— Ontem à noite... perdi a cabeça. Não deveria... — Outro acidente?— Droga! — Erasmo foi até a janela e falou, de costas. — Aceite minhas desculpas.Mary se foi, incapaz de ouvir mais uma sílaba sequer.Uma hora depois, quando Mary saiu de seus aposentos, as senhoras já haviam voltado e, pelo jeito, Delagarde deixara a mansão. Mary contou-lhes a resolução do visconde.— Será que entendi bem?— É isso mesmo, lady Hester. Delagarde disse que posso desposar quem eu quiser.Ida, sentada ao lado de Hester, olhou para Hester e depois para Mary.— Bem, acho que foi uma bela atitude. O que acha, lady Hester? — Ida, isso depende dos motivos dele. Ele deu algum, Mary? — Falou que a minha fuga o fez ver como estava errado, e desejava que meu interesse se voltasse para alguém que tivesse valor.— Sei. — Hester sorriu. — E acredito que não lhe deu a entender que sua afeição está comprometida.— Milorde supôs isso... acho. Eu neguei. Ele afirmou que não acredita em mim. — Franziu o cenho ao ver que Hester se divertia. — Isso é engraçado?

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— Delicioso! — Lady Hester levantou-se e abraçou a jovem amiga pelos ombros. — Vamos lá, minha filha, não me olhe com raiva. Guarde-a para Erasmo. Pode crer, tenho vontade de esmurrar-lhe as orelhas.— Não entendo por que faria isso, milady.— Eu sei. Mas não se incomode. Quando chegar à minha idade, também terá o privilégio de rir da cegueira dos outros. — Beijou a face de Mary. — Quer um conselho?— Ah, sim! — Mary suspirou, e lady Hester estreitou-a em um abraço.— Minha querida, deixe de lado esses ares fenecidos e mergulhe no hobby que tanto ama. Deixe o futuro por conta dele mesmo e, antes do que imagina, o homem certo a encontrará.Mary resolveu aceitar a sugestão de lady Hester. Afinal, seria uma péssima companhia, naquele estado de ânimo. Por outro lado, chorar por um homem que não lhe retribuía a afeição seria um perda inútil de tempo e energia. Tio Reginald com certeza desaprovaria tal atitude.Além do mais, o compromisso daquela noite seria em Hanover Square, na casa dos Shurland. Um dos motivos por que Mary resolvera fugir na véspera fora para evitar esse evento. Mas então só lhe restava esperar que Eustace e Adela estivessem muito ocupados e não lhe causassem problemas.Assim foi, embora Eustace a observasse com freqüência. Os pretendentes foram tão assíduos como sempre. Até Sholto veio procurá-la, com um sorriso tímido.— Lorde Delagarde disse-me que eu deveria tratá-la com a mesma consideração de sempre, para ninguém suspeitar de nada.Mary agradeceu e relanceou um olhar pela sala, à procura do visconde. Não o viu, e ficou desapontada. Não tinha vontade de estar sozinha com nenhum daqueles rapazes. Como podia ter imaginado casar-se, até mesmo com o divertido Wiveliscombe?Havia novos rostos, é verdade, mas Wiveliscombe não comparecera. Fato que agradou muito a Delagarde.— É preferível um coração ferido do que uma vida inteira de desrespeito e traições.— O que disse, meu camarada? — Corringham perguntou.— Falando sozinho de novo? — Riseley deu uma risadinha. — Meu amigo, ou proíbe os proclamas ou deixe-a em paz.— Eu dei minha palavra, Peter.— Sei disso, Erasmo, e só me resta lamentar o fato. Veja a gentalha ao redor de lady Mary!— Eu já vi. — Delagarde fez um esgar.— E o que foi que o levou a voltar atrás?— Perdeu o juízo, Corringham! — Riseley respondeu por Erasmo. — Bem, acho que isso aconteceu há algumas semanas.— O que quer dizer, Peter?Riseley deu um tapinha nas costas de Delagarde.— Não se preocupe, visconde. Sabe de uma coisa? Mary ficará com o garoto Rankmiston.— Oliver? — Delagarde desdenhou. — Ela não iria querer aquela megera como sogra.— É verdade — Corringham concordou. — Aposto que será Hampford.— Ficou maluco?! Mary não o suporta. Darby está fora do páreo desde o começo.— Tenho certeza de que milady também não escolherá Bulkeley — Corringham acrescentou. — Quem mais?Erasmo percebeu a troca de olhares entre os dois amigos.— O que há com vocês? Há muitos candidatos. Mary pode escolher quem quiser.— E que tal Wiveliscombe?— O que tem ele, Peter? — Delagarde encarou-o, aborrecido. — Os indivíduos às vezes tomam juízo por causa de alguém que esteja à mão.— Peter tem razão, Erasmo. Esses tipos parecem atrair o belo sexo.— Digo-lhe, Erasmo, que se eu fosse um dos pretendentes de lady Mary, a arrebataria sem demora, antes de Wiveliscombe resolver agarrá-la.Tinha sido difícil manter-se à parte, enquanto Mary se entretinha nas adulações de um grande número de rapazes. Depois daquela conversa deprimente, contudo, tornou-se impossível.Erasmo desculpou-se e foi até um ponto de observação melhor, de onde pudesse ver quem se aproximava dela. "Se aquele patife chegar perto de Mary, não me restará outro recurso a não ser faltar com a palavra!"Wiveliscombe manteve distância, mas Eustace Silsoe requisitou-a por algum tempo, e Delagarde se conteve para não ir salvá-la.E Mary nunca lamentou tanto o fato de Delagarde haver abandonado sua proteção.— Minha querida Mary, então a senhorita persuadiu seu zeloso paladino a relaxar a guarda oficial?

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— Não houve persuasão. — Ela ergueu o queixo. – Milorde apenas reconheceu que sou capaz de julgar por mim mesma. O sorriso ferino reapareceu.— Mas que lucidez a dele!— Por que diz isso, Eustace?— Sua ingenuidade não pára de surpreender-me. Creio que é uma das desvantagens de ser tão franca. Você é facilmente tapeada. — Como assim, Eustace?— A senhorita foi acalentada em um falso senso de segurança, lady Mary. Um bom plano de Delagarde, mas óbvio demais. Temo que o reconhecimento dele tenha mais a ver com seu espírito de rebelião do que com sua capacidade de julgar.— É mesmo? — Mary achou que aquilo tinha um fundo de verdade, ao lembrar-se das inúmeras discussões que tivera com o visconde.— Delagarde entende que, quanto mais ele intervém, mais você se mostra pronta para atirar-se em um casamento, mesmo que inconveniente. Ele recua, e a senhorita desiste.Eustace sorriu, sem calor.— O visconde merece congratulações por suas táticas. A conduta dele esta noite foi prudente. Você está confiante, e ele poderá deitar as garras a seu bel-prazer.Eram quase três horas da manhã, e Mary desistira de dormir. Recordou o conselho de lady Hester, saiu da cama, vestiu o penhoar e foi até a janela. Precisava distrair-se e aliviar os murmúrios incoerentes de seu coração. E tudo por culpa daquele detestável Eustace!Sentou-se diante do telescópio e girou-o devagar até localizar o ponto desejado. Se seus cálculos estivessem corretos, o cometa deveria passar por ali, com pequena margem de erro.O trajeto bem traçado estava no mapa celeste em cima da estante a seu lado, e Mary observava-o a todo instante para conferir os dados.A natureza meticulosa da tarefa de anotar as descobertas serviu para suavizar a inquietação, embora não para esquecer.Mary tornou a olhar pela objetiva. Ali estava ele! No lugar onde ela corrigira os cálculos, depois da visita a sir Granville. Esboçou o círculo visível e começou a fazer o diagrama nos moldes das estrelas que indicariam a localização do cometa.Observava, desenhava e tornava a desenhar. Aprendera com tio Reginald a necessidade de precisão.Mary nem sequer ouviu o trinco da porta que se abria. Delagarde permaneceu por alguns minutos à soleira, fitando-a em silêncio. Não conseguira dormir e resolvera andar pelos corredores. Os sons furtivos que vinham de dentro do quarto de Mary indicavam que ela estava acordada. Não batera na porta, para não perturbá-la. Vê-la o enterneceu.Delagarde fechou a porta, incapaz de pensar em mais nada a não ser na mulher diante de si. Adiantou-se sem fazer ruído.Mary sentiu a presença dele, segundos antes de ele alcançá-la. Virou-se, pronta para gritar. Delagarde abraçou-a e pressionou um dedo sobre seus lábios. O grito morreu na garganta.— Sou eu — ele sussurrou-lhe, sentou-se na cadeira ao lado e beijou-lhe os cabelos e o rosto.Mary agarrou-se nos braços de Delagarde, e o calor envolveu-a a partir dos pontos onde era abraçada e onde os corpos se tocavam. Nas costas, nas coxas, nos braços e no busto, que ele acariciava de leve.— Mary... Oh, Deus, minha Mary! — E beijou-a. Puxando-a para mais perto, abriu o penhoar e acariciou a suavidade interior das coxas de Mary sobre a seda da camisola.Em desespero, ela soltou-se para respirar e tornou a beijá-lo nos olhos, no nariz, no queixo.— Erasmo...Eles se beijaram mais uma vez, com ardor. Mary acariciou-lhe o rosto e os cabelos. A intensidade feroz da paixão queimava em suas entranhas.Delagarde afastou a boca, e Mary recostou-se nele, fraca e trêmula. Mas a febre da posse não os abandonou. Ele beijou-lhe o pescoço e o ombro e tentou afastar as dobras da seda.— Posso fazê-la minha, Mary? Posso?Um reflexo de sanidade atingiu-a, e ela afastou a mão dele. — Pare! Afaste-se de mim!Atordoado, o visconde mudou de posição na cadeira para soltá-la. Mary se ergueu, saiu de perto de Erasmo e apoiou-se no parapeito.

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O horror começou a tomar conta de Delagarde, quando entendeu o que estava por fazer. Devagar, levantou-se, sem se desviar da palidez do rosto de Mary e seu olhar assombrado. Não teve o que dizer.— Vá embora, milorde. Por favor.Ele a obedeceu, embora não o quisesse.Mary fechou o telescópio e as janelas. Foi para o leito, mas não conseguia conciliar o sono.Não chorou. O desespero era grande demais para que conseguisse.A pior coisa do mundo era perder a fé em alguém. Delagarde provara que as deduções de Eustace eram verdadeiras, embora, no íntimo, Mary se houvesse recusado a acreditar nelas. Entregara o coração a um embusteiro!Mary acordou com o sol da aurora penetrando pelas frestas do cortinado. Com a cabeça pesada, tornou a ajeitar-se nos travesseiros.Frustrada demais, afastou as cortinas e levantou-se. Tocou a campainha para chamar a criada e ficou parada, olhando a cadeira vazia ao lado do telescópio fechado e tentando acreditar que tudo não passara de um sonho. Desejou nunca ter concebido plano algum só para frustrar o de Adela.Fora mesmo uma loucura. Se ao menos Delagarde não tivesse cedido às objeções de lady Hester...Trixie entrou o quarto.— Tão cedo, milady? O que foi, srta. Mary? Em que estava pensando?— O sol acabou de nascer.Trixie gargalhou e afastou as cortinas das janelas.— Já passa do meio-dia, milady! — O quê?! — Mary correu até as vidraças e viu que Trixie tinha razão. — Por que não me acordou?— Eu o teria feito, milady, se milorde não houvesse sido tão categórico.— É?— E o visconde disse o mesmo para lady Hester e para a srta. Wormley: "Deixe-a descansar. Mary não dormiu direito a noite passada".— Como?!— Isso mesmo, milady. Milorde falou que a senhorita não dormira na carruagem, quando ele foi buscá-la, e que duas noites sem dormir seriam muito prejudiciais, e sei mais lá o quê. Nisso, lady Hester perguntou corno é que ele sabia que a senhorita não conseguira dormir também ontem, e milorde ficou muito vermelho."Céus! O que lady Hester estaria pensando? E Ida devia estar escandalizada!" Mas era isso o que Delagarde queria: prender Mary em sua teia com tanta firmeza, que ela não teria alternativa a não ser casar-se com ele. Erasmo pretendera seduzi-la por consentimento. Estava tão certo do sucesso que nem se preocupara em esconder os fatos da família.Mary estremeceu. Não poderia encarar as questões inevitáveis. Como contar a lady Hester sobre as atitudes inescrupulosas de seu sobrinho-neto? Teria o direito de desiludi-la? Não, depois de tantas demonstrações de afeto.Também não podia confiar mais em Ida, que se tornara íntima de Hester e decerto deixaria escapar a verdade. Enquanto não estivesse mais equilibrada, teria de evitá-las.A Providência interveio na forma de uma missiva, no meio da correspondência deixada por Trixie.A letra era desconhecida. Intrigada, Mary quebrou o lacre e desdobrou a carta. Era um convite de um dos assistentes do Royal Observatory, em nome do astrônomo real em pessoa, que ouvira falar dela por intermédio de sir Granville. Ele conhecera Reginald Hope e esperava conhecê-la.Em outros tempos, Mary teria ficado maravilhada. Naquele momento, entretanto, era apenas uma tábua de salvação.Se estivesse de acordo, mandariam um coche às duas horas. Se não, teria de mandar uma nota com o cocheiro, e a visita seria reprogramada para outra ocasião.Quando Trixie voltou, Mary ficou sabendo que faltavam vinte minutos para a hora aprazada. Lady Hester e Ida estavam no salão verde, e Delagarde saíra. Mais aliviada, mandou Trixie avisar Lowick para que a mandassem chamá-la assim que a carruagem chegasse.Redigiu algumas palavras endereçadas a lady Hester e recomendou que Trixie a entregasse depois de ela haver saído. Quando o lacaio bateu a sua porta, Mary já estava pronta. Desceu em silêncio os três lances de escada, acompanhada do empregado. Deixou a mansão e entrou no veículo sem que os outros servos pudessem suspeitassem que já estava acordada.Delagarde segurava as duas cartas nas mãos, com uma sensação de impotência. Havia alguma coisa errada, mas não soube precisar o quê.

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A mensagem para Hester fora escrita em meio a certa agitação, o que era compreensível. Ele mesmo estivera ansioso o dia inteiro. A impossibilidade de repetir a experiência o levara a deixar a Charles Street até quase o horário do jantar. Por que não viera mais cedo? Teria impedido a fuga.— Meu Deus!— O que foi, Erasmo?— O astrônomo real não está em Londres, tia! Parece que foi para a Itália! Eu li no Morning Post, outro dia. Lembro-me de o parágrafo haver chamado minha atenção, por causa de Mary. Lady Hester ergueu-se do sofá listrado, consternada. — Isso quer dizer que...— ...a carta foi forjada, titia!— Mas quem a teria escrito? Céus! Eustace Silsoe! — E nisso mesmo que estou pensando, tia Hester.— Erasmo, não está imaginando que Mary escreveu o bilhete, como outra tentativa de escapar, não é?O visconde examinou os dois pedaços de papel.— Não é a mesma caligrafia. Mesmo se fosse disfarçada, haveria algumas semelhanças.A porta do salão abriu-se, e Ida Wormley entrou. Trazia uma outra mensagem, fechada.— Acabou de chegar para o senhor, lorde Delagarde, e... — Dê-me logo! — Ele arrancou o papel das mãos dela, quebrou o lacre e desdobrou a folha no ar.— "Delagarde, fui para a Escócia com o homem que amo de verdade. Será inútil vir atrás de mim. Mary."Sem perceber, Delagarde deixou cair as três cartas. Trôpego, foi até a janela e apoiou-se em umas das cadeiras em estilo chippendale.A tontura cedeu, mas foi substituída por uma sensação violenta de perda. Era como se seu coração fosse arrebentar. Mary fora embora com Wiveliscombe. E pelo que acontecera na véspera! — Mas esta não é a letra de Mary! — Ida gritou.Erasmo virou-se e viu o horror estampado na fisionomia de Hester. A srta. Wormley analisava com todo o cuidado a mensagem que trouxera.— Milorde, conheço esta caligrafia, por tudo o que sua dona fez Mary passar.— Ela? — Delagarde e lady Hester perguntaram eu uníssono. — Tenho certeza de que esta grafia é de lady Shurland! — Ida ousou tocar o braço de lorde Delagarde.As esperanças dele se renovaram. Erasmo pegou a nota para examinar também.— Mas, srta. Wromley, Mary está apaixonada!— Mas que coisa! — lady Hester exasperou-se. — Será que é mesmo tão cego assim, Erasmo? Claro que ela está apaixonada! Por lorde Delagarde! Sabe de quem se trata?O visconde encarou a tia, entre aturdido e feliz. — Querida lady Hester, acha mesmo...— Bobagem, Ida! O caso é grave demais para ocultarmos algo tão sério.— Tia Hester, não brinque comigo, eu lhe imploro! Se isso é verdade...— Meu adorado sobrinho, por que acha que Mary fugiu com Lugton? Porque estava certa de não ser correspondida em seus sentimentos.— Bom Deus, como é que ela pôde? — Releu a missiva. — Adela quis fazer-nos acreditar que Mary se foi para Gretna, sem saber que já houve uma tentativa frustrada. Mary não faria a mesma idiotice duas vezes.— Sendo assim, os temores de Ida não foram infundados. Eustace Silsoe raptou-a, com a cumplicidade de Adela.— Minha menina jamais teria ido por vontade própria — Ida afirmou, desesperada. — Por favor, milorde, vá atrás deles!— Pode estar certa de que o farei — Delagarde afirmou, no calor da emoção. — Mas desta vez não irei para o norte.— Acha que eles criaram um cenário falso?— Não tenho dúvida, tia.— Milorde não vai a Greenwich, vai?— O coche deve ter ido naquela direção, srta. Wormley, ou Mary teria suspeitado do embuste. — Delagarde foi até o cordão da campainha e puxou-o com força.— E por que Eustace a levaria para o norte? — lady Hester quis saber. — Ambos são maiores de idade. Se ele tiver uma licença especial, poderá casar-se a qualquer momento.— Mas ela não quer! — Ida afirmou, angustiada. — Como lorde Silsoe poderá persuadi-la?

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— Muito simples — Delagarde deduziu, com voz rouca e os olhos chamejantes. — Se Eustace ficar com ela um dia ou dois, Mary não terá outra escolha a não ser se casar com ele, para não arruinar a própria reputação.As duas encararam-no horrorizadas.Erasmo encaminhou-se até a porta e voltou-se, antes de ir. — Não se preocupem. Eustace Silsoe só se casará com Mary se passar por cima de meu cadáver!Cansada, Mary caminhava no pátio da Estalagem Cross Keys, no povoado de Charlton Wood. O fazendeiro que lhe dera carona na carroça lhe havia assegurado que estava a uns seis ou oito quilômetros de Greenwich. Ele dissera que o sr. Tupham, da Cross Keys, poderia ajudá-la a chegar a seu destino. Mary estava certa de conseguir alugar um transporte para reconduzi-la a Londres.Apesar do frio e da fome, as luzes da Cross Keys aqueceram-lhe o coração, ao passar pelo único coche que estava no pátio. Era um faetonte, e ela reconheceu os animais.— Sampton! — ela gritou, muito alegre.— Deus do céu, mas é a senhorita! — ele regozijou-se. — Estávamos a sua procura, milady!— Onde está lorde Delagarde?— Lá dentro, milady, perguntando pela senhorita. Devo chamá-lo?Mas Mary já corria para a porta da hospedaria.— Delagarde! Delagarde!Erasmo chegou à entrada ao mesmo tempo que ela, e, após alguns segundos de emoção contida, ele envolveu-a em um forte abraço. Todas as dúvidas, os receios e as indecisões foram esquecidos.— Mary... Mary, pensei que a houvesse perdido para sempre!Ao perceber que ela soluçava, soltou-a um pouco e fitou-a.— Graças ao bom Deus, está salva! Não chore, minha adorada.A ternura provocou-lhe ainda mais lágrimas.— Não fale assim comigo, milorde! Não pode estar sendo sincero.— Não posso?! — Ele deu uma ordem por sobre o ombro. — Sampton, leve os cavalos ao estábulo. Jantaremos aqui.Os momentos seguintes pareceram um sonho para Mary. Delagarde distribuiu instruções a torto e a direito, enquanto a conduzia para dentro. Em instantes, ela viu-se sozinha com seu amado em um pequeno escritório, a portas fechadas.Erasmo a encarou e segurou-a pelos ombros, com força.— De todas as ocasiões em que tive vontade de estrangulá-la, esta foi a pior!— E por quê?! Se tem de fazer isso, faça-o com Eustace!— Isso ninguém precisa dizer-me. Mas sabe o que fez comigo, tolinha? Virou minha vida de cabeça para baixo e tornou-a impossível de viver sem sua companhia!Mary o fitava, muda.— Por que me olha desse jeito? Não acredita em mim?— Não sei... Você pode fazer-me acreditar em qualquer coisa... se tentar.Delagarde soltou-a.— E por que eu o faria?Mary precisava saber a verdade.— Para ganhar minha confiança. Para casar-se comigo... por conveniência.— De quem? Sua ou minha?— De ambos, talvez. Milorde sabia que eu desejava um marido só para livrar-me de outros importunos. Por que não aproveitar-se disso? Não sou uma mulher adequada para um cavalheiro elegante e freqüentador das rodas sociais. E você precisa de um herdeiro. Minha fortuna pode ser vantajosa, embora eu possa inocentá-lo do título de caça-dotes...— Muito obrigado!-...mas não deixa de ser conveniente ter uma mulher que só pretende ficar sozinha para espiar as estrelas. O que não o incomodaria em nada e permitiria que continuasse com seu estilo atual e...— Deixe-me dizer-lhe, Mary, que estou mais propenso a interferir em sua observação dos astros a deixá-la sozinha com eles. Nada me excita mais do que a maneira como olha as estrelas!Os lábios de Mary tremeram, e seu coração bateu forte.— Eu percebi. E por isso acreditei em Eustace e Adela. Eles disseram que você me seduziria.— Acreditou neles?— Tentei não fazê-lo, mas tudo o que me disse... e fez... — E teve isso em mente o tempo inteiro?

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— Sim. Achei que me queria...— Com desespero!— Mas milorde não demonstrou nenhum sentimento. Então, tudo se resumia a...— Porque eu mesmo não sabia! Mary, o amor aconteceu de maneira tão imprevista que nem eu mesmo o reconheci. Você me enlouquecia! — Rindo, puxou-a para mais perto. — E eu sabia que lhe provocava o mesmo efeito, meu bem.O beijo que se seguiu foi tão intenso que Mary quase perdeu o equilíbrio. Agarrou-se ao pescoço dele e retribuiu com igual fervor.Delagarde entendeu que teria de parar, antes que fosse tarde demais. Sentiu a pele quente de Mary, a pulsação rápida e as pernas encostadas nas dele. Por fim, afastou-a.— Quer se casar comigo, Mary?— Por amor?— Ainda duvida?— Mas, Erasmo, não me encaixo em seu modo de viver. — O que vem a ser a prova de meu amor, bobinha. Caso contrário, eu não faria esse sacrifício!Mary gargalhou.— Na verdade, nem eu, pois não tinha a mínima intenção de entregar-me a alguém tão temperamental. É como unir-me a um urso!Erasmo tornou a rir e beijou-a com ardor.— Não se assuste, pois aguardarei pelo leito nupcial...— Seria muita excentricidade eu lhe dizer que não quero esperar?— É uma coisa deliciosa de se ouvir, minha amada. Mas prefiro aguardar até que nos casemos. E devo dizer-lhe que milady se casará comigo nem que eu tenha de arrastá-la até o altar. Agora, vamos nos alimentar. Você deve estar faminta.Quando terminaram de jantar, Mary contou a Erasmo o que ocorrera.A carruagem que fora apanhá-la entrara em Greenwich em baixa velocidade. Pela janela, Mary vira o posto sinalizador, mas não o Royal Observatory. Então, o coche parou, a porta se abriu e Eustace Silsoe pulou para dentro do veículo, que logo disparou, antes mesmo de Mary recuperar-se do susto. — Ele não fez segredo de suas intenções, milorde. Pretendia levar-me de volta a East Dean. Eustace tem uma pequena casa a uns vinte e cinco quilômetros da dos Shurland.— O miserável queria prendê-la ali?— Sim. Eustace planejava um casamento respeitável na paróquia East Dean. Há um clérigo novo lá, muito ligado a Firmin. — Deixe-me adivinhar: Firmin faz generosas doações para a paróquia.— Isso mesmo. Mas eu não tinha intenção de cair no esquema dele. — Observou a expressão de Delagarde. — O que foi?— Adoraria matá-lo! O cretino tem sorte por eu não sair atrás dele agora.— O que pretende fazer?Delagarde bebeu mais um gole de vinho.— Isso não lhe diz respeito. Diga-me como fugiu. — Mas, Erasmo, não quero...— Mary, não vamos discutir por isso. Quer fazer o favor de contar-me como foi?— Golpeei Eustace com minha bolsa, e ele desmaiou. — Com a bolsa? Ah, não é possível!— Juro! Acontece que meu telescópio portátil estava dentro dela.Delagarde apanhou a bolsa que Mary deixara a seu lado, abriu-a e tirou um tubo de bronze, que alongou com facilidade. Fechou-o, com uma das sobrancelhas erguidas.— Começo a sentir pena do sujeito! Onde foi que você cometeu o atentado?— Assim que saímos de Lewisham. Vi uma carroça vindo em sentido contrário e aproveitei a oportunidade. Golpeei Eustace, pulei para fora do coche e pedi ao fazendeiro que me levasse. Ele foi o primeiro dos três que me trouxeram, em estágios, até aqui.Mary poderia ter vindo pela estrada de posta principal, mas teve receio de que Eustace a seguisse pelo caminho mais lógico, depois de recobrar o sentidos.— E milady também não teria me encontrado – Delagarde lembrou. — Fiz perguntas em todas as aldeias ao redor de Greenwich, para tentar descobrir por onde o bandido a havia conduzido. Erasmo contou ainda sobre a carta que Adela forjara e explicou por que optara por Greenwich.

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— Acreditou mesmo que eu tinha fugido com Eustace? — Não. Imaginei que fosse com Wiveliscombe. — Não! Que ridículo!Ambos riram.— Lady Mary, você ainda não me disse uma coisa. — O que é?Delagarde deu a volta na mesa, tomou-lhe as mãos e ergueu-a. — Ainda nem uma vez mencionou seus sentimentos por mim. — Mas milorde sabe o que sinto. — Será mesmo? Permita-me dizer-lhe que não sei ler pensamentos.— E quer que eu diga?— Claro! E tem mais: é melhor que o faça com ternura e muitas vezes ao dia, se quer o melhor para si.— Essa é sua idéia de romantismo?— Não, é como pretendo dominá-la. Vamos, diga!Mary sorriu-lhe, e o coração de Delagarde por pouco não derreteu. Tentou beijá-la, mas ela esquivou-se e tocou-lhe o rosto. — Esta é minha estrela mais brilhante. Se tivesse de escolher, passaria a vida toda olhando para ela e esqueceria todas as outras. Isso responde a sua pergunta?— Sim, minha adorável astrônoma, mas não é o que o futuro lhe reserva.— Como assim?— Não a farei abandonar os céus por completo. — Erasmo tomou-a nos braços. — Só em alguns interlúdios durante a noite. Para um descanso, sabe como é...Mary beijou-o com paixão, aprovando totalmente aquele compromisso.

FIM