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4 DA INFLUÊNCIA À RECEPÇÃO A recepção literária ou recepção crítica ou ainda estética da recepção é de interesse vital para o comparativista nos seus trabalhos de investigação quer sobre a recepção de várias literaturas estrangeiras em geral, quer a recepção duma determi nada literatura, dum determinado autor. muito tempo, aliás, que foram estabeleci dos critérios básicos de ïnvestigação, designando-se por influência a inserção duma obra estrangeira num texto. em 1913, no seu livro La hrtérature création, succès, durde, Femand Baldensperger nota desde as primeiras páginas: «En toute action ii y a deux termes: l’agent d’influence et le sujet réceptif et celui-ci est, en somme, plus important que le premier.» Quanto à designação fortuna serve para caracterizar a expansão da obra de um grande escritor estrangeiro numa literatura ou numa cultura. Enfim, imagem (em bora aqui haja frequentes divergências) designa a assimilação do estrangeiro verifi cada num determinado texto, numa determinada literatura ou numa determinada cultura, num determinado momento, assimilação de que se terão de estudar os componentes ea função social e cultural (aquilo que se pode também designar por representação do estrangeiro). Poder-se-ia dizer que estes estudos antigos, sobretudo na sua designação, cediam e para alguns continuam a ceder a um certo positivismo, um certo cientismo ou finalismo, que, por consequência, a «recepção» literária volta a atribuir à literatura, pela atenção dada ao leitor, uma dimensão histórica e sociológica aparentemente esquecida (esquecida, note-se, por aqueles que se entregaram ao sedutor fatalismo do texto em si ou à confortável facilidade da historiografia literária). Seja como for, a recepção do estrangeiro lato sensu constituiu sempre uma orientação básica da Literatura Comparada. No entanto, a recente voga das teorias de H.-R. Jauss e da chamada Escola de Constfincia obriga o comparativista, senão a reorientar o seu método de investigação, pelo menos a fazer uma mise au point da disciplina, dos campos de investigação e de certos objectivos da investigação literária em si. 1 — Definição dum conceito: recepção Antes de mais, a utilização pelo comparativista da palavra «recepção» (se nos referirmos mais ou menos directamente aos trabalhos de investigaçâo na Alemanha) 66 j 67

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Estética

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    DA INFLUNCIA RECEPO

    A recepo literria ou recepo crtica ou ainda esttica da recepo deinteresse vital para o comparativista nos seus trabalhos de investigao quer sobre arecepo de vrias literaturas estrangeiras em geral, quer a recepo duma determinada literatura, dum determinado autor. H muito tempo, alis, que foram estabelecidos critrios bsicos de nvestigao, designando-se por influncia a insero dumaobra estrangeira num texto. J em 1913, no seu livro La hrtrature cration,succs, durde, Femand Baldensperger nota desde as primeiras pginas: En touteaction ii y a deux termes: lagent dinfluence et le sujet rceptif et celui-ci est, ensomme, plus important que le premier.

    Quanto designao fortuna serve para caracterizar a expanso da obra de umgrande escritor estrangeiro numa literatura ou numa cultura. Enfim, imagem (embora aqui haja frequentes divergncias) designa a assimilao do estrangeiro verificada num determinado texto, numa determinada literatura ou numa determinadacultura, num determinado momento, assimilao de que se tero de estudar oscomponentes e a funo social e cultural (aquilo que se pode tambm designar porrepresentao do estrangeiro).

    Poder-se-ia dizer que estes estudos j antigos, sobretudo na sua designao,cediam e para alguns continuam a ceder a um certo positivismo, um certocientismo ou finalismo, que, por consequncia, a recepo literria volta a atribuir literatura, pela ateno dada ao leitor, uma dimenso histrica e sociolgicaaparentemente esquecida (esquecida, note-se, por aqueles que se entregaram aosedutor fatalismo do texto em si ou confortvel facilidade da historiografia literria).Seja como for, a recepo do estrangeiro lato sensu constituiu sempre uma orientaobsica da Literatura Comparada. No entanto, a recente voga das teorias de H.-R. Jausse da chamada Escola de Constfincia obriga o comparativista, seno a reorientar o seumtodo de investigao, pelo menos a fazer uma mise au point da disciplina, doscampos de investigao e de certos objectivos da investigao literria em si.

    1 Definio dum conceito: recepo

    Antes de mais, a utilizao pelo comparativista da palavra recepo (se nosreferirmos mais ou menos directamente aos trabalhos de investigao na Alemanha)

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    j67

  • pode ser apenas urna moda ou revear urna cena ircompreenso ou unta

    compreenso superficial dos princpios de investigao de N.-R. Jauss e (los seus

    discpulos.E certo por mais limitada que seja esta atitude elementar que, em rume

    rosos casos, recepo substitui por comodidade influncia ou ftrtuna, dado

    o descrdito em que se deixou cair estas designaes e as investigaes por elas

    orientadas. Por outro lado, concordemos que a intertextualidade pode revitalizar o

    estudo das ((fontes>), quer dizer, das referncias textuais inscritas mais ou menos

    explicitamente num texto e que contriburam para a sua produo.

    A adopo da palavra ((recepo pode tambm explicar-se por uma aplicao

    livre de certos objectivos definidos por H.-R. Jauss. Citem-se, a propsito, os

    ltimos trabalhos deste investigador sobre a hermenutica e as suas possveis

    aplicaes em literatura para ver at que ponto a esttica da recepo evolui num

    sentido pouco vlido para o comparativista. De facto, para o verdadeiro comparati

    vista, segundo a nossa opinio, o importante no interrogar-se sobre as modalida

    des ou possibilidades de interpretao, de compreenso e de aplicao de um texto

    literrio, mas sim repor incessantemente uma questo sempre actual: por que

    razes, em que circunstncias precisas, foi feita uma determinada interpretao,

    uma determinada leitura de um texto.E indiscutvel que a reflexo fortemente sinttica de Jauss permitiu contrariar

    certas crticas feitas histria e investigao literrias comparativistas. Todavia,

    tambm evidente que h ainda um longo caminho a percorrer para se detectar na

    reflexo sobre a esttica da recepo as premissas de uma renovao histrica dos

    estudos literrios.Sublinhou-se, com razo, a importncia decisiva que tiveram sobre Jauss as

    reflexes de Hans Georg Gadamer em Wahrheit und Methode (Verdade e Mtodo)

    publicado em 1960, obra por seu turno tributria de Martin Heidegger e do seu Sei,i

    undZeit (O Ser e o Tempo) de 1927. Trata-se dum campo complexo de reflexo que

    incide sobre a interpretao e sobre a hermenutica em geral, campo em que se

    situam igualmente um Jiirgen Habermas de Erkenntnis and Interesse (conheci;nen

    lo e Interesse, 1976) e, sobretudo, o fenomenlogo polaco Roman Ingarden de Das

    literarische Kunstwerk (A Obra Literria, 1931). So as mesmas bases que serviro

    a um outro terico da recepo, Wolfgang Iser, em Die Appellstruktur der Texte (As

    Estruturas de Apelo do Texto, 1970). Dum estrito ponto de vista literrio, , alis,

    indubitvel que o contributo de W. Iser estabelece os conceitos de base, o de ((leitor

    implcito e o da ((indeterminao (Unbestimmtheit). H uma interaco entre o

    processus de actualizao pela leitura e o texto que, pelos seus vazios, forma

    estruturas de apelo para o leitor. A interpretao , deste modo, indissocivel da

    indeterminao, a qual a base de toda a produo de efeito literrio, esttico. Por

    outro lado, uma ateno especial concedida ao leitor, ao seu papel activo de

    receptor. A indeterminao leva concretizao, conceito que j existia emRoman Ingarden e que foi retomado, em particular, pelo checo Jan Mukarovslcy.

    O que plenamente positivo e interessante neste domnio de investigao, o facto

    de ele esclarecer a relao complexa texto/destinatrio, privilegiando ao mesmotempo a anlise interna, textual.

    O objectivo de Jauss muito mais ambicioso. Trata-se, partida, de reflectir sobreo paneI histrico desempenhado pelo destinatrio, sobre as suas reaces ao textoliterrio. Eis o que Jauss expe desde 1970 em Literaturgeschichte als Provokvjjon,O estudo literrio deve, segundo ele, ter em conta as normas e as categorias estticas(em particular o gnero) do texto em questo; os conhecimentos do leitor e tambm asua capacidade de se reconhecer num novo texto, qualidades novas a partir das suascategorias de juzo esttico. O texto literrio urna resposta, mais ou menos ntida,a uma expectativa do leitor. Existe precisamente uma espcie de distncia esttica entre um texto literrio inovador e a expectativa do leitor. E o famoso horizonte deexpectativa (Erwartungshorizont), de que falaremos a seguir. Jauss admite a possibilidade duma srie de reaces entre o leitor e o escritor e at a possibilidade de oprprio escritor ser tambm leitor de si mesmo.

    Sem dvida, Jauss criticou validamente, com slida fundamentao, o estruturalismo a-histrico. Ops-se com razo ao biografismo, histria literria ultratradicional. Condenou com justeza, ao mesmo tempo, uma total autonomia do textoliterrio e uma sobrevalorizao da relao texto-autor. No h dvida de que estetipo de crtica, de hiptese de trabalho, permitiu criar uma nova orientao dacincia literria (o j famoso novo paradigma). Todavia, parece-nos absolutamenteabusivo ver nestes trabalhos unia constante vontade de transformar a literatura emhistna. Invertendo os termos de uma crtica em forma de boutade de Jauss (ahistria literria est condenada a uma abstinncia esttica...), diremos que foinecessrio que os investigadores franceses e outros cassem da abstinncia histricamais absoluta para atingir o famoso horizonte de expectativa (Erwartungshorizont), torn-lo um utenslio conceptual de primeira importncia e ver nele umnotvel avano da problemtica histrica em literatura. Como, de facto, estanoo de horizonte de expectativa que nos parece trazer elementos mais vlidospara o comparativista, examinemo-la com maior ateno.

    Horizonte de expectativa j foi definido como sistema de normas e de atitudesde um pblico determinado num momento histrico preciso. Definio til masum tanto exagerada, dado que Jauss fala mais propriamente de leitor que depblico: dado que esta definio levaria a pensar que este horizonte de expectativa transcende o quadro literrio, stricto sensu, quando, de facto, os elementos queo constituem situam-no no prprio interior do fenmeno literrio estudado, ou seja:a noo de gnero literrio, as normas estticas familiares ao leitor numdeterminado momento; enfim, a noo de distncia lingustica (cart) entre anorma e a linguagem potica derivada nitidamente das teorias dos formalistas

    checos.Em suma: o horizonte de expectativa nada tem a ver com aquilo a que alguns

    chamam o extraliterrio e que ns preferimos designar por cultural,entendendo-se por cultural quatro grupos de dados interpretativos: literrios etextuais; estticos (normas e modelos estticos); sociais e, enfim, propriamenteculturais, no sentido antropolgico do termo. No caso da recepo da obra estrangeira, preciso ver que a apreciao dessa obra (querem traduo quer no original)

    se faz em funo de dados que dependem de uma certa relao entre cultura

    emissora e cultura receptora.

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  • Perante estas orienraes, alguns investigadores so levados a falar de recepoexplcita quando se trata de estudar simplesmente o acohirnento feito a um textopor uma determinada literatura.

    significativo ver que, perante certas imprecises ou certas insuficincias dasteorias de Jauss, um investigador romanista, Joseph Jurt (cf. RomanistischeZeitschrjftfr Lireraturgeschichte, 1979, 1/2), prope uma sociologia da recepo (Rezeptianssociologie). Jurt distingue, utilniente, uma anlise hermenuticaque se interroga sobre a pertinncia interpretativa das leituras (o que faz frequentemente Jauss) duma sociologia da recepo. Esta completaria uma sociologia daliteratura, demasiado centrada na produo do texto, recenseando todas as leiturasfeitas dum texto para em seguida determinar os condicionamentos da formao do sentido, O receptor no passa dum conceito abstracto de leitor, mas umleitor com um estatuto especfico, que deve ser devidamente compreendido.Jurt interessa-se sobretudo pela imprensa e constata a importncia de factoresextratextuais na elaborao de juzos crticos. Esta constatao invalida, portanto, a noo de horizonte de expectativa de Jauss, formada, segundo Jurt,presque exclusivement par des expriences et des connaissances littraires.E Jurt acrescenta:

    Les jugements ne sont dtermins par des critres esthtiques que dans uneinfime proportion; les critres dapprciation sont le plus souvent dordre extralittraire; les critres esthtiques servent maintes fois corroborer un jugementidologique pralable (..j. On ne saurait donc maintenir le postulat dun horizondattente unfonne pour toute une poque. Une analyse ernpirique du processusdaccueil montre quel point les oeuvres littraires deviennent, Iors de leur rception,des points de cristallisation des ides esthtiques, socio-culturelies. politiques, morales, psychologiques et mtaphysiques dun moment historique donn.

    Esta anlise de Jurt coincide com uma distino operatria importante feita porFranco Meregalli, (Sur la rception littraire, Revue de Littrature campa re,1980/1981) numa vigorosa sntese sobre a teoria da recepo literria. Devemosdistinguir, no plano crftco, a funo hermenutica (interpretao de tipo esttico)da funo axiolgica (que consiste em avaliar, criticar, julgar uma obra em funodum sistema de valores que o investigador deve ter identificado previamente).E neste plano que gostaramos agora de nos situar para abordar os diferentes tiposde interrogao que a recepo de uma obra estrangeira suscita, assinalando, paramelhor definir desde j o campo da nossa reflexo, dois elementos essenciais darecepo crtica de obras estrangeiras.

    1 A recepo crtica de obras estrangeiras s pode compreender-se plenamente a partir do quadro de um estudo consagrado aos sistemas de representao doestrangeiro assimilados, num determinado momento histrico, por uma culturaconsiderada receptora. Consequentemente, o estudo da imagem do estrangeiro, oumelhor, das imagens do estrangeiro, que nos leva a compreender de que maneira seenuncia o discurso crtico sobre a literatura estrangeira e que funes este discursopode ter numa cultura.

    2 O discurso critico sobre obras estrangeiras pode ser identificado, no planoda investigao, com uma imagem entre outras (teatro, romance, pintura, etc.)do estrangeiro. O discurso crtico no pode ser considerado uma prtica original,singular. mas sim uma prtica cultural entre muitas outras, uma viso entre outrasdo estrangeiro.

    Gostaramos agora de situar esquematicamente, na gama de experincias e deconhecimentos do estrangeiro, a questo da recepo das obras literrias.A classificao proposta ordena-se segundo um princpio de complexidade de estudocrescente; ou, se se prefere, segundo uma dimenso histrica e cultural crescente,

    Assim, temos:Primeiro nvel O encontro com uma literatura estrangeira, com uma possibili

    dade de recepo, isto , de leitura e de apreciao crtica, depende da traduo esobretudo da adaptao. Analismos estes problemas no primeiro captulo deste livro.

    Segundo nvel O fenmeno editorial da difuso de uma literatura. No setrata aqui de nos limitarmos a um estudo de sociologia da leitura, ainda que essaperspectiva no deixe de ter interesse. Todavia, no uma orientao especifica-mente comparativista. Em contrapartida, o comparativista dever atentar em todo ofenmeno editorial, comercial, material ou de ordem intelectual que influencie.condicione, oriente a leitura, o consumo da obra estrangeira: livrarias, casaseditoras especializadas em literatura estrangeira, obras estrangeiras em bibliotecas,ilustraes de edies que do uma dimenso nova leitura, crtica (caso deedies ilustradas por artistas mais ou menos famosos na poca romntica, etc.).Abordmos tambm os principais aspectos destes problemas no Ponto 1.

    Terceiro nvel As leituras crticas da obra estrangeira. Este o nvel propriamente da recepo crtica. Quando o estudo das reaces concretas dos leitoresno possvel (correspondncia de leitores utilizvel ou inqurito dirigido aopblico actual), convm reportarmo-nos s revistas, aos jornais e a todo e qualquertestemunho que d uma leitura da obra. Seria este o objecto essencial do estudoda recepo de uma obra estrangeira por uma cultura receptora. Mas h outrostestemunhos literrios que o investigador pode igualmente utilizar: a correspondncia privada (canas dum escritor sobre um autor estrangeiro), ensaios diversos (colectneas de artigos) e, muito em especial, respostas ou juzos de valor emprefcios ou mesmo em obras literrias de fico. A este nvel, que o maisinteressante para o investigador literrio, dever ser bem definida a natureza exactadas reaces do escritor ou do ensasta: opinio pessoal, opinio de alcancepblico e larga difuso atravs duma revista; opinio crtica ou opinio do criadorperante uma obra estrangeira. Seja qual for o caso, somos levados a avaliar ocarcter representativo, normativo dos juzos assim seleccionados; isto para nofalar do problema quantitativo das opinies (um simples artigo dum escritor famosopode ter mais impacte do que toda uma srie de leituras feitas por crticos secundrios). Enfim, somos levados a pr a questo de saber em que que os juzos

    crticos do escritor podem interessar, influenciar, servir de modelo sua obra.

    E assim regressamos a um problema de influncia no sentido mais tradicional do

    termo, seja qual for a natureza das questes abordadas. E evidente que se toma

    r

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  • sempre mais fcil estudar a reaco do destinatrio a um texto-mensagem que

    a influncia do texto-mensagem no destinatno. Todavia, no devemos separar,

    arbitrariamente e por muito tempo, os dois tipos de interrogao.

    Quarto nvel O estudo comparado das relaes entre literaturas e domnios

    no literrios. Se quisermos avaliar o conhecimento de uma literatura estrangeira.

    deveremos comparar os resultados do inqurito feito nesse domnio com os respei

    tantes ao conhecimento da pintura ou da msica. Trata-se de um campo de

    investigao muito vasto, que inclumos numa perspectiva mais ampla de literatura

    geral, de um ponto de vista estritamente terico, ou no quadro de uma imagem de

    cultura, dado que todas as artes, como bvio, fazem parte da cultura. Insistimos

    muito neste ponto, sem o qual avaliar a literatura de um determinado pas, seja elequal for, no teria qualquer espcie de profundidade e de densidade. Quando se

    pensa em estrangeiro>, este pensamento no pode dividir-se rigidamente em

    domnio literrio e domnio no literrio.Quinto nvel A viagem, suas experincias e as narrativas de viagem, na

    medida em que estes textos so muitas vezes extremamente teis para o cpnhecimento ou a difuso de certas ideias sobre as letras e a cultura em geral. E indis

    cutvel, por exemplo, que em Portugal essa reportagem avant la lettre que a obra

    da Princesa Rattazzi intitulada Le Portugal vol doiseau teve imensa importnciaem Frana para o conhecimento da cultura e da literatura portuguesas, sem falar das

    polmicas que suscitou em Portugal. Alis, j vimos esta questo da viagem empormenor, dada a extrema importncia deste fenmeno comparativista.

    Sexto e ltimo nvel A imagem cultural propriamente dita, quer atravs de

    textos literrios, quer atravs de outro qualquer testemunho cultural. E intil,parece-nos, voltar a esta questo, j abordada.

    No entanto, note-se que se pode, de facto, falar da imagem a qualquer nvel, e,

    a partir da, falar da recepo literria de uma obra estrangeira. Considera-serecepo de uma obra estrangeira, ao primeiro nvel, o prefcio de uma traduo, aonvel 2, uma edio ilustrada, portanto, por assim dizer, relida, representada denovo; ao nvel 3, um artigo publicado numa revista literria, nvel com o qual seconfunde frequentemente o estudo da recepo crtica; ao nvel 4, um catlogo depintura ou um ensaio sobre msica em que intervenham juzos de valor sobrea sensibilidade de um pas; ao nvel 5, o juzo de valor de um viajante sobre aliteratura do pas visitado; ao nvel 6, o confronto entre aquilo que a imagem deum pas e aquilo que se diz da sua literatura, o objectivo sendo o de verificar se asduas sries de juzos coincidem ou no, pois na verdade pode haver um juzo positivosobre a literatura e um juzo negativo sobre o povo, o pas ou outro elementoestrangeiro. No nos esqueamos tambm que o juzo sobre uma literatura estrangeirano passa forosamente por critrios estticos, mas sim, a maior parte das vezes, porcritrios polticos e, de uma maneira mais geral, por princpios de apreciao doestrangeiro, pela hierarquia que se estabelece entre uma literatura receptora e umaliteratura estrangeira, entre o Eu e o Outro. Limitamo-nos, portanto, a remeter oieitorquilo que j dissemos sobre as atitudes fundamentais fce ao estrangeiro.

    Note-se, no entanto, as reflexes de Manfred Osteiger e Yves Chevrel em doisartigos consagrados s relaes entre esttica da recepo e Literatura Comparada.

    M. (steiger escreve: lI est indniable que ltude des images et desmirages constituie un volet important de ce quon peut appeler lhistoire delarception (Wirkungsgeschichte), domaine dont lintrt, dans le contexte de lalittrature compare. nest plus souligner. (

  • anlise histrica, ou melhor, socioculturai. esta ltima que vai permitir a descrio do quadro geral no qual a obra estrangeira se inscreve; a identificao das

    linhas de fora que regem a cultura receptora, em especial no plano das ideias e da

    esttica dominantes. Estas, por seu turno, explicaro em grande parte os princpios

    de leitura, de avaliao crtica, as escolhas feitas no que diz respeito s tradues e,

    de uma maneira geral, o interesse ou o desinteresse dos leitores, as adopes

    entusiastas ou as rejeies mais ou menos confessas. E indiscutvel que urna tal

    problemtica leva a uma nova apreciao do papel desempenhado peLo pblico

    leitor em histria ou em crtica literria. A obra estrangeira toma-se em certas fases

    da histria literria, social, cultural de um pas um elemento de informao sobre o

    estrangeiro traduo ou outra qualquer forma parcial de leitura , informao

    que est, no entanto, condicionada pelos centros de interesse do pblico letrado,

    pelas modas intelectuais, pelas correntes ideolgicas de momento, pela prpriasituao poLtica e tambm, frequentemente, pelas relaes entre pas emissor e pais

    receptor. Mais ainda: condicionada pela ideia que o pblico letrado tem da cultura

    estrangeira visada.Consequentemente, obra estrangeira e leituras que ela suscita so elementos

    inseparveis um do outro; o texto e as suas influncias tornam-se, por seu turno,

    elementos entre muitos outros que contribuem para a elaborao de uma imagemcultural do pas emissor, do pas de origem. Em certos casos, o estudo da influnciade uma obra-prima pode revestir o aspecto de um contributo no negligencivel

    para a histria da sensibilidade, das mentalidades.O discurso sobre o estrangeiro (discurso crtico ou qualquer outra forma de

    leitura, de representao) deve ser considerado como um discurso mais oumenos fortemente simblico. Acrescente-se que, para estabelecer a diferena entrediscurso crtico e imagem, por exemplo, quanto mais simblico este discurso(representao atravs da ((imagem>) cultural), mais se esvanece, evidentemente, adimenso analtica, mais se afirma o carcter polmico, ou didctico ou propagandstico ou pura e simplesmente mitificante.

    Pela sua interveno numa outra ordem ou estrutura cultural, o estrangeiro vaimodificar o tecido de uma sociedade ou de um determinado grupo social. Aodepositas-se, ao sedimentar-se, remodelado pela cultura receptora, ou ento expulso por esta. Raras so as estruturas sociais e culturais que reagem uniforme-mente ao estrangeiro: alterando o tecido sociocultural, o estrangeiro desencadeiaclivagens que podem atravessar uma colectividade, o seu funcionamento concreto,as suas opes e as suas prticas culturais, os seus processos de assimilao ou decensura de elementos estranhos. Estas reaces podem, obviamente, ser estudadaspor historiadores, socilogos ou antroplogos. Todavia, quando so transpostaspara o plano literrio (imagens em obras de fico, discursos em revistas literriasou obras semitericas, etc.), tais reaces, enunciadas de tnaneira eminentementesimblica, podem e devem reter a ateno do investigador literrio, interessado emcompreender, nos fundamentos e nas suas diferentes modalidades, as manifestaesde uma dupla transposio: passagem da experincia do estrangeiro para o planoliterrio; valorizao positiva ou negativa do estrangeiro, encarregado muitasvezes de dizer aquilo que impensvel ou inacessvel na cultura receptora.

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    Assim, o estrangeiro acaba por ser um poderoso detector do; pmcemas iaereytes cultura receptora: ao ser mais ou menos assimilado, naturalizado, o estrangeiro pe, quer ao investigador quer colectividade que palco desta recepaoo delicado problema da alteridade. As interrogaes sucedem-se coro conceberOutro? Em que hierarquia o situar? Era que sistema de valores oinserrocrieDoiSo utilizar? De que maneira, atravs do discurso sobre o estma:ejre. descMrtambm o discurso do Eu sobre o Outro? De que maneira detecrar, r:iisa incidncia, a influncia dum texto noutro, dum texto mais ou menos 4onte IiUfloutro que designaremos por texto receptor?

    Jacinto do Prado Coelho contribuiu decisivamente para uma resposta global aestas questes dando a seguinte definio de influncia;

    O estudo das influncias literrias visa dois objectivos: pronove:ahr:i e aanlise dos fenmenos de expanso e pr em destaque a originalidade qte SC revelana maneira como a influncia recebida. Quando a influncia no redu(jvel citao, traduo ou parfrase, consistindo numa aco difusa e profunda, a missodo investigador torna-se mais delicada. Deveremos, alis, admitir deinfluncias: um autor pode inspirar-se, de maneira mais ou menos ccasa:e]jeobra de um outro autor sem ter a inteno de o imitar e sem po: so:rer emodificao da forma mentis e da viso artstica e ideolgica que, segundoCioranescu, deveria definir a influncia propriamente dita. Em princpio, a inficn.cia s certa ou muito provvel nos casos em que as similitude; so sinultanen.mente de forma e de fundo (distino sempre cmoda na prtica). Convm enaminruma hiptese de influncia sucessivamente no plano dos sigr.iticadcs.repa,1d05significantes, no plano das estruturas sintxicas, no plano das esircars :e:ricA anlise dos textos feita com instrumentos fornecidos pela lingis:ica rd. semdvida, renovar o estudo das influncias permitindo-nos detectd.las e apreci.melhor. A distncia entre os significados conceptuais e os significados referen,ciais (para utilizar a terminologia de Lefebvre) e a mudana de direcio devida wsistema da lngua podem ser traos de originaLidade no autor inflniado:ln.fluence franaise dans quelques textes de potes pr-symboiistes e:

    portugais, in Aries dii VlPme congrs de lAssociation Inlteo1an;kdtLw0,titre Conzpare, Estugarda, 1979).

    Quisemos fazer esta citao longa do texto de Jacinto do Prado Coelho (traduzi.da do francs) no s porque ela traa um programa metodo:ca einteresse para o comparativista, mas tambm porque completa a arresenIaco danossa problemtica, no dissociando fonte e influncia, dado que, e fa:o, se inataigualmente de leituras, de reescrita, de problemas de ordem individual (o escH ede um contexto cultural em que evoluem (por razes a determinar e que serooutras tantas explicaes do texto) textos que servem de base, dereferaciaaoutrostextos.

    Se, frequentemente, o estudo dos fontes e das influncias mvhm 50deve-se ao facto de fontes e influncias serem muitas vezes Drese:::a 00:0meras hipteses de trabalho e de leitura, o que nos parece correcao E o seu COIter

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    j

  • hipottico que repudia ao investigador. Perante urna parecena, uma semelhana,

    um ar de famlia entre dois textos, o investigador tentado a estabelecer uma

    ligao entre duas sries de textos, uma relao directa de causa a efeito. E neste

    plano que a critica feita a tais concluses deve ser criticada: a fonte, a influncia no

    so explicaes, so quando muito sintomas. A explicao que o investigador deve

    procurar, sem a qual se arrisca a cair na erudio gratuita ou no impressionismo,

    encontra-se no prprio texto e numa situao cultural e histrica susceptvel de.

    caucionar, de autenticar, uma ligao possvel entre um texto influente e um texto

    influenciado, entre uma fonte e a consequente ((influncia.

    Fontes hipotticas, evidente que sempre houve e sempre haver muitas. Os

    inimigos desta orientao de pesquisa invocaro o demnio da analogia que se

    apodera, segundo eles, dos espritos com tendncia para as generalidades, a cultura

    geral. No entanto, parece evidente que, a partir do momento em que se admite que

    o processas cultural antes de mais comunicao, troca de ideias, fontes e influn

    cias constituem como que a expresso directa, primordial daquilo a que os nossos

    antepassados chamavam comrcio de livros e das ideias. Esta posio no de

    maneira nenhuma incompatveL com teorias recentes, fascinantes e por vezes

    fecundas, segundo as quais o texto em si mesmo domina, a escrita condiciona, o

    escritor marca o que vai ser escrito, numa espcie de programao: nada de mais

    til, nesta ordem de preocupaes, que a fonte e a influncia, inseparveis efectiva

    mente de uma teoria geral da criao e da comunicao literrias.

    Fontes hipotticas, dizamos. A literatura portuguesa, na sua problemtica com

    parativista, no isenta deste tipo de reflexo. Bastaria citar os trabalhos de Tefilo

    Braga, o qual, como j dissemos, se pode considerar, apesar das suas grandeslimitaes, uma espcie de antepassado do comparativismo em Portugal.Conhece-se, por exemplo, a sua teoria hipottica segundo a qual a comdia de

    D. Francisco Manuel de MeIo Auto do Fidalgo Aprendiz (1646) teria servido de

    modelo a Molire para, pelo menos, uma cena do Bourgeois gentilhomnze (1670).Poderamos ainda evocar os trabalhos de outros investigadores, menos famosos,

    sobre Ea e a influncia possvel, segundo as preferncias e as modas, ora de Balzac(A Capital em paralelo com llusions perdues), ora Flaubert, ora Zola. Poderiadizer-se o mesmo de Castilho, o qual certamente leu Chateaubriand, mas que, no

    entanto, nem por isso se pode dizer que foi por ele influenciado de maneira precisa,apesar de ter feito a traduo de um fragmento de Ren e de se notar um tomchateaubrianesco em A Noite do Castelo e Os Cimes do Dardo.

    Estas interrogaes sobre Ea ou Castilho levam o investigador a encarar o

    estudo das fontes e das influncias como um contributo possvel para a histrialiterria, para a histria das ideias, das formas estticas, sobretudo se pusermos emrelao problemas textuais e contextos culturais. Detectar certas leituras (fontes)pode e deve ser o primeim passo para um melhor conhecimento das orientaesintelectuais e estticas de uma poca. Se abordarmos, por exemplo, o sculo XVIII,to rico em aberturas para o estrangeiro, as fontes mais ou menos confessas deVerney as referncias culturais permitiriam conhecer melhor o Portugal dasLuzes e situ-lo pelo menos numa problemtica sempre fecunda: tradio naconal

    te,-sus inlinncia estrangeira. No deixa de ser interessante ver que Verney privilegia as fontes francesas (Rollin, Bernard Lamy, a potica de Rapin, que to duro foipara Cames, e Fnelon). mas tambm fez outras leituras importantes, ainda queatravs da Frana (Locke e a sua Lgica, a medicina de Boerhave, a jurisprudnciade Muratori). Ainda no mesmo sculo, a escola arcadiana, que constitui ummosaico de leituras e de influncias, baseia a sua potica francesa na tradio latina,mas tambm revela influncias da Espanha (a Espanha neoclssica de Luzn e dasua Potica, que data de 1737), bem como do grande poeta didctico e filosficoingls Pope; Horcio, traduzido por Cndido Lusitano, apenas, no uma autoridade secundria, mas uma autoridade entre outras. Os trabalhos de Bocage e as suasleituras revelam um outro sculo XVIII, no qual a herana clssica se enriquece etransforma com, por exemplo, um Delille.

    A ideia de influncia em si deve ser relacionada directamente com a situaogeral do pas receptor. Numerosos comparativistas, entre os quais sobretudo os daEuropa de Leste, pensam at que mais importante explicar como e por que razouma literatura ou um grupo literrio , pela sua evoluo interna, atinge umdeterminado nvel, por influncia eventual de certas leituras, do que identificar asorientaes estrangeiras como se elas fossem sempre elementos exteriores cultura receptora.

    A influncia francesa em Portugal indiscutvel nos sculos XVIII e XtX.Todavia, o prprio Castilho, bom conhecedor das letras francesas, no hesitarem denunciar a influncia excessiva da poesia francesa na escola portuguesa(carta-prefcio a Paquita de Bulho Pato, 1866).

    A histria das ideias pode, com razo, reclamar-se da problemtca comparativista das fontes e das influncias: Marcel Bataillon, nos seus admirveis trabalhossobre Erasmo na Pennsula Ibrica, abriu o caminho. Outros reclamam-se da

    mesma tradio para chegar a uma revalorizao da situao cultural de um pas.

    E o caso do itinerrio erasmiano de Andr de Resende traado por Odette Sauvage.

    Por outro lado, a influncia das ideias socialistas em Portugal, j detectada pornumerosos investigadores, poderia enriquecer-se com outras tradies, como a do

    positivismo. O positivismo, por um lado, a influncia francesa desde Voltaire, por

    outro, poderiam constituir duas pistas para uma releitura do pensamento de Tefilo

    Braga, duma influncia determinante na segunda metade do sculo XIX portugus.

    Estudos mais limitados, ou mesmo monografias, podem tambm contribuir para

    nuancer as redes de difuso intelectual. D-se como exemplo o estudo de Jacinto do

    Prado Coelho sobre Jaime de Magalhes Lima, discpulo de Tolstoi.

    Passemos agora para o estudo da obra, do texto em si. Um primeiro nvel de

    fontes poderia ser ilustrado pelo pastiche, revelador de correntes intelectuais. Por

    exemplo: Camilo que porfia em fazer um pastiche de Zola com ifusbio Macrio

    histria natural e social de uma famlia no tempo dos Cabrais (1879).A imitao um fenmeno mais complexo. Deve-se, antes de mais, notar que

    at ao incio do sculo XtX o princpio da imitao (imitatio) nada tinha de

    condenvel, pelo contrrio, era um dos princpios da criao potica: a imitado dosAntigos, ou a ideia de tradio clssica. E, evidentemente, o caso de Cames;

    ainda, por exemplo, o caso do 4. conde de Ericeira, D. Francisco Xavier de

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  • r

    Meneses, tradutor de Boileau mas tambm autor duma Ilenriqueida (1741) inspirada na Henriade de Voltaire. E o caso de Correia Garo (Condoa Erynianteu),rcade exemplar, autor de uma Cantata a Dido (uma entre centenas) inspirada noCanto iv da Eneida. A imitao pode tambm revelar, explicar literariamente,portanto, fenmenos histricos, como o do domnio poltico e da dependncia

    cultural. Assim, pode estudar-se, por exemplo, a influncia espanhola em Portugal

    no sculo XVII, quer se trate de poesia, como a da escola gongorizante de frei

    Jernimo Baa e outros, quer se trate de prosa, corno a influncia da narrativanicaresca espanhola (Arte de furtar, por exempio).

    A noo de modelo, que acabmos de propor, leva-nos a abordar um aspectomais literrio do estudo das fontes e influncias: o seu contributo para a formaode uma potica comparadi Trata-se ainda de uma nova avaliao do texto literrio.Novas incurses num terreno que se supunha totalmente conhecido e que permitemdescobrir novas possibilidades de anlise e de crtica. Se abordarmos, por exemplo,a obra imensa de Fernando Pessoa, certos caminhos podem parecer, seno secundrios, pelo menos fragmentrios, mas trata-se de compreender uma obra quer nasua unidade quer na sua diversidade. Estamos a pensar, por exemplo, em trabalhossobre a importncia da filosofia e da religio na poesia de Pessoa. Ainda mais ntidae mais delimitada, a influncia geral da cultura e da lngua inglesas em Pessoa: ospoemas ingleses editados por Jorge de Sena, o sentido a dar a essa parte da obrapessoana; e tambm as influncias de Edgar AlIan Poe e de WaIt Whitman.

    Outro tema de estudo: a poesia de Miguel Torga e o modelo bblico, especialmente em O outm livm de Job (1936). Nestes estudos, o aspecto tcnico torna-seimportante, mas evidente, no apenas por causa do registo potico, que a equaopessoal do poeta um dos p1os de reflexo. Jacinto do Prado Coelhoencaminha-nos exacta e subtilmente para essa perspectiva quando analisa a maneiracomo a teoria das correspondncias baudelairiana recriada por Gomes Leal nosquatro sonetos intitulados O Visionrio ou Som e Cor de Claridades do Sul(1875). Outro trabalho valioso de Jacinto do Prado Coelho o que diz respeito influncia de Verlaine nos ltimos decnios do sculo, influncia que se prolongaainda em Roberto de Mesquita, poeta aoriano, de tal maneira que a leitura deVerlaine, a componente verlainiana toma-se a base da elaborao de um mitopessoal. Em grau menor, poder-se-ia tambm falar da veia hugoLiana em GuerraJunqueiro, mas, como diz Pierre Hourcade, ce sont les procds de rhtorique oude uersiJfcation qu ii a surtout imits (Guerra Junqueiro, Le problme des influencesfranaises dans san oeuvre, Paris, 1932).

    Voltando a Roberto de Mesquita e ao trabalho de Jacinto do Prado Coelho, cite-sea seguinte passagem: O que interessante ver a convergncia da linguagemassimilada com a da experincia pessoal. Poder-se-ia generalizar, demonstrando quepor detrs de significados conceptuais idnticos (por exemplo, a chuva, o nevoeiro,o spleen, etc.), escondem-se significados referenciais diferentes: a experinciapessoal do poeta, o seu universo prprio, nico. E Jacinto do Prado Coelho conclui,exemplarmente: Uma vez mais, a influncia literria a pedra-de-toque da personalidade. (Roberto de Mesquita e o Simbolismo, ia Ao contrrio de penulope,Lisboa, Bertrand, 1976, pp. 215-220.) Esta concluso extremamente elucidativa:

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    no se trata de empreender uma pesquisa psicolgica, biogrfica, mas sim urnaelucidao em profundidade do fenmeno potico. E, ainda aqui, no se conftndapotica com poesia. Potica dever ser, de facto, entendida no sentido aristotlico.

    Uma das melhores ilustraes do trabalho a fazer sobre as fontes e influnciasnum texto em prosa o trabalho de Hlder Macedo sobre Menina e Moa deBernardim Ribeiro, em Do signcado oculto da Menina e Moa, 2.a ed., Lisboa.Guimares Ed., 1999. De facto, aqui, o investigador utilizou como pedra-de-toque oLivm do Esplendor. o Sejer lia Zohar, para reler, reinterpretar num sentidoesotrico e inicitico o texto j de si enigmtico de Menina e Moa. Se verdadecue estamos em presena do ponto extremo de um trabalho comparativista, issodeve-se ao facto de a relao estabelecida entre duas sries de textos criar um novocampo de investigao, um novo objectivo.

    Mais recentemente, assinale-se o aparecimento do importante estudo comparati.vista (tese de doutoramento) de Maria Fernanda de Abreu, intitulado Cervanges noRomantismo portugus (Lisboa, Editorial Estampa, 1994). Trata-se, como dizClaudio Guilln no prlogo, dum exerccio de historiografia que tem muitas dasvirtudes de uma obra de criao, explorando amplamente as mltiplas formas darecepo do Don QuLrote de Cervantes em Portugal (incluindo a sua sebastianiza.ot), com particular incidncia nas obras de Garrett e de Camilo.

    2 Um exemplo paradigmtico: a reccpo de Cames em Frana

    Antes de concluirmos, impe-se ainda uma anlise pormenorizada dum caso.exemplar e clssico, de recepo literria da histria da literatura portuguesa: o doacolhimento de Cames e dOs Lusadas, nica obra literria portuguesa considerada verdadeiramente universal atravs dos sculos.

    Existem j numerosos contributos para o estudo deste caso. Pretendemos aqui,muito simplesmente, assinalar apenas alguns pontos de referncia bsicos relativosao estudo da expanso de Cames e da sua obra-prima em Frana. Este casoexemplar permitir-nos- entrever as diversas facetas do problema da recepo talcomo j o abordmos at aqui, em termos predominantemente gerais e terico;,remetendo o leitor para estudos especficos.

    Distingamos, antes de mais, trs fases no processo de penetrao e difuso deCames em Frana: a da sua descoberta progressiva, no decorrer do sculo XVIII atprincpios do sculo XIX: ento, uma primeira poca se esboa, a do reconhecimento lento e, por vezes, contestado do poema pico Os Lusadas. Do princpo doromantismo europeu ao incio do sculo XIX e, para a Frana, de 1812 a 1912,por uma curiosa coincidncia cronolgica , desenvolve-se, paralelamente a ummelhor conhecimento e a uma melhor difuso dos Lusadas, uma lenda camoniana,urna espcie de mito camoniano, de que necessrio explicar as componentes ea funo na cultura francesa. Enfim, dos anos 20 aos nossos dias para respeitara frmula do historiador , multiplicam-se os estudos eruditos sobre Cames,enquanto se diversifica o conhecimento que os franceses tm de toda a sua obrapotica atravs de novas leituras e de novas formas de sensibilidade,

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  • Sem esquematismo exagerado, pode dizer-se que a penetrao de Caines em

    Frana se fez por intermdio da cultura espanhola. Foi a poca em que a Espanha se

    tomou omnipresente na conscincia francesa (guerras, mas tambm moda literria

    da Espanha, cada vez mais contestada). No h dvida que a meno elogiosa que

    faz Cervantes, no captulo 58 da segunda parte do D. QuLrote, foi a primeira

    meno (graas s tradues de D. Quixote) de Cames em Frana. Ora, D. Quixote

    traduzido em Frana a partir de 1618 e tem numerosas reedies. Por outro lado,

    no final do sculo XVII, o erudito castelhano Nicolau Antnio, na sua Bibliotheca

    Hispana, faz uma apresentao de Cames que ser traduzida e divulgada emFrana.

    O acolhimento inicial de Cames em Frana, as opinies dos primeiros eruditos

    e dos primeiros crticos literrios so muito severas. E um acolhimento mais

    negativo do que positivo e as orientaes que guiam esses juzos crticos

    manifestam-se ainda durante o sculo VIII, atravs, por exemplo, de Voltaire e dos

    seus epgonos. E precisamente esta esttica e esta sensibilidade clssicas (ou

    neoclssicas) que explicam o acolhimento geralmente desfavorvel feito em Frana

    a Os Lusadas de Cames. Facto a que se deve acrescentar um desconhecimento dePortugal, desconhecimento que se manifesta por uma confuso frequente entre as

    lnguas e as culturas espanhola e portuguesa.No difcil ver o que determina estas asseres severas e o que subentende as

    reservas feitas: uma sobrevalorizao da poesia francesa, smbolo do que

    natural, quer dizer, antes de mais, da inesure e da clart, um bon got que obedece estritamente a uma inspirao mesure. Simultaneamente, so rejeitadasobras consideradas excessivas, autres, complicadas, compostas por poetas demasiado ingnieux portanto, atrados pela obscuridade ou pela complexidade,

    ou ainda pelo excesso de metforas, principal reserva que os franceses fazem a

    Gngora. O clima uma explicao tpica da poca, explicao retomada mais

    tarde por Montesquieu: os povos dos pases quentes tm uma imaginao desen

    freada em relao aos povos dos climas temperados, o que explicaria a mesurefrancesa. Mas as liberdades tomadas no que diz respeito s regras de composio

    potica ou melhor, a ignorncia, segundo os crticos franceses, das verdadeirasregras estticas so uma razo suplementar para condenar os poetas ibricos,

    quer sejam lricos, quer sejam epopeicos ou dramticos. A estas razes puramente

    literrias acrescente-se um desprezo latente, reforado pouco a pouco durante o

    perodo das rivalidades entre a Frana e a Espanha, pela Pennsula Ibrica. Alis,

    os portugueses s passaram a existir no campo intelectual francs porque se

    revoltaram contra o domnio espanhol, graas, acrescente-se, ajuda do cardeal

    Richelieu. Mas a verdade que, de uma maneira geral, a cultura portuguesa

    destaca-se muito dificilmente do domnio espanhol aos olhos dos franceses, os

    quais conhecem pouco ou nada a lngua portuguesa e ignoram as diferenas entre

    as duas lnguas e as duas culturas. Assim, por exemplo, Os Lusadas so para opadre Rapin, autor de umas Rflexions sur la porique (Paris. 1674) que aindainspiraram Voltaire, o poema da conqute des Indes, o que prova bem aconfuso feita com a Espanha e tambm a errnea interpretao do poema de

    Cames.

    Por outro lado, no seu Essai sw la posie pique (verso definitiva de 1733),Voltaire, na esteira de Rapin, relativamente severo para aquele a que chama leVirgile poriugais. A mistura de deuses do paganismo e da religio crist paraVoltaire draisonnahle. E acrescenta: Un merveilleux si mal assorti dfiguretotU touvrage. (...) Ilfaut avouer que le Camouens (sic) tombe dans des absurdits tranges. Mais adiante, Voltaire no hesita em falar de bvues. No nos difcil, portanto, encontrar aqui o esprito e as reservas feitas no sculo anterior.Todavia, dever notar-se que Voltaire, ao contrrio dos seus predecessores, teve

    um contacto directo com o poema de Cames, ainda que atravs da traduo. Por

    isso e o primeiro a faz-lo em Frana , Voltaire analisa pormeno

    rizadamente os cantos. Por isso, Voltaire pe em destaque certos episdios e

    despreza outros. E a partir desta primeira e grave reduo dOs Lusadas aalguns episdios que se vai orientar o juzo crtico dos letrados franceses durante

    mais de um sculo.Primeiro episdio que merece elogios da parte de Voltaire: os amores infelizes

    de Ins de Castro. Voltaire escreve: Cesr mon gr le plus beau morceau deCamouens. 11 y a peu dendmit duns Virgile plus attendrissarns et injeta crits.

    Segundo episdio: o Cabo das Tormentas. Diz Voltaire: La sitnplicit du pome est

    rehausse par desficrions aussi neuves que le suje:: en voici une qui je lose dire,

    doit russir dans routs les tenips e: chez routes les nations. (...) Cela es: grand entout pays sans doute. Assim, graas alegoria de Adamastor, Cames atinge,

    segundo Voltaire, a universalidade reservada tradicionalmente a Homero ou Virg

    lio. Da este episdio ter sido a partir de Voltaire to frequentemente citado, evo

    cado, imitado, elogiado.Em contrapartida, o episdio da ilha dos Amores severamente criticado. Para

    Voltaire, esta fantasia ne peut tre excuse en aucun pays du monde. Assim, estapaisagem permitir estabelecer a separao entre aqueles que so por e aqueles que

    so contra Voltaire. Sobretudo, leva alguns a distanciar-se das afirmaes do maitre

    penser, pois a abominvel, segundo Voltaire, description voluptueusecativa-lhes a imaginao em vez de lhes irritar o esprito, como acontece com o

    mestre.A concluso de Voltaire apesar de tudo positiva, embora denuncie duramente

    certas fraquezas pitoyables do poema: Louvrage est pIem de trs grandes

    beaurs puisquil fui: les dlices depuis plus de deia cents uns dune nation

    spirituelle qui certainement en connatt les dfauts. Desnecessrio seria acrescen

    tar que este tipo de juzo se tornou lei para vrias geraes de letrados esclarecidos

    em Portugal.Acrescente-se ainda, para demonstrar a perenidade desta atitude crtica, que em

    p]ena tempestade romntica alguns juzos crticos ou notas a tradues de Cames

    exprimiro ainda as reservas feitas pelos franceses a um poema que os desconcer

    tou, tanto no plano da inspirao potica como no plano da temtica em geral. No

    entanto, reconheamos que no princpio do sculo XIX o esprito crtico evoluiu, o

    que se deve ao efeito conjugado de uma tripla influncia. Primeiro, a dos irmos

    Schlegel (Guilherme e Frederico) que promovem a redescoberta das literaturas

    ibricas nu Alemanha: Guilherme admira o teatro do Sculo de Ouro espanhol

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    vilipendiado em Frana h aproximadamente dois sculos, enquanto Fredericoescreve um artigo entusiasta sobre Os Lusadas. Segundo, em grau menor, a acodo suo Sismondi, que exalta os escritores do Sul e que fala com eloquncia econvico do poema de Cames. Enfim, a aco de Madame de Stal, que emFrana exerce a mesma influncia quanto a Camnes que quanto aos escritoresalemes, servindo de intermediria, de introdutora e de divulgadora de um novosistema de avaliao crtica e esttica. Madame de Stal mantm-se, alis, emr&aes ntimas com Frederico Schlegel e inspirou-se talvez das suas reflexespara redigir a nota biogrfica consagrada a Cames na sua Biographie universelie(1812).

    Madame de Stal mostra-se, em geral, muito favorvel ao poeta portugus,fazendo apenas uma reserva, sintomtica do novo estado de sensibilidade potica;para ela, Cames no soube explorar suficientemente o elemento descritivo dospases descobertos pelos portugueses. Esta ausncia de uma certa cor local,digamos mesmo de exotismo, lamentada por Madame de Stal, a qual, por outrolado, no soube compreender a soma de conhecimentos nuticos ou botnicos queCames prope aos seus contemporneos.

    A fortuna de Cames no se limita, no que diz respeito ao sculo XIX, atradues ou a adaptaes sempre discutveis ou de interesse reduzido. Seria teruma viso muito parcial da sua glria literria, a qual no se dever confundir coma fortuna que teve o seu poema. Como vimos, h muito que a vida de Carnesinteressou fortemente os franceses. Pode mesmo dizer-se que o desequilbrio entreo discurso crtico sobre a sua obra muito breve e as glosas sobre a sua vida sempre abundantes poder ser notado j no artigo do Dictionnaire de Morri de1674. Se certo que o sculo XVIII se afastou um tanto do poeta para reflectirde maneira terica sobre o gnero pico, sobre a natureza do contributo de Cames poesia europeia, tambm certo que, ao mesmo tempo, os conhecimentos sobre avida do poeta progrediram bastante: basta ler o artigo da Encyclopdie. O sculo XIX, desde o incio, como que fascinado pelo personagem Cames, queMadame de Stal evoca com talento e que no hesita em chamar heri. E, portanto, o destino de um poeta, sucessivamente guerreiro e apaixonado, aventureiro egnio desconhecido que vai substituir a anlise metdica dOs Lusadas, constituindo uma espcie de mito literrio que vai ocupar um lugar importante no panteoimaginrio dos romnticos franceses. Note-se que este mito literrio se mantmvivo durante toda a segunda metade do sculo.

    Como todo o mito, a histria da vida de Cames uma narrativa que se podefacilmente decompor num nmero bastante preciso de sequncias ou de feitosestereotipados: o homem de amores infelizes (Catarina de Atade), o guerreiro cegode um olho, o marinheiro intrpido, o poeta inspirado na sua gruta de Macau, opoeta naufragado salvando o manuscrito a nado, o poeta com o seu fiel servojavans, o poeta abandonado, misrrimo ou maldito, falecido num catre, etc.Qualquer letrado pode, segundo a sua inspirao, pegar num ou em vrios destesepisdios da biografia de Cames biografia que remonta a Faria e Sousa, masque foi romanceada e transformada ao longo dos sculos e, por seu turno,dissertar sobre uma existncia desgraada mas excepcional, ou simplesmente

    parafrase-la. Por vezes, a vida de Cames assim reduzida ao anedtico, quefunciona como referncia literria para ilustrar uma narrativa de maneira alusiva: o caso de Stendhal que, na Correspondance, fala de Cames a propsito de umafogamento. Outras vezes, a biografia de Cames reescrita, com o nico objectivode ((fazer literatura; o caso de Lamartine em Coursfamilier, evocando a rpidasilhueta de um poeta perdido no mar alto; ou ainda de Chateaubriand, para o qual avida de Cames representa uma referncia muito frequente e um tema de meditao. Chateaubriand tem nitidamente necessidade de evocar a vida exemplar dopoeta portugus para transmitir aos seus leitores ideias que pretende defender omito torna-se aqui histria paralela, narrativa atravs da qual o autor fala de simesmo, mito pessoal. Nesse plano, ele atinge um importante valor tico, como todaa narrativa que tende a transformar-se em mito.

    Se retomarmos a vida de Cames como fio condutor, podemos seguir ao longodo sculo os efeitos de uma fascinao exercida pelo poeta na imaginao potica,ou melhor, romanesca ou teatral, dos franceses. Ainda aqui, intil procurargrandes nomes. Todavia, a abundncia e a variedade dos exemplos so as melhoresprovas deste longo processo de mitificao.

    Resta referir a importante iconografia que comea em 18i7 com a edio doMorgado de Mateus e que pe em evidncia as diversas facetas do mito de Cames(amores, viagens, destino infeliz, etc.). Uma derradeira expresso, deste mito criadoem pleno romantismo precisamente a contaminao inevitvel desta histria pelade outros mitos literrios tpicos da poca; Dante, Cervantes, Milton ou Tasso. FoiChateaubriand quem ilustrou mais perfeitamente esta transformao complexa dabiografia de Cames, a qual, por sua vez, lana alguma luz sobre a narrativa que oilustre breto faz da sua prpria vida.

    Chateaubriand no se interessou logo por Cames e ainda menos pelo seupoema pico. Em Le Gnie du Christianisrne v-se bem que Chateaubriand segueainda de muito perto o magistrio de Voltaire. Lament-lo- mais tarde, masnem por isso procurar suprimir os juzos crticos severos sobre um poema queainda designa pelo ttulo de La Lusiade! E em 1822, quando exerce as funes deembaixador em Londres, que Chateaubriand, por intermdio do conde de Marcellus, descobre as belezas do poema portugus e o exemplo fascinante de Cames.A partir de ento, o poeta portugus frequentemente evocado nas MmoiresdOurre-Tombe.

    E uma tentao explicar esta espcie de fascinao que Chateaubriand tem pelaepopeia martima, quer se trate dOs Lusadas quer se trate da prpria vida deCames, pela fascinao que o mar sempre exerceu em Chateaubriand. Assim seencontrariam reunidos num mesmo destino assimilado pela sensibilidade romnticao breto das tempestades e o cantor das navegaes portuguesas. A explicao evidentemente inaceitvel se lhe dermos um carcter positivista. Todavia, repare-seque no deixa de ser importante o facto de Chateaubriand, por um lado, identificarSaint-Mal a Cdis a partir de semelhanas mnimas e, por outro, associar a figurade Cames a uma travessia do Atlntico com escala pelos Aores, texto redigido emLondres em 1822, o que indica bem que a aluso a Cames deve muito a Marcellus.Outra aluso

  • Napoleo em Santa Helena, retomando um texto escrito em 1818. compara Bona-parte ao gigante Adamastor.

    H, no entanto, elementos mais interessantes, sobretudo quando Games identificado com Tasso: a associao entre os dois poetas serve ento dc princpioexplicativo para a evocao por Ghateaubriand da sua vida e da sua carreira, nosltimos livros de Mmoires, em especial o livro XLIV, redigido em 1841:

    Des auteurs franais de ma date, je suis le seul qui ressemble ses ouvrages:voyageur, soldat, publiciste, ministre, cest dans les bois que fai chant les bois, surles vaisseaux que jai peint lOcan, dans les camps que jai parl des armes, danslexil quejai appris lexil, duns les cours, duns les affaires, duns les assemhles quejai tudi les princes, la politique et les bis.

    Esta sequncia de episdios de uma vida de dimenses picas que no deixa defazer pensar, por vezes, nas venturas e desventuras de Games, toma mais adiante aforma de exaltao admirativa e nostlgica: Quelies orageuses et beiles vies quecelies de Dante, de Tasse, de Camoens, dErcilia, de Cervants! A epopeia, momento literrio feito da carne e do sangue do poeta, bem a imagem que estsempre presente no esprito de Chateaubriand, o qual associa assim as suas Mznoires, verdadeira epopeia em prosa, aos grandes textos da humanidade e identifica asua vida, igualmente beile e orageuse>, com as dos grandes poetas testemunhasda condio humana. Quando, mais adiante, Ghateaubriand confessa: je me suisassis ia rabie des mis pour retomber dans iindigence, associa numa mesmameditao admirativa e dolorosa o exemplo bblico aos de Tusso e de Games. At ltima frase desta Rcapituiation de ina ide h uma identificao implcita dopoeta nadador solitrio como aquele que salvou a sua obra de um naufrgionadando corajosamente para terra, nadando, escreve Ghateaubriand, avec esprance vers une rive inconnue,

    Prestgio da epopeia, do mito vivo que o poeta pico, fascinao pelo homemque, graas ao seu verbo, o guia de geraes vindouras, apelo glria, ainda quemarcada pela desgraa, apelo tambm do mar etemo. obsesso da grande obra monumento que desafia os sculos e obsesso igualmente intensa da vidaerrante, da aventura, do desenraizamento: todos estes elementos se conjugam paraexplicar na prosa de Ghateaubriand como a histria de Games toma no s asdimenses de um mito uma histria exemplar, mas reveste tambm o aspectode um mito pessoal que serve de justificao literria para o escritor e para ohomem tornado modelo tico. Resta saber se Chateaubriand no representou, paraa sua prpria gerao e para outras que se lhe seguiram imediatamente, as esperanas mortas e os sonhos e as obsesses de vrias geraes de poetas e de leitores:nesse caso, o mito de Games teria servido para a formao da imaginaoromntica e pode ter tido por funo, no apenas para Ghateaubriand, a de transporpara a Frana romntica e ps-romntica, a de Lus-Filipe ou da III Repblica, essesonho herico que lhe escapava mas que podia ser identificado, de maneira efmera, com a vida fulgurante de poetas que como Games tinham empunhado comigual mestria a espada e a pena.

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    curioso notar que a crtica no sculo XX, impulsionada por Georges Le Gentil,depois por um R. Bismut, inspirando-se em trabalhos de investigadores portugueses, esfora-se por desfazer este mito de Games, retomando a biografia do poeta demaneira historicamente mais rigorosa, mas tambm interessando-se por outrasformas da sua poesia, proporcionando outras leituras do poeta. Aquilo que eracriticado severamente nos sculos anteriores, torna-se qualidade potica, e Games ento lido, de cena maneira, luz de experincias da escrita potica no longe deMallarm e de Fernando Pessoa.

    Gite-se, por exemplo, o breve mas exemplar e inteligente ensaio biogrfico deJacques Fressard sobre Games publicado na coleco Potes daujourdhui(Seghers, 1964). Seguindo o critrio da coleco, uma antologia de poesias traduzidas segue uma apresentao da vida e da obra do poeta. Jacques Fressard aplcou-secuidadosamente na renovao dos nossos conhecimentos actuais da biografia deGames. Entrega-se, assim, a uma srie de correces que se assemelham a desmitificaes (que alguns podero considerar tpicas da nossa poca e, como tal,opostas ao sculo XIX). Fressard procede a uma sistemtica depurao das tradiese das glosas acumuladas durante sculos a propsito das origens e da famlia dopoeta, da sua formao, dos seus amores reais, das suas aventuras amorosas, do seuexlio, verdadeiro, mas que no se deve confundir com o tema petrarquizante dopoeta exilado, etc. Por outro lado, para explicar certos aspectos dOs Lustadas ouda obra lrica, Fressard utiliza trabalhos de Hernni Gidade e de Aquilino Ribeiro.No conjunto, este estudo breve mas denso uma excelente iniciao a Games,uma admirvel vulgarizao da sua obra no melhor sentido do termo, um bommaterial de trabalho posto disposio de um vasto pblico.

    Todavia, se exceptuarmos a imensidade de poetas de moda passageira, para osquais a imitao substitui a inspirao, bem como alguns eruditos, a influncia deGames em Frana pode considerar-se uma longa sequncia de fracassos. O importante parece ser para o francs imaginar, recompor uma outra histria, o que notem nenhum interesse, O resto so longos silncios a comear pelo sculo XVII e as observaes lacnicas que revelam desconhecimento ou desprezo. Porexemplo, nunca se perceber porque que Cames para Stendhal o poeta davoluptuosidade , ou o que Andr Gide viu no Ganto v para o considerar admirabie; ou o que motiva o silncio quase total de Lamartine, o qual, no entanto,aprendeu o portugus com Filinto Elsio, poeta exilado; ou ainda porque que aimaginao titanesca de Victor Hugo parece no dever nada, ou quase nada, aoAdamastor, simples nome evocado casualmente. A isto que ns chamamos sequn

    cia de fracassos.E verdade que a fortuna de Games conheceu um perodo ureo na poca

    romntica, fortuna que deve algo a Vasco da Gama, a Ins de Castro, ao rei

    D. Sebastio, a Colombo, a Tasso e ainda a outros. Modelo herico para uma ou

    duas geraes, exemplo histrico frequentemente evocado, Games chegou mes

    mo a invadir a literatura dita popular ou educativa. Fez-se da sua vida mais

    conhecida do que a obra um romance pattico, edificante, moralizante. Basta

    va o nome de Games para re;npiacer toute une iittrature er toLde unehistoire, como dizia Philarte Ghasles, fino conhecedor das letras europeias.

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  • Substituir tanto mais facilmente toda uma literatura e toda unia histria quanto eracerto que uma como a outra nunca deixaram vestgios profundos na cultura geralnem na imaginao criadora dos franceses. Quanto a isso, a Espanha - ainda quereduzida por vezes caricatura, s espanholadas ou s diatribes poltico-religiosas teve mais sorte do que Portugal, reduzido quase sempre a vagos esteretipos.

    Este gnero de balano leva-nos obrigatoriamente a concluses que, decididamente, no so muito literrias. A fortuna de Cames em Frana no pode, demaneira nenhuma, circunscrever-se a dados estritamente literrios. Os dados explicativos so culturais, interculturais, para no dizer, na acepo mais ampla dotermo, ideolgicos.

    Pode dizer-se, chegados ao final deste captulo, que as questes de LiteraturaComparada no sentido estrito do termo foram abordadas no seu conjunto, tendo porfulero a dimenso do elemento do estrangeiro como imagem, influncia e recepoem mltiplas funes comparativistas concretas. Passando agora para a segundaparte do nosso livro, chegou a altura de atentar em problemas que nos encaminhempara uma mais vasta e metdica teorizao da literatura em si mesma.

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