Machado pageaux

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1 2 AS EXPERIÊNCIAS DA VIAGEM A viagem, na sua especificidade, toma-se uma espécie de tema literário no qual é importante ver até que ponto ela pode estruturar um texto ou o imaginário de um escntor e quais serão os diversos aspectos e metamorfoses desse tema. O caso-limite dessa metamorfose cultural é o da viagem imóvel a mise en scène do eu num espaço feito de palavras. E o que faz Fernando Pessoa através, por exemplo, do heterónimo Alvaro de Campos na Ode nzarítinia ou do <(semi-heterónimo» Bernardo Soares no Livm do Desassossego ao contar uma «viagem nunca feita», definindo-a nestes termos: «Para viajar basta existir. Vou para o dia como de estação para estação, no comboio do meu corpo ou do meu destino.» (Ed. Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Mica, 1982, t. Ii, p. 132). Aqui a viagem é um elemento profundamente revelador dos problemas do ser em si. Mas, antes de mais, a viagem é uma experiência do estrangeiro, vivido ou imaginado, ou ainda simultaneamente as duas coisas, O que, sobretudo no século xix, a toma uma experiência essencialmente complexa. De facto, de todas as experiências do estrangeiro país ou indivíduo a viagem é sem dúvida a mais complexa. Mas esta complexidade não deve de maneira nenhuma fazer recuar o estudioso da literatura, o qual tem, assim, oportunidade de confrontar a análise textual com outras abordagens, histórica, artística, sociológica, antropológica. Porquê este último termo? A sua justificação é evidente quando se pensa, por exemplo, nas páginas de Claude Lévi-Strauss consagradas às viagens, ao sentido do ritual, aos sonhos e às ilusões que elas implicam, na sua célebre obra intitulada Tristes TrÓpicos. Todavia, desde já, queremos assinalar que para nós a via gem constitui também uma prática cultural, ao mesmo nível que outras (a pintura, a dança ou a cozinha). Assim, a viagem é, simultaneamente, uma experiência humana singular, única, inconfundível para aquele que a viveu, e um testemunho humano que se inscreve num momento preciso da história cultural de um país: o do viajante. Por seu turno, este conceito de uma cultura implica para o viajante-escritor a escolha de uma escrita, a fonna literária, mais ou menos pessoal, da sua narrativa. 1 Dimensões históricas e culturais A viagem que nos interessa éa viagem retranscrita, ou ainda a viagem que pode mais ou menos de modelo para outras formas literárias além da narrativa de 32 33

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Estética e Teoria da Arte

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AS EXPERIÊNCIAS DA VIAGEM

A viagem, na sua especificidade, toma-se uma espécie de tema literário no qual éimportante ver até que ponto ela pode estruturar um texto ou o imaginário de umescntor e quais serão os diversos aspectos e metamorfoses desse tema. O caso-limitedessa metamorfose cultural é o da viagem imóvel — a mise en scène do eu numespaço feito de palavras. E o que faz Fernando Pessoa através, por exemplo, doheterónimo Alvaro de Campos na Ode nzarítinia ou do <(semi-heterónimo» BernardoSoares no Livm do Desassossego ao contar uma «viagem nunca feita», definindo-anestes termos: «Para viajar basta existir. Vou para o dia como de estação para estação,no comboio do meu corpo ou do meu destino.» (Ed. Jacinto do Prado Coelho, Lisboa,Mica, 1982, t. Ii, p. 132). Aqui a viagem é um elemento profundamente revelador dosproblemas do ser em si. Mas, antes de mais, a viagem é uma experiência doestrangeiro, vivido ou imaginado, ou ainda simultaneamente as duas coisas, O que,sobretudo no século xix, a toma uma experiência essencialmente complexa.

De facto, de todas as experiências do estrangeiro — país ou indivíduo — a viagemé sem dúvida a mais complexa. Mas esta complexidade não deve de maneiranenhuma fazer recuar o estudioso da literatura, o qual tem, assim, oportunidade deconfrontar a análise textual com outras abordagens, histórica, artística, sociológica,antropológica. Porquê este último termo? A sua justificação é evidente quando sepensa, por exemplo, nas páginas de Claude Lévi-Strauss consagradas às viagens, aosentido do ritual, aos sonhos e às ilusões que elas implicam, na sua célebre obraintitulada Tristes TrÓpicos. Todavia, desde já, queremos assinalar que para nós a viagem constitui também uma prática cultural, ao mesmo nível que outras (a pintura, adança ou a cozinha). Assim, a viagem é, simultaneamente, uma experiência humanasingular, única, inconfundível para aquele que a viveu, e um testemunho humano quese inscreve num momento preciso da história cultural de um país: o do viajante. Porseu turno, este conceito de uma cultura implica para o viajante-escritor a escolha deuma escrita, a fonna literária, mais ou menos pessoal, da sua narrativa.

1 — Dimensões históricas e culturais

A viagem que nos interessa é a viagem retranscrita, ou ainda a viagem que pode

servir

mais ou menos de modelo para outras formas literárias além da narrativa de

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viagem propriamente dita: estamos, evidentemente. a pensar no romance. Estamos

igualmente a pensar nessa forma literária muito específica que é a viagem imaginária.

Na narativa de viagem, o escritor-viajante é ao mesmo tempo produtor da

narrativa, objecto, por vezes privilegiado, da narrativa, organizador da narrativa e

encenador da sua própria personagem. Ele é assim narrador, actor, experimentador

e objecto da experiência. Ou ainda, o memorialista dos seus feitos e dos seus gestos,

herói da própria história que inventa e que arranja à sua maneira, testemunha

privilegiada em relação ao público sedentário e, enfim, contador para gáudio deste.

Se para o Alcorão todo o viajante solitário é um diabo, para a tradição gre

co-latina, que nos interessa mais especialmente, todo o viajante é um mentiroso,

pelo róprio facto de que conta a sua história, de que conta histórias. Modelo do

género: Ulisses, grande efabuilador, que .Juvenal considera, numa das suas Sátiras— a décima-quinta — um «charlatão» (aretalogus). A Encyclopédie de Diderot,

quando refere a palavra «Viajante» ainda evoca esta espécie de tradição clássica apropósito das «relações» dç viagem: «II y a bien peu de relations auxquelles on ne

puisse appliquer ce que Strabon disait de celles de Ménélas: je vois bien que tout

hornme qui écrit ses vcyages est un menteur.»Esta boutade permite desde á não estabelecer uma grande diferença entre a

viagem dita «real» e a viagem imaginária. Queremos simplesmente dizer com istoque o escritor-viajante, ao tentar fazer obra literária, vai efabular. E o importante, doponto de vista do estudo literário, é observar segundo que lógica se vai construir

esta espécie de «mentira», segundo que fantasia criadora se vão desenvolver asconfidências do viajante. No entanto, é certo que alguns viajantes pretendem ser«objectivos» nos seus testemunhos. Não deveremos pôr em causa a intenção desinceridade ou de autenticidade do autor de notas de viagem. Todavia, nesse casonão se poderá verdadeiramente falar de :i:eratura de viagem: quando muito, sãoconfidências de letrado, elaboradas numa perspectiva erudita ou biográflca. E destemodo, põe-se desde já um problema de base ao investigador: a partir de que nível aviagem se toma literária? E com que forma? Que tipo de viagem é susceptível derecreação até se tomar matéria literária?

Se, por um lado, convém pôr de parte as notas de viagem demasiado fragmentárias, por outro, é evidente que não se pode incluir no domínio literário o longorelatório comercial ou diplomático. Todavia, estes tipos de texto podem, a outrosníveis, interessar a literatura, corno veremos no capítulo seguinte.

Ao reflectirmos com alguma profundidade sobre as relações entre viagem eliteratura, somos desde logo levados a distinguir três formas essenciais que se sucederam historicamente: a peregrinação, a viagem e o turismo.

Uma tradição cristã muito antiga associa frequentemente a peregrinação àtravessia do mundo e da vida. A esta tradição responde um poeta moderno, comoFernando Pessoa, o seguinte, numa poesia datada de 1930:

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Quanto fui peregrinoDo meu próprio destino!

É evidente que a peregrinação não pode ser cor:side,.é unicaner.te. Ainda que. no período medieval. o vrer4

tJtn.d Viagem. Ou não oexemp!ar. e se possa por vezes considerá-lo no wui tenha sido sempreesu-ada, a Deregrinação como prática cultural expuine a do bandoleiro desobrepõe à vida terrestre, aos seus vaivéns, um itinerYhIade deste mundo edemanda. Acrescente-se que o peregrino, isolado, é u11

ano,Olha procura, uma

verdade é que, como se sabe, a peregrinação se faz ema grIIP0 literário. Todavia, a

leva-nos, muito naturalmente, ao fenómeno do tu5°tEsta noção de grupomente fenómeno gregário. O paralelo poderia deser.vol\e’ YUOiificado pejorativaperegrinação, como o turismo, implica circuitos organ’ tia medida em que a— entenda-se, livros e indicações precisos. obedecerdo

d05 itineráj.jos e guiasÉ isso que acontece com a peregrinaçiio de Santiago de determinado código.deixa de ter interesse para Portugal, ao longo dos séculos (ompostela a qual nãoexcessivamente este paralelo: é claro que há uma não desenvolvamosdemanda mística, a viagem redentora (ainda que essencial entre aa absorção maciça de impressões e de imagens OxÓlicas Por vezes sórdida) e

Ora, a viagem opõe-se diametralmente quer à Pe:eei.quer ao turismo,dado que o viajante

— contrariamente ao peregrir.o e, reivindica ouconsidera implícito o carácter individual da sua derisi0

«considera implícito» porque é evidente que a prática daO do Seu acto. Dizemos

algumas das suas modalidades, na própria escolha doiage

corresponde, emculturais, que mudam segundo as épocas. Note-se, Ioda\.ia0tite, a certas modasdas peregrinações (Santiago de Compostela, Ronia, a

que após a época áureaturismo que surge com o século xix, existe preclsamertt’5anÉa) e antes dohistoriadores chamam «tempos modernos», durante a qut’

t.ma época a que osmais nitidamente o viajante típico e a prática da viate.a

1 se afirmam cada vezNesta prática — expedição solitária —, n co0

Literariamente se exprime — narrativa ou diário de ViagemUi maneira como ela

de a uma adequação do homem ao mundo exterior, ua Viagem correspon

manifestado do homem sobre o mundo, por vezes niesmoPoder incessantemente

quer dizer: uma capacidade infinita de, ao descrever e aoc°ma vontade de poder,o,,,

conceber como dono desse mundo, Neste sentido, a nat”der o mundo, seum acto optimista que afirma a possibilidade de trnns%” de viagem é sempreconhecido e de confirmar que o homem — neste caso, O desconhecido emdimensão humana, é o melhor meio de conhecer e de intet

—, em toda a suaa viagem, a literatura de viagem, têm como barreins O universo, Assim,descobertas, na alvorada desses chamados «tempos00°t0gicas as grandespreendimentos coloniais da segunda metade do século xix

e os grandes em-A viagem que estamos a tentar definïr com precisio

objectivos, remonta de facto ao final da Idade Média e :,usei de duração e de

privilegiado a Itália. Deste modo se reafirma a nazi371 Por campo de acção

cultura para os europeus. A atracção pela Itália — Vene como centro detarde, Nápoles — é uma constante da cultura europeia. A

torença Roma e, maiscaracterística comum quer de escritores franceses (de

j5101tiagemn a Itália é umaescritores alemães (de Goethe a flomas Mann) quer de

Ine a Barrès), quer deespanhóis ou

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portugueses (de Sá de Miranda a Teixeira-Gomes), isto sem Falar dos ingleses. para

os quais a Itália é o ponto de chegada daquilo a que eles chamam. cru francês, desde

o século xvi, «a grande volta» (Le Grand Tour»).

Todavia, estes ingleses, grandes viajantes, passam também por Portugal. Para os

países da antiga Lotaríngia — da Holanda à Itália — Portugal é um país no fim do

mundo, fora de todos os circuitos de viagem. Mas para o viajante inglês, Portugal

não é um país longínquo: está a poucos dias de travessia da Mancha e do Atlântico.

A partir do século XVIII, a escala por Lisboa é mesmo um ponto de partida cómodo

para visitar a Península Ibérica. São precisamente os ingleses — e também o

italiano Giuseppe Barretti — que levam a Europa a descobrir a Península Ibérica,

ainda quase desconhecida: Dalrymple, Swinburne, Beckford. Nomes aos quais se

deverá acrescentar o de Byron, com o seu Childe Harold, obra-prima tão importante

para a representação literária de Portugal e da sua capital na época do início do

romantismo.Se tentarmos definir com precisão alguns aspectos da evolução histórica, literá

ria e cultural da viagem, podemos considerar como primeiro testemunho importan

te a Peregrinatio J-Iispaniae (1531-1533) de Frei Claude de Bronseval, reeditada

pela Fundação Gulbenkian. Esta obra dá a primeira imagem do Portugal dos

tempos modernos, nos anos 30 do século XVI. Através dela, vemos como a narrativa

de viagem se confunde frequentemente com o relatório —— neste caso, eclesiástico;

como a notação pessoal pode infiltrar-se no texto, deixando-nos aperceber daquilo

a que poderemos chamar a equação pessoal do viajante; e também como a pausa

descritiva é ainda rara, pois descrever ainda não é a motivação principal do viajante.

Apesar de se apresentar como «documento em estado bruto», dando pouco lugar à

fantasia; apesar de se basear essencialmente no mundo monástico que este monge

cisterciense tenciona visitar, este texto é para Portugal de grande interesse. Por

outro lado, demonstra entre outras coisas a passagem da peregrinação medieval

para a expedição individual, afirmação pessoal do viajante, com os seus gostos, as

oscilações de humor, a presença quase constante do espírito crítico, a vontade de

exprimir opinião e juízo, de apreciar os homens, as estradas, os sítios visitados.

Assim, este texto coincide bem com uma época que já faz do indivíduo um modelo

e uma norma para apreciação de todas as coisas.

Todavia, da mesma maneira que a peregrinação tinha as suas paragens obrigató

rias e que o turismo, mais tarde, inventa a ideia de circuito, igualmente com um

itinerário predeterminado, também a viagem individual implica itinerários e hábi

tos, portanto, limitações. Trata-se aqui de um novo tipo de problemas: a viagem não

é apenas deslocação individual no espaço geográfico ou no tempo — tempo do

viajante e tempo do país visitado, recuo possível na história: a viagem é também

uma deslocação na ordem social e cultural. Assim, o estudo da narrativa de viagem

passa forçosamente pelo dos meios de conhecimento do país, itinerários seguidos,

leituras feitas, quer guias quer obras literárias que servem de modelo.

Referências? Sem dúvida, antes de mais, a Bíblia, soma prodigiosa de errâncias,

de êxodos, de exílios. Mas, também a Odisseia, com o seu infatigável navegador; a

Divina Comédia, itinerário espiritual, antologia do ver e do ouvir. Cite-se ainda,

no que diz respeito sobretudo ao viajante francês em Espanha, a importância do

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Dou QuLrote e dos romances picarescos, evocando uma estalagem, uma jornadafeita em cima de um burro. um jantar pouco recomendável...

Ou, no que diz respeito a Portugal, as referências obrigatórias a Cainões,praticamente a única referência cultural conhecida e, portanto, tacitamente admitida, ou o fenómeno das grandes descobertas marítimas que conferem a Portugal umcarácter marítimo rigidamente imposto, de tal maneira que as terras do Nordestetransmontano ou o Alentejo continuam quase desconhecidos, sem interesse parao viajante. Digamos mesmo que, sobretudo para um viajante cartesiano, como ofrancês, Lisboa é, por assim dizer, o único pólo de atracção válido, a única motivação da viagem. Se acrescentarmos a estes dados culturais e geográficos ofenómeno da escala e da narrativa sobre a escala, compreende-se a razão por que adescrição de Portugal ou de uma viagem através de Portugal seja algo de muitohipotético, de raríssimo até ao século XIX.

Se examinarmos as narrativas de viagem que os franceses fizeram sobre a(<experiência» portuguesa, verificamos que Portugal, nos séculos XVII e XVIII, surgecomo sendo um finis terrae. E indiscutível que a Espanha constituiu desde sempre,do estrito ponto de vista geográfico, uma espécie de ecrã entre Portugal e a França.Até ao século XIX, as viagens para lá dos Pirenéus não são frequentes, nem sequerestão «na moda». Apesar das dificuldades e dos incómodos, a via marítima é aindaa mais utilizada e a mais rápida. Por vezes, essas viagens por mar proporcionamtestemunhos pitorescos sobre Lisboa, sobre a Madeira ou, mais raramente, sobre osAçores.

No século das Luzes, a atracção pela viagem é forte: a volta à Europa, a tournéedas capitais e também dos salões faz parte desse espírito cosmopolita que éapanágio da elite. Nesta época, viajar não é certamente mudar de alma nemprocurar o dépaysement, entregar-se ao exfiio mais ou menos voluntário, sobretudopara o francês mas também para outros povos da Europa Ocidental. O francês vaidescobrir países mais ou menos longínquos; apreende as características dessespaíses e julga-os em função de ideias e de imagens de uma civilização de que sesente implicitamente inspirador e mestre: a sua civilização. Viajar torna-se entãomenos ver um país do que recuar no tempo e estabelecer sínteses, «quadros»,actuando mais como «filósofo» do que como viajante.

Assim, Portugal será nessa época considerado, avaliado em função da ideiade progresso, dum ideal de cultura cada vez mais laica; em função dum ideal decivilização, de relação social cara às elites éclairées. Quando o Candide de Voltairedesembarca em Lisboa, é simplesmente para sentir o fumo das fogueiras daInquisição — imagem significativa do conhecimento estereotipado que a Françatem de Portugal! A viagem é então um apelo à reflexão histórica, à formação dejuízos sobre os governos e sobre a evolução das sociedades, a reflexões económicas, políticas que nada têm a ver com o pitoresco, o instantâneo, a emoção: a«descrição» de Lisboa, da corte lisboeta, confunde-se com um juízo global sobreum governo e sobre a engrenagem política, atacando-se sobretudo a Igreja. As rarasconfidências pessoais originam-se na crítica acerba, na acusação e na indignação:critica-se o excesso de calor, o estado das estradas, as más condições de alojamento,e mal se fala do povo, que não tem estatuto literário na narrativa de viagem.

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Um bom exemplo destes factos é-nos dado por Étienne de Silhouette, homem decultura, que viajou pela Europa durante a sua juventude e — coisa rara — incluiu ospaíses ibéricos no seu périplo europeu. A definição que ele dá de viagem, segundouma óptica d.e homem áclairá, é muito significativa. Recusa a viagem erudita, quer

dizer, o amontoado de notas eruditas sobre antiguidades. monumentos, medalhas,colecções, exemplos que ele próprio dá; recusa também a viagem de «moines»recenseadores de relíquias (note-se entre parêntesis que Etienne de Silhouette éextremamente hostil ao clero português e espanhol). Recusa também a viagem «parhabitude» dos ingleses, testemunhando assim a grande voga da viagem no meiocultural inglês. O seu programa, aquilo que para ele deve ser o viajante, define-senos seguintes termos, no prefácio a Voyage de France, Espagne, de Portugal etD’italie, Paris, 1770:

«Le voyageur doit examiner tout, ii doit s’appliquer à connaitre dans chaque

endroit la religion, les moeurs, Ia langue, le dimat, les productions du pays, le

‘safic, les manufactures, le gouvememear, les forces, les fortifications, les arsenaux,

les monuments antiques, les bibliothêques, les cabinets des curieux, les ouvrages de

peinture, de sculpture, d’architecture, particulièrement en Italie oi ces trois demiers

arts sont portés au point de leur perfection; enfim, ii doit tâcher de se trouver auxsolennités annuefles et s’informer, s’il lui est possible, du caractère des différentsprinces et de celui des différentes cours.»

Repare-se no facto de, para este homem letrado, a Península Ibérica não ser umaterra artística, não podendo encontrar-se aí verdadeiras obras-primas. Essas sóexistem em França ou em Itália... Isto permite-nos definir aquilo a que chamamos ocontexto cultural do viajante, o qual entra assim mais ou menos em competiçãocom a equação pessoal do viajante. Um século depois (este testemunho data daprimeira metade do século XVIII), a definição de viajante e o próprio objectivoda viagem mudarão completamente. A estética romântica e pós-romântica impõenovos centros de interesse e, simultaneamente, leva à transformação da linguagemnarrativa. E então que a confissão, a emoção, o elemento fugidio ou apresentadocomo tal constituem a regra de ouro do viajante-escritor. Os grandes modeloseuropeus de viajantes — Chateaubriand, Goethe, Heinrich Heine ou Victor Hugo— impõem um novo tipo de narrativa de viagem: uma forma simultaneamente maislivre, mais directa, mais próxima da confissão, ainda que o espírito crítico e até ahostilidade não deixem de estar presentes, bem como por vezes o testemunhohistórico ou político.

A «equação pessoal» do viajante evolui no decorrer do século xix. Novoscentros de interesse orientam o olhar e a meditação do viajante: o sistemafragmenta-se, a unidade ou a síntese deixam de ser os guias do viajante, passando asê-lo a emoção, a captaÇão do instante, do facto fugitivo, a identificação de relaçõesmais íntimas entre o viajante-microcosmo e o espectáculo do Cosmos. No entanto,a confissão não exclui a reflexão crítica; a paisagem sabe acolher a meditaçãometafísica, e o instante pode ainda fornecer matéria para a reconstituição pictórica,plástica. A medida em que se avança no século XIX, a procura do exotismo, no

espaço e no tempo, assegura a promoção multiforme do «pitoresco», último avatarda «cor local», derradeiros sobressaltos do viajante, solitário (cada vez menosl) eartista, para enriquecer e ornamentar a seu gosto, seguindo as suas preferênciasestéticas, uma paisagem ou um quadro urbano. No final do século, período em quese cultivava mais do que nunca o progresso e a modernidade, o viajante europeufoge para as terras que Clio esquecera ou não destruíra: as terras mergulhadas numpassado imemorial ou as últimas terrae incognitae. No Ocidente, os espaços ibéricos oferecem essa mistura passadista, mistura de anacronismo e de miséria, dearistocratismo (o antídoto da era burguesa!) e de exotismo vagamente orienta]mistura que provoca ainda sensações fortes para um viajante ansioso por se perderpara melhor encontrar os seus fantasmas. E a época em que o viajante proc:anaa sua vontade de se confessar, de se abandonar, de se fundir misticamente cota apaisagem para redescobrir o poder do Verbo, atacado em todo o lado pelas forças doefémero ou da ordem absoluta: apelo irreprimível de terras diferentes, ÓiOsopostos, corno essa Veneza em que Ascher±ach, o herói de Morre’ em l’ne:a deTi.omas Mana, encontra a verdadeira vida, a beleza e a morte.

A descoberta pessoal, a emoçâo, o sentido da paisagetn permitem comparar, porexemplo, Victor Hugo, viajante do vale do Reno, com o Garrett de Viagens naminha terra (1846). Por outro lado, a notação breve, fina, que não exclui a críticairónica, pode ser encontrada nas notas de Eça sobre Paris, Londres ou ainda oEgipto (Ecos de Paris, Crónicas de Londres, O Egipto). País próximo de Portugalgeograticamente falando, mas por vezes tão longínquo culturalmenw para osportugueses, a Espanha permite-nos fixar a atenção num português que a visitoufrequentemente: Ramalho Ortigão. Note-se sobretudo as referências que Ramalhofaz à arte espanhola em, por exemplo, Pela terra alheia, Vol. 1 (‘(Em Espanha.através delas podemcs identificar a sensibilidade fim-de-século portuguesa.

Outro testemunho, este inesperado e por isso mesmo com interesse na deterni.nação de fontes de informação variadas: a narrativa de viagem que o con:istadinamarquês Hans Christian Andersen fez na altura da sua viagem a Portugal, eis,1866. Na mesma época, o europeu rico e culto começa a praticar, de guia na mio (oBaedeker ou os guias franceses Joanne), o turismo. Na sua procura ávida de sol, deexotismo, de um Oriente tornado moda pelo romantismo, a Península Ibérica é urnaverdadeira reserva inesgotável de cor local, primitiva ou sensual, fascinante,

Com Byron e o seu Childe Hamld, Portugal torna-se uma espécie de paraísoperdido, de flora abundante, uma terra fecunda e como que abençoada pelo céu, aimagem exemplar de um cosmos harmonioso. A arraia miúda não interessa muitoao viajante do século XIX. Quando muito, o viajante evoca quadros pitorescos,mercados, festas populares, a silhueta sensual da varina, de cesta à cabeça, oscamponeses arrastando-se nos burricos, os pescadores lançando as redes. Nestefinal do século Xix, entregue à modernidade e ao progresso, as lenas ibéricas, aindamergulhadas na miséria, são objecto de descrições mirabolantes em que a pobrezaé teatralizada: «pitoresco» é a palavra-chave da narrativa deste viajante que anseiapor sensações fortes. A acumsiação infinita de elementos descritivos pretende rivalizar quer com a chamada peinture de genre, quer com a arte fotográíica. recente.mente descoberta e enaltecida. Para lá do pitoresco, a miragem paradisíaca. orien

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tal, a mistura de latinidade e de orientalismo dão relevo às narrativas de viagem da

época simbolista ou decadentista, época na qual o viajante proclama a vontade de se

confessar, de se abandonar, último testemunho de uma literatura artiste e humanista

que faz do homem o único objecto privilegiado da actividade literária. No século XX,

com as páginas célebres que Valery Larbaud consagra a Portugal, ou mais propria

mente a Lisboa, o tom muda, toma-se mais sóbrio, menos declamatório.

Chegamos, assim, às derradeiras imagens e às derradeiras metamorfoses do

escritor-viajante: o diplomata que, fora do tempo dos seus afazeres oficiais, se

entrega à rêverie (Gobineau na Asia. mas também no Brasil, escrevendo caflas

polémicas sobre a população e a mistura de raças; Claudel «descobrindo» a Asia

em C’onnaissance de 1’Esr; o viajante que percorre o mundo, insaciável; ojomalis

ta, ou mais propriamente, o repórter; o cosmopolita que acumula as experiências e

os testemunhos recolhidos sobre um universo definitivamente fragmentado, caóti

co. Paul Morand foi um desses exemplos acabados de uma escrita inquieta, insatis

feita, ávida de captar tudo o que pode ser novidade ou elemento estranho. Todavia,

a multiplicidade de lugares visitados não deve fazer esquecer a estranha confissão

feita em Rien que la terre (1926), colectânea de novelas com um título extrema

mente simbólico: «Je n’aime pas les voyages. Je n’aime que le mouvement. Du plus

loin qu’il me souvienne, toujours cette envie d’être ailleurs, implacable, tenace

comme une lésion.»Assim, viajar não se teria tomado uma actividade extremamente inquietante a

partir de princípios do nosso século? A questão não é nova e uma multidão de

espíritos filosóficos têm-se debruçado sobre o assunto. De Séneca a Pascal, são

conhecidas as reflexões sobre a infelicidade do homem, o qual não consegue viver

sossegado entre quatro paredes ou em face de si próprio. Como se, no silêncio do

seu quarto ou em cima dum camelo em pleno deserto, no oceano ou num jardim, o

escritor-viajante não estivesse permanentemente perante si próprio, viajando através

das paJavras da mesma maneira que viaja no espaço interior ou no espaço exterior.

Depois desta época, o viajante cede definitivamente o lugar ao turista, um turista

por vezes mascarado de repórter hábil, aventureiro. Esse género de reportagem tem

ainda algo do século xix, é a última metamorfose da narrativa de viagem oitocentis

ta. Paralelamente, o romance de espionagem, mesmo mal escrito, exprime a perma

nência do gosto pela aventura a nível de uma literatura popular, o apelo do

longínquo.

Estas diversas facetas da narrativa de viagem levam-nos a reflectir, no imediato,

sobre a importância literária do meio de transporte, problema que pode ser considerado por alguns de uma grande futilidade, por outros inútil ou secundário. Todavia,

a verdade é que o primeiro factor de conhecimento de um espaço estrangeiro peloviajante é o do próprio ritmo da viagem: ir a pé, ir de burro, ir de comboio ou de

automóvel não é, obviamente, a mesma coisa. Também é óbvio que o avião

eliminou todo o sentido poético da viagem, ou melhor, toda a possibilidadenarrativa da viagem: trata-se agora de ir muito depressa muito longe e, frequentemente, por pouco tempo. Aliás, não deixa de ser curioso notar que a nossa época deviagens rápidas, de tecnologia avançada, é também a época em que se redescobre o

fascínio das caminhadas a pé, de que Rousseau foi outrora apósto0 fen’oro50A geração beatnik na América, a literatura de Jack Kerouac, as reedições de antigasnarrativas de viagem mostram até que ponto o viajante tem necessidade de reencontrar um ritmo à medida do seu corpo.O transatlântico, o comboio com cama e o automóvel, nos anos 20-30, foram osúltimos meios de transporte consagrados pela literatura. Depois, os escritores dodépavse,nent tiveram de voltar à caminhada a pé, à vagabundag até à apologiada bicicleta...Do meio de transporte depende, como é evidente, a relação com a Paisagem,com o espaço, formando-se então uma noção capital para n século XIX. já bemestudada a propósito de outros problemas literários: a noção de Velocidade O século xix é a época em que o viajante pode sucessivamente ou concolrentemente

passar da mula ao comboio, do comboio ao automóvel. Daí deriva uma sériecontrastada de impressões e de descrições, quer estéticas— em que a referência àpintura ou à fotografia é muitas vezes de grande interesse a nível da própriadescrição —, quer dinâmicas, cinéticas, textos nos quais a miragem, o poncif davelocidade o homem atraido irresistivelmente pela força da modernidade e doprogresso — vão reorganizar as impressões do viajante.

Neste espaço estrangeiro, o viajante vai descobrir (ou esquecer!) o Ouu.A relação com o Outro constitui também um elemento básico da narrativa deviagem: ao leitor passivo, que não se desloca, o viajante vai comunicar infonnaçõesque poderão tomar-se preciosas e definitivas, princípio de reflexão e de juízo. Paradefinir o outro, a equação pessoal do viajante é importante. Mas ela entra emconcorrência com toda uma herança cultural: os clichés, a psicologia dos Povos talcomo a vê o viajante, as suas referências livrescas que virão confirmar ou modificaro juízo sobre o Outro.

Afinal, que Outro? Vejamos, na literatura brasileira do nosso século nt exemplos particularmente significativos. Com Wagen de Oraciliano Ramos temos umexemplo quase clássico de narrativa de viagem à Europa de Leste na qual a escritatestemunha uma reflexão não só histórica, mas também política: a viagem é oprolongamento duma certa procura de tipo ideológico e o espaço percorrido ilustra.mas também justifica, a escolha duma ideia largamente Política. Com o ittrjstcaprendiz, Mário de Andrade descobre o seu próprio país, e neste país, um espaçoque lhe é estranho: a Amazónia. Ora, este escritor-viajante, que por algum tempo setoma etnólogo, prepara um romance, Macunaíma, e a viagem à Amazónia Éon)a.seassim um complemento da elaboração poética. Ainda mais característico o exemplo de Oswald de Andrade «viajante>’, para retomar o título escolhido por AntónioCândido num ensaio recolhido em Vários escritos. Este texto breve é um verdadeiromodelo do tema que abordamos. António Candido propõe corno linha de in\estigação o problema da «função» que exerceu o «tema» da viagem no autor deMemórias sentimentais de João Miramar e de Serafim Ponte Grande, concluindoda seguinte maneira:

«A viagem para ele foi isto: translação mágica de um ponto a outro, cada partidasuscitando a revelação de chegadas que são descobertas. E o seu estilo, no que tem

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de genuíno, de movimento constante, rotação das palavras sobre elas mesmas,

translação à volta da poesia pela solda entre fantasia e realidade graças a urna

sintaxe admiravelmente livre e construtiva. Estilo de viajante, impaciente em face

das empresas demoradas; grande criador quando conforma o tema às iluminações

breves de que ele próorio chamou estilo telegráfico.»

Por aqui vemos que a problemática da viagem não se detém ia imagem

veiculada pela narrativa ou pelo diário do viajante. A viagem, tal como nós aconcebemos, através de alguns exemplos, é também um meio de interrogar umapersonalidade em particular e de compreender a produção dum texto.

Quer se trate de viagem «real» quer se trate de viagem imaginária — e voltamosassim a uma das ideias básicas do início —, a viagem permanece uma viagem noslivros e nas bibliotecas. Consequentemente, é importante ver que autoridadeslivrescas são invocadas, que livros, que autores servem de caução ao viajante.Caução para a informação, caução para o juízo pessoal, caução para a própriacriação do texto escrito. A citação — problema da intertextualidade — é aquifundamental. Ela está na base daquilo que, para o viajante, é a sua ideologia, a suamaneira de ver e de sentir. Ela permite ao investigador calcular com mais rigor oque releva da equação pessoal do viajante, o que é o contributo pessoal; distinguiro que é aquisição cultural do que é confissão individual.

2 — A escrita da viagem

A experiência humana da viagem, por mais rica que seja. não deve fazeresquecer a maneira e a forma segundo as quais essas aventuras intelectuais foramtranscritas. A viagem, numa perspectiva cultural, é um conjunto de informações, masé importante fixar a atenção na maneira e nas formas estéticas escolhidas paraexprimir esse tipo de testemunho.

O estudo da escrita do viajante não nos pode fazer esquecer certas perspectivashistóricas: as circunstâncias da publicação, por vezes a distância que existe entre aredacção e a publicação (é o caso das «Notas de Viagem», datadas de 1869-1870, quevieram a constituir o volume póstumo O Egipto, de Eça de Queirós, só publicadoem 1926), o que pode levar o público a relativizar as informações apresentadas notexto. Outro elemento histórico: a formação do viajante, os seus preconceitos, quepodem, pelo menos em parte, explicar os jufzos emitidos sobre o estrangeiro.

Choses vues..., o título geral que Victor Hugo deu à publicação de meio séculode impressões de numerosas viagens, poderia servir para qualquer narrativa deviagem. De facto, toda a escrita de viagem é retrospectiva. O viajante pode, commais ou menos melancolia ou humor, fazer sua a observação de Steme através dapersonagem do seu livro que tenta escrever uma autobiografia: «Nunca conseguireiapanhar-me a mim mesmo.» (Tristram Shandy, livro Iv, cap. XIII).

Assim, o viajante tenta recompor um fragmento de autobiografia, um textoestranho, no qual se misturam observação e imaginação, estando o eu que escrevedescrevendo a sua viagem ao lado do eu que viaja, alternando o eu íntimo com o

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j

espaço percorrido, descrito. O viajante tem de reviver, de reencontrar uma série demomentos dispersos da verdade de si próprio e, ao mesmo tempo, de não seesquecer da unidade da viagem em si mesma. Na verdade, a escrita de viagem nãoignora certos privilégios da ficção: há antecipações, prolepses, recuos ao passado,analepses e, sobretudo, elipses, porque o viajante não diz tudo. O leitor terá deadivinhar, nas entrelinhas e nas pausas, as razões para um silêncio ou uma aceleração em determinada passagem, para um entusiasmo ou uma aversão que acabampor não se exprimir em palavras. Escrita apaixonada, sempre subjectiva, a confissãode viagem é também o testemunho da sensibilidade dum indivíduo, duma geração,duma época.

Analepses, prolepses ou elipses da escrita de viagem constituem uma estranharetórica que convirá inventariar: prosopopeia da natureza ou do espaço a que se dávoz, hipotipose duma descrição, parataxe duma sequência de impressões, anáforaslíricas que exprimem ênfase perante um espectáculo considerado grandioso..Trata-se sempre duma escrita que pretende transformar o que era fortuito, fluito dcacaso, em experiência necessária, em etapas duma vida. Escrever um texto deviagem é sempre transformar, mais ou menos, o efémero em necessário, o acaso emrevelação.

Note-se que para cada época existem os seus lugares-comuns, os topo4 que umestudo sistemático permite pôr em evidência. Escrita, sensibilidade, história dasideias misturam-se, como afirma Claude Pichois no estudo consagrado ao «tema»ou ao «mito» da «velocidade» ao longo de todo o século XIX (Littéroture eiprogrès: vitesse et vision du monde, Neuchãtel, La Baconniàre, 1973).

Ao analisarmos a viagem nas suas diferentes fases, devemos ter em conta otempo real utilizado, a duração da deslocação de um lado a outro, os preextosinvocados ou não. Confrontar-se-á o plano de organização da viagem (o ritmo dumaescrita) com a composição da obra, de forma a determinar alguns princípiosrelacionados com as estruturas do texto ou as suas possíveis descontinuidades,Devem observar-se todas as variantes da deslocação: o passeio (matinal, vespertino,nocturno), a deambulação, a excursão inesperada ou, pelo contrário, planeada, adescoberta duma cidade, as visitas a museus ou a lugares precisos.

Mas voltemos ao conceito de subjectividade da escrita própria da narrativa deviagem. E importante notar as reacções físicas do viajante, o que literariamente seapresenta, por vezes, como consequências psicológicas duma situação física ematerial: o fechamento sobre si mesmo, o devaneio, o abandono, a alegria dadescoberta, o prazer de reencontrar, a sobreposição de impressões, o mecanismo daalusão, as associações de imagens e de ideias, tudo isso relacionado com um espaçopreciso. Assim se processa a escrita de viagem. Percursos, compromisso entre apausa reflexiva, descritiva, e o movimento da fantasia, do sonho: o viajante diz-se,vê-se a percorrer unt espaço, a enumerar os lugares que interessa conhecer, lugaresurbanos (museus, igrejas, parques, jardins, salões, casas de espectáculos), fechadosou abertos, lugares naturais, curiosidades da natureza, montanhas, rios, oceanos,

estradas, etc. Paralelamente ao percurso, por mais diverso que seja, deseavolve-se aescrita sobre si próprio, o desdobramento da escrita que reflecte esse percurso deviagem.

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É preciso não esquecer as formas quase míticas que urna viagem pode assumir:

evasão, procura, iniciação, viagem que remete para uma viagem anterior, libertação

simbólica, prisão e armadilha para um ser solitário, revelação, conhecimento dum

nível superior. Não nos esqueçamos também de definir o género ou subgénero no

qual poderá estar incluído o texto: o diário que inicialmente seria íntimo e que passa

a ser público (deliberadamente ou por decisão estranha ao escritor), como é o caso,

por exemplo, de Lettres d’un voyageur de George Sand, conjugando a forma epis

tolar, essa «escrita do presente», segundo a fórmula feliz de Jean Rousset, e o arligo

de revista; ou o género dito de «viagem literária», que pode fazer alternar prosa everso e aproximar-se do poema em prosa da época romântica, como Reisebilder deHeine. E porque não, também, as memórias que retomam episódios de viagemdecisivos, como em Antimémoires de Malraux? Isto para não falar das clássicaserrâncias de Ulisses...

Por outro lado, não devemos esquecer o estudo dos modelos que estruturam otexto de viagem, as referências literárias, frequentemente oriundas da literatura dopaís visitado. Os mais representativos e universais são a Bíblia (êxodo, erráncia, avida como peregrinação), a Odisseia, grandes clássicos como A Divina Comédia,fonte inesgotável de itinerários espirituais, de imagens fundamentais (o círculoinfernal, por exemplo), suma de saber. E também, para viagens a Espanha, tão carasaos românticos, o Don Quixote, referência básica retomada no contexto portuguêspelo Garrett de Viagens na minha terra.

O estudo da escrita de viagem permite-nos definir os mecanismos e os princípios que estruturam a formação da imagem do Outro, essencial em LiteraturaComparada, como veremos mais adiante. Mas a problemática da viagem não se ficapelas imagens veiculadas pela narrativa do viajante. A viagem torna-se, por sua vez,um modelo para numerosas narrativas, diversas ficções. Não há utopia sem viagemprévia e, frequentemente, viagem de regresso (cf. Raymond Trousson, Voyages nuspays de nuile part. Histoire de Ia pensée utopique, Bruxelles, Ed. Univ, 1975;Jean-Michel Racault, L’Utopie narrative [1675-17611, Voltaire Foundation, 1991).Não há aventuras, reais ou imaginárias, sem viagens, quer sejam marítimas, terrestres. subterrâneas ou espaciais. Por isso, em muitos aspectos, o texto duma viagemimaginária, de Luciano a Jutes Verne, apresenta uma série de elementos subvertidose invertidos relativamente à narrativa de viagem real.

Aludimos já por várias vezes à viagem imaginária, elemento de base quemantém com a narrativa de viagem em si mesma relações evidentes, estreitas, mascomplexas. Poderia dizer-se o mesmo da utopia, a qual, desde o século XVI comessa obra-prima do género que é o texto de Thomas More, só pode construir-se apartir de um quadro irreal a que se dá aparência de realidade: uma viagem, umaexpedição marítima ou terrestre. Note-se ainda que a viagem imaginária apresentasob muitos aspectos uma série de princípios invertidos em relação à narrativa deviagem. A narrativa de viagem é resposta, passagem do desconhecido ao conhecido, enquanto a viagem imaginária é interrogação sobre o universo em geral.Interrogação sobre um mundo que supúnhamos conhecer, e assim se confirma afunção do tipo estrangeiro em literatura como interrogação sobre uma cultura.A narrativa de viagem é sucessão linear de descrições de locais visitados, de

impressões e de experiências, mais ou menos pormenorizadas; a viagem imagináriaé uma peregrinação através de livros e de tradições culturais. A narrativa de viagemé apropriação de um determinado espaço geográfico; a viagem imaginária é umatentativa de apropriação de ideias e de palavras, uma reconstrução verbal de umespaço mítico, espaço de substituição relativamente a um mundo tido por conhecido: aquele que é comum ao leitor e ao autor. A narrativa de viagem, pelas opções epelas modas seguidas, é testemunho de um determinado momento da história

cultural; a viagem imaginária, pelo conjunto de conhecimentos na base dos quaisela se constrói, propõe um verdadeiro itinerário intelectual, um percurso iniciático.

Mas note-se ainda: quanto mais «literária» é a narrativa de viagem, mais as suascaracterísticas se fundem nas da viagem imaginária, da narrativa utópica ou daviagem romanesca.

Se o viajante como personagem literária e a narrativa de viagem como género

literário surgem no início dos chamados tempos modernos, há ainda uma outra

coincidência curiosa: a da criação do romance de aventuras, a da elaboração do

romanesco em si mesmo. E certo que o género não deixa de fazer lembrar os

romances gregos antigos ou os romances medievais. Todavia, não há dúvida que o

romance picaresco, romance de aventuras, coincide com o nascimento e afirmação

do «herói» romanesco. Não há romance sem herói privilegiado; mas, por outro

lado, para numerosas gerações, não há aventura sem viagem, não há herói que não

seja viajante; não há viagem que não seja ao mesmo tempo matéria romanesca e

aventura filosófica.Do ponto de vista estritamente literário, é curioso observar até que ponto ficção

romanesca e narrativa de viagem puderam enriquecer-se mutuamente. Provam-no

as narrativas antigas do Egipto e a Odisseia de Homero, o romance picaresco

— romance do viajante que procura ardentemente a salvação. Temos assim as

primeiras interacções romanesco-viagem, por assimilação da viagem pela aventura.

De facto, a viagem romanesca é, antes de mais, a garantia de um stock ilimitado de

aventuras empreendidas pelo herói-viajante. Cada paragem — albergaria, casa,

cidade —, cada encontro — sentimental, cómico, insólito —, cada país atravessado

(ou, no século XIX, cada província), com os seus costumes e os seus usos, são

outros tantos momentos, outras tantas ocasiões em que o herói é confrontado com

um meio, com personagens estrangeiras que contribuirão para a formação textual e

moral do herói. Ao longo do romance, vão fundir-se a vida fictícia do herói-viajante,

a evocação de décors novos (no interior de normas realistas nos séculos XVIII e

XIX), a observação dos costumes, das particularidades morais, e assim a sucessão

mais ou menos ampla de episódios transforma-se, se necessário, em ciclos de

aventuras.O viajante, ser eminentemente disponível, quando é personagem romanesca

— o famoso herói problemático típico do romance segundo Lukacs — é ao mesmo

tempo dinâmica e significado da narrativa romanesca. Ele imprime, pelos seus

encontros com o estrangeiro, pelas suas reacções, pelas suas descobertas mais ou

menos emocionais, o ritmo geral ao romance. Ele elabora, ainda que inconsciente-

mente, um longo e único suspense que existe apenas em função das tribulações

imprevisíveis deste infatigável viajante, deste aventureiro, apaixonado, filósofo,

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guerreiro, solitário, optimista ou céptico. Viagens e romance, do século XVI ao

século xix, misturam-se e enriquecem-se para dar textos fundados na sucessão de

aventuras, na teia de encontros e obstáculos, sem os quais não há romanesco, e tio

dápaysemenr do leitor, efeito essencial procurado através de tudo.

A aparente desordem romanesca, a própria desordem sentimental, não deveminduzir-nos em erro: em função das ideias, sobretudo no século XVIII aias tambémem parte no século xix, acredita-se na virtude de formação das viagens. Para

verificar esse facto, basta ler, por exemplo, as famosas Aventures d’un homme de

qualitá do Abade Prévost, nas quais, aliás, se encontra um interessante episódioportuguês e espanhol. No século xix, a experiência cosmopolita será menos frequente, concentrando-se na capital, oposta aos meios de província, e a viagem serápor vezes mais social (viagem através das classes sociais, come já o fora o romancepicaresco) do que simplesmente geográfica.

Seria um erro pensar que a relação privilegiada entre o romance e a viagemtermina com o século xix, mesmo pondo de parte os romances de aventuras ou achamada paraliteratura. Simplesmente, o conceito de romanesco evoluiu. Por exempio: o célebre romance de Michel Butor La inodification, um dos textos canónicosdo chamado nouveau roman, é a aliança subtil e profunda entre a viagem (de Parisa Roma) e a meditação de um homem sobre si mesmo e sobre a mulher que crêamar.

formas literárias que se alimentam mais ou menos directamente da viagem: aviagem «imaginária)), o romance ou a inspiração romanesca. Todavia, num casocomo no outro, os problemas levantados derivam sempre para uma reflexão maisgenérica, um dos cumes da reflexão coruparativista: a de representação do outro ouaquilo a que habitualmente se chama imagens, elemento que vamos estudar nopróximo capítulo. Um elemento que não poderemos separar da travessia de espaçosestranhos, da procura, mais ou menos passional, do pensamento do Outro, dasdeambulações nas bibliotecas, da identificação de novas relações explicativas entrea Literatura e essa ((qualquer coisa» que faz do comparativista um homo viator. Nãoum simples cosmopolita, superficial e ávido; não um perpétuo errante, tocando àsportas do estrangeiro à procura duma subsistência qualquer, duma justificação.Antes aquee que propõe, através da república das letras, novos percursos, novositinerários. Somo viator porque não esquece o caminho de regresso, ao mesmotempo que avança em terras desconhecidas. Somo viator porque aspira a serelemento de trocas incessantes entre o que descobre e o que nunca deixou. Somonotar, enfim, porque leva com ele um utensílio de compreensão interculiural, umaarca da aliança que se chama Literatura Comparada.

A conjunção particular da viagem romanesca com o esquema cultural da((descida aos infernos», da catábase, tem especial interesse em numerosos textos.Seria, aliás, errado pensar que o modelo greco-latino (viagem aos países dos mortosem Homero, canto VI da Eneida de Vergí]io) se aplica apenas a escritores europeus.Ele está presente também, por exemplo, em numerosos escritores latino-americanosmodernos, como Alejo Cai-pentier (a IV parte de Sigla de las Luces), ErnestoSábato (Sobre héroes y tumbas) ou Juan Ruifo (Pedro Páraino).

Muitas outras questões poderiam ser levantadas sobre a literatura de viagemmais ou menos romanceada, desde a descoberta feita por Montaigne, fundador dogénero diário de viagem para a França, até às reportagens do nosso século, como,por exemplo, as escritas pelo belga Albcrt T’Serstevens um pouco por toda a parte(Le vagabond sentünenta(, 1923; L’itinéraire espagnol — L’itinéraire portugais,1933). Isto passando pelo Nerval de Le voyage eu Orient, em que o autor confessater visto tantos países «s’ab!mer derrière nes pas comme des décorations dethéâtre»; ou a poesia dos portos em Biaise Cendrars (Bourlinguer), e Pierre MacOrlan; a poesia dos caminhos-de-ferro (Las ferrocarriles de Azorín); o elogio daviagem de burro (Robert Louis Stevenson) no Massif Central, em França; a viagemmarítima com Melville, Joseph Conrad ou Henry de Monfreid; a poesia do instantecaptado pelo homem com pressa em Paul Morand, viajante ïnfatigável que atravessa os espaços para matar o tempo, «la plus grosse bête à tuer>’, como ele próprio diz.

Em suma: a reflexão sobre a viagem nas suas r&ações com a literatura constituium campo de análises extremamente fecundo. Por um lado, a dimensão antropológica da viagem — a experiência do Outro — permite ao crítico literário, aocomparativista não esquecerem uma dimensão fundamental de toda a espécie decultura; por outro, a viagem permite um enriquecimento dc pensamento sobre

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DA IMAGEM AO IMAGINÁRIO

O estudo das imagens do estrangeiro num determinado texto, numa literatura oumesmo numa cultura — ou, como se diz em francês, imagologie — é um dosmétodos de investigação mais antigos, ou melhor dito, tradicional, em LiteraturaComparada, tendo caracterizado muito especialmente a escola francesa deJean-Marie Carré em, por exemplo, Les écrivains français e! le mirage auemand

(1947).De facto, o que aconteceu foi que o historiador começou a ocupar o lugar do

comparativista. sem dúvida porque o investigador literário começou a dedicar-seexclusivamente à análise do texto em si. Um dos sucessores de Jean-Marie Carré,M.-F. Guyard, considera que o estudo das imagens só pode interessar o investigador literário se abordar esses problemas a nível das transposições literárias, comose se pudesse ignorar completamente as implicações históricas e mesmo sociais.Paralelamente, o investigador literário ficava condenado a não estudar mais ahistória das ideias, outra herança legada por F. Baldensperger e Paul Hazard, umdos prolongamentos mais importantes de todo e qualquer estudo sobre as viagense as imagens.

Temos de reconhecer que esta «imagologie» teve ilustres inimigos. Já em1953, num artigo publicado no Yearbook of Comparative and General Literarure,

René Wellek se manifestava frontalmente contra este tipo de estudos, por eleconsiderados representativos da famosa «escola francesa» da Literatura Comparada, quer dizer,a escola erudita, historicista, digamos mesmo neopositivista.Dez anos depois, Etiemble, em C’omparaison ii ‘est pas raison, estigmatizava ostrabalhos que, segundo ele, «regardent l’historien, le sociologue ou I’hommed’Etat>’; e também esse género de estudo que era, segundo parecia, «prospêre enFrance, presque autant que les études sur les voyageurs islandais à Madagascar,malgaches au Kamtchacka, ou suédois à Bangkok!» (Paris, Ed. Gallimard, 1963,pp. 78-9).

Interdisciplinar avani la lettre, a imagologie caiu, sobretudo na França, em doisextremismos: por um lado, excessiva importáncia dada a textos literários separados da análise histórica e cultural; por outro, o excesso contrário, ou seja, umaleitura demasiado redutora de textos literários transformados em inventáriosde imagens do estrangeiro. Quem tenha consultado certos trabalhos comparativistas, certas teses consideradas por vezes importantes, trabalhos que Etiemble só

ligeiramente caricatura, conhece bem os defeitos básicos deste tipo de investigação: mera catalogação temática, mise à piar dos textos citados, inflação decitações, paráfrases, etc. No entanto, os erros em que outrora caíram algunscomparativistas não deverão impedir que se continue a explorar um campo deinvestigação tão fértil como o das imagens do estrangeiro, campo de investigaçãoque, aliás, voltou a atrair muitos especialïstas desde há alguns anos para cá. No«livro branco» sobre La recherche cri lirtérarure générale et comparte (Paris,SFLGC, 1983), Michel Cadot faz um balanço optimista sobre este campo deinvestigação, sobretudo na medida em que se mostra convencido da necessidadeduma tendência mais pluridisciplinar e duma aliança ampla entre a literatura e asquestões de ordem social e cultural. Por seu turno, Claudio Guillén, em Entre louno y lo diverso, primeiro «manual» (que é, de facto, muito mais do que um manual — é um verdadeiro tratado!) de Literatura Comparada em língua espanhola,muito favorável aos estudos de poética e reservado quanto à abordagem histórica,reconhece, no entanto, o interesse renovado pela imagologie, ou, como se poderádizer em português, imagologia.

Todavia, as coisas mudaram nos últimos dez anos. Recentemente, por exemplo,o próprio Claudio Guillén, em Múltiples moradas, consagra especificamente todoum estudo denso às imagens francesas da Espanha, intitulado sugestivamente«Tristes tópicos», dado que se trata muitas vezes, infelizmente, de lugares-comuns,clichés, sobretudo desde o Romantismo ou mesmo desde o Século das Luzes.

Não há dúvida que a emergência dos chamados cultural studies nos EstadosUnidos e na América do Sul implicou a reorientação dos estudos literários,centrando-os em contextos histórico-sociais e obrigando os investigadores a reexaminar aquilo que se obstinavam a não querer ver ou estudar. Ou seja: as complexasrelações da literatura com uma determinada estrutura social, cultural e política, nosentido geral do termo.

De facto, por isso mesmo, a imagologia despertou nos últimos anos um grandeinteresse na América e também na Europa. E ainda bem, não só porque essedomínio tradicional da Literatura Comparada se revitaliza, mas também porque osestudos literários perdem assim a sua pretensa autonomia pseudofonnalista ereencontram perspectivas mais equilibradas e, por consequência, mais adequadas aprocessos de evolução e de difusão.

E evidente que este estudo das imagens deriva de um certo número de investigações levadas a cabo por etnólogos, antropólogos, sociólogos, historiadores dementalidades, os quais abordam, por exemplo, questões sobre a aculturação, aalienação cultural, a opinião pública em face dos elementos estrangeiros. O camparativista tem todo o interesse em levar em conta certas interrogações feitas porinvestigadores que trabalham em campos próximos do seu. Não, claro, para pôr departe o estudo especificamente literário nem para ampliar desmedidamente o seuterritório, mas sim para confrontar os seus métodos aos métodos dos outros e,sobretudo, a imagem propriamente literária a outros testemunhos paralelos econtemporâneos (imprensa, paraliteratura, estampas, filmes, caricaturas, etc.).

Trata-se, de facto, de situar a reflexão literária numa análise geral que diz respeito

à cultura de uma ou de várias sociedades.

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1 — Ss’ereóUpos, imagens, imaginário

Em prir.cfpio, poderíamos distinguir três níveis de expressão de rnager.s noplano social e literário, ou seja, três orientações no estudo ou abordagem dumaproblemática imagológica:

— Um primeiro nível intimamente ligado ao problema da comunicação, daciltura dita de massa, das questões culturais e políticas, conjunto de estereótipos oude mitos em processo de elaboração, fenómenos bem estudados por historiadoresfranceses como Raoul Girardet, Maurice Agulhon e Jean Tulurd ou, em Portugal,pelo historiador João Medina. Trata-se de rastrear os elementos que permitamdetecta: a construção de emblemas, símbolos, alegorias (cf. João Medina, «Oh!A República!...» ..., Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990;«O Zé Povinho, estereótipo nacional: a autocaricatura do humo lusitanus», inHistória de Portugal, Amadora, Ediclube, 1993, Vol. xv, pp. 49-181) ou de mitospolítico-culturais, tal como o mito de Napoleão (Jean Elblard). Este tipo de estudopermite ao investigador literário estabelecer uma base indispensável para o conhecimento dum determinado momento histórico, político, social. Trata-se mesmo, porvezes, de detectar auto-imagens, auto-representações indissociáveis de representações polémicas do estrangeiro, como, por exemplo, o que se passou em Portugal naaltura do Ultimatum de 1890 com a imagem da Inglaterra, quer lendo a correspondência de Eça e de outros componentes da Geração de 70, quer pesquisando emjornais e revistas da época.

2 — Num segundo nível, situa-se a imagem comparativista no sentido maisgenérico do termo, relacionando-se com um estudo simultaneamente textual (lugarda imagem ou do mito, imagem mítica num texto ou numa obra) e de poética(imagem como matéria graças à qual se elabora um texto). Cite-se, como exemploparticularmente simples e sugestivo, um breve mas denso estudo, de Gérard Genettesobre a imagem de Veneza integrada no palimpsesto do tempo e do espaço emProust (Proust palimpseste», in Figures 1, Paris, Seuil, 1966, pp. 39-67).

3 — Num terceiro nível geral e teórico, ainda a propósito dos problemas depoética, situa-se o estudo daquilo a que chamamos imaginário e que abrange umaampla problemática. Funciona como horizonte de reflexão sobre o qual poderáprojectar-se o estudo literário, quer no plano da criação quer no plano da recepçãoou da interpretação.

Assim concebida, a imagem literária pode ser definida como sendo um conjuntode ideias sobre o estrangeiro incluídas num processo de literarização e também desocialização, quer dizer, como elemento cultural que remete à sociedade. Esta novaperspectiva obriga o investigador a ter em conta não só os textos literários em si,mas também as condições da sua produção e da sua difusão, bem como de todo omaterial cultural com o qual se escreve, pensa e vive. Este tipo de trabalho leva oinvestigador a encruzilhadas problemáticas em que a imagem tende a ser umelemento revelador especialmente esclarecedor do funcionamento duma ideologia(racismo, exotismo, por exemplo, para nos cingirmos a questões que dizem respeitoà fórmula consagrada «l’étranger tel qu’on le voit»). Com tudo isto, é impensávelque o investigador comparativista negue a especificidade do facto literário (frequen

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temente através da análise de narrativas de viagem, ensaios, romances, teatro, maisraramente da poesia). Todavia, esta dupla exigência e esta mudança de horizontenos estudos das imagens do estrangeiro não deixam de ter consequências para urnaredefinição do nosso campo de investigações específico (a imagologia) e mesmopara a nossa disciplina.

A imagem do estrangeiro deve ser estudada como fazendo parte dum conjuntovasto e complexo: o imaginário. Ou melhor, o imaginário social (expressão quefomos buscar aos historiadores) numa das suas manifestações específicas: arepresentação do Outro. Assim, é necessário tornar preciso o que se entende, emLiteratura Comparada, por imagem. Alguns elementos de definição permitemformular em seguida princípios de estudo dessa imagem e dar um conteúdometodológico à chamada iniagologia. Enfim, a problemática da imagem comparativista permitir-nos-á determinar os contornos desse imaginário que é afinalidade de todas estas nossas tentativas de investigação. -

O que será a imagem no sentido em que nós a concebemos? E evidente que adefinição que poderemos apresentar constituirá uma hipótese de trabalho, cujaformulação está sujeita a set aferida por investigações posteriores.

Repare-se, antes de mais, que toda e qualquer imagem procede de uma tomadade consciência, por menor que ela seja; procede de um «Eu» em relação a um

«algures». A imagem é, portanto, o resultado de uma distância significativa entre

duas realidades culturais. Ou melhor: a imagem é a representação de uma realidade

cultural estrangeira através da qual o indivíduo ou o grupo que a elaboram (ou que

a partilham ou que a propagam) revelam e traduzem o espâço ideológico no qual se

situam.Estes enunciados podem parecer vagos ou gerais. Eles recusam, à partida.

perspectivas que nos parecem erradas. Por exemplo, a psicologia dos povos (ou

etnopsicologia), cujos trabalhos dependem de uma certa sociologia qualitativa e

descritiva e que propõem uma imagem-standard, espécie de pendant metodológico

do indivíduo-tipo, ou do indivíduo de base, graças à psicologia americana. Pensa

mos que não se trata de maneira nenhuma de, através da literatura, chegar a uma

imagem média, trata-se antes de atingir um certo número de imagens que, sendo

diferentes e mesmo contraditórias, se exprimem numa mesma época, numa mesma

literatura. E aquilo a que chamamos, em história das ideias, «opiniões’>, opções

individuais ou de grupos.Uma outra perspectiva errada, estéril, é a que consiste em determinar a «falsida

de» de uma imagem, o grau de «fidelidade» de uma imagem em relação ao real

observado. Na verdade, a imagem não é um duplicado ou um análogo do real e as

imagens não são «erros» de percepção. A partir de que grau se pode considerar urna

imagem «falsa»? O estudo da imagem deve dar menos importância ao grau de

«realidade» duma imagem do que ao seu grau de conformidade com um modelo

cultural previamente existente, de que importa conhecer os componentes, os funda

mentos, a função social. Incontestavelmente, a imagem é, até certo ponto, lingua

gem, linguagem sobre o Outro; neste sentido, ela retoma necessariamente uma

realidade que designa e significa. Mas o verdadeiro problema é o da lógica da

imagem, da sua «verdade>’ e não da sua «falsidade». Sendo representação, a

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imagem é necessariamente falsa. Eça ao falar da França, mais propriamente de

Paris, dá uma imagem «falsa’> da realidade francesa Todavia, o investigador

comparativista deverá, para citar apenas este exemplo, estudar a verdade da imagem

queirosiana. Assim, o estudo da imagem leva à determinação das linhas de força

que regem a cultura, quer de um escritor, quer de um grupo social, quer de um país,

nos seus representantes letrados: o estudo das imagens é, consequentemente,

indissociável daquilo a que chamamos história das ideias, das mentalidades, diga

mos mesmo das sensibilidades.Uma forma particularmente corrente da «imagem», digamos mesmo o seu

estereótipo, é também quase sempre estudada em termos de falsidade, de esquema

tismo. Obviamente, o estereótipo é pobre, esquemático, falso, etc. Toma-se mesmo

arquicomum dizer que o estereótipo constitui um perigo para a compreensão dospovos. Devido à necessidade de rimar (e que pobreza de rimas!), os franceses do

século XIX diziam sempre, seguindo a moda da opereta, que les Portugais sonttoujours gais... A fórmula estereotipada pode parecer de somenos importância, pelomenos para o investigador habituado a tratar de textos de nível elevado. Todavia, noplano cultural, o estereótipo é de grande importância. Ele constitui uma 1&mamaciça de comunicação. Sendo uma redução extrema da informação, ele é também

uma forma ideal de comunicação de massas. Daí — será um acaso? — a presençaobrigatória do estereótipo em toda a «literatura» fabricada, para uso do povo: oromance em forma de folhetim, a literatura infantil, etc. O estereótipo é um pontode encontro entre uma sociedade determinada e uma das suas expressões culturaissimplificada, reduzida a um essencial ao alcance de todos.

Portador de uma definição essencial do Outro, o estereótipo é o enunciado deum saber colectivo que se pretende válido, seja qual for o momento histórico oupolítico. Mensagem essencial, dizíamos, porque se apoia num atributo e o generaliza a ponto de o tornar aparentemente essencial: este povo é assim... ou não éassim... Este povo sabe... ou não sabe... Quer dizer: o estereótipo representa umaconfusão essencial entre a Natureza, o Ser e a Cultura, o Fazer. Daí, por exemplo, oaparecimento dos estereótipos racistas, os quais, a partir de dados físicos, fisiológicos característicos do Outro pretendem dar desse Outro uma definição válida, sejaqual for a circunstância.

Por outro lado, o estereótipo é o tempo das pretensas essências, o tempobloqueado, aquele que a história concreta, a dos pequenos-grandes acontecimentos,não consegue donunar. Enunciar o estereótipo é confirmar uma situação, explicá-la:

o estereótipo demonstra ao mesmo tempo que se mostra; prova ao mesmo tempoque se enuncia. Neste sentido, o estereótipo é uma prodigiosa elipse do raciocínio,do espírito discursivo, de que é, evidentemente, a perfeita caricatura.

Enfim, o estereótipo levanta o problema de uma hierarquia de culturas: eledistingue o Eu do Outro e, quase sempre, valoriza o primeiro termo em detrimentodo segundo. Compreende-se, assim, de que maneira o estereótipo é, afinal, a formaembrionária do mito no sentido em que o entendem os sociólogos ou o RolandBarthes de Mythologies. E sabendo-se que o mito pode ser assimilado (o próprioBarthes o fez) a uma ideologia, ou a uma fracção de ideologia, não é de surpreenderque se possa (e que se deva) passar da imagem (estereótipo ou não) para a história

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das ideias. A imagem não passaria. consequentemente, de uma forma extrema,pitoresca, singular de urna ideologia de que é, por vezes, difícil dar uma definição.

«Le regard assure à notre conscience une issue hors du lieu qu’occupe notecorps.» O que Jean Starohinski propõe aqui, num texto publicado em VOeil vivam,poderia ser transposto, não sem precauções e nuances, para o plano da cultura «que

olha» (culture regardante) e da cultura «que é olhada» (culture regardée), parautilizar um binómio vocabular caro aos comparativistas. Eu «olho» o Outro — masa imagem do Outro veicula também uma certa imagem de mim mesmo. É impossível evitar que a ïinagem do Outro, a nível individual (um escritor), colectivo (uma

sociedade, um país, uma nação), ou semicolectivo (uma geração), não sumjam

também como a negação do Outro, o complemento, o prolongamento do meu

próprio corpo ou do meu próprio espaço. Queremos dizer «o Outro» (por imperio

sas e complexas razões, quase sempre) e, ao dizer «o Outro», negámo-lo e

dizemo-nos a nós próprios. De certo modo, dizemos também o mundo que nos

rodeia, dizemos o lugar de onde partiu o «olhar», o juízo sobre o Outro: a imagem

do Outro revela as relações que estabelecemos entre o mundo (espaço original e

estranho) e eu próprio. A imagem do Outro surge como uma língua segunda,

paralela à língua que falamos, coexistindo com ela, sendo, de certo modo, a sua

dupla, para dizer outra coisa.Aliás, da língua, a imagem tem, espantosamente, todas as características. Basta

lembrar os elementos de definição da língua dados por Emile Benveniste para os

aplicar, sem nenhum esquematismo, à imagem: enunciação (falar é falar de);

constituição em unidades distintas, em que cada uma delas é signo; referência para

todos os membros duma mesma comLtnidade; actualização da comunicação inter

subjectiva A imagem é, na verdade, uma língua segunda, uma linguagem. Entre

todas as linguagens de que pode dispor uma sociedade para se dizer e se pensar,

entre todas as linguagens simbólicas (lembremos, por exemplo, a da moda, estuda

da por Roland Banhes), a Imagem é uma delas, original, tendo por função exprimir

as relações interétnicas, interculturais, as relações menos efectivas que repensadas,

sonhadas entre a sociedade que fala (e que «olha») e a sociedade «olhada».

A imagem, porque é imagem do Outro, é um facto cultural; aliás, fala-se

frequentemente de imagologia cultural. Ela deve ser estudada como um objecto,

uma prática antropológica, tendo o seu lugar e a sua função no universo simbólico

nomeado aqui «imaginário», inseparável de toda a organização social e cultural,

pois é através dele que uma sociedade se vê, se escreve, se pensa e se sonha.

Vemos assim que a imagem como representação é passível de uma análise que

tem a ver com a semiologia, não só porque, como demonstrou Charles Pierce no

seu clássico Ecrits sur le signe (Paris, Ed. du Seuil), a semiologia é o domínio da

representação no sentido em que a entendemos, mas também porque esta represen

tação é um vector possível da comunicação (a <(linguagem segunda» ou «paralela»

de que falámos atrás). A imagem tem, para retomar as palavras de Roland Banhes

em Elémenrs de sémiologie, uma «função-signo». Porque a imagem é representa

ção, portanto, substituto em lugar de outra coisa, não tem o carácter teoricamente

polissémico que é devido a toda a composição artística ou estética. Por outras

palavras: num dado momento histórico e numa dada cultura, não é possível dizer,

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1

À

escrever seja o que for sobre o Oulro. Os textos «imagológicos» são textos em parteprogramados, alguns mesmo codificados e descodificáveis mais ou menos irnediatamente pelo público leitor, pois os discursos sobre o Outro não são em númeroiLimitado, mas sim em quantidade referenciável, «seriáveli>, para retomar o vocabulário do historiador. Enumerar, desmontar e explicar estes tipos de discurso, mostrare demonstrar de que maneira a imagem, tomada globalmente, é um &emento dumalinguagem simbólica — eis o objectivo fundamental da imagologia.

Mas voltemos à deflnição da imagem como texto programado, a fim de distinguir, no plano teórico geral, três elementos constitutivos da imagem que, por razões

de clareza e de eficácia, exporemos segundo uma ordem de complexidade crescente: a palavra, a relação hierarquizada, o scénario. A cada nível, a interrogação podelevar a certos métodos de análise que o investigador combinará ou invertirá,conforme achar melhor.

2 — Elementos duma poética da imagem

Como elemento inicial, constitutivo da imagem que tentamos reconstruir, identificamos um conjunto, mais ou menos amplo, de palavras que, numa determinadaépoca e numa determinada cultura, permitem a difusão, mais ou menos imediata edecisiva, duma imagem do Outro. Estas palavras, mas também, nos textos, estasconstelações verbais, estes campos lexicais compõem o arsenal nocional, afectivo,comum, em princípio, ao escritor e ao público leitor. Distinguir-se-á palavras-chavee palavras-fantasma, bem como duas ordens lexicais: as palavras provenientes dopaís que «olha» servindo para definir o país «olhado», e as palavras provenientesdo país «olhado» convertidas, sem tradução, na língua, no espaço cultural, nostextos do país que «olha». E também no seu imaginário.

Dêmos um exemplo. Para ilustrar o primeiro conjunto de propostas e explorar asimagens francesas da Espanha, cite-se, ao acaso, «orgulho», «nobreza», «honra»,«paixão», palavras que servem, desde o século xvi!, para qualificar o homemespanhol «visto» pela cultura francesa. Este léxico pode suscitar um estudo diacrónico (a «longue durée» dos novos historiadores franceses) e permitir precisões sobre apresença, a natureza e a função deste espanhol imaginado, mis en images, ou seja, misen mots num imaginário francês plurissecular. Em contrapartida, rodomontade, ouainda «extravagância» ou «romanesco» são palavras que serviram, essencialmente,do século xw ao século xviii. Identificar estas palavras, recompor os núcleos lexicaissão formas de mergulhar neste imaginário social e cultural que é objecto da nossareflexão. A investigação será ainda mais fecunda se recorrermos a palavras não traduzidas, intraduzíveis, pois essas palavras veiculam e significam uma realidade estrangeira absoluta, um elemento de alteridade inalterável: «hidalgo», «fandango»,«sombrero», ou ainda palavras que foram transpostas directamente para o francês,como «castagnettes», «mantilles», palavras em que o afrancesamento não consegueassimilar totalmente a hispanidade. Isto se admitirmos a expressão «hispanidade» nosentido em que Roland Banhes utilizou a expressão «italianidade» a partir dum cartazpublicitário («Rhétorique de l’image», ia Communicarions nY 4)

Dado que é a escrita de e sobre alteridade que estudamos aqui, é importanteestar atento ao que permite a diferença (o Outro versus Eu) ou a assimilação (oOutro semelhante ao Eu). Neste segundo caso, é evidente o partido que um estudo,à partida lexical, pode tirar de noções operatórias como a de isotopia e, dumamaneïra geral, de tudo o que permite passar duma série lexical, dum eixo sémicopara outra série, para outro eixo. E, por exemplo, é evidente que em numerosostextos e na opinião de numerosos letrados franceses dos séculos xvii e xviii, oorgulho castelhano, o ciúme excessivo, a preguiça, o romanesco (próximo daloucura quixotesca) tipicamente espanhóis se opunham em absoluto à imagemda França, baseada na inesure, na reserva, no trabalho, na razão (o verdadeiro, overosímil, etc.).

No texto estudado. a análise lexical deverá atentar em todo o vestígio deiteração, de repetição. em certas ocorrências, em toda a manifestação de automatismo na escolha do vocabulário que diz respeito especialmente à caracterização delugares (espaço estrangeiro), aos indicadores de tempo (delimitação cronológica,histórica, actual ou anacrónica, do Outro), léxico da delimitacão exterior e interiordas personagens, escolha onomástica (simbólica dos nomes preferenciais), emsuma, tudo aquilo que, ao nível da palavra, permite um sistema de equivalência (nosentido neutro do termo) entre o Outro e Eu. Convirá atentar na adjectivação, quepermite compreender certos processos de qualificação. Paralelamente, deverão serestudados os elementos de todo e qualquer processo de comparação que permitamdeterminar as passagens duma série semântica a outra, compreender como podemformar-se processos de apropriação do estrangeiro (redução do desconhecido aoconhecido, ao elemento «nacional») ou de afastamento, de exorcização, processosde integração cultural do Outro ou, pelo contrário, de exclusão, de marginalização.IJltirna referência: a presença ou ausência de notas explicativas, definições mais oumenos convencionais de elementos estrangeiros que devam ser «naturalizados»pelo público leitor.

Chegados a este ponto, o imaginário em que se integra determinada imagemformada por determinadas palavras ou determinado léxico imagístico, é umaespécie de repositório, de dicionário em imagens. Torna-se o utensílio nocional,afectivo de uma ou várias gerações, de uma classe social ou comum às diversascomponentes socioculturais. Determinada palavra corresponderá prioritariamentea determinada opção religiosa, política, filosófica, com efeitos de acumulação ede intercâmbio: quem poderá prever, daqui a alguns decénios, a fortuna, talvezliterária, certamente ideológica, da palavra goulag em França e, genericamente,no Ocidente? A «crueldade» espanhola, atributo que passou à categoria deessência, serviu indiferentemente (mas com nuances numa perspectiva histórica)para a opinião protestante do século xvi, para o honnête homme do século XVII, ofilósofo e o enciclopedista do século xviii, bem como ainda para o românticoexótico do século XIX e o antifranquista do século xx. A este nível, a imagologiaé um auxiliar activo da história das ideias e dos estudos de recepção, quedificilmente podem dispensar estes pontos de referência lexicais para compreender como se elabora, a partir de alguns vocábulos, um discurso crítico sobrea literatura do Outro.

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A estes elementos, ou núcleos lexicais, correspondem em geral processos desemantização bastante simples: a palavra, frequentemente, não está longe, pela suanatureza e pelo seu funcionamento, do estereótipo. Ela gera reflexos semânticosunívocos: é aquilo que designámos atrás por descodificação, mais ou menosimediata, pelo leitor. Todavia, trata-se de palavras-chave, autenticadas pela históriae pelo processus cultural de vários séculos. No caso das «palavras-fantasma», ossemas virtuais são, se assim se pode dizer, mais numerosos, os efeitos de sentidossão mais complexos, traçando campos semânticos mais amplos. A verdade é que a«palavra-fantasma» não serve apenas a comunicação directa, linguística; servetambém a comunicação simbólica. Cite-se, um tanto ao acaso, palavras como«harém», «odalisca» ou «deserto», cujos efeitos (exotismo) concorrem para aelaboração dum longínquo, dum imaginário oriental. E o que se passa, por exemplo,em O Egipto de Eça de Queirós e, quanto ao romance de Eça, em vários episódiosde evocação de interiores e da sensualidade mórbida que une Carlos e Eduarda emOs Maias.

Assim, a imagem é, à partida, um vocabulário fundamental na representaçãoe na comunicação. Todavia, devemos notar que as análises lexicais ou as ditasde conteúdo se limitam a descrições de superfície, a contagens ou a observaçõesde ordem semântica que, por mais interessantes que sejam, têm necessidade de seapoiar numa leitura que dê conta da organização global do texto, da arquitecturaduma sequência à sua articulação com outras, da identificação de alguns temasfundamentais às próprias estruturas do texto estudado. Trata-se de passar duminventário, que pode utilmente explorar os métodos de análise serial (auxiliarinseparável, aliás, da história das mentalidades) ao exame da produção do texto.O estudo da relação entre o Outro e Eu transforma-se em inquéritos sobre a «consciência enunciativa» (o Eu que diz o Outro), para retomar a expressão utilizada porMichel Foucault na sua Flistoire de ia foi/e à i’ãge classique. Seguir os meandros daescrita deste Eu enunciador, é identificar, para lá dos motivos, das sequências, dostemas, dos rostos e das imagens que dizem o Outro, a maneira de se articularem nointerior de um texto os princípios organizadores, os princípios distribuidores (sériedo Eu versas série do Outro), as formas lógicas e as divagações do imaginário.O texto, projecto de definição mais ou menos exaustiva do Outro, revela o universofantasmático do Eu que o elaborou, que o articulou, que o enunciou. Todavia, apassagem da palavra ao campo sintagmático, às sequências narrativas, implicaa adopção dum método de investigação novo que se inspire largamente da análiseestrutural, essa anáLise que Claude Lévi-Strauss elaborou para a leitura dos mitos.

Desta maneira, parece ser evidente que o comparativista, chamado a refiectirsobre os intercâmbios literários e culturais, não podia deixar de se interessar pelostrabalhos do antropólogo que falou também de viagens e de exotismo em Tristestropiques, do confronto entre culturas com escrita e culturas sem escrita, do«pensamento selvagem» e do pensamento dito moderno. O coniparativista nãopode sobretudo deixar de se interessar pelos métodos descritivos utilizados porLévi-Strauss para explicar o funcionamento dos mitos, métodos sem dúvida degrande interesse. Esta análise, chamada «estrutural», visa antes de mais pôr emevidência, na própria textura dos mitos, «núcleos de relações». A fórmula pode

aplicasse com proveito à imagem. Mas note-se: relações hierarquizadas. É importante, antes de mais, identificar os grandes sistemas de oposições que estruturam otexto (Eu versas o Outro), as principais unidades temáticas que permitem determinar as grandes sequências através das quais são descritas as características doestrangeiro, os elementos catalisadores da imagem do estrangeiro. Trata-se, nessecaso, de uma leitura verdadeiramente estrutural, dado que, no fundo, o investigadorse limita a reorganizar, segundo a sua lógica pessoal, o texto que estuda, na ordeme na sequência da lógica do escritor.

Ainda no prolongamento do ensino da antropologia estrutural, o estudo daimagem deverá consagrar-se à análise do quadro espácio-temporal. De facto, tempoe espaço não são apenas geradores de pitoresco descritivo, podem ter relaçõesexplicativas com as personagens, com o próprio escritor. Então, os dados ilustrativos dão lugar a uma instância estruturante da narrativa.

Assim, deveremos estudar todos os processos de organização ou de reorganização do espaço estrangeiro: as modalidades da determinação espacial, as dicotomias que originam uma revisão ou uma rêverie do espaço (sublime versas banal.movimentos epiffinicos versas movimentos catamorfos), todos os grupos de oposição e a sua transcrição literária (Norte versas Sul, cidade versas campo, longínquoversas familiar...), os princípios de desmontagem do espaço a partir da oposição debase Ego versas o Outro, os princípios de inclusão ou de exclusão nos quais umespaço (estrangeiro ou outro) se encontra implicado. Acontece que muitas vezes oespaço estrangeiro é envolvido num processas de mitificação: o espaço, na imagemda cultura, não é contínuo nem homogéneo; um pensamento mítico valoriza certoslugares, isola outros, condena outros ainda; confere a alguns a função primordial deser o verdadeiro círculo de vida do Ego e de uma colectividade escolhida, enquantooutra parte do espaço, face a esse substituto do cosmos harmonioso, assumirá opapel negativo do caos, gerador de desordens. E evidente que se deverá estar atento

a tudo o que pode tornar o espaço exterior isomorfo do espaço interior do escritor,pois um espaço estrangeiro reproduz e significa a paisagem mental de uma personagem, do escritor. Assim, a leitura desse espaço levará ao estabelecimento de.

relações quase explicativas entre o espaço geográfico e o espaço psíquico, pelomenos no plano metafórico.

Em pormenor, deveremos tentar aprofundar os princípios de distribuição dos

elementos espaciais, os processos de fixação dos lugares, os lugares va’orizados(fronteiras, por exemplo), as zonas investidas de valores positivos ou negativos,

tudo o que proporciona a simbolização do espaço (aquilo a que certos mitologistascomo Mircea Eliade chamariam a sacralização do espaço).

Os elementos que acabamos de propor para o estudo de um espaço estrangeiro(e a sua coexistência eventual com um espaço nacional) são igualmente aplicáveis

ao estudo do tempo. Não deixa de ter interesse notar, numa primeira abordagem, as

indicações históricas precisas contidas no texto. Mas deveremos estar atentos

também a tudo o que pode parecer uma mitificação do tempo histórico. Antes de

mais, os estereótipos, se existem, têm por função conferir ao texto um alcance

acrónico de extrema importância para a sua ordenação geral. Seguidamente, devere

mos estudar todo o movimento que tende a desencadear um recuo na história.

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Assim, serão postas em evidência as oposições, muito frequentes, do tempo linear eprogressivo da história poiflica ao tempo reversíve, c!clicc da iniagem. Não é raroconstatar que a representação do estrangeiro banha ruma espécie de obscuro tempomítico, fora de todos os limites precisos, o in lia tempore próprio do mito.

No que diz respeito à fixação dos princípios organizadores do texto, deveráatentar-se em tudo o que é linha divisória entre o Ego e o Outro, principalmente noplano das personagens representadas. Desta maneira, seremos levados a propor unisistema de relação das personagens. Poderemos então, como é evidente, começarpelas características morfológicas, por aquilo que, no texto, fundamenta a alteridade (elementos quase sempre mais de ordem pulsional do que racional), pelosa priori que determinam a elaboração da imagem do Outro, e também peloselementos que ultrapassam a mera determinação do Outro e que, por consequência,se encontram investidos de um significado particular no conjunto do funcionamentodo texto. Notem-se certas relações particularmente significativas para o nossoestudo da alteridade: a escolha das personagens femininas e masculinas, a sualigação quer com a cultura de origem do escritor quer com a cultura estrangeira(caso típico, na literatura francesa de «aventura», da relação entre um francês e urnaespanhola, por exemplo, nunca acontecendo o contrário...). Duma maneira gera:,deverá tentar-se pôr em relevo o sistema de qualificação diferencial, que permite aformulação da alteridade, através de elementos opostos que fundem natureza ecultura: selvagem versus civilizado, bárbaro versus culto, homem versus animal(ser humano animalizado), homem versus mulher, adulto versus criança (o Eu éadulto, o Outro é criança...), ser superior versus ser inferior, etc.

Enfim, a antropologia cultural leva-nos a abordar o texto (literário ou não) cornoum testemunho, um documento sobre o estrangeiro. Tentar-se-á então compreendercomo se desencadeou e desenvolveu o processo de conhecimento da parte doescritor: o que é dito (ou o que não é dito) sobre a cultura do Outro (práticas sociais,costumes, religião, habitar, cozinha, etc.). Quem se interessar pela irnagologiahispânica vê facilmente até que ponto estes dois últimos elementos são importantes, quer se trate de narrativa de viagem quer se trate de romance. Todavia, nãopoderemos esquecer (ver a este propósito o capítulo precedente), no caso dos textosliterários, a influência possível de certos modelos literários que se interpõem e quereordenam o texto: limitações formais que revelam a tensão a que o escritor estásubmetido (sobretudo no caso de um texto com intenções de realismo mais oumenos programático) entre a transcrição daquilo que ele considera real e o imperativo estético que orienta a sua escrita.

Depois de determinadas as significações latentes do texto (o núcleo lexical),depois da elucidação das condições de enunciação da representação do Outro,chegou o momento de interDretar os resultados desta dupla leitura. Este momento,o momento herrnenêutico, digamos, tantas vezes recusado pelos investigadores noestudo estritamente literário (desmonta-se o texto para ver corno «fa:a» — e étudo), é um momento obrigatório da leitura do texto e da imagem.

Para elaborar urna ((imagem» do estrangeiro, o escritor não tem, como se sabe,que copiar o real: selecciona um certo número de características, de elementosconsiderados pertinentes para a «sua» reoresentação do estrangeiro. Os mecanis

mos dessa escolha são desmontados. Resta-lhe, se assim se pode dizer. estudar osignificado social e cultural (e já não textual) desses elementos e as própas razõesdas escolhas feitas. Devei-ao confrontar-se os resultados da análise lexical e es:pjml com os dados fornecidos pela história: informações de natureza dupla (dadospolíticos, económicos, diplomáticos do momento, linhas de força que determinani acultura num determinado período). Trata-se de ver se o texto lïterário está ou nãoem conformidade com uma certa situação social e cultural; ver também a quetradição cultural, ideológica, o texto corresponde (daqui a ligação inevitável entreliteratura e história, ou antes, entre produção textual e processo histórico); ver emque campo do saber, do poder se situa o texto em questão, a que sector socioculturalpode dirigir-se prioritariamente; em suma, ver como se articulam a representaçãoliterária do estrangeiro e a cultura que «olha». Seria, portanto, um erro pensar quese trata pura e simplesmente dum confronto mecânico do texto com o seu contexto.Para compreender de que maneira determinada componente duma imagem culturalfoi seleccionada e se tornou elemento integrante dum texto e referência cultu.ral para o leitor, é preciso «sair» do texto e confrontá-lo com as explicaçõesfornecidas pelos historiadores. A compreensão dum texto imagológico (e não já doseu funcionamento) passa por uma ((derivação» pela História, particulanr.e:te pelahistória das mentalidades.

A partir de palavras, de relações hierarquizadas, a imagem desenvolve-se a:é setomar tema, sequência, cena, no duplo sentido, narrativo e dramatúrgico. Deterni.nado scénario inscreve-se no texto e pode confundir-se com a totalidade do textoestudado. Veja-se, por exemplo, o caso, simples, em que o scénario tende a seruntasérie programada de sequências narrativas, de sequências obrigatórias e reconhecidas pelo público na medida em que as imagens veiculadas estabilizaram de maneirapermanente na cultura que «olha», na qual são, como dizem os sociólogos, ‘sacializadas». Para numerosos viajantes, ensaístas, romancistas, «dizer” a Espanha,escrever sobre a Espanha, foi, durante muito tempo, alinhar obrigatoamente,programaticamente, sequências acerca duma hospedaria má, duma cozinha duvidosa, de bandidos à solta em caminhos de cabras, etc. Vem logo à memóriaoprincí.pio da novela Carmen de Mérimée, texto que, por seu turno, servirá de base a umlibreto de ópera que propagará um tipo social e cultural, ou melhor, una verdadeiromito, o da mulher fatal. Como vemos, não há nenhuma solução de continuidadeentre um estereótipo e um mito, a partir do momento em que um estereótipotomado narrativa, imagens, scénario, é o princípio possível dum mito. Não deixa deter interesse fazer notar que a palavra scénario em francês, praticamente intraduzível em toda a sua ambiguidade para português (simultaneamente argumento, intriga

e cenário), remete, de facto, para um dos elementos principais do mito; sequinciasduma história que se conta.

Dom Quixote contra os moinhos de vento, o fidalgo pobre mas cultivando0seuorgulho aristocrático, o seu código de honra são outros tantos estereótipns qreservem para definir, para hierarquizar e para difundir um espaço hispânico :ep:esentado na cultura francesa (e também noutras culturas). Mas estes eeaentosmemorizados, arquivados, são susceptíveis de se converter em história exenipaa devalor ético, reunindo um conjunto de valores explicativos: o Louco Geae:oso

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(servirá a Dostoievski de elemento constitutivo para aeração do seu idiota:, aMulher Fatal, a Paixão até à morte (ou Le Maitre de Santiago de Montherlant), etc.

Palavras, núcleos de relações, um scénario podem ser objecto dum verdadeiroinvestimento simbólico. Mas o imaginário não recorre a uma história qualquer, aum qualquer scénario. Trata-se, de facto, de referências culturais, de padrões, querpara o escritor que os escolhe (valor explicativo que faz da imagem retida um mitopessoal, por vezes obsessivo), quer para o grupo (histórias que, por convençãocultural, histórica, são susceptíveis de ser reactualizadas, reactivadas a todo oinstante). A imagem como duplo possível do mito: esta assimilação não devesurpreender, dado que tínhamos posto em paralelo a linguagem mítica e a linguagem imagológica. A imagem pode ter, como o mito, essa capacidade de contar, dereactualizar uma história que se tornará eventualmente exemplar. Pois não é verdade que a imagem é, como o mito definido por Marcel Détienne em L’invention de la

,nythologie, o lugar onde se desencadeia a luta entre a memória e o esquecimento?

3 — O imaginário como modelo simbólico

O imaginário que descobrimos é o lugar onde triunfa a intertextualidade. dadoque é o lugar de arquivagens e de reacrualizações possíveis de fragmentos, desequências, de pedaços de textos, vindos ou não do estrangeiro. Todavia, a intertextualidade de que falamos aqui, em vez de nos levar ao funcionamento interno dumtexto, convida-nos a compreender como e por que razão determinado texto setomou, para outrem, objecto cultural singular, utensílio de comunicação simbólica.A estas duas questões, só a história cultural é capaz de dar respostas. Torna-sedecididamente necessário convencermo-nos duma evidência: o texto imagológicoserve a algo na e para a sociedade, de que é a expressão fugitiva e parcelar. E que aimagem do Outro serve para escrever, para pensar, para sonhar de outra maneira.Ou seja: no interior duma sociedade e duma cultura estudadas em termos sistemáticos, o escritor escreve, escolhe o seu discurso sobre o Outro, por vezes emcontradição total com a realidade política do momento. A rêverie sobre o Outrotorna-se um trabalho de investimento simbólico contínuo. Se, no plano individual,escrever sobre o Outro pode levar à autodefinição, no plano colectivo, dizer o Outropode servir os défoulements ou as compensações, justificar as miragens ou os fantasmas duma sociedade.

Esta utilização do Outro, esta função social e cultural da imagem, da representação do Outro estão, de facto, bastante afastadas do frutuoso comércio das ideias,dos diálogos e dos intercâmbios literários que constituíram um campo de investigação particularmente rico nos estudos comparativistas. Na perspectiva aberta pelosintercâmbios literários internacionais, que fazer das imagens negativas, das relaçõeshostis com o Outro? De facto, em numerosos casos, o intercâmbio é unilateral: éfeito por um indivíduo, um grupo que se volta para o estrangeiro sem esperarnenhuma reciprocidade, nenhum efeito de ricochete, nenhum sentimento partilhado. Haverá, em todos estes casos, imagem, representação do Outro: o Outro seránão só «olhado>,, mas obrigado a calar-se. Consequentemente, importa distinguir,

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no próprio interior da história cultural que interrogamos, as relações unilaterais ebilaterais, as relações univocas e as relações recíprocas. Esta distinção leva-nos adeterminar algumas atitudes fundamentais que regem a representação do Outro.

Poderão distinguir- se quatro atitudes fundamentais:1 — A realidade cultural estrangeira é tida pelo escritor ou pelo grupo como

sendo absolutamente superior à cultura nacional de origem; esta superioridadeafecta toda a parte da cultura estrangeira. Há, neste primeiro caso, aquilo a quepoderemos chamar uma «mania». A consequência, no plano da cultura de origem,é que ela é tida por inferior, total ou parcialmente. Assim, por exemplo, a anglomania dos filósofos franceses, que se explica, genericamente, pela consciência dumafalha na cultura de origem (liberdades cívicas, tolerância, etc.). O estrangeiro éentão como que importado para suprir essa falha, e a imagem positiva da Inglaterraserve de crítica à cultura francesa, o que constitui uma missão delicada. Outroexemplo: a hispanomania dos românticos franceses não provém, como habitualmente se pretende, dum melhor conhecimento do país. Pode pôr-se em paralelocom outras fugas no tempo e no espaço (Itália, Oriente) para evidenciar (o queainda está por fazer) certas componentes daquilo que foi chamado exotismo ou malda siècle. Trata-se, afinal, da mesma Espanha de que se falava no Século das Luzes,mas os mesmos elementos são agora valorizados de maneira positiva, enquanto noséculo xviii eles eram objecto de crítica acerba. E evidente que a «mania’> desenvolve aquilo a que poderemos chamar uma «miragem». Assim, a miragem ibéricade Montherlant (a pôr em paralelo com a miragem romana) encontra-se precisamente numa obra em que são fustigadas a democracia, o povo em geral, e em quese constrói, no plano literário e ontológico, uma miragem «aristocrática», justificada quer pelo ideal tauromáquico quer pela austera virtude romana.

2— A realidade cultural estrangeira é tida por inferior ou por negativa em relaçãoà cultura de origem: há então «fobia», e esta atitude desencadeia, como reacção, umasobrevalorização de toda ou de parte da cultura de origem. A germanofobia dosescritores franceses no final do século xix desenvolve uma miragem latina que deveráopor-se diametralmente à barbárie germânica. A inferioridade é, no entanto, real:reconhece-se facilmente a superioridade do Norte nos planos industrial e económico.Mas, em contrapartida, afirma-se a superioridade «morai» da raça latina, a força doindivíduo contra as hordas nórdicas, etc. Outro exemplo: a inferioridade das letras eda cultura espanholas é proclamada não só no tempo em que, militarmente, a Françaé batida pela Espanha e em que se tem de encontrar um elemento de superioridadesobre o adversário, mas também no tempo das Luzes, a inferioridade hispânicaservindo então de justificação para a crítica feita contra o clero e a religiosidadeespanhóis, esta última considerada elemento idiossincrútico fundamental (como a

crueldade...). E evidente que estes elementos se opunham ao bon gota consideradocaracterístico da França, à douceur de vivre considerada tipicamente francesa, etc.

A miragem, no caso da fobia, está obviamente do lado da cultura de origem.3 — A realidade cultural estrangeira é tida por positiva e situa-se no interior de

uma cultura igualmente considerada de maneira positiva. Estamos então perante o

primeiro e único caso de trocas bilaterais que procedem de uma admiração mútua:

é a atitude a que chamaremos «filia».

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Enquanto a «mania» se alimenta de «empréstimos» (importa se do estrangeiroideias ou hábitos, caso, por exemplo, do dandismo, variante pitoresca da anglomania em França), a «filia» desenvolve processos de avaliação e de reinterpretação dc)estrangeiro. À aculturação brutal que implica a «mania», opõem-se a troca deideias, o diálogo de igual para igual com o Outro. Enquanto a <(fobia» implica amorte simbólica do Outro, a «filia» tenta impor a via difícil, exigente, que passapelo reconhecimento do Outro: o Outro vive então ao lado do Eu, não é nemsuperior nem inferior, nem sequer diferente no sentido dum certo «exotismo» — épura e simplesmente reconhecido como Outro.

Não haja dúvida que, em numerosos estudos, comparativistas ou não, a «filia>’ éinvocada, quando de facto se trata niais profundamente, mais simplesmente de«mania>’: toma-se sempre mais fácil importar, adoptar ideias e elementos estrangeiros que repensá-los e assimilá-los. Mas a «filia» implica além disso uma vontade permanente de diálogo privilegiado, vontade que pode, por vezes, explicar-sepela preocupação de restabelecer um equilíbrio que as fobias ou as manias tinham destruído. Por exemplo: a galofilia de certos críticos espanhóis do final doséculo XIX, como Azorin, deriva não só duma ideia positiva que eles tinham daFrança, mas também da admiração e do enraizamento na cultura de origem; o casocb Valery Larbaucl em relação às literaturas ibérica e hispano-americana é domesmo tipo. Estes casos são pouco frequentes em França. Um dos raros lusófilosque merecem ser mencionados pode ser considerado um intermediário entre os doispaíses, como Valery Larbaud, mas sem o génio nem o estilo deste: trata-se dePhiléas Lebesgue. Recuando no tempo, pode citar-se, da época romântica, Ferdinand Denis, também fino conhecedor do Brasil. Para todos eles, a cultura portuguesa merece um diálogo aberto com a cultura francesa, mas os franceses, como notaPhiléas Lebesgue, conhecem da literatura portuguesa apenas Camões, o qualresume para eles toda a cultura portuguesa e é um nome que dispensa, aliás, aleitura da obra!

Em contrapartida, se passarmos para o lado português, quantos nomes podemser invocados para ilustrar a francofilia! Sem falarmos de ((galicismo mental»,fórmula utilizada por Menendez Pelayo para qualificar a atitude dos éclairésespanhóis, demasiado influenciados quanto a ele pela França, pode, no entanto,afirmar-se sem exagero que para muitos portugueses letrados a «francofilia»torna-se por vezes galomania... Basta que o modelo francês se tome uma obsessão para que a troca de ideias e a comparação com Portugal evoluam no mausentido e percam o carácter bilateral que, precisamente, constitui a «francofilia».Atentemos, no entanto, em alguns elementos que, quanto a nós, são positivos nodiálogo luso-francês.

Pode dizer-se, em princípio, que todo o século XIX português participa destainfluência decisiva da França, tornada cultura privilegiada. Desde os primeiros anosdo liberalismo em Portugal, por volta de 1820, a cultura francesa constitui o pólodominante que reorienta a inspiração dos artistas e o pensamento de numerososescritores. Para não irmos muito longe: a chamada Geração de 70 foi nitidamentefrancófila. Por outro lado, para citar o exemplo de um outro francófilo que, sendocontemporâneo da Geração de 70, a atacou desde as Conferências do Casino,

Manuel Pinheiro Chagas, nos seus Novos ensaios críticos (Porto, 1867), manifestauma admiração sem limites pela França, sentimento que para ele (contrariamentea um hçn de Queiros) deverá estimular a admiração por Portugal. Depois da derrota de 1870, são numerosos os escritores portugueses que querem partilhar com aFrança os sofrimentos dessa derrota, mantendo-se, no entanto, note-se, perfeita.mente lúcidos nas crftfcas que fazem. Pode citar-se, a propósito, o caso de GuerraJunqueiro, em especial com Vitória da França (1870).

A francofilia acentua-se com o final do século, altura em que acorrem a Paris,tornada um verdadeiro pólo de atracção, numerosos escritores portugueses querecusam o regime monárquico decadente de D. Carlos. Para citarmos alguns menosconhecidos mas que não deixam de ter interesse histórico: o pintor e caricaturistaLeal da Câmara, colaborador da Marselhesa e de numerosas revistas satfricas; Joãode Campos Lima, anarquista, romancista menor, que manifesta um autêntico deslumbramento por Paris em Os meus dez dias em Paris. Atitude diferente é a deAquilino Ribeiro, o qual sabe dosear o amor pela França com um espírito críticoagudo. A Guerra de 14-18 será uma boa ocasião para uma clivagem importanteentre aqueles que desejam a participação na guerra contra a Alemanha e aquelesque defendem uma atitude neutral que leva por vezes a serem considerados germanófilos. Aquilino Ribeiro, no seu lúcido e corajoso livro intitulado Alemanha ensanguentada (Lisboa, 1934), será por vezes considerado germanófilo, o que não éevidentemente correcto. Por outro lado, da parte dos intervencionistas, deverácitar-se Xavier de Carvalho, que tanto contribuiu, por volta de 1900, para que osfranceses descobrissem e amassem Portugal.

4 —- A quarta e última análise é aquela em que não se põe o problema do juízopositivo ou negativo, pelo menos aparentemente, de maneira imediata. E o caso, porexemplo, do escritor ou do crítico que se afirma <(cosmopolita» e para o qual oestrangeiro, na sua singularidade, daria lugar a uma realidade mais ou menosuniforme que este letrado considerará, digamos, a sua república das letras. O estudodeste caso leva-nos, por vezes, ao extremo limite quer da mania quer da fobia, namedida em que esta ausência proclamada de juízo relativamente ao estrangeiro emsi, como personalidade concreta, é compensada noutro plano por uma hierarquia activa: por exemplo, determinado escritor será «europeu», reconstruindo umconjunto de elementos absolutamente positivo que forma a sua Europa (cristã,judeo-cristã, liberal, artística, social, socialista, etc.); outro integrar-se-á num todo«internacionalista’> em que obrgato:iamente se processará o confronto entre povosamigos e regimes momentaneamente considerados estranhos a esta fraternidadedesejada. Escusado seria dizer que, em todos esies casos, se encontram facilmenteas grandes opções filosóficas e políticas, esses movimentos que a história das ideiasdesigna por «ismos» e que, ao fim e ao cabo, conduzem a um bloqueamento daverdadeira troca de ideias, impondo uma hierarquia rígida. E o caso, típico, noséculo XIX, dos grandes movimentos panlatinos, pan-eslavos, pangermânicos, pan.-americanos, etc.

Manias, fobias, filias constituem, de maneira inequívoca, estável e permanente,as manifestações mais nítidas duma interpretação do estrangeiro, duma leitura doOutro. Elas constituem as atitudes fundamentais que podem esclarecer, no interior

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dum texto ou dum conjunto cultural, as escolhas, as prefer’3ncias, as rejeições, ospróprios princípios da escolha ideológica que implica toda e qualquer representaçãodo Outro.

Se se admitir que toda a cultura se define também por oposição a outra ououtras, a representação do Outro (lïterária ou não) é, simultaneamente, inseparávelde toda a cultura e a forma elementar dum fenómeno de esmagadora presença eefeito sociais: a rêverie sobre o Outro. Estas concretizações específicas que são asimagens do estrangeiro constituem esse imaginário social que foi apresentadodesde o princípio como sendo o próprio horizonte da investigação dita imagológica.O imaginário assim determinado tem, evidentemente, uma ligação directa com aHistória no sentido do acontecimento político, social, etc. Fenómenos tão importantes como o do «inimigo hereditário», do colonialismo e das suas consequênciasideológicas e culturais (racismo, exotismo artístico e literário) não podem deixar deinterferir profundamente na elaboração de imagens e no próprio conteúdo dumimaginário social num determinado momento histórico. E óbvio que o imagináriode que falamos está intimamente ligado com o passado e com o futuro dumasociedade, duma colectividade. Todavia, da mesma maneira que a imagem não é asimples reprodução, mais ou menos alterada, dum «real» qualquer, também oimaginário de que falamos não poderia ser o ersatz, o substituto da história política,económica, diplomática: tem, até certo ponto, a sua própria história, o seu próprioritmo, os seus princípios e as suas leis.

Ritmo próprio, por exemplo: não nos devemos esquecer até que ponto a imagempode, por vezes, ser «anacrónica» relativamente ao acontecimento político. E importante compreender que função social pode ter este anacronismo; que funçõespodem ter os textos que, em pleno século XX, por exemplo, continuam a explorara imagem duma Espanha do Século de Ouro, «plus spécialement l’Espagne à lafim du xvi, à moins que ce ne sok le commencement du xvti»e», para citar adidascália irónica de Claudel no início de Le Soulier de Satin. Princípios e leispróprios: designámos a imagem do Outro por rêverie, e esta designação deve seresclarecida.

A palavra rêverie deverá ser entendida no sentido pleno autorizado pela poética.A rêverie sobre o Outro, como toda a linguagem poética, baseia-se parcialmente emdois grandes princípios de simbollzação que são a metáfora e a metonímia. Processosde simbolização que são também, como vimos, processos de escrita, de caracterização, de classificação, de comparação; processos que podem relacionar-se com fenómenos mentais de carácter onfrico (a condensação e a deslocação) e tambémlinguístico (processos de transposição ou de metaforização, de substituição, indispensáveis para escrever, descrever, significar o Outro). Chegamos assim ao ponto extremo do nosso percurso «literário»: a imagologia, em textos específicos, pode tomarseus os princípios da poética segundo Roman Jakobson. O estudo do funcionamento(textual) dum certo imaginário só ganhará com isso, tomando-se mais pormenorizadoe rigoroso. Mas já sublinhámos a natureza especial do texto imagológico e da imagemem si mesma: modo simbólico de comunicação. Consequentemente, não bastaráestudar a mise en texte da imagem, deverá também compreender-se a mise en imaginaire da imagem, a fórmula nada tendo de tautológico.

A imagem do Outro, sendo unia representação cultural, nunca será plenamenteauto-referencial (como pode sê-lo a imagem poética), devido ao próprio carácter,mais ou menos programado, desta imagem de cultura; devido às hierarquias e àsdistâncias, que a exprimem e a fundamentaram; devido às atitudes mentais básicasque a regem. Se a imagem cultural tende a ser símbolo e a imagologia cultural umaespécie de linguagem simbólica, note-se que o seu significado é sempre mais oumenos convencional, quer dizer, garantido, em última análise, não só pelo enunciado que exprime, mns também pelo código social e cultural, derradeira componentedeste imaginário que justifica, cauciona a sua circulação e a sua validade, Estecódigo social e cultural é precisamente o que evita conceber o imaginário fora daHistória e do quadro social que ele exprime e para o qual remete,

Concluindo: o estudo das imagens (irnagologia) constitui um campo de investigação fundamental numa disciplina que, como a Literatura Comparada, pela suaabertura às culturas estrangeiras, bem como pela diversidade das questões levantadas e dos métodos utilizados, pode tomar-se plenamente uma «ciência do homem»,o homem de três dimensões: política, poética e imaginária.

Para atingir este objectivo, a Literatura Comparada deverá criar programas deinvestigação e utilizar meios de abordagem textual originais que, no entanto, partamdos velhos princípios especificamente comparativistas: o estudo da «part d’átranger» (como se dizia no tempo de Paul Van Tieghem) num texto, numa literatura,numa cultura.

Por outro lado, poderá dizer-se que a Literatura Comparada tem, não ummétodo, mas um conjunto de métodos que permitem resolver certos problemasespecíficos. Em alguns casos, é a psicanálise que poderá explicar de que maneiraum escritor (Victor Hugo, por exemplo) estabelece com determinado espaço estrangeiro (a Espanha) relações que têm a ver com, segundo a bela fórmula de CharlesBaudoin em Psychanalvse de Victor Hugo, «quelque reviviscence de sentiments quise situent à une époque três définie de son enfance» (Paris, Armand Colin, 1972,p. 47). Noutros casos, será a história (ideias, sentimentos) que esclarecerá umaspecto da vida intelectual dum país nas suas relações com uma cultura estrangeira.Mas em todos os casos, a démarche (mais do que o método) no estudo de imagensparece ser de facto de tipo estrutural, interdisciplinar e histórica.

Esta dámarche, ou seja, a relaçâo que o comparativista estabelece com o seucampo de investigação, leva-o a conceber o objecto de investigação como basepossível duma reflexão sobre a sua própria pesquisa. Nâo se trata duma questão depura objectividade. Há muito que numerosos investigadores, e antes de mais oshistoriadores, renunciaram a uma ilusória objectividade pretensamente científica.Em contrapartida, é possível e eficaz em termos científicos ser levado, pelo tema deinvestigação, a reexaminar a sua própria posição de investigador, o espaço do «Eu»que estuda; reexaminar o seu próprio sistema de valores à medida em que se avançano inquérito sobre o Outro. O estudo de imagens pode ajudar a uma tomada deconsciência (a uma objectivação) crítica das nossas práticas culturais, dos nossosreflexos mentais. Pode permitir uma revisão e uma reapropriação da cultura em queevoluem o investigador e a sua investïgação. Encontramos aqui a grande lição dos

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historiadores —- a dum Marc Bloch —, que justifica o estudo do passado pelo

interesse que tem para compreender o presente. Assim, num domínio como o do

estudo de imagens, não há problemas sem interesse, ou menores, há apenas-

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problemas mal postos.Por outro lado, o estudo de imagens. a história do imaginário que temos vindo

a anaHsar sen’e seguramente para renovar certas investigações ceniparativistas.

O programa de estudo poderia ser resumido da seguinte mareira: enumerar e

analisar, diacronicamente e sincronicamente, todos os discursos sobre o Outro

(literários ou não); integrar os elementos sociais, históricos, mas também aqueles

que regem hierarquicamente as relações interculturais, as quais são sempre relações

de força e nüo simples intercâmbios eu diálogos; reencontrar o caminho do

inquérito histórico, ou seja, da síntese, abordando-se quer textos quer questões

sociais, culturais em geral; confrontar entre si as conclusões às análises empreendi

das sobre os mesmos temas por investigadores em ciências sociais e humanas; em

suma, elaborar uma parte dessa história «total» cara aos novos historiadores,

história em que os comparativistas ocupam um lugar proporcional à atenção quedêem às dimensões sociais e culturais do factor literário e, muito simplesmente, seassim se pode dizer, à vida dos homens.

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