Mais fôlego para Cinco exercícios surfar · durante uma apneia estática – quando o corpo...

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N o dicionário, apneia significa “interrupção momentânea da respiração”. É exatamente pelo que passam surfistas de qual- quer espécie logo que vacam na primei- ra onda do dia – não importa se você é experiente, novato, ou surfista de fim de semana. Ficar sem oxigênio no sangue é biologicamente desagradável para to- dos. Quase todos. Existem seres humanos que sabem lidar – e muito bem – com esse tipo de perrengue. Christian De- queker Martin, 44 anos, é um deles. Duas vezes recordista brasileiro em freediving e ex-professor do Centro de Estudos em Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de São Paulo, Christian é um especialista. Ele começou a trabalhar aos 19 anos como salva-vidas no antigo The Waves, um conjunto de piscinas que existia em São Paulo nos anos 90, e hoje ministra cursos de apneia por todo o Bra- sil. No dia 19 de novembro, uma terça- -feira pré-feriado, apareci pela primeira vez na academia Top Swim, no bairro da Aclimação, em São Paulo, para integrar a lista de alunos do curso de apneia con- duzido por Christian. Anotei tudo e, ago- ra, você vai saber como um bom treina- mento pode salvar sua vida no outside. Aula 1 - Terça-feira, 19 de novembro de 2013 Sob a tutela de Christian Dequeker estão nove aprendizes nesta terça-feira chu- vosa. Diante de uma piscina de 25 metros de comprimento, o professor mostra em uma lousa branca como será o treinamento do dia. Uma das sequências inclui remar por 50 metros sobre uma prancha, dropar uma onda imaginária no chão e, logo em seguida, dar braçadas subaquáticas até onde os pulmões aguentarem. Quando seu corpo chegar ao limite e você realmente achar que está prestes a desmaiar, tire a cabeça para fora da água, respire e termine a piscina nadando crawl, sempre soltando o ar pela boca quando o rosto estiver virado para o fundo. Depois de repetir a sequência três vezes, passei para o segundo exercício do dia. Agora, o treino é em uma piscina menor, de menos de 10 metros de extensão. Eu deveria mergulhar, chegar ao meio do caminho, girar em duas cambalhotas sucessivas e, simultaneamente, soltar o ar dos pulmões, e, por fim, terminar o res- to do trajeto nadando por baixo da água. Depois, respirar profundamente uma só vez e atravessar, submerso, o caminho de volta. O exercício – que na lousa parecia muito fácil, mas, na prática, fazia-me sentir como um soldado do exérci- to norte-coreano – deveria ser repetido quatro vezes. Depois do sofrimento, co- mecei a aprender uma das principais lições dos especialistas em apneia: como identificar os sinais de alerta do corpo, que avisa quando estamos sob perigo. “Identificar esses sinais e negociar com o corpo é uma maneira de aguentar mais tempo embaixo da água”, diz Christian. Formigamento no diafragma ou em qualquer outro músculo, contrações invo- luntárias e engolimentos em seco são indícios de que o organismo está no limite. Numa situação real de risco, a melhor forma de sobreviver após identificar esses sinais é tentar manter os batimentos cardíacos lentos. O sossego mental é a cha- ve para o sucesso da apneia. É como meditar sob a água. Quanto menos ener- gia seu corpo gastar com movimentos e pensamentos desnecessários, maior sua chance de não “sambar”. No vocabulário dos praticantes de apneia, um aluno “samba” quando emerge com tontura, visão turva, pressão desregulada, quase desmaiando. Quando isso acontece, Christian pula na água e socorre a vítima imediatamente. “Muitos sambam por aqui”, diz o professor. “É normal”. O curso ministrado por Christian engloba cerca de 3 mil variações de exercícios. Em cada aula, há um treinamento diferente. O objetivo é fazer com que o corpo se adapte à presença do gás carbônico na corrente sanguínea. Aula 2 - Quinta-feira, 10 de dezembro de 2013 Em parceria com Romeu Bruno, especialista em apneia e renomado big ri- der paulista, Christian Dequeker promoveu o primeiro curso de apneia para surfistas e big riders em 2003. De lá para cá, o professor teve a oportunidade de usar ele próprio os ensinamentos que leciona. “Ainda não peguei Jaws, mas Nazaré que me aguarde”, diz. O mar mais casca-grossa que enfrentou até agora foi em Pico Alto, no Peru, e em Maresias, diz ele. Converso com Christian enquanto coloco máscara de mergulho e pés de pato antes de afundar na piscina para a aula desta quinta-feira, 10 de dezembro. Ao meu lado está Alexandre Liki, um ilustrador de 32 anos que frequenta as aulas de Christian há um ano e quatro meses. “Em cinco meses de treino, saí da mi- nha pior forma física para a minha melhor forma física”, diz. Alex, como é chamado, permaneceu inacreditáveis 5 minutos e 23 segundos submerso, durante uma apneia estática – quando o corpo flutua imóvel, virado para o fundo da piscina. “Aprendi a entender as reações do meu corpo. Isso gera uma segurança enorme, você começa a perceber que pode aguentar as piores situações no mar”, diz ele, que certa vez em El Salvador tomou uma série inteira na cabeça e, após longos segundos embaixo d’água, emergiu sorrindo, feliz por superar com facilidade o perrengue. Seu recorde de apneia dinâmica – quando se atravessa a piscina sob a água, movimentando as nadadeiras – foi de 100 metros. O aluno Hélio Lee, de 31 anos, tinha tudo para se dar mal em Jeffreys Bay, em agosto último, quando vacou ao dropar uma onda em Supertubes e tomou uma série de 2 metros rápidos na cabeça. “Senti a pressão lá embaixo, agar- rei as pedras no fundo e mantive a calma”, diz ele. Lee é aluno de Christian há um ano e meio. Até agora, seu recorde de apneia estática foi de 3 minutos e 49 segundos. Aos 42 anos, o engenheiro Wilson Feldberg também participava dos treinos daquela quinta-feira. Wilson – cujo recorde em ap- neia estática é de 3 minutos e 36 segundos e, na apneia dinâmica, 62,5 metros – fre- quenta as aulas na academia da Aclima- ção há quase quatro meses. Neste ano, ele embarcará pela segunda vez para a tem- porada de inverno no Hawaii. “Minha meta é cair em Waimea com 15 pés”, diz Wilson. “Vou tentar ter a coragem para isso”. Desde que começou a treinar apneia, Wilson diz que sua vida mudou. “Notei uma grande diferença no poder de concentração”, con- ta ele. “Nem tanto no fôlego, mas na capa- cidade de relaxar. Isso melhorou até a minha rotina no trabalho.” Wilson tem razão. Naque- la quinta-feira, percorri 50 metros na apneia dinâmica e consegui permanecer 2 minutos e 14 segundos submerso na apneia estática. Durante a semana, depois das atividades na academia e de exercícios respiratórios fora da água (veja dicas acima), notei minha respiração automaticamente mais eficiente. Agora resta o teste no mar. Sem dúvida, vou encarar as ondas de outra maneira. < Mais fôlego para surfar Depois de duas aulas de apneia em uma academia de São Paulo, a reportagem da FLUIR conseguiu passar 2 minutos e 14 segundos embaixo da água para mostrar como um bom treino respiratório pode melhorar seu rendimento no outside. por Bruno Abbud PÁG. 38 Ao lado, o Top Raoni Monteiro treina na baía de Waimea, Hawaii. Na outra pág., nosso repórter pratica os truques ensinados pelo especialista em apneia Christian Dequeker. © RODRIGO CORRADINI © SEBASTIAN ROJAS Cinco exercícios de respiração 1. Faça quatro respirações curtas, seguidas de uma profunda pelo nariz. Repita quatro vezes esse pequeno ciclo duas vezes ao dia. 2. Faça o mesmo mantendo a língua entre os dentes com os lábios fechados. 3. Faça o mesmo, mas com a boca bem aberta, respirando sempre por ela. 4. Faça o mesmo, com a boca bem aberta, porém respirando pelo nariz. 5. Faça 20 respirações sem ruído, inspirando e expirando suavemente.

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No dicionário, apneia significa “interrupção momentânea da respiração”. É exatamente pelo que passam sur fistas de qual-

quer espécie logo que vacam na primei-ra onda do dia – não importa se você é experiente, novato, ou sur fista de fim de semana. Ficar sem oxigênio no sangue é biologicamente desagradável para to-dos. Quase todos. Existem seres humanos que sabem lidar – e muito bem – com esse tipo de perrengue. Christian De-queker Martin, 44 anos, é um deles. Duas vezes recordista brasileiro em freediving e ex-professor do Centro de Estudos em Fisiologia do Exercício da Universidade Federal de São Paulo, Christian é um especialista. Ele começou a trabalhar aos 19 anos como salva-vidas no antigo The Waves, um conjunto de piscinas que existia em São Paulo nos anos 90, e hoje ministra cursos de apneia por todo o Bra-sil. No dia 19 de novembro, uma terça--feira pré-feriado, apareci pela primeira vez na academia Top Swim, no bairro da Aclimação, em São Paulo, para integrar a lista de alunos do curso de apneia con-duzido por Christian. Anotei tudo e, ago-ra, você vai saber como um bom treina-mento pode salvar sua vida no outside.

Aula 1 - Terça-feira, 19 de novembro de 2013Sob a tutela de Christian Dequeker estão nove aprendizes nesta terça-feira chu-vosa. Diante de uma piscina de 25 metros de comprimento, o professor mostra em uma lousa branca como será o treinamento do dia. Uma das sequências inclui remar por 50 metros sobre uma prancha, dropar uma onda imaginária no chão e, logo em seguida, dar braçadas subaquáticas até onde os pulmões aguentarem. Quando seu corpo chegar ao limite e você realmente achar que está prestes a desmaiar, tire a cabeça para fora da água, respire e termine a piscina nadando crawl, sempre soltando o ar pela boca quando o rosto estiver virado para o fundo. Depois de repetir a sequência três vezes, passei para o segundo exercício do dia.Agora, o treino é em uma piscina menor, de menos de 10 metros de extensão. Eu deveria mergulhar, chegar ao meio do caminho, girar em duas cambalhotas sucessivas e, simultaneamente, soltar o ar dos pulmões, e, por fim, terminar o res-to do trajeto nadando por baixo da água. Depois, respirar profundamente uma só vez e atravessar, submerso, o caminho de volta. O exercício – que na lousa parecia muito fácil, mas, na prática, fazia-me sentir como um soldado do exérci-to norte-coreano – deveria ser repetido quatro vezes. Depois do sofrimento, co-mecei a aprender uma das principais lições dos especialistas em apneia: como identificar os sinais de alerta do corpo, que avisa quando estamos sob perigo. “Identificar esses sinais e negociar com o corpo é uma maneira de aguentar mais tempo embaixo da água”, diz Christian. Formigamento no diafragma ou em qualquer outro músculo, contrações invo-luntárias e engolimentos em seco são indícios de que o organismo está no limite. Numa situação real de risco, a melhor forma de sobreviver após identificar esses sinais é tentar manter os batimentos cardíacos lentos. O sossego mental é a cha-ve para o sucesso da apneia. É como meditar sob a água. Quanto menos ener-gia seu corpo gastar com movimentos e pensamentos desnecessários, maior sua chance de não “sambar”. No vocabulário dos praticantes de apneia, um aluno “samba” quando emerge com tontura, visão turva, pressão desregulada, quase

desmaiando. Quando isso acontece, Christian pula na água e socorre a vítima imediatamente. “Muitos sambam por aqui”, diz o professor. “É normal”. O curso ministrado por Christian engloba cerca de 3 mil variações de exercícios. Em cada aula, há um treinamento diferente. O objetivo é fazer com que o corpo se adapte à presença do gás carbônico na corrente sanguínea. Aula 2 - Quinta-feira, 10 de dezembro de 2013Em parceria com Romeu Bruno, especialista em apneia e renomado big ri-der paulista, Christian Dequeker promoveu o primeiro curso de apneia para surfistas e big riders em 2003. De lá para cá, o professor teve a oportunidade de usar ele próprio os ensinamentos que leciona. “Ainda não peguei Jaws, mas Nazaré que me aguarde”, diz. O mar mais casca-grossa que enfrentou até agora foi em Pico Alto, no Peru, e em Maresias, diz ele. Converso com Christian enquanto coloco máscara de mergulho e pés de pato antes de afundar na piscina para a aula desta quinta-feira, 10 de dezembro. Ao meu lado está Alexandre Liki, um ilustrador de 32 anos que frequenta as aulas de Christian há um ano e quatro meses. “Em cinco meses de treino, saí da mi-nha pior forma física para a minha melhor forma física”, diz. Alex, como é chamado, permaneceu inacreditáveis 5 minutos e 23 segundos submerso, durante uma apneia estática – quando o corpo flutua imóvel, virado para o fundo da piscina. “Aprendi a entender as reações do meu corpo. Isso gera uma segurança enorme, você começa a perceber que pode aguentar as piores situações no mar”, diz ele, que certa vez em El Salvador tomou uma série inteira na cabeça e, após longos segundos embaixo d’água, emergiu sorrindo, feliz por superar com facilidade o perrengue. Seu recorde de apneia dinâmica – quando se atravessa a piscina sob a água, movimentando as nadadeiras – foi de 100 metros.O aluno Hélio Lee, de 31 anos, tinha tudo para se dar mal em Jeffreys Bay, em agosto último, quando vacou ao dropar uma onda em Supertubes e tomou uma série de 2 metros rápidos na cabeça. “Senti a pressão lá embaixo, agar-

rei as pedras no fundo e mantive a calma”, diz ele. Lee é aluno de Christian há um ano e meio. Até agora, seu recorde de apneia estática foi de 3 minutos e 49 segundos. Aos 42 anos, o engenheiro Wilson Feldberg também participava dos treinos daquela quinta-feira. Wilson – cujo recorde em ap-neia estática é de 3 minutos e 36 segundos e, na apneia dinâmica, 62,5 metros – fre-quenta as aulas na academia da Aclima-ção há quase quatro meses. Neste ano, ele embarcará pela segunda vez para a tem-porada de inverno no Hawaii. “Minha meta é cair em Waimea com 15 pés”, diz Wilson. “Vou tentar ter a coragem para isso”. Desde que começou a treinar apneia, Wilson diz que sua vida mudou. “Notei uma grande diferença no poder de concentração”, con-ta ele. “Nem tanto no fôlego, mas na capa-cidade de relaxar. Isso melhorou até a minha rotina no trabalho.” Wilson tem razão. Naque-la quinta-feira, percorri 50 metros na apneia dinâmica e consegui permanecer 2 minutos e 14 segundos submerso na apneia estática. Durante a semana, depois das atividades na academia e de exercícios respiratórios fora da água (veja dicas acima), notei minha respiração automaticamente mais eficiente. Agora resta o teste no mar. Sem dúvida, vou encarar as ondas de outra maneira. <

Mais fôlego para surfar

Depois de duas aulas de apneia em uma academia de São Paulo, a reportagem da FLUIR conseguiu passar 2 minutos e 14 segundos

embaixo da água para mostrar como um bom treino respiratório pode melhorar seu rendimento

no outside.

por Bruno Abbud

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Ao lado, o Top Raoni Monteiro treina na baía de Waimea, Hawaii. Na outra pág., nosso repórter pratica os truques ensinados pelo especialista em apneia Christian Dequeker.

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Cinco exercícios de respiração1. Faça quatro respirações curtas, seguidas de uma profunda pelo nariz. Repita quatro vezes esse pequeno ciclo duas vezes ao dia.

2. Faça o mesmo mantendo a língua entre os dentes com os lábios fechados.

3. Faça o mesmo, mas com a boca bem aberta, respirando sempre por ela.

4. Faça o mesmo, com a boca bem aberta, porém respirando pelo nariz.

5. Faça 20 respirações sem ruído, inspirando e expirando suavemente.