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Manual de Direito PENAL Parte Geral e Parte Especial JAMIL CHAIM ALVES 2020

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Manual de

Direito PENALParte Geral e Parte Especial

JAMIL CHAIM ALVES

2020

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a lei; legalidade estrita (somente as leis, emanadas do legislador, podem estabelecer delitos e fixar penas); leis claras e escritas; separação das funções estatais; proporcionalidade das penas (a severidade da punição deve ser proporcional à gravidade do delito); humanidade das penas (abolindo-se a pena de morte e a tortura); personalidade das penas (a sanção não deve passar da pessoa do delinquente); infalibilidade na aplicação das penas (a perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causa impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade).

Outros pensadores que tiveram notável partici-pação na reforma do sistema punitivo foram Char-les-Louis De Secondat (Barão de Montesquieu), François Marie Arouet Voltaire, John Howard, Jeremy Bentham e Denis Diderot.

7. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

7.1. Ordenações do Reino de PortugalOrdenações Afonsinas – Foram promulgadas

em 1446, por D. Afonso V, contendo elementos de Direito Canônico, Direito Germânico e de Direito Romano. Era o regime jurídico vigente em Portugal, aqui também aplicado no início da colonização. Não existiam os princípios penais e processuais penais, sendo previstas sanções cruéis, quando não a pena capital, para a maior parte das infrações.

Ordenações Manuelinas – Editadas em 1514, por D. Manuel. Não se distanciavam das Ordenações Afonsinas, sendo marcadas pela crueldade de suas punições.

Ordenações Filipinas – Entraram em vigor em 1603, pelas mãos de D. Filipe II. A matéria penal estava disciplinada no livro V. Ainda não eram conhecidos, à época, os princípios de direitos penal, tais como legalidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana. Era um ordenamento excessi-vamente rigoroso, cominando para a maior parte dos delitos a pena de morte, inclusive mediante tortura. Além da pena capital, previa outras sanções graves, como os açoites e o corte de membro.

Segundo Heleno Cláudio Fragoso, “a legislação penal do Livro V era realmente terrível, o que não constitui privilégio seu, pois era assim toda a legis-lação penal de sua época. A morte era a pena comum e se aplicava a grande número de delitos, sendo executada muitas vezes com requintes de crueldade.

(...) Havia ainda penas infamantes, mutilações, confisco de bens e degredo. As penas dependiam da condição dos réus e empregava-se amplamente a tortura, (...) sem haver proporção entre as penas e os delitos (...)”2.

7.2. Código Criminal de 1830

Proclamada a Independência do Brasil, o impe-rador D. Pedro I incumbiu os penalistas Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Clemente Pereira, então deputados, da elaboração de um projeto de Código Penal. Cada um deles apresentou um projeto diferente, ambos muito elogiados.

Em 31 de agosto de 1829, uma Comissão bila-teral formada para examinar os projetos apresentou o resultado do seu trabalho, assinalando a adoção do projeto de Vasconcelos como base, mas sem desconsiderar o projeto de Clemente Pereira.

Organizou-se outra Comissão na Câmara dos Deputados, com a finalidade de dar redação defi-nitiva ao projeto, o que ocorreu em 19 de outubro de 1830.

Em 16 de dezembro de 1830, após aprovação pela Câmara e pelo Senado, foi promulgado o Código Criminal, sob a égide da Constituição de 1824, que, por sua vez, foi influenciada pela Revolução Fran-cesa.

O Código Imperial foi um diploma bastante aplaudido. Adotou os postulados da escola clássica de direito penal e contemplou diversos princípios de direito penal, tais como a legalidade e a irre-troatividade da lei penal.

A pena de prisão, que não era prevista nas Ordenações Filipinas, foi cominada para quase todos os crimes, havendo duas espécies: a prisão simples, na qual os réus deveriam permanecer reclusos nos presídios; e também a pena de prisão com trabalho, na qual os condenados deveriam diariamente rea-lizar trabalhos dentro do recinto das prisões.

Dentre as várias inovações trazidas pelo Código de 1830, merece destaque a criação do dia-multa rendimento. É neste diploma que a multa aparece sob a forma de dias-multa, em razão da busca por uma sanção que se adequasse à capacidade econô-mica do condenado.

A principal crítica feita a este diploma diz res-peito à manutenção da pena de morte, dos açoites e da pena de galés.

2. Lições de direito penal: parte geral, p. 70-71.

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7.3. Código Penal de 1890A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888,

trouxe a necessidade de adaptar o Código Criminal de 1830 à nova realidade. Foi então que o deputado João Vieira De Araújo apresentou ao Ministro da Justiça um anteprojeto de revisão do Código Criminal.

Para analisá-lo, foi indicada uma Comissão formada por João Batista Pereira (relator), Visconde de Assis Martins e José Rodrigues Torres Neto. Em 10 de outubro de 1889, esta Comissão recomendou a completa reforma da legislação penal, e não uma simples revisão.

Diante disso, o Ministro dos Negócios e da Justiça, Cândido de Oliveira, incumbiu João Batista Pereira do projeto. Porém, com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, seu traba-lho foi interrompido.

O Ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Salles, novamente solicitou a elaboração do projeto a Pereira, que terminou seu trabalho em pouco mais de três meses.

O projeto foi então submetido a exame de uma Comissão integrada por José Júlio de Albuquerque Barros, Francisco de Paula Belfort Duarte e Luís Antonio dos Santos Werneck. Esta Comissão ado-tou o projeto quase na íntegra, sendo que em 11 de outubro de 1890, o Decreto 847 mandou execu-tar o novo Código.

O diploma apresentava graves defeitos e defi-ciências. Conforme magistério de Heleno Cláudio Fragoso, “o Código Penal de 1890 apresentava graves defeitos de técnica, aparecendo atrasado em relação à ciência de seu tempo. Foi, por isso mesmo, objeto de críticas demolidoras, que muito contri-buíram para abalar o seu prestigio e dificultar sua aplicação”3.

Todavia, este diploma trouxe alguns avanços, podendo-se destacar a consagração do princípio da dignidade humana (art. 44) e a abolição da pena de morte. Ademais, agasalhou o instituto do livra-mento condicional e fez referência a penitenciárias agrícolas (art. 48).

7.4. Consolidação das Leis Penais de 1932

Com o passar do tempo, numerosas leis foram editadas com o fim de corrigir as falhas do Código de 1890, tornando extremamente difícil sua consulta.

3. Lições de direito penal: parte geral, p. 74.

Vicente Piragibe, em primoroso estudo, reuniu tais disposições, resultando deste trabalho a Con-solidação das Leis Penais, adotada pelo Governo republicano por meio do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932. A Consolidação não foi um Código novo, mas sim uma coletânea da legislação vigente à época.

7.5. Código Penal de 1940Com a instalação do regime ditatorial, em 10

de novembro de 1937, o Ministro da Justiça Fran-cisco Campos incumbiu Alcântara Machado da redação de um anteprojeto de Código Penal.

Em maio de 1938, Alcântara Machado entregou ao governo um anteprojeto da Parte Geral do Código Penal e, em abril de 1940, o projeto definitivo.

O trabalho foi submetido a uma comissão revi-sora formada por Nelson Hungria, Roberto Lyra, Vieira Braga e Narcélio de Queiroz, com a partici-pação de Antonio Jose da Costa e Silva e sob a presidência do Ministro Francisco Campos.

Em 7 de dezembro de 1940, o presidente Getú-lio Vargas sanciona o Decreto-lei 2848 (que insti-tui o Código Penal), entrando em vigor em 1º de janeiro de 1942.

O Código manteve a pena privativa de liberdade como forma de punição por excelência. A importante matéria referente ao cumprimento das penas de prisão, especialmente quanto à legalidade, huma-nidade, personalidade e outros princípios relevantes, foi descurada pelo legislador de 1940, com sacrifí-cio da perspectiva de ressocialização do delinquente e do processo de integração que ele deve manter com a sociedade”4.

Previa o Código de 1940, na sua redação origi-nal, duas espécies de penas: principais (artigo 28) – reclusão, detenção e multa – e acessórias (artigo 67) – perda da função pública, eletiva ou de nomea-ção, interdições de direitos e publicação da sentença. Não contemplava penas alternativas.

7.6. Código Penal de 1969Atendendo ao clamor revisionista e considerando

as profundas modificações pelas quais passava a sociedade brasileira, resolveu o Governo Jânio Quadros elaborar um novo diploma penal.

Nelson Hungria, que foi incumbido de redigir o texto básico, apresentou seu anteprojeto em 1963.

4. DOTTI. Curso de direito penal: parte geral, p. 279.

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Em 1964, o ministro da justiça, Milton Campos, designou uma comissão revisora, da qual fizeram parte, além de Nelson Hungria – próprio autor do anteprojeto -, Roberto Lyra e Hélio Tornaghi.

Após a Revolução de 31 de março de 1964, a revisão se atrasou, até que em 9 de fevereiro de 1965, o próprio ministro Milton Campos dissolveu a comissão e formou outra, composta por Nelson Hungria, Hélio Tornaghi e Heleno Cláudio Fragoso, entregando a Aníbal Bruno a presidência.

O anteprojeto foi submetido a nova revisão, agora constituída por Heleno Cláudio Fragoso, Benjamin de Moraes Filho e Ivo D Aquino, e pro-mulgado pelo Decreto nº 1004 de 21 de outubro de 1969, baixado pela Junta Militar, no exercício da Presidência da República.

Estabelecia o novo diploma uma vacatio de poucos meses, prazo que foi sucessivamente pror-rogado. Nesse período, o novo Código sofreu pro-fundas alterações determinadas pela Lei nº 6016/73, até que o governo Geisel decidiu revogá-lo defini-tivamente em 1978, através da Lei nº 6578, sem vigorar um dia sequer.

Continua vigorando até os dias atuais o Código de 1940, cuja parte geral seria profundamente alterada pela Lei 7.209, de 11 de julho de 1984. É de se ressaltar que as modificações trazidas nesta reforma foram notoriamente inspiradas no Código Penal de 1969, ou seja, no projeto de Nelson Hungria.

TABELAS RESUMO – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL

Tempos Primitivos

No início, o crime era considerado um atentado contra os deuses. Os fenômenos da natureza eram vistos como reações sobrenaturais provocadas por essas divindades em razão da transgres-são de algum tabu (vingança divina). As punições tinham o objetivo de aplacar a cólera divina.Posteriormente, evoluiu-se para a vingança privada, que podia tanto envolver um indivíduo quanto o seu grupo social. Surge a chamada lei de talião (“olho por olho, dente por dente”), que determinava uma reação proporcional ao mal praticado.Em seguida, a evolução ocorre no sentido de restringir a vingança privada, que passa a ser limi-tada pelo talião e pela composição com a vítima (denominada preço da paz).Esta composição, inicialmente voluntária, passa a ser imposta pelo Estado e, posteriormente, abo-lida, passando as penas a serem exclusivamente públicas.

Direito Grego

Na Grécia antiga (época lendária), o crime e a pena continuaram a possuir cunho religioso. Havia o predomínio da vingança privada. Esta concepção começou a se modificar por meio da contri-buição de pensadores e filósofos, que desenvolveram o estudo da ciência política (Sócrates, Pla-tão, Aristóteles e Protágoras). O direito penal grego evolui para um período político (época histórica), assentando-se a pena não mais sobre fundamento religiosos, mas sobre bases morais e civis.

Direito Romano

Nos primórdios de Roma, as sanções tinham por fundamento a religião, resultando quase sem-pre no sacrifício do autor do delito. Destacava-se a figura do chefe da família (pater familias), que possuía amplos poderes e aplicava as punições ao seu grupo conforme seu próprio arbítrio.No período do Reinado (753 a.C.), a punição manteve seu caráter sagrado, mas começa a se fir-mar o período da vingança pública.A laicização do Direito ocorre com a Lei das XII Tábuas (século V a.C.). Os delitos foram divididos em públicos (acarretavam persecução pública e recebiam sanções a cargo do Estado) e privados (autorizavam uma reação privada, na qual a interferência estatal se restringia a regular seu exer-cício). A partir de 200 a.C., proíbe-se definitivamente a vingança privada. Durante o Império, ocorre novamente o recrudescimento das sanções, voltando-se a aplicar a pena de morte e criando-se novos tipos de punição.

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Direito Germânico

Na época primitiva, não havia leis escritas, sendo o direito consuetudinário. Havia duas catego-rias de delitos, públicos (aplicava-se ao ofensor a perda da paz, que o excluía do grupo familiar, equiparando-o aos animais do campo e podendo ser morto por qualquer pessoa) e privados (o ofensor era entregue à vítima ou seus parentes, para exercerem a vingança).A partir de 481 d.C., inicia-se a monarquia franca, surgindo um Estado unitário. Com o forta-lecimento do poder estatal, a vingança de sangue dá lugar à composição voluntária, em que o ofensor pagava certa quantia para compensar o prejuízo causado pelo delito. Em relação ao pro-cesso, vigoravam as ordálias ou juízos de Deus, provações cruéis que quase sempre tinham des-fecho terrível para o suspeito.

Direito Canônico

Ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana, teve sua primeira consolidação por volta do ano 1140. Em sua origem, era aplicável somente a pessoas sujeitas à disciplina religiosa. Com o crescimento da influência da Igreja sobre o Estado, foi se estendendo a todas as pessoas. O direito canônico dividia os crimes em três espécies: delicta eclesiástica (ofendiam o direito divino e eram castigados com penitências; de competência exclusiva dos tribunais eclesiásticos); delicta mera secularia (atentavam contra a ordem jurídica laica e eram punidos com penas comuns; de competência dos tribunais do Estado, em regra); delicta mixta (atentavam tanto contra a ordem divina quanto contra a humana, e poderiam ser julgados tanto pelos tribunais do Estado quanto pela Igreja que, neste caso, também aplicava penas).

Período Humanitário

No final do século XVIII, verifica-se uma tendência de reforma nas leis e na administração da jus-tiça, propiciada por um extraordinário movimento de ideias, ao qual se denominou Iluminismo.Verdadeiro marco do direito penal ocorre em 1764, com a publicação, em Milão, da obra “Dos delitos e das penas”, de Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. A obra constitui um libelo con-tra a pena de morte e as arbitrariedades da época, pregando a humanização das penas.

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Ordenações do Reino de Portugal

Ordenações Afonsinas – Promulgadas em 1446, por D. Afonso V, constituíam o regime jurídico vigente em Portugal, aqui também aplicado no início da colonização. Não existiam os princípios penais e processuais penais, sendo previstas sanções cruéis, quando não a pena capital, para a maior parte das infrações.Ordenações Manuelinas – Editadas em 1514, por D. Manuel. Não se distanciavam das Ordenações Afonsinas, sendo marcadas pela crueldade de suas punições. Ordenações Filipinas – Entraram em vigor em 1603, pelas mãos de D. Filipe II. A matéria penal estava disciplinada no livro V. Ainda não eram conhecidos, à época, os princípios de direitos penal. Era um ordenamento excessivamente rigoroso, cominando para a maior parte dos delitos a pena de morte, inclusive mediante tortura, além de açoites e o corte de membros.

Código Criminal de 1830

Foi um diploma bastante aplaudido. Adotou os postulados da escola clássica de direito penal e contemplou diversos princípios de direito penal, tais como a legalidade e a irretroatividade da lei penal. A pena de prisão, que não era prevista nas Ordenações Filipinas, foi cominada para quase todos os crimes. Dentre as várias inovações trazidas pelo Código de 1830, merece desta-que a criação do dia-multa rendimento. A principal crítica feita a este diploma diz respeito à manutenção da pena de morte, dos açoi-tes e da pena de galés.

Código Penal de 1890O diploma apresentava graves defeitos e deficiências, sendo bastante criticado. Todavia, trouxe alguns avanços, podendo-se destacar a consagração do princípio da dignidade humana e a abo-lição da pena de morte. Ademais, agasalhou o instituto do livramento condicional e fez referên-cia a penitenciárias agrícolas.

Consolidação das Leis Penais de 1932

Com o passar do tempo, numerosas leis foram editadas com o fim de corrigir as falhas do Código de 1890, tornando extremamente difícil sua consulta. Vicente Piragibe reuniu tais disposições, resultando deste trabalho a Consolidação das Leis Penais, adotada pelo Governo republicano por meio do Decreto 22.213, de 14 de dezembro de 1932. Não foi um Código novo, mas sim uma coletânea da legislação vigente à época.

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Código Penal de 1940

Manteve a pena privativa de liberdade como forma de punição por excelência. Previa o Código de 1940, na sua redação original, duas espécies de penas: principais (reclusão, detenção e multa) e acessórias (perda da função pública, eletiva ou de nomeação, interdições de direitos e publica-ção da sentença). Não contemplava penas alternativas.É o diploma utilizado até hoje, embora tenha passado por diversas alterações. A maior delas ocorreu em 11 de julho de 1984, com a aprovação da Lei 7.209, que modificou profundamente a parte geral do Código Penal.Continua vigorando até os dias atuais, embora a parte geral tenha sido alterada pela Lei 7.209/ 1984. As modificações trazidas nesta reforma foram notoriamente inspiradas no Código Penal de 1969 (projeto de Nelson Hungria que nunca chegou a entrar em vigor).

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Capítulo 3ESCOLAS PENAIS

As denominadas “escolas penais” foram corren-tes de pensamento surgidas ao longo da história, cada qual apresentando uma forma particular de compreender e investigar o delito, o criminoso e a sanção.

1. ESCOLA CLÁSSICAOs ideais consagrados pelo Iluminismo, crista-

lizados na obra do Marquês de Beccaria, “Dos Delitos e das Penas” (1764), serviram de fundamento à chamada Escola Clássica, nome dado pelos posi-tivistas com sentido pejorativo.

A Escola Clássica teve dois grandes períodos1:

a) teórico-filosófico – sob a influência do Ilumi-nismo, de cunho nitidamente utilitarista, pre-tendeu adotar um Direito Penal fundamentado na necessidade social. Este período, iniciado com Beccaria, foi representado por Gaetano Filangieri, Domenico Romagnosi e Giovanni Carmignani;

b) etico-jurídico – é o período em que a metafísica jusnaturalista passa a dominar o Direito Penal, acentua-se a exigência ética de retribuição, representada pela sanção penal. Os principais nomes desta fase foram Pelegrino Rossi, Fran-cesco Carrara e Enrico Pessina. Contudo, os maiores expoentes desta escola foram Beccaria e Carrara: o primeiro foi o precursor do Direito Penal liberal, enquanto o segundo foi o criador da dogmática penal. Na verdade, Carrara é quem simboliza a expressão definitiva da Escola Clássica, eternizando sua identificação como a “Escola Clássica de Carrara”.

Entre os postulados da Escola Clássica, pode-se destacar: o crime é um ente jurídico, pois consiste

1. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 111.

na violação do direito; a responsabilidade penal se funda no livre-arbítrio, ou seja, o homem é livre para escolher qualquer caminho (inclusive o do crime), enfrentando as consequências de seus atos; a pena é uma forma de retribuição pelo crime cometido, tendo o sentido de expiação e restabelecimento do equilíbrio do sistema, violado pelo delito (inspiração em Kant e Hegel); método racionalista e dedutivo (lógico), pois o Direito é considerado uma ciência.

2. ESCOLA POSITIVAA Escola Positiva surge no final do século XIX,

época de predomínio do pensamento positivista. O início desta fase ocorre com a publicação de “O Homem Delinquente” (1876), de Cesare Lombroso.

As teorias evolucionistas de Darwin e Lamarck eram expressão das ideias dominantes. Além destes, esta escola sofreu influência da doutrina materialista (Buchner, Haeckel e Molenschott), sociológica (Comte, Spencer, Ardigó e Wundt), frenológica (Gall), fisionômica (Lavater) e ainda dos estudos de Villari e Cattaneo2.

A Escola Positiva contrapôs, ao individualismo abstrato da Escola Clássica, a necessidade de defesa do organismo social contra a ação do delinquente, priorizando os interesses sociais. A ideia de resso-cialização do delinquente foi relegada a segundo plano e a aplicação da pena passou a ser vista como reação do corpo social contra a atividade anormal dos indivíduos. A pena perde seu tradicional cará-ter vindicativo-retributivo, reduzindo-se a um provimento utilitarista; seus fundamentos não são a natureza e a gravidade do crime, mas a persona-lidade do réu, sua capacidade de adaptação e espe-cialmente sua periculosidade3.

2. BITENCOURT; PRADO. Elementos de direito penal, p. 31.3. COSTA, Fausto. El delito y la pena em la historia de la filosofia,

p. 153.

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101Cap. 3 • ESCOLAS PENAIS

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Nos dizeres de Fragoso, “o movimento positivista [...] tem por base a ineficácia do sistema penal clássico, como meio de repressão à criminalidade, defendendo a substituição do princípio da retribui-ção (fundado no livre-arbítrio), por um sistema de prevenção especial, com base no estudo antropoló-gico do homem delinquente e do crime como fato social, retornando à ideia de defesa social acentuada à época do Iluminismo”4.

Suas principais características são: a) O Direito Penal é produto social, criação do homem; b) a responsabilidade penal se fundamenta na respon-sabilidade social, derivada do determinismo (vida em sociedade); c) o delito é fenômeno natural e social (fatores individuais, físicos e sociais); d) a pena é um meio de defesa social, com função pre-ventiva; e) o método é o indutivo experimental; f) os objetos de estudo do Direito Penal são o crime, o delinquente, a pena e o processo; g) busca subs-tituir a pena por medidas de segurança5.

A Escola Positiva apresenta três fases, cada qual com sua característica predominante e seu expoente máximo:

a) Fase antropológica – Cesare Lombroso (“O Homem Delinquente”, 1876) iniciou a aplicação do método experimental no estudo da crimi-nalidade. Além disso, desenvolveu a teoria do criminoso nato, defendendo que o criminoso estaria pré-determinado à prática de infrações penais por razões antropológicas, nele presentes de modo atávico6. Lombroso teve o mérito de fundar a Antropologia Criminal, buscando uma explicação causal do comportamento antissocial do criminoso por meio do estudo antropológico;

b) Fase sociológica – Enrico Ferri (“Sociologia Criminal”, 1892) negava a ideia de livre arbítrio e da responsabilidade moral do agente, susten-tando uma responsabilidade social. Para ele, “todo homem é sempre responsável por qualquer ação antijurídica realizada por ele, unicamente porque e enquanto vive em sociedade”7. Fun-damentava a punição na defesa social, tendo por finalidade primordial a prevenção de novos crimes;

c) Fase jurídica – Raffaele Garofalo (“Crimino-logia”, 1885) deu sistematização jurídica à Escola

4. Lições de direito penal: parte geral, p. 56.5. PRADO. Tratado de Direito Penal: parte geral: volume I, p. 75.6. O termo atavismo consiste na hereditariedade biológica de

características psicológicas.7. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime, p. 282.

Positiva, estabelecendo, basicamente, os seguin-tes princípios: “a) a periculosidade como fun-damento da responsabilidade do delinquente; b) a prevenção especial como fim da pena, que, aliás, é uma característica comum da corrente positivista; c) fundamentou o direito de punir sobre a teoria da Defesa Social, deixando, por isso, em segundo plano os objetivos reabilita-dores; d) formulou uma definição sociológica do crime natural, uma vez que pretendia supe-rar a noção jurídica. A importância do conceito natural de delito residia em permitir ao cientista criminólogo a possibilidade de identificar a conduta que lhe interessasse mais”8.

3. TERCEIRA ESCOLAA chamada Terceira Escola (Terza Scuola Italiana,

também conhecida como Escola Crítica), teve como expoentes Emanuele Carnevale, Bernardino Ali-mena e Giuseppe Impallomeni. Seu marco inicial ocorreu em 1891, com a publicação do artigo Una terza scuola di Diritto Penale in Italia, de Emanuele Carnevale.

A Terza Scuola teve posição intermediária em relação às predecessoras, apresentando as seguintes características: a) a responsabilidade penal é baseada na imputabilidade moral, sem o livre-arbítrio, que é substituído pelo determinismo psicológico: o homem está determinado pelo motivo mais forte, sendo imputável quem tiver capacidade de se deixar levar pelos motivos. Aos que não possuem tal capa-cidade, deve ser aplicada medida de segurança e não pena; b) o crime é contemplado no seu aspecto real, como um fenômeno social e individual; c) a pena tem função defensiva ou preservadora da sociedade9.

4. ESCOLA MODERNA ALEMÃA Escola Moderna Alemã (Paul Anselm von

Feuerbach, Franz Von Liszt, Van Hamel e Adolphe Prins) também buscou conciliar postulados da Escola Clássica e da Escola Positiva.

As principais características dessa escola são: a) distinção entre o Direito Penal e as demais ciên-cias criminais (como a Criminologia, a Sociologia e a Antropologia), adotando-se para o Direito Penal o método lógico-abstrato e para as outras o método indutivo-experimental; b) o delito é considerado,

8. BITENCOURT. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 117.9. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 176.

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ao mesmo tempo, um fato jurídico e um fenômeno humano-social; c) aplicação de pena aos imputáveis e de medidas de segurança aos inimputáveis, como um duplo meio de luta contra o delito; d) função finalística da pena – mesmo sem perder o caráter retributivo, prioriza a finalidade preventiva da sanção, particularmente a prevenção especial, orien-tada conforme a personalidade do delinquente; e) desenvolvimento da política criminal10.

5. ESCOLA TÉCNICO-JURÍDICAA Escola Técnico-jurídica, surgida em 1905, teve

como principais representantes Arturo Rocco, Karl Binding e Vincenzo Manzini.

Em contraposição à grande preocupação da Escola Positiva com aspectos sociológicos e antropológicos do delito, pregava que o Direito Penal não poderia ser confundido com essas ciências causal-explicati-vas. Enquanto ciência normativa, deveria ser com-preendido sob um ponto de vista jurídico.

Nessa ótica, o objeto da ciência penal se restrin-giria ao ordenamento jurídico positivo, e o trabalho do penalista consistiria em interpretar o texto legal, limitado ao aspecto gramatical (exegese); ordenar sistematicamente o seu conteúdo e dele extrair princípios e critérios de interpretação e integração (dogmática); e, por fim, propor reformas, caso a lei se mostre deficiente (crítica).

Pode-se apontar como as principais caracterís-ticas da Escola Técnico-Jurídica: a) o delito é pura relação jurídica, de conteúdo individual e social; b) a pena constitui uma reação e uma consequência do crime (tutela jurídica), com função preventiva geral e especial, aplicável aos imputáveis; c) a medida de segurança – preventiva —, é aplicável aos inim-putáveis; d) a responsabilidade é moral (vontade livre); e) o método utilizado é técnico-jurídico; e f) rejeição ao emprego da filosofia no campo penal11.

6. ESCOLA CORRECIONALISTAA Escola Correcionalista surge na Alemanha,

em 1839, com a publicação da obra “Comentatio na poena malum esse debeat”, de Karl David August Röeder. O autor defende que a pena tem finalidade reeducativa, sem o objetivo de castigo ou vingança. Por essa razão, poderia ser aplicada sem prazo determinado, cessando quando se tornasse desne-cessária.

10. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 77.11. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 79.

Pedro Dorado Montero, inspirado em Röeder, difundiu a teoria na Europa, propondo a implanta-ção de métodos corretivos e tutelares para lidar com o delinquente, retirando da pena o caráter de castigo. Na mesma esteira de pensamento se funda a doutrina de Concepción Arenal, que entendia não haver criminosos incorrigíveis, somente incorrigidos.

As principais características da escola correcio-nalista são: a) o delinquente é visto como um ser incapaz para o Direito, um ser limitado por uma anomalia da vontade, e que portanto precisa de ajuda; b) a sanção penal representa um bem, podendo ser indeterminada (sem prazo de duração); c) o arbítrio judicial deve ser ampliado no que se refere à individualização da pena; d) a função penal deve ser vista como preventiva e de tutela social; e) a responsabilidade penal deve ser entendida como responsabilidade coletiva, solidária e difusa12.

Esta doutrina é considerada o sustentáculo da teoria socializadora da pena, que viria a se consolidar com a vertente humanitária da Nova Defesa Social.

7. DEFESA SOCIALA Escola da Nova Defesa Social teve início em

1945, sendo intitulada inicialmente Defesa Social, com a doutrina de Filippo Gramatica.

Almejava a supressão do direito penal, da res-ponsabilidade penal, da pena e do sistema tradicio-nal de processo penal, propugnando a ressocializa-ção do delinquente. O Direito Penal deveria ser substituído por um direito de defesa social, cuja finalidade seria adaptar o indivíduo à ordem social e não a sanção de seus atos.

Posteriormente, surge uma doutrina mais mode-rada, denominada Nova Ordem Social, nome retirado do livro homônimo de Marc Ancel, publi-cado em 1954.

As ideias fundamentais da Nova Ordem Social estão compiladas no chamado Programa Mínimo, estabelecido pela Sociedade Internacional de Defesa Social, fundada em 1949. Seus principais postulados são: a) realizar um exame crítico das instituições vigentes, com o fim de melhorar e humanizar a ação punitiva, seja para reformar ou para abolir as instituições; b) vincular todos os ramos do conhe-cimento capazes de contribuir para a visão completa do fenômeno criminal; c) construir um sistema de política criminal que assegure os direitos humanos e promova os valores essenciais da humanidade,

12. PRADO. Tratado de Direito Penal, v. 1, p. 80.

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rechaçando, por conseguinte, o sistema neoclássico punitivo-retributivo. No tocante às penas, a doutrina da Nova Ordem Social, rechaça a pena de morte e o uso indiscriminado das penas privativas de liber-dade, mantendo um duplo tratamento para a cri-minalidade: quanto aos ilícitos menores haveria a

descriminalização, enquanto que para as infrações mais graves ocorreria o caminho oposto, ou seja, a criminalização13.

13. ARAÚJO JÚNIOR, João Marcello. Os Grandes Movimentos Atuais de Política Criminal, p. 149-150.

TABELA RESUMO – ESCOLAS PENAIS

ESCOLA EXPOENTES CARACTERÍSTICAS

Clássica

1ª fase – Gaetano Filangieri, Domenico Romagnosi e Giovanni Carmignani2ª fase – Pelegrino Rossi, Francesco Carrara e Enrico Pessina

O crime é um ente jurídico (violação do Direito).A responsabilidade penal é baseada no livre-arbítrio.A pena tem caráter retributivo, com sentido de expiação e restabelecimento do equilíbrio do sistema (inspiração em Kant e Hegel).Prega a legalidade, a humanidade e a proporcionalidade das punições (rea-ção ao Absolutismo).Método racionalista e dedutivo.

Positiva

Cesare Lombroso, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo

O crime é fenômeno natural e social.Nega a ideia de livre-arbítrio; a responsabilidade penal é baseada na respon-sabilidade social, derivada do determinismo.A melhor forma de punição é a medida de segurança por prazo indeterminadoA pena é um meio de defesa social, com função de prevenir crimes.Método indutivo-experimental.

Terceira Escola (Terza Scuola

ou Escola Crítica)

Emanuele Carnevale, Bernardino Alimena e Giuseppe Impallomeni

Escola eclética, busca conciliar os postulados das escolas anteriores.O crime é fenômeno social e individual.A responsabilidade penal é baseada na imputabilidade moral (determinismo psicológico).Podem conviver tanto as penas (imputáveis) quanto as medidas de segurança (inimputáveis)A pena tem função de defesa ou preservação da sociedade.Método lógico-abstrato e dedutivo, rejeitando o método indutivo-experimental.

Moderna Alemã

Paulo Anselmo de Feuerbach, Franz Von Liszt, Van Hamel e Adolphe Prins

Também é uma escola eclética, buscando conciliar os postulados das escolas clássica e positiva.Distinção entre o Direito Penal e as demais ciências criminais (reação à exces-siva confluência dos diversos ramos feita pela Escola Positiva).O delito é considerado, ao mesmo tempo, um fato jurídico e um fenômeno humano-socialAplicação de pena (imputáveis) e de medidas de segurança (inimputáveis), como um duplo meio de luta contra o delito.Sem perder o caráter retributivo, prioriza a finalidade preventiva da sanção, particularmente a prevenção especial, orientada conforme a personalidade do delinquente.Emprego tanto do método lógico-abstrato (para o Direito Penal) quanto do indutivo-experimental (para as demais ciências).

Técnico-Jurídica

Arturo Rocco, Karl Binding e Vincenzo Manzini

O delito é relação jurídica de caráter individual e social.A responsabilidade é moral, sendo o homem dotado de livre-arbítrio.São aplicáveis tanto penas (imputáveis) quanto medidas de segurança (inim-putáveis).Método técnico-jurídico. O objeto da ciência penal se restringe ao ordena-mento jurídico positivo, consistindo o trabalho do penalista em interpretar o texto legal (exegese); ordenar sistematicamente o seu conteúdo e dele extrair princípios e critérios de interpretação e integração (dogmática); e propor even-tuais reformas (crítica).Rejeita o emprego da filosofia no âmbito penal.

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104MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

Correcionalista

Karl David August Röeder, Dorado Montero e Concepción Arenal

O crime é um ente jurídico, criação do homem.A responsabilidade penal é coletiva e solidária.O delinquente é um indivíduo incapaz, e que, portanto, precisa de auxílio.A pena tem finalidade de cura ou emenda, e não de castigo, devendo ser inde-terminada (sem prévia duração).

Defesa Social

Filippo Gramatica e Marc Ancel

O crime é um mal, desestabilizador da sociedade.O criminoso precisa ser adaptado à ordem social.A pena tem finalidade de defesa social (proteger a sociedade contra os crimi-nosos e também proteger seus membros para não caírem na criminalidade).Preconiza a humanização das punições e o respeito aos direitos humanos. Rejeita o sistema punitivo-retributivo, bem como a pena de morte e o uso indiscrimi-nado das penas privativas de liberdade.

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Capítulo 4MODELOS DE DIREITO PENAL

1. INTRODUÇÃOA partir do século XX, surgiram diversas cor-

rentes de pensamento relacionadas ao controle da criminalidade e ao papel do Direito Penal nessa tarefa.

Entre os sistemas propostos, encontram-se, em um dos extremos, o abolicionismo penal e, do outro, o direito penal máximo (aqui representado pelos movimentos de lei e ordem, tolerância zero e direito penal do inimigo). No meio termo, situam--se os modelos de direito penal mínimo (destacan-do-se o garantismo penal).

DIREITO PENAL MÍNIMO

ABOLICIONISMO PENAL

DIREITO PENAL MÁXIMO

Noutro vértice, surge a justiça restaurativa, baseada na consensualidade e no engajamento de todos os envolvidos (autor do fato, vítima e comu-nidade), buscando a reparação dos danos causados pelo crime e a reintegração social do ofendido e do infrator.

2. ABOLICIONISMO PENALO abolicionismo penal, enquanto movimento

acadêmico, surge a partir do início da década de 1970, tendo como expoentes Louk Hulsman (Holanda), Thomas Mathiesen e Nils Christie (Noruega).

A doutrina abolicionista faz uma crítica arrasa-dora ao sistema punitivo, afirmando que ele só tem servido para legitimar e reproduzir as desigualdades e injustiças sociais, representando uma instância

seletiva e elitista1. Defende, assim, a eliminação do sistema penal ou, em algumas vertentes abolicio-nistas, um amplo processo de descriminalização (a conduta deixa de ser considerada crime), de despenalização (a conduta continua sendo crime, mas a pena é retirada) e de mitigação do rigor das penas.

Entre as razões apontadas para a eliminação do direito penal, destacam-se as seguintes: a) já vivemos em uma sociedade sem direito penal – a cifra negra, ou seja, as infrações praticadas e que não são leva-das ao conhecimento das autoridades, é altíssima, podendo chegar a 90%. Todos esses casos já são resolvidos fora da justiça criminal; b) anomia – as normas do sistema não cumprem as funções espe-radas, não protegem nem a vida, nem a propriedade, nem as relações sociais; c) seletividade e estigmati-zação do sistema punitivo – o sistema cria e reforça as desigualdades, selecionando determinados grupos de pessoas como clientela habitual. O condenado fica marcado perante a sociedade e é impulsionado a se comportar conforme o rótulo que recebe; d) burocracia – cada instituição tem estrutura com-partimentalizada (Magistratura, Ministério Público, polícia, penitenciárias etc.), atuando como agência independente. Dessa forma, diluem-se as responsa-bilidades, e nenhuma acaba se preocupando com o que ocorrerá com o acusado ou com a vítima. Estes, por sua vez, desconhecem as regras que orientam o processo e ficam impedidos de buscar uma solu-ção para o conflito entre si; e) a vítima não interessa ao sistema penal – o ofendido tem lugar secundá-rio ou nenhum lugar; f) a pena não cumpre suas finalidades – a pena não exerce a função preventiva (o suposto efeito dissuasório da ameaça penal não se realiza), nem ressocializa os condenados (basta-

1. SHECAIRA. Criminologia, p. 366.

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106MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

-se ver os elevados índices de reincidência). A execução da pena é estéril, porque não transforma o condenado, e irracional, porque o destrói e ani-quila2.

Não existe entre os autores uma completa coin-cidência de métodos, pressupostos filosóficos e táticas para alcançar os objetivos propostos. Há distintas vertentes de pensamento, como a fenome-nológica de Louk Hulsman, a preferência marxista de Thomas Mathiesen e a fenomenológica-historicista de Nils Christie3.

Louk Hulsman entende que o direito penal é um problema em si mesmo e, diante de sua inuti-lidade para resolver os conflitos, deve ser abolido em sua totalidade4. O autor propõe a sua substitui-ção por outras instâncias de solução de conflitos (assistencial, educativa, terapêutica, compensatória etc.). Defende que o abolicionismo deve ocorrer em duas frentes: abolicionismo institucional (supressão da justiça criminal) e o abolicionismo acadêmico (abolição da forma tradicional de estudar o crime, passando-se a adotar uma postura crítica e desa-fiadora dos discursos dominantes, calcados na ideia de uma justiça criminal natural e necessária. Envolve uma mudança de linguagem, abolindo-se as expres-sões “crime” e “criminoso”, sendo substituídas por “situações-problema”).

Thomas Mathiesen vincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista, propugnando pela abolição não apenas do sistema penal, mas de todas as estruturas repressivas da sociedade. Para o autor, o movimento abolicionista deve ser algo sempre inacabado, mantendo-se em constante relação de oposição às estruturas de poder, para manter sua vitalidade5. Mathiesen também denuncia a irracionalidade do sistema prisional e a ineficácia da pena para atingir suas finalidades6.

2. SHECAIRA, Criminologia, p. 369-374.3. ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas. p. 103-107. 4. Nesse prisma, asseveram Louk Hulsman e Jacqueline Bernat

De Celis que é “preciso abolir o sistema penal. Isto significa romper os laços que, de maneira incontrolada e irresponsável, em detrimento das pessoas diretamente envolvidas, sob uma ideologia de outra era e se apoiando em um falso consenso, unem os órgãos de uma máquina cega cujo objeto é a produção de um sofrimento estéril. Um sistema desta natureza é um mal social. Os problemas que ele pretender resolver – e que, de alguma forma, resolve, pois nunca faz o que pretende – deverão ser enfrentados de outra maneira” (Penas Perdidas. O Sistema Penal em Questão. p. 90-91). Ver também: HULSMAN, Louk; MARTEAU, Juan Felix; SINGER, Helena. Práticas punitivas: um pensamento diferente uma entrevista com o abolicionista penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 14, p. 13.

5. ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas. p. 104-105.6. MATHIESEN, Thomas. Juicio a la prison, p. 223.

Nils Christie aproxima-se de Hulsman em alguns aspectos e de Mathiesen em outros. Quando ques-tiona o conceito de crime e sua artificialidade, quando explicita a necessidade de formas horizon-tais de resolução de conflito, bem como quando afirma que o debate acerca do sistema penal deve ser suscitado nas universidades, aproxima-se de Hulsman. Ao utilizar-se da história como funda-mento para sua argumentação teórica, ao criticar diretamente e com exemplos a irracionalidade do sistema carcerário e ao analisar alguns determina-dos pontos em perspectiva marxista, aproxima-se de Mathiesen7. Um dos pontos defendidos pelo autor é a diminuição da dor, enquanto castigo, provocada pelo homem como meio de controle social8. \dpz-Christie se considera um abolicionista minimalista, reconhecendo a necessidade excepcional do sistema penal para lidar comportamentos absolutamente inaceitáveis9.

O abolicionismo tem sido alvo de críticas tão severas e arrasadoras quanto as que dirigiu, tempos antes, ao sistema penal. Como observa Silva Sánchez, a doutrina abolicionista perdeu força nos últimos anos, e já não é mais uma referência intelectual10.

Parte das críticas consiste na utopia das pro-postas abolicionistas, incompatíveis com o grau de complexidade e desenvolvimento alcançado pelas sociedades modernas em geral. Os adeptos do abo-licionismo dirigem suas críticas a casos triviais e de bagatela e, partir daí, questionam todo o sistema. Porém, não tentam justificar suas proposições em casos de criminalidade violenta ou outros delitos mais graves, que permeiam a realidade do sistema penal.11.

Outra crítica recorrente dirigida ao abolicionismo diz respeito às consequências negativas advindas da supressão da instância formal de controle punitivo.

Como acentua Massimo Pavarini, o processo de burocratização dos sistemas penais modernos é interpretado negativamente pelos abolicionistas, como expropriação do poder punitivo, originaria-mente em poder da sociedade civil. Ocorre que, na formação do Estado moderno, este processo de

7. ANGOTTI. Breves notas sobre o abolicionismo penal. Revista Brasileira De Ciências Criminais, v. 80, p. 247-279.

8. Mais detidamente em: CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor.9. Cf. entrevista concedida pelo autor ao IBCCRIM, na íntegra em:

OLIVEIRA; FONSECA. Conversa com um abolicionista minimalista, Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 21, p. 13, jan. 1998.

10. Aproximação ao direito penal contemporâneo, p. 68.11. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Aproximação ao direito penal

contemporâneo, p. 40-41.

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assunção pelo Estado foi bastante desejado como condição necessária para a tutela das liberdades individuais, contra os riscos de abuso por parte dos atores sociais mais fortes12.

Ferrajoli, por sua vez, observa que a eliminação do Direito Penal poderia fazer ressurgir a vingança privada que, na ausência das penas, poderia advir da parte do ofendido ou de forças sociais ou ins-titucionais solidárias a ele.

A tudo isso, Silva Sanchez acrescenta que, das variáveis jurídico-penais que influenciam na dis-suasão da prática de um delito, a mais importante é a certeza da punição. E uma das contribuições mais significativas do Direito Penal é justamente o incremento dessa certeza, apoiada na estrutura do Estado, em seus aparelhos policial e judicial13.

É bem verdade que as doutrinas abolicionistas possuem meritos. Ao afirmarem a desnecessidade do sistema penal e denunciarem a irracionalidade das prisões, os abolicionistas fomentam um salutar debate sobre a banalização do direito penal e do encarceramento em massa na sociedade contempo-rânea, bem como a necessidade de formas alterna-tivas para solucionar certos conflitos, fora do sistema penal ou, ao menos, sem o uso da pena de prisão.

O ideal, como assevera Pavarini, é fazer bom uso das teorias abolicionistas, sem ser abolicionista14.

ABOLICIONISMO PENAL

Proposta  Eliminação do sistema penal ou, em algumas verten-

tes abolicionistas, um amplo processo de descriminali-zação, despenalização e atenuação do rigor das penas.

Fundamento  Cifra negra elevada;  O sistema penal é desnecessário, seletivo, estigmati-

zante e burocrático;  As penas não cumprem suas finalidades.

Críticas ao abolicionismo  Propostas utópicas;  O direito penal limita o poder punitivo. Ao se retirar o

direito penal, retira-se também essa limitação;  A eliminação do sistema penal, com o aparato estatal

de persecução penal, reduziria a certeza da punição.

12. Il sistema della giustizia penale tra riduzionismo e abolizionismo. Dei delitti e delle pene. Rivista di studi sociali, storici e giuridici sulla questione criminale, ano 3, n. 3, p. 525-553.

13. Aproximação ao direito penal contemporâneo, p. 380.14. Il sistema della giustizia penale tra riduzionismo e abolizionismo.

Dei delitti e delle pene. Rivista di studi sociali, storici e giuridici sulla questione criminale, ano 3, n. 3, p. 525-553.

3. DIREITO PENAL MÁXIMO (LEI E ORDEM, TOLERÂNCIA ZERO E A TEORIA DAS JANELAS QUEBRADAS)

Direito penal máximo é o modelo de direito penal caracterizado pela excessiva severidade, bem como pela incerteza e imprevisibilidade das conde-nações e das penas, voltado a assegurar que nenhum culpado fique impune, mesmo que algum inocente possa ser condenado15.

Trata-se do modelo preconizado pelas políticas de “lei e ordem” e de “tolerância zero”, inseridas no movimento que a criminologia denomina rea-lismo de direita.

De acordo com Shecaira, é no período dos governos Reagan/Bush nos EUA e Thatcher na Inglaterra, na década de 1980, que o neoconserva-dorismo recebe a feição atualmente conhecida como “lei e ordem”, tendo como representantes Van Den Haag, James Wilson, Edward Benfield, Freda Adler, entre outros16.

O discurso oficial de “lei e ordem” prega que, se o sistema não combate eficientemente a crimi-nalidade, é porque não é suficientemente repressivo, fazendo-se necessário criminalizar mais, aumentar os aparatos policiais, judiciários e penitenciários, ampliar as penas de prisão e reduzir as garantias penais e processuais penais básicas17.

Suas ideias podem ser sintetizadas em: sanções mais longas e duras, quando não a própria pena de morte; menor poder discricionário ao juiz, impe-dindo, notadamente em sede de execução, a flexi-bilização do cumprimento da pena privativa de liberdade; ampliação das medidas cautelares deten-tivas; extremo rigor nos regimes de cumprimento de pena, descartando a ideia da recuperação do condenado como uma de suas principais finalida-des18.

Paralelamente ao movimento de “Lei e ordem”, surge nos Estados Unidos o programa de “tolerân-cia zero”, originado da teoria das janelas quebra-das19.

15. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102-103.

16. Criminologia. p. 349-350.17. ANDRADE. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema

penal entre a deslegitimização e a expansão. Revista Ultima Ratio, ano 1, n. 1, p. 397-417.

18. SHECAIRA. Criminologia, p. 350.19. SHECAIRA. Criminologia, p. 350.

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108MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

Essa teoria foi apresentada no artigo “Broken Windows”, publicado por James Wilson e George Kelling, em 1982. Os autores procuraram estabele-cer uma relação entre desordem e criminalidade, partindo da seguinte ideia: se um prédio tiver algumas janelas quebradas, isso passará a mensagem de abandono, de que ninguém ali se preocupa com a ordem, servindo como estímulo para que vânda-los destruam outras. Por isso, é preciso repará-las. A conclusão é que desordem gera mais desordem, e que pequenas transgressões, se não forem coibidas, podem incentivar a prática de crimes mais graves20.

No artigo, Wilson e Kelling se reportam a uma experiência conduzida pelo psicólogo americano Philip Zimbardo, em 1969. Zimbardo deixou um veículo estacionado em um Palo Alto, cidade de classe alta na Califórnia, e outro no distrito do Bronx, em Nova Iorque, local considerado pobre e perigoso à época. O automóvel que estava na Cali-fórnia permaneceu intacto por mais de uma semana, enquanto o veículo no Bronx foi alvo quase imediato de furtos de peças. Em seguida, o pesquisador quebrou a janela do primeiro automóvel. Pouco depois, este carro também passou a ser vandalizado e teve peças furtadas.

A teoria das janelas quebradas acabou ganhando notoriedade, servindo de fundamento para o pro-grama de “tolerância zero”, que emergiu na década seguinte nos Estados Unidos e se estendeu para diversos outros países da Europa e da América.

Em 1993, Rudolph Giuliani é eleito prefeito de Nova York e adota um programa de “tolerância zero” contra a criminalidade, alardeado como res-ponsável por transformar radicalmente a cidade, tornando-a segura.

Porém, muitos estudos contestam a teoria das janelas quebradas. Aponta-se que as taxas de cri-minalidade caíram em diversas outras cidades americanas na década de 1990, mesmo naquelas que não adotaram uma política de tolerância zero. Loic Wacquant relaciona diversos fatores que teriam contribuído para essa redução, entre eles: a) consi-derável crescimento econômico ocorrido nessa época, que gerou empregos e afastou os jovens da crimi-nalidade; b) estruturação e estabilidade do tráfico de drogas, provocando a redução da violência entre criminosos para regular a competição; c) queda da população jovem, mais propensa à criminalidade de rua; d) taxas de criminalidade excepcionalmente

20. Theory of broken windows. Atlantic Monthly, v. 249, p. 29-38.

altas no início dos anos 1990, estatisticamente propensas a retornarem ao padrão de normalidade21.

Como observa Jacinto Nelson de Miranda Cou-tinho, a preocupação da teoria da janela quebrada se resume à manutenção da ordem, identificando o delinquente como alguém que precisa ser contro-lado, removido e observado. Todavia, é ingenuidade acreditar que, ao se retirar as crianças do semáforo e os mendigos das ruas, o problema criminal estará resolvido. O que acontece com eles depois disso não é problema dos teóricos, que estabelecem um raciocínio simples: se eles não estão lá, é porque não existem22. Um desses problemas, aliás, é a dificuldade ainda maior que essas pessoas enfren-tarão para obter emprego, ostentando passagem criminal23.

Ademais, no contexto atual, em que o crime se organizou, se internacionalizou e se sofisticou24, não é justificável supor que a repressão penal de ninharias trará reflexo significativo na redução da criminalidade de maior monta.

De outra banda, mesmo quando for necessário reprimir condutas de menor gravidade, pode-se fazê-lo por meio de outros ramos do Direito (apli-cando-se multas administrativas, por exemplo), reservando-se o Direito Penal para a criminalidade verdadeiramente grave.

21. The Scholarly Myths of the new law and order doxa, Socialist Register, v. 42, p. 93-115. No mesmo sentido: SRIDHAR, C.R. Broken Windows and Zero Tolerance: Policing Urban Crimes”. Economic and Political Weekly, v. 41, n. 19, p. 1841-1843.

22. Teoria das janelas quebradas: e se a pedra vem de dentro. Boletim IBCCRIM. v.11, p. 6-8.

23. Out of Trouble, but criminal records keep men out of work. New York Times, 28.02.2015. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2015/03/01/business/out-of-trouble-but-criminal-records-keep-men-out-of-work.html>.

24. Em 2010, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) elaborou um relatório alertando para a globalização do crime. Segundo o documento, a abertura no comércio, finanças, viagens e comunicações também deu azo ao surgimento de massivas oportunidades para criminosos fazerem seus negócios prosperarem: “O crime organizado se diversificou, tornou-se global e alcançou proporções macroeconômicas: bens ilícitos originários de um continente são traficados em outro e vendidos em um terceiro. As máfias, atualmente, são um verdadeiro problema transnacional: uma ameaça à segurança, especialmente em países pobres e cheios de conflitos. O crime está alimentando a corrupção, infiltrando-se nos negócios e na política, e prejudicando o desenvolvimento. Cf. United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). The globalization of crime: a transnational organized crime threat assessment. United Nations Publication. Viena: United Nations Publication, 2010.

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DIREITO PENAL MÁXIMO

Proposta  Aumentar as criminalizações e a severidade das penas,

bem como reduzir a impunidade. Coibir infrações de menor gravidade, para evitar que se transformem em delitos de maior monta.

Fundamento  Teoria das janelas quebradas (broken windows theory);  Redução da criminalidade na cidade de Nova York nos

anos 1990 demonstra o sucesso do programa de “tole-rância zero”.

Crítica  Não foi demonstrada a relação entre desordem e crimi-

nalidade; diversas cidades que não adotaram o programa de tolerância zero também tiveram redução da crimi-nalidade nos anos 1990, decorrente de outros fatores;

  Desrespeito aos direitos humanos;  Sobrecarga dos tribunais e das prisões, revelando-se

insustentável a longo prazo.

4. DIREITO PENAL DO INIMIGOA teoria do direito penal do inimigo foi apre-

sentada por Günther Jakobs ao proferir uma pales-tra em Frankfurt, em 1985, sem receber muito destaque. Porém, em 1999, na Conferência do Milênio, em Berlim, a teoria causou grande reper-cussão25. Dois anos após os ataques terroristas contra os Estados Unidos ocorridos em 11 de setembro, de 2001, Jakobs publica a obra Direito Penal do Inimigo, e a partir daí a teoria ganha ainda mais visibilidade.

Para Jakobs, a função do Direito Penal é a pro-teção do próprio sistema. Quando uma pessoa infringe uma norma, está quebrando a confiança social de que iria segui-la, impondo-se a pena para reafirmar a vigência do sistema.

Contudo, existem sujeitos que não oferecem perspectiva mínima de que irão cumprir as normas, afastando-se de maneira intencional e duradoura do Direito. São os “inimigos”, que rejeitam radi-calmente as regras e não desejam fazer parte do sistema, mas destruí-lo26. Aqueles identificados como inimigos perderiam o status de pessoa e, conse-

25. PRITTWITZ, Cornelius. O Direito Penal entre o Direito Penal do Risco e o Direito Penal do Inimigo. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 12, n. 47, p. 31-45.

26. Nos dizeres de Jakobs, “quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas” (Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 42).

quentemente, não teriam as garantias processuais reconhecidas aos cidadãos.

Haveria, assim, dois tipos de direito penal: o direito penal do cidadão, que contempla um amplo sistema de direitos e garantias, aplicável ao cidadão que comete desvios; e o direito penal do inimigo, um regramento diferenciado para aqueles que estão fora do sistema e não têm o status de pessoa.

Como exemplos de inimigos, Jakobs cita os delinquentes econômicos, terroristas, membros de organizações criminosas, autores de delitos sexuais e de outros delitos graves e perigosos. O autor menciona os ataques terroristas de 11 de setembro como manifestação inequívoca de atos típicos de inimigo27.

A ideia de que certos indivíduos, ao violarem o pacto social, perderiam o status de cidadãos e seriam excluídos da sociedade, não é nova. Esta noção remonta a diversos filósofos contratualistas, tais como Immanual Kant, Jean-Jacques Rousseau, Johann Gottlieb Fichte e Thomas Hobbes28.

Poderíamos sintetizar as características do direito penal do inimigo, em contraposição ao direito penal do cidadão, da seguinte forma:

DIREITO PENAL DO CIDADÃO

DIREITO PENAL DO INIMIGO

Incidência de direitos e garantias individuais.

Flexibilização de direitos e garantias individuais.

Volta-se ao cidadão (sujeito de direito), quando comete desvios.

Volta-se ao inimigo (não--pessoa) excluído do sistema por não oferecer garantia mínima de que cumprirá as normas, tendo-se afastado de maneira intencional e duradoura do Direito.

27. Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 30.28. Rousseau, por exemplo, afirmava que o indivíduo, ao infringir

o contrato social, o deixava de ser membro do Estado e se tornava um inimigo: “(...) todo malfeitor, ao atacar o direito social, torna-se, por seus delitos, rebelde e traidor da pátria; cessa de ser um de seus membros ao violar suas leis, e chega mesmo a declarar-lhe guerra. A conservação do Estado passa a ser então incompatível com a sua; faz-se preciso que um dos dois pereça, e quando se condena à morte o culpado, se o faz menos na qualidade de cidadão que de inimigo. Os processos e a sentença constituem as provas da declaração de que o criminoso rompeu o tratado social, e, por conseguinte, deixou de ser considerado membro do Estado. Ora, como ele se reconheceu como tal, ao menos pela residência, deve ser segregado pelo exílio, como infrator do pacto, ou pela morte, como inimigo público, pois um inimigo dessa espécie não é uma pessoa moral; é um homem, e manda o direito da guerra matar o vencido” (Do contrato social, p. 18).

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110MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

DIREITO PENAL DO CIDADÃO

DIREITO PENAL DO INIMIGO

Aplicação de penas, base-adas na culpabilidade, com prazo determinado.

Aplicação de medidas de segurança, baseadas na peri-culosidade, sem prazo deter-minado.

Toma por base o fato ocor-rido (retrospectivo).

Toma por base o futuro, o perigo que o inimigo repre-senta (prospectivo).

Direito penal do fato (pune o agente por um fato que ele praticou).

Direito penal de autor (pune o agente por ser quem é).

Atos preparatórios punidos excepcionalmente.

Atos preparatórios punidos como regra, para evitar cri-mes mais graves.

Ex.: criminoso ocasional. Ex.: delinquentes econômi-cos, terroristas, membros de organizações criminosas e autores de delitos sexu-ais (Jakobs).

A teoria do direito penal do inimigo, não sem razão, tem sido objeto de ferrenhas críticas.

Com propriedade, Luis Gracia Martín ataca a distinção entre pessoa e não pessoa. Afinal, o direito penal deve tratar todo homem como pessoa responsável, e nenhum ordenamento pode estabe-lecer regras e procedimentos de negação da digni-dade do ser humano. Um Estado que assim proceda será, além de injusto, desvinculado do Direito29.

Francisco Muñoz Conde questiona a quem caberia definir quem e inimigo e como ele seria definido, apontando ser esta teoria incompatível com o princípio da isonomia, com o Estado de Direito e com o reconhecimento sem exceções a todos dos direitos humanos fundamentais30.

Cancio Meliá, por sua vez, afirma ser injustifi-cável a dicotomia direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, pois aquele conteria um pleonasmo e este uma contradição em seus termos31. Com efeito, “direito penal do inimigo” não é propriamente direito, mas antes um “não-direito penal” do ini-migo.

29. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo, p. 165.30. As reformas da parte especial do direito penal espanhol em

2003: da “tolerância zero” ao “direito penal do inimigo”. Ciências Penais, v. 4, p. 53-82.

31. Direito Penal do Inimigo, moções e críticas, p. 61.

DIREITO PENAL DO INIMIGO

Proposta (Günther Jakobs)  Regramento diferenciado para os “inimigos”. Aqueles

que não oferecem garantia cognitiva mínima de que cumprirão as normas, afastando-se de maneira inten-cional e duradoura do Direito, não fazem jus às garan-tias processuais reconhecidas aos cidadãos.

Características principais  Ver quadro comparativo acima.

Fundamento  Quem está fora do pacto social e almeja destruí-lo,

perde o status de pessoa e os direitos de quem integra o pacto. Essa noção remonta a filósofos contratualistas, tais como Kant, Rousseau, Fichte e Hobbes.

Crítica  A concepção de “inimigo” muda de acordo com o

momento histórico e o contexto social;  Um Estado Democrático de Direito jamais pode divisar

seres humanos em “pessoas” e “não pessoas” (desres-peito aos direitos humanos).

5. DIREITO PENAL MÍNIMO

5.1. Considerações geraisDireito penal mínimo é o modelo de direito

penal caracterizado pelo seu reduzido âmbito de incidência, bem como pelo grau máximo de tutela da liberdade dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, voltado a assegurar que nenhum inocente seja punido, mesmo que algum culpado possa ser absol-vido32.

As diversas correntes minimalistas apresentam como traço comum a ideia de que o Direito Penal deve se autolimitar, renunciando interferir em todos os aspectos da vida social, e quando o fizer, deve reduzir a severidade de suas sanções. A pena deve ser utilizada apenas como ultima ratio em relação à política social e às formas de controle extrapenal e, dentre as sanções penais, a pena privativa de liberdade deve ser reservada como última opção, para os delitos mais graves que não possam ser controlados com instrumentos menos rigorosos33.

Enquanto o abolicionismo pretende a eliminação do sistema penal e o direito penal máximo prega o aumento e maior severidade das punições, o minimalismo surge como uma posição intermediá-

32. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 102-103.

33. MARINUCCI, Giorgio. Dolcini, Emiliano. Derecho penal “mínimo” y nuevas formas de criminalidad. Revista de Derecho Penal y Criminologia, n. 9, p. 147-167.

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ria, defendendo a máxima contração do direito penal, evitando interferir na vida privada das pes-soas, senão quando estritamente necessário. Há, portanto, uma ligação umbilical entre o direito penal mínimo e o princípio da intervenção mínima.

5.2. GarantismoO maior expoente do minimalismo é Luigi

Ferrajoli, que, na obra Direito e Razão, formula as bases do garantismo penal, considerado o paradigma das doutrinas minimalistas.

O sistema garantista (também denominado cog-nitivo ou de legalidade estrita) resulta da adoção de dez axiomas ou princípios axiológicos fundamentais:

1º) Não há pena sem crimeNulla poena sine crimine

Princípio da retributivi-dade ou da consequen-cialidade da pena em relação ao delito

2º) Não há crime sem leiNullum crimen sine lege

Princípio da legalidade ou da reserva legal

3º) Não há lei penal sem neces-sidadeNulla lex (poenalis) sine necessitate

Princípio da necessi-dade ou da economia do direito penal

4º) Não há necessidade sem injuriaNulla necessitas sine injuria

Princípio da ofensividade ou da ofensividade do evento

5º) Não há injúria sem açãoNulla injuria sine actione

Princípio da materiali-dade ou da exterioriza-ção da ação

6º) Não há ação sem culpaNulla actio sine culpa

Princípio da culpabili-dade ou da responsabi-lidade pessoal

7º) Não há culpa sem sentençaNulla culpa sine judicio

Princípio da jurisdicio-nalidade

8ª) Não há sentença sem acusaçãoNullum jucidium sine accusatione

Princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação

9º) Não há acusação sem provaNulla accusatio sine probatione

Princípio do ônus da prova ou da verificação

10º) Não há prova sem defesaNulla probatio sine defensione

Princípio do contraditó-rio ou da defesa, ou da falseabilidade

Segundo Ferrajoli, esses dez princípios definem o modelo garantista, ou seja, as regras do jogo fundamental do direito penal. Trata-se de um modelo-limite, apenas tendencialmente e jamais perfeitamente satisfatível34.

34. Direito e razão: teoria do garantismo penal, p. 91.

O direito penal mínimo, dito garantista, é o modelo que me parece mais adequado, devendo-se evitar as posições extremadas do abolicionismo e do direito penal máximo. Se a aplicação desmesu-rada do Direito Penal é contraproducente, como tem apontado a criminologia crítica e os abolicio-nistas, também é verdade que ele é um instrumento imprescindível para proteção de bens jurídicos. Portanto, a melhor opção é buscar o aprimoramento do Direito Penal, rechaçando a ingerência estatal indevida na esfera privada dos cidadãos e, ao mesmo tempo, promovendo a ampliação de sua eficiência.

O que e garantismo hiperbólico monocular e garantismo integral?

Garantismo hiperbólico monocular é uma nomen-clatura com conotação pejorativa, significando uma ampliação exagerada e desproporcional dos direitos e garantias individuais (daí “hiperbólico”), levando em consideração apenas os interesses do réu (por isso “monocular”).

Em contraposição, garantismo penal integral é aquele almeja resguardar não somente os direitos do réu (garantismo negativo), mas também o da sociedade (garantismo positivo). Está relacionado à ideia da dupla face da proporcionalidade, que pre-ceitua a proibição do excesso e também a proibição da proteção deficiente.

= +

GARANTISMO INTEGRAL

garan�smo nega�vo

garan�smoposi�vo

Interesses do réu

Interesses da sociedade

5.3. Direito de intervençãoTrata-se de teoria formulada por Winfried Has-

semer, membro da escola de Frankfurt. Na visão do autor, o Direito Penal clássico não

é eficiente para combater a criminalidade moderna (delitos econômicos, ambientais, comércio interna-cional de armas e drogas etc.), e não pode se des-naturar para tentar alcançar essa eficiência. Portanto, o Direito Penal deve ficar restrito ao núcleo duro da criminalidade, tutelando somente os bens jurí-dicos individuais clássicos (vida, liberdade individual, patrimônio etc.) em face de lesão ou perigo concreto de lesão, mantendo sua característica de ultima ratio.

Surge então o Direito de Intervenção, que seria um novo campo do direito, localizado entre o Direito Penal e o Administrativo, voltado ao enfrentamento

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112MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

da criminalidade moderna, admitindo a flexibiliza-ção de garantias individuais, mas, em contrapartida, sem contemplar penas privativas de liberdade35.

O Direito de intervenção disporia de instrumen-tos mais adequados para enfrentar a criminalidade moderna, pois estaria adaptado à tutela de bens coletivos e de infrações de perigo abstrato, à pre-venção em lugar da repressão, à punição de pessoas jurídicas etc36.

O modelo proposto por Hassemer, semelhante a um direito administrativo sancionador, sofre crí-ticas: de forma injusta e classista, reserva a prisão aos crimes tradicionais, privilegiando a criminalidade moderna com sanções de outra natureza; é retró-grada, pois mantém o Direito Penal centrado nos problemas do passado; dificuldade para se identifi-car quais bens jurídicos devem ser amparados pelo Direito Penal e quais pelo Direito de Intervenção37.

Criminalidade

moderna

Núcleo duro dacriminalidade

Afeto ao Direito Penal, que deve

tutelar somente os bens jurídicos

individuais clássicos (vida,

liberdadeindividua, patrimônio etc.).

Enfrentada pelo Direito de

Intervenção, novo campo do

Direito,admi�ndo a flexibilização de

garan�as individuais, embora sem prever penas

priva�vas de liberdade

35. Nos dizeres do autor, “recomenda-se regular aqueles problemas das sociedades modernas, que levaram à modernização do Direito Penal, particularmente, por um ‘Direito de Intervenção’, que esteja localizado entre o Direito Penal e o Direito dos ilícitos administrativos, entre o Direito Civil e o Direito Público, que na verdade disponha de garantias e regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal, mas que, para isso, inclusive, seja equipado com sanções menos intensas aos indivíduos. Tal Direito ‘moderno’ seria não só normativamente menos grave, como seria também faticamente mais adequado para acolher os problemas especiais da sociedade moderna” (Características e crises do moderno direito penal, Revista de Estudos Criminais, v. 2, n. 8, p. 54-66).

36. HASSEMER. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 8, p. 41-51.

37. Mais detidamente em: OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o direito penal brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa, p. 81-92 e 265-271.

DIREITO PENAL MÍNIMO

Proposta  Redução do âmbito de incidência do direito penal e

maximização da liberdade das pessoas.

Garantismo penal (Luigi Ferrajoli)  Considerado o paradigma das doutrinas minimalistas. O

modelo garantista é cristalizado em dez axiomas (ver tabela acima).

Direito de intervenção (Winfried Hassemer)  Novo campo do direito, localizado entre o Direito Penal

e o Administrativo, voltado ao enfrentamento da crimi-nalidade moderna, admitindo a flexibilização de garan-tias individuais, embora sem contemplar penas priva-tivas de liberdade.

6. VELOCIDADES DO DIREITO PENALTrata-se de terminologia concebida por Silva Sán-

chez, destacando as três velocidades do direito penal38:Direito penal de primeira velocidade – Modelo

de Direito Penal clássico, que utiliza preferencial-mente a pena privativa de liberdade, mas com estrito respeito aos direitos e garantias individuais.

Direito penal de segunda velocidade – Admite a flexibilização de garantias penais e processuais, porém aliadas à adoção das medidas alternativas à prisão (penas restritivas de direito, pecuniárias etc.)39.

Direito penal de terceira velocidade – Consiste numa mistura das características acima, utilizan-do-se da pena privativa de liberdade (Direito Penal de primeira velocidade), mas permitindo a flexibi-lização de direitos e garantias (Direito Penal de segunda velocidade). Compatível com o chamado direito penal do inimigo (estudado oportunamente).

1ª VELOCIDADE 2ª VELOCIDADE 3ª VELOCIDADE

Pena privativa de liberdade

Medidas alternativas à

prisão

Pena privativa de liberdade

Respeito aos direitos e garantias individuais

Flexibilização de direitos e garantias individuais

Flexibilização de direitos e garantias individuais

38. La expansión del derecho penal, p. 159-167.39. A segunda velocidade do direito penal apresenta pontos de

contato com o Direito de Intervenção de Hassemer (restrição de direitos e garantias, sem aplicação de pena de prisão). Porém, enquanto Hassemer visualiza o Direito de Intervenção como ramo autônomo do direito, a segunda velocidade de Sánchez integra o próprio Direito penal (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o direito penal brasileiro: direito de intervenção, sanção penal e administrativa, p. 79).

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Alguns falam em direito penal de quarta velo-cidade, aspecto do neopunitivismo aplicável em face de agentes que exercem ou exerceram a função de chefes de Estado e, nessa condição, praticaram graves violações a tratados internacionais de pro-teção a direitos humanos. Em outros termos, pra-ticaram crimes de lesa humanidade, ficando sujei-tos ao direito penal internacional.

Para Daniel Pastor, os organismos internacionais têm considerado, de modo surpreendente, que a reparação à violação dos direitos humanos é alcan-çada por meio do castigo penal, algo a ser obtido sem controle e ilimitadamente, até mesmo com desprezo aos direitos fundamentais do acusado. Acredita-se, assim, em um poder penal absoluto40.

Vale observar que o Estatuto de Roma criou o Tribunal Penal Internacional, primeiro tribunal penal internacional permanente, competente para proces-sar e julgar os crimes que afetam a comunidade internacional no seu conjunto (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão41).

7. JUSTIÇA RETRIBUTIVA X JUSTIÇA RESTAURATIVA

A justiça retributiva se identifica com os siste-mas penais tradicionais, baseando-se na imposição unilateral e horizontal, pelo Estado, de um castigo àquele que praticou uma infração penal. Em suma, retribui-se o mal do crime com o mal da pena.

A justiça restaurativa surge como uma espécie de justiça consensual, buscando a reparação dos danos causados pelo delito, por meio da participa-ção conjunta e ativa dos envolvidos (acusado, vítima e membros da sociedade). O objetivo é a realização de um acordo (chamado acordo restaurativo) que atenda às necessidades do ofendido e da coletividade, ao mesmo tempo em que promova a ressocialização do infrator. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles)42.

40. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos. Nueva Doctrina Penal. Buenos Aires, p. 73-114.

41. Art. 5º do Estatuto de Roma.42. Ver Resolução 2002/12, intitulada “Basic principles on the use

of restorative justice programmes in criminal matters”, editada pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Este documento traz regras básicas norteadoras da utilização de programas envolvendo Justiça Restaurativa. Disponível na internet em <http://www.restorativejustice.org>.

O modelo de justiça restaurativa surgiu em 1975, pelas mãos do psicólogo americano Albert Eglash, e remonta à noção de restituição criativa, sugerida ao término dos anos 50 pelo próprio Eglash, para reformar o modelo terapêutico. Outros precursores da justiça restaurativa são Allan Horwitz (1990), Howard Zehr (1990) e Lode Walgrave (1993), que publicaram trabalhos examinando modelos de jus-tiça diversos do retributivo.

Segundo magistério de Renato Sócrates Gomes Pinto, a justiça restaurativa é “um processo estri-tamente voluntário, relativamente informal, a ter lugar preferencialmente em espaços comunitários, sem o peso e o ritual solene da arquitetura do cenário judiciário, intervindo um ou mais media-dores ou facilitadores, e podendo ser utilizados técnicas de mediação, conciliação e transação para se alcançar o resultado restaurativo, ou seja, um acordo objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e se lograr a reintegração social da vítima e do infrator”43.

O autor formula um esclarecedor quadro com-parativo entre a justiça retributiva e a restaurativa, resumido abaixo44:

JUSTIÇA RETRIBUTIVA JUSTIÇA RESTAURATIVA

O crime é um ato contra a sociedade, representada pelo Estado

O crime é um ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade

Primado do interesse público (monopólio estatal da Justiça Criminal)

Primado do interesse das pessoas envolvidas e da comunidade (Justiça Cri-minal participativa)

Culpabilidade individual vol-tada para o passado

Responsabilidade pela res-tauração compartilhada coletivamente e voltada para o futuro

Indisponibilidade da ação Penal

Disponibilidade da ação penal

Os atores principais são as autoridades (representando o Estado) e os profissionais do Direito

Os atores principais são as vítimas, os infratores, as pessoas da Comunidade e as ONGs.

Processo decisório a cargo de autoridades (Policial, Dele-gado, Promotor, Juiz)

Processo decisório com-partilhado com as pessoas envolvidas (vítima, infrator e comunidade)

43. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. p. 19-39.

44. Justiça Restaurativa. Carta Forense, n. 51, p. 45, ago. 2007.

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114MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

Penas desarrazoadas e despro-porcionais em regime carce-rário desumano, cruel, degra-dante e criminógeno; ou penas alternativas ineficazes (ces-tas básicas)

Proporcionalidade e razo-abilidade das obrigações assumidas no acordo res-taurativo (reparação, resti-tuição, prestação de servi-ços comunitários etc.)

O infrator raramente tem par-ticipação, fica alienado dos fatos processuais e não é efe-tivamente responsabilizado, mas punido pelo fato

O infrator participa ativa e diretamente, é inteirado das consequências do fato para a vítima e comunidade e contribui para a decisão restaurativa

A vítima recebe pouca ou nenhuma atenção, ocupando lugar periférico no processo. Não tem participação, nem pro-teção, mal sabe o que se passa.

A vítima ocupa o centro do processo, com papel e voz ativa. Participa e tem con-trole sobre o que se passa.

No Brasil, a justiça restaurativa ainda dá os primeiros passos, mas tem produzido bons resul-tados, sendo aplicada, por exemplo, na área da infância e da juventude45 e da violência doméstica46.

Em 31/05/2016, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução 225/2016, que contém diretrizes para implementação e difusão da prática da Justiça Restaurativa no Poder Judiciário.

O que e privatização do direito penal?A expressão é utilizada para indicar a crescente

preocupação com a vítima no processo penal, levando em consideração, portanto, o interesse privado do ofendido, e não apenas o interesse público.

Exemplo disso é a ascensão da justiça restau-rativa¸ fundada no protagonismo da vítima e na reparação dos danos causados pelo delito.

Ademais, várias leis editadas nos últimos anos indicam maior preocupação com a vítima. A título de exemplo, pode-se mencionar:Lei 9.099/1995 – estabeleceu a possibilidade de

composição civil entre o autor do fato e a vítima (art. 72). Além disso, a reparação do dano é condi-ção da suspensão condicional do processo (art. 89, § 1º, I); Lei 9.714/1998 – introduziu a pena restritiva

de direito consistente em prestação pecuniária, que pode ser destinada à vítima ou seus dependentes (art. 45, § 1º, do CP);

45. Justiça Restaurativa juvenil se expande no Brasil 18.08.2017 h t t p: // w w w. c n j . j u s . b r/n o t i c i a s /c n j /8 52 51- j u s t i c a -restaurativa-juvenil-se-expande-no-brasil

46. Justiça Restaurativa é aplicada em casos de violência doméstica. 05.07.2017 http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/85041-justica-restaurativa-e-aplicada-em-casos-de-violencia-domestica

 Lei 11.690/2008 – trouxe diversas modifica-ções nesse sentido: a) ofendido deve ser comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e acórdãos que a mantenham ou modifiquem (art. 201, § 1º, do CPP); b) antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido (art. 201, § 4º, do CPP); c) se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidis-ciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado (art. 201, § 4º, do CPP); d) o juiz deve tomar as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras infor-mações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação (art. 201, § 6º, do CPP). Lei 11.719/2008 – ao proferir a sentença

condenatória, o juiz, desde logo, fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (art. 387, IV, do CPP); Lei 12.403/2011 – possibilita que a fiança

seja utilizada para pagamento da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado (art. 336 do CPP). Lei 13.431/2017 – estabelece o sistema de

garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, trazendo insti-tutos como a escuta especializada e o depoimento especial (art. 7º e 8º da referida Lei). Lei 13.964/2019 (“pacote anticrime”) - prevê

o acordo de não persecução penal, relacionando como condição a ser cumprida pelo investigado a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo (art. 28-A, I, do CPP).

O que e terceira via do direito penal?A primeira e a segunda via do direito penal são,

respectivamente, a pena e a medida de segurança.Segundo Claus Roxin, a terceira via é a repara-

ção de danos, que seria uma sanção autônoma, mesclando caráter civil e penal: sob o prisma da compensação do dano, tem caráter civil; sob o prisma do ônus para o acusado promover a reparação e da vinculação dessa reparação ao cometimento de um delito e às finalidades da pena, tem caráter penal. A legitimação jurídica dessa terceira via está no princípio da subsidiariedade. A reparação substitui-

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ria ou atenuaria a pena, na medida que atendesse as finalidades da pena e as necessidades da vítima47.

Para alguns, essa terceira via identifica-se com a justiça restaurativa.

JUSTIÇA RESTAURATIVA

Proposta  Nova pensar de pensar a resposta para o crime, base-

ada na participação ativa de todos os envolvidos, bus-cando a reparação dos danos causados pelo crime e a reintegração social do ofendido e do infrator.

Características principais  Ver quadro comparativo acima;  Insere-se no contexto da privatização do direito penal

(maior preocupação com a vítima);  Considerada a terceira via do direito penal (repara-

ção do dano).

8. JUSTIÇA CONSENSUALA justiça consensual ou consensuada é o modelo de

justiça caracterizado, basicamente, pela concordância dos envolvidos quanto ao desfecho do conflito penal.

Esse modelo vem, paulatinamente, ganhando espaço no Brasil. Em diversas situações, permite-se que o réu abandone a posição tradicional de resistência frente à pretensão acusatória e ajuste com a outra parte envol-vida o cumprimento de algum tipo de sanção, ocorrendo a abreviação ou mesmo a exclusão do processo.

Dentro do modelo de justiça consensual, Anto-nio de Molina e Luiz Flávio Gomes identificam quatro submodelos48:

a) modelo reparador – como o próprio nome diz, a reparação de danos é o objetivo maior. Ocorre, principalmente, por meio da conciliação (ex.: composição civil de danos – art. 74 da Lei 9.099/1995);

b) modelo restaurativo – busca a pacificação interpessoal e social do conflito, a reparação de danos à vítima, a satisfação das expectativas de paz social etc. Aqui insere-se a denominada justiça restaurativa;

c) modelo de justiça negociada – trata-se de um acordo entre a acusação e o réu, por meio do qual este confessa a prática de uma infração, ou deixa de contestá-la, em troca de algum benefício no tocante às consequências jurídicas do delito. Fora do Brasil, o mais célebre instituto de justiça negociada é o plea bargaining49.

47. PRADO, Cláudio Amaral do. Despenalização pela reparação de danos: a terceira via, p. 166- 167. ROXIN, Claus. Fines de la pena y reparación del daño: de los delitos y de a las víctimas, p. 155.

48. Direito penal: introdução e princípios fundamentais. p. 40.49. Estima-se que, nos Estados Unidos, mais de 90% dos casos

criminais são resolvidos por meio de acordos. Mais detalhes

No Brasil, a transação penal e a suspensão con-dicional do processo, previstas na Lei 9.099/1995, apresentam contornos de justiça negociada, pois envolvem a celebração de um acordo entre as par-tes (acusação e defesa), mediante o qual o acusado cumpre certas condições em troca de benefícios penais, abreviando-se ou eliminando-se o processo.

Outro exemplo é o acordo de não persecução penal, trazido inicialmente pela Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público e atualmente disciplinado no artigo 28-A do Código de Processo Penal (por força da Lei 13.964/2019 – “pacote anti-crime”). O instituto possibilita que o promotor, desde que necessário e suficiente para reprovação e preven-ção do crime, deixe de oferecer denúncia, se o inves-tigado confessar formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, mediante o preenchimento dos requisitos e cumprimento das condições previstas no aludido dispositivo.

d) modelo de justiça colaborativa – aqui, o con-senso tem por escopo obter a colaboração do acusado. É o que se dá na colaboração premiada. Como existe um acordo prevendo algum bene-fício para o acusado, boa parte da doutrina considera esta uma hipótese de justiça negociada.

JUSTIÇA CONSENSUAL

Proposta  Modelo de justiça caracterizado, basicamente, pela con-

cordância dos envolvidos quanto ao desfecho do con-flito penal.

Submodelos:a) modelo reparador – o objetivo central é a reparação de danos. Ex.: composição civil de danos (Lei 9.099/1995);b) modelo restaurativo – busca a pacificação interpes-soal e social do conflito, a reparação de danos à vítima, a satisfação das expectativas de paz social etc. Aqui insere--se a justiça restaurativa;c) modelo de justiça negociada – acordo entre a acusa-ção e o réu, por meio do qual este confessa a prática de uma infração, ou deixa de contestá-la, em troca de algum benefício no tocante às consequências jurídicas do delito. Exs.: transação penal, suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995) e acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP);

d) modelo de justiça colaborativa – tem por escopo obter a colaboração do acusado. É o que se dá na colaboração premiada (obs.: para muitos, esta também é uma hipó-tese de justiça negociada).

em: ALVES, Jamil Chaim. Justiça consensual e plea bargaining. In: Acordo de não persecução penal, p. 193-214.

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TABELAS RESUMO – MODELOS DE DIREITO PENAL

ABOLICIONISMO PENAL

Proposta  Eliminação do sistema penal ou, em algumas vertentes abolicionistas, um amplo processo de descriminalização, despe-

nalização e atenuação do rigor das penas.

Fundamento  Cifra negra elevada (a maior parte das infrações já não é levada ao conhecimento das autoridades);  O sistema penal é seletivo e estigmatizante;  O sistema penal é burocrático e expropria dos envolvidos (acusado e vítima) a solução do conflito;  As penas não cumprem suas finalidades (não inibem a prática de crimes e não ressocializam), servindo apenas para cau-

sar dor ao acusado e à sua família.

Expoentes  Louk HulsmanEntende que o direito penal é um problema em si mesmo, devendo ser abolido em sua totalidade. Propõe a sua substituição por outras instâncias de solução de conflitos (assistencial, educativa, terapêutica, compensatória etc.). Defende o abolicionismo institucional (supressão da justiça criminal) e o abolicionismo acadêmico (abolição da forma tradicional de estudar o crime, pas-sando-se a adotar uma postura crítica e desafiadora dos discursos dominantes que sustentam a ideia de uma justiça criminal natural e necessária. Envolve uma mudança de linguagem, abolindo-se as expressões “crime” e “criminoso”, sendo substituí-das por “situações-problema”).  Thomas MathiesenVincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista, propugnando pela abolição não apenas do sistema penal, mas de todas as estruturas repressivas da sociedade. O movimento abolicionista deve ser algo sempre inacabado, mantendo-se em constante relação de oposição às estruturas de poder, para manter sua vitalidade. Denuncia a irraciona-lidade do sistema prisional e a ineficácia da pena para atingir suas finalidades.  Nils ChristieSua teoria apresenta pontos de contato com Hulsman (questiona o conceito de crime e sua artificialidade, explicita a neces-sidade de formas horizontais de resolução de conflito e afirma que o debate acerca do sistema penal deve ser suscitado nas universidades) e com Mathiesen (utiliza a história como fundamento para sua argumentação teórica, criticando a irra-cionalidade do sistema carcerário). Defensa a redução da dor, enquanto castigo, imposta deliberadamente pelo homem. Abolicionista minimalista, reconhecendo a necessidade excepcional do sistema penal para lidar comportamentos absoluta-mente inaceitáveis.

Críticas ao abolicionismo  Propostas utópicas, que não oferecem solução aos crimes mais graves;  O direito penal foi historicamente concebido para limitar o poder punitivo. Ao se remover o direito penal, estar-se-ia

retirando também essa limitação, podendo-se voltar à barbárie e à vingança privada;  A certeza da punição é fundamental para inibir a prática de crimes. A eliminação do sistema penal, com o aparato esta-

tal de persecução penal, reduziria essa certeza.

Mérito  Fomentar o debate sobre o uso racional do direito penal e das penas de prisão.

DIREITO PENAL MÁXIMO

Proposta  Aumentar as criminalizações e a severidade das penas, bem como reduzir a impunidade. Coibir infrações de menor gra-

vidade, para evitar que se transformem em delitos de maior monta. Nenhum culpado deve ficar impune, mesmo que algum inocente possa ser condenado. Compatível com as políticas de “lei e ordem” e “tolerância zero”.

Fundamento  Teoria das janelas quebradas (broken windows theory) – se um prédio tiver algumas janelas quebradas, isso passará a mensa-

gem de abandono, servindo como estímulo para que vândalos destruam outras. A conclusão é que desordem gera mais desor-dem, e a leniência com pequenas transgressões pode incentivar a prática de crimes mais graves.

  A política de tolerância zero provocou redução da criminalidade e modificou a feição da cidade de Nova York nos anos 1990.

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117Cap. 4 • MODELOS DE DIREITO PENAL

Part

e I –

Intr

oduç

ão a

o D

ireito

Pen

al

Crítica  Não foi demonstrada a relação entre desordem e criminalidade suscitada pela teoria das janelas quebradas;  Desrespeito aos direitos humanos;  Sobrecarga dos tribunais e das prisões, revelando-se insustentável a longo prazo;  Diversas cidades que não adotaram o programa de tolerância zero também tiveram redução da criminalidade nos anos

1990, decorrente de outros fatores.

DIREITO PENAL DO INIMIGO

Proposta (Günther Jakobs)  Regramento diferenciado para os “inimigos”. Aqueles que não oferecem garantia cognitiva mínima de que cumprirão as

normas, afastando-se de maneira intencional e duradoura do Direito, não fazem jus às garantias processuais reconhe-cidas aos cidadãos. Existem, assim, dois modelos de direito penal: do cidadão e do inimigo;

  Como exemplos de inimigos, Jakobs cita os delinquentes econômicos, terroristas, membros de organizações criminosas, autores de delitos sexuais e de outros delitos graves e perigosos.

Características principais  Aplicação de medidas de segurança, baseadas na periculosidade, sem prazo determinado;  Toma por base o futuro, o perigo que o inimigo representa (prospectivo);  Direito penal de autor (pune o agente por ser quem é);  Antecipação da punição, abrangendo atos preparatórios

Fundamento  Quem está fora do pacto social e almeja destruí-lo, perde o status de pessoa e os direitos de quem integra o pacto.

Em linha gerais, essa noção remonta a diversos filósofos contratualistas, tais como Kant, Rousseau, Fichte e Hobbes.

Crítica  A concepção de “inimigo” muda de acordo com o momento histórico e o contexto social (basta imaginar que, para um

nazista, um judeu seria considerado inimigo);   Um Estado Democrático de Direito jamais pode divisar seres humanos em “pessoas” e “não pessoas”;  Desrespeito aos direitos humanos;  Falar em direito penal do cidadão é um pleonasmo (todo direito penal é do cidadão); falar em direito penal do inimigo

é uma contradição (não pode ser considerado direito penal).

DIREITO PENAL MÍNIMO

Proposta  Redução do âmbito de incidência do direito penal e maximização da liberdade dos cidadãos, assegurando que nenhum

inocente seja punido, mesmo que algum culpado possa ser absolvido (relação umbilical entre minimalismo penal e prin-cípio da intervenção mínima).

Garantismo penal (Luigi Ferrajoli)  Considerado o paradigma das doutrinas minimalistas. O modelo garantista é cristalizado em dez axiomas: 1º) Não há

pena sem crime; 2º) Não há crime sem lei; 3º) Não há lei penal sem necessidade; 4º) Não há necessidade sem injuria; 5º) Não há injúria sem ação; 6º) Não há ação sem culpa; 7º) Não há culpa sem sentença; 8ª) Não há sentença sem acu-sação; 9º) Não há acusação sem prova; 10º) Não há prova sem defesa.

Direito de intervenção (Winfried Hassemer)  Novo campo do direito, localizado entre o Direito Penal e o Administrativo, voltado ao enfrentamento da criminalidade

moderna, admitindo a flexibilização de garantias individuais, embora sem contemplar penas privativas de liberdade.

VELOCIDADES DO DIREITO PENAL (SILVA SÁNCHEZ)

1ª VELOCIDADE 2ª VELOCIDADE 3ª VELOCIDADE

Pena privativa de liberdade Medidas alternativas à prisão Pena privativa de liberdade

Respeito aos direitos e garantias indi-viduais

Flexibilização de direitos e garantias individuais

Flexibilização de direitos e garantias individuais

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4ª VELOCIDADE DO DIREITO PENAL

Aplicável em face de agentes que exerceram a função de chefes de Estado e praticaram graves violações a tratados inter-nacionais de proteção a direitos humanos (crimes de lesa humanidade), ficando sujeitos ao direito penal internacional.

JUSTIÇA RESTAURATIVA

Proposta  Espécie de justiça consensual, buscando a reparação dos danos causados pelo delito. O objetivo é a realização de um

acordo (chamado acordo restaurativo) que atenda às necessidades do ofendido e da coletividade, ao mesmo tempo em que promova a ressocialização do infrator.

Características principais  O crime é um ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade.  Primado do interesse das pessoas envolvidas e da comunidade; disponibilidade da ação penal.  Os atores principais são as vítimas, os infratores e a comunidade.  Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e

círculos decisórios (sentencing circles).  Proporcionalidade e razoabilidade das obrigações assumidas no acordo restaurativo (reparação, restituição, prestação

de serviços comunitários etc.).

PRIVATIZAÇÃO DO DIREITO PENAL

Expressão utilizada para indicar a crescente preocupação com a vítima no processo penal (leva-se em consideração o inte-resse privado do ofendido, e não apenas o interesse público). Exemplo disso é a ascensão da justiça restaurativa, além de diversas leis editadas nos últimos anos.

TERCEIRA VIA DO DIREITO PENAL

Segundo Claus Roxin, a terceira via é a reparação de danos, que seria uma sanção autônoma, mesclando caráter civil (sob o prisma da compensação do dano) e penal (sob o prisma do ônus para o acusado promover a reparação e da vincula-ção dessa reparação às finalidades da pena). A legitimação jurídica da terceira via está no princípio da subsidiariedade. A reparação do dano substituiria ou atenuaria a pena, na medida que atendesse as finalidades da pena e as necessidades da vítima. Para alguns, a terceira via se identifica com a justiça restaurativa.

JUSTIÇA CONSENSUAL

Modelo de justiça caracterizado, basicamente, pela concordância dos envolvidos quanto ao desfecho do conflito penal. Dentro do modelo de justiça consensual, identificam-se quatro submodelos (Antonio de Molina e Luiz Flávio Gomes):

a) modelo reparador – o objetivo central é a reparação de danos. Ex.: composição civil de danos – art. 74 da Lei 9.099/1995.

b) modelo restaurativo – busca a pacificação interpessoal e social do conflito, a reparação de danos à vítima, a satisfação das expectativas de paz social etc. Aqui, insere-se a denominada justiça restaurativa.

c) modelo de justiça negociada – acordo entre a acusação e o réu, por meio do qual este confessa a prática de uma infra-ção, ou deixa de contestá-la, em troca de algum benefício no tocante às consequências jurídicas do delito. Fora do Bra-sil, o mais célebre instituto de justiça negociada é o plea bargaining. No Brasil, pode-se mencionar a transação penal e a suspensão condicional do processo (Lei 9.099/1995) e o acordo de não-persecução penal (Resolução 181/2017 do CNMP).

d) modelo de justiça colaborativa – o consenso tem por escopo obter a colaboração do acusado. É o que se dá na cola-boração premiada (obs.: como também existe um acordo prevendo algum benefício para o acusado, boa parte da doutrina considera esta uma hipótese de justiça negociada).

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Capítulo 5PRINCÍPIOS DE DIREITO PENAL

1. CONCEITOConforme magistério de José Afonso da Silva,

“princípios são ordenações que irradiam e imantam os sistemas de normas”1.

São enunciados de profunda significação ética, política, jurídica ou ideológica, que sustentam, como os pilares de uma obra, o conjunto da construção jurídica. Como enunciações valorativas amplas, per-mitem o conhecimento da longitude, da latitude e da profundida do ordenamento jurídico de direito posi-tivo, oferecendo, indiretamente, as referências para a apuração e compreensão do grau de desenvolvimento político, social e cultural da nação. Por meio deles se expressa a forma como o Estado e a sociedade foram organizados, bem como a ideologia que sustenta o poder político, numa simbiose perfeita com as mensagens subjacentes que propalam2.

Os princípios representam o alicerce do sistema penal, limitando o poder punitivo do Estado e fun-cionando como salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais. São mandamentos vinculantes tanto para o legislador quanto para o aplicador da lei.

Podem ser explícitos (expressamente positivados, ou seja, previstos no texto legal) ou implícitos (embora não previstos em lei, seu conteúdo pode ser extraído do ordenamento jurídico e do quadro axiológico constitucional).

Na ótica adotada, a anterioriedade e a retroati-vidade da lei benéfica são considerados princípios decorrentes do princípio da legalidade. Da mesma forma, a fragmentariedade, a subsidiariedade, a ofensividade ou lesividade, a insignificância ou bagatela e a adequação social são vistas como decorrências do princípio maior da intervenção mínima. Há autores que relacionam todos como

1. Curso de direito constitucional positivo, p. 92. 2. BOSCHI, José Antonio Paganella. Das penas e seus critérios de

aplicação, p. 27-34.

princípios autônomos, porém não há divergência quanto ao conteúdo.

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

EXPLÍCITOS IMPLÍCITOS

LEGALIDADE(art. 5º, XXXIX, CF) e corolários:anterioridade(art. 5.º, XXXIX, CF)retroatividade da lei penal benéfica(art. 5.º, XL, CF)

INTERVENÇÃO MÍNIMA e corolários:fragmentariedadesubsidiariedade

PERSONALIDADE OU RESPONSA-BILIDADE PESSOAL(art. 5.º, XLV, CF)

ofensividade ou lesividadeinsignificância ou bagatelaadequação social

INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA (art. 5.º, XLVI, 1ª parte, CF)

CULPABILIDADE

HUMANIDADE(art. 5.º, XLVII, CF)

PROPORCIONALIDADE

VEDAÇÃO DA DUPLA PUNIÇÃO PELO MESMO FATO

2. PRINCÍPIOS EM ESPÉCIE

2.1. Princípio da legalidade2.1.1. Conceito

O princípio da legalidade está previsto expres-samente na Constituição Federal:

Art. 5º, XXXIX – Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

No mesmo sentido, estabelece o art. 9º da Con-venção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):

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Artigo 9º – Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da per-petração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado.

O Código Penal também prevê:

Art. 1º – Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.

A origem histórica do princípio da legalidade remonta à Magna Charta Libertatum, editada em 1215 por João Sem Terra, documento que limitava o poder do monarca, sujeitando sua vontade à lei.

No início do século XIX, Paul Johann Anselm von Feuerbach, por muitos considerado fundador do direito penal moderno, trouxe à tona e consagrou o princípio da legalidade, nos moldes atuais.

Juridicamente, o conceito de legalidade tem três sentidos:

a) Político – Cuida-se de garantia constitucional dos direitos fundamentais do homem, buscando evitar que alguém fosse preso ou privado de seus bens a bel prazer do soberano, impondo limites ao seu poder. Nesse sentido, o art. 39 da Magna Charta Libertatum estabelecia que “nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado de sua propriedade, nem tornado fora-da-lei, exilado ou de maneira alguma des-truído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra”.

b) Jurídico em sentido amplo – Significa que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF);

c) Jurídico em sentido estrito – Refere-se especi-ficamente ao direito penal, significando que somente a lei em sentido estrito, emanada do Congresso Nacional, pode estabelecer crimes e cominar penas. O sentido estrito do princípio da legalidade coincide com o princípio da reserva legal (“nullum crimen sine praevia lege”). É importante destacar que a expressão “crime” foi empregada pelo legislador em sentido gené-rico, abrangendo não somente o crime propria-mente dito, mas também as contravenções penais.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE (acepções)

Polí�ca

Jurídica em sen�do amplo

Jurídica em sen�do estrito

Garan�a cons�tucional dos direitos fundamentais do homem, impondo limites

ao poder do soberano.

Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei (art. 5º, II, CF).

Refere-se ao direito penal. Somente lei em sen�do estrito pode estabelecer crimes e

cominar penas (princípio da reserva legal).

O princípio da legalidade oferece quatro garantias:1) Lei certa (lex certa) – Os tipos penais incrimi-

nadores devem ser redigidos de forma clara e objetiva, de modo a não gerar dúvida no des-tinatário da norma. Identifica-se com o princí-pio da taxatividade.

2) Lei previa (lex praevia) – A lei penal incrimi-nadora somente pode ser aplicada se anterior ao fato (anterioridade), além de não poder retroa-gir para prejudicar o acusado (irretroatividade).

3) Lei estrita (lex stricta) – A lei penal incrimi-nadora deve ser interpretada restritivamente, não se admitindo analogia contra o réu (ana-logia in malam partem).

4) Lei escrita (lex scripta) – Para ter validade, a lei penal deve ser escrita e ter sido devidamente publicada.

PRINCÍPIO DALEGALIDADE(garan as)

lex certa

lex praevia

lex stricta

lex scripta

Os �pos penais incriminadores devem ser redigidos de forma

clara e obje�va (taxa�vidade).

A lei penal incriminadora somente é aplicável se anterior

ao fato (anterioridade), não podendo retroagir

para prejudicar o réu (irretroa�vidade).

A lei penal incriminadora deve ser

interpretada restri�vamente, não se

admi�ndo analogia contra o réu.

Para ter validade, deve ser escrita e ter

sido publicada.

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121Cap. 5 • PRINCÍPIOS DE DIREITO PENAL

Part

e I –

Intr

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ão a

o D

ireito

Pen

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Da legalidade decorrem dois outros princípios penais: o da anterioridade e o da irretroatividade da lei penal.

2.1.2. Princípio da anterioridade

O princípio pode ser extraído do próprio texto constitucional, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX, da CF).

A lei penal incriminadora somente pode ser aplicada se for anterior ao fato. Se determinada conduta, por mais reprovável que seja, não estava tipificada como infração penal quando de sua prá-tica, não poderá ser alcançada por uma lei posterior criminalizadora, a qual valerá apenas para situações futuras.

Sem a anterioridade, o princípio da legalidade se tornaria inócuo, pois o legislador poderia, arbi-trariamente, criminalizar fatos já ocorridos, frus-trando a segurança jurídica.

O assunto será retomado e aprofundado no capítulo “lei penal no tempo”.

2.1.3. Princípio da irretroatividade ou retroatividade da lei penal benéfica

Significa que a lei penal não pode retroagir para atingir fatos anteriores à sua vigência. A exceção são as leis penais benéficas, dotadas de retroativi-dade.

O princípio está previsto expressamente no art. 5º, XL, da CF:

Art. 5º, XL – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

O tema é tratado com a devida profundidade no capítulo “lei penal no tempo”.

2.2. Princípio da personalidade, pessoalidade, responsabilidade pessoal ou intranscendência

O princípio da personalidade da pena, também conhecido como princípio da pessoalidade ou da responsabilidade pessoal, significa que a pena não pode passar da pessoa do delinquente.

Está previsto expressamente na Constituição Federal, nos seguintes termos:

Art. 5º, XLV – Nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. (grifo nosso)

Também está consagrado na Convenção Ame-ricana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):

Artigo 5. Direito à integridade pessoal (...) 3. A pena não pode passar da pessoa do delin-quente.

Um exemplo histórico de afronta ao princípio da personalidade é a condenação de Tiradentes, que, além de sentenciá-lo à morte por traição à Corte Portuguesa, declarou infames também os seus filhos e netos, determinando o confisco de seus bens.

Felizmente, não temos mais em nossa legislação dispositivos prevendo a punição de filhos e netos por crimes praticados por seus pais e avós. Contudo, não é raro que a sanção prejudique terceiros de forma indireta ou reflexa. Dentre esses efeitos indi-retos, pode-se destacar a perda de rendimentos do condenado destinados ao sustento de seus depen-dentes; o preconceito e a discriminação sofridos por seus familiares; a privação do convívio e o transtorno para visitar os reclusos etc. Essa trans-cendência da punição é inevitável, embora haja institutos voltados a atenuá-la, como o auxílio-re-clusão.

A Constituição Federal prevê que a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens podem ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. Tais hipóteses não configuram exceção ao princípio em exame, pelo simples fato de terem o alcance circunscrito ao limite do valor do patrimônio transferido.

No âmbito do processo penal, o princípio da personalidade assume a feição de princípio da intranscendência, segundo o qual a acusação somente pode ser dirigida contra o provável autor da infração.

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Título IDOS CRIMES CONTRA A PESSOA

CAPÍTULO IDOS CRIMES CONTRA A VIDA

1. FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL A inviolabilidade do direito à vida encontra

previsão no art. 5º, caput, da Constituição Federal (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida...)”.

2. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A Convenção Americana de Direitos Humanos também consagra o direito à vida, estabelecendo que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” (art. 4º, 1).

3. CRIMES CONTRA A VIDAO Código Penal prevê quatro crimes contra a

vida:

Homicídio (art. 121)

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122, caput, 1ª parte)

Infanticídio (art. 123)

Aborto (art. 124 a 126)

A competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, nos termos do art. 5º, XXXVIII, “d”, da Constituição Federal.

Portanto, dos delitos acima, o homicídio culposo não se insere na competência constitucional do tribunal popular.

O induzimento, instigação ou auxílio a auto-mutilação (art. 122, caput, 2ª parte) também não é de competência do tribunal popular, pois não é crime doloso contra a vida.

4. HOMICÍDIO (ART. 121)

Homicídio simplesArt. 121. Matar alguém:Pena – reclusão, de seis a vinte anos.Caso de diminuição de pena§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.Homicídio qualificado§ 2° Se o homicídio é cometido:I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;II – por motivo fútil;III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;IV – à traição, de emboscada, ou mediante dis-simulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:Pena – reclusão, de doze a trinta anos.Feminicídio VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:

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VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integran-tes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, compa-nheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:Pena – reclusão, de doze a trinta anos. § 2º-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher.Homicídio culposo§ 3º Se o homicídio é culposo: Pena – detenção, de um a três anos.Aumento de pena§ 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobser-vância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conse-quências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. § 5º – Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequên-cias da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. § 6º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segu-rança, ou por grupo de extermínio. § 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarre-tem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

4.1. Homicídio simples (caput)

Art. 121. Matar alguém:Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

4.1.1. Objeto jurídico É o bem jurídico protegido, consistente na vida

humana extrauterina. Predomina o entendimento de que a vida extrau-

terina começa a partir do início do parto, com o rompimento do saco amniótico. Antes desse momento, a morte do feito pode caracterizar outro crime, como o de aborto (art. 123 a 127 do CP).

Uma das principais formas de se afirmar a existência de vida extrauterina é por meio da res-piração autônoma daquele que está nascendo, comprovada por meio de exame pericial das doci-másias respiratórias (a palavra tem origem grega, dokimasia, que significa “prova”). Todavia, é pos-sível existir vida sem ter havido respiração, sendo aferidos outros sinais vitais, como batimentos cardíacos ou movimento circulatório.

4.1.2. Objeto materialÉ a pessoa que sofre a conduta criminosa, ou

seja, aquele contra quem se volta o agente.

4.1.3. Figura típicaO núcleo do tipo é “matar”, ou seja, eliminar a

vida extrauterina. Trata-se de crime de forma livre, admitindo

qualquer meio de execução, tanto direto (ex.: des-ferir golpes de faca contra o tórax da vítima) quanto indireto (ex.: utilizar-se o agente de um cão feroz para atacar a vítima).

Certos meios de execução tornam o homicídio qualificado, como o emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel.

Pode ser dar por ação (ex.: efetuar disparos contra vítima) ou por omissão. Nesta última hipó-tese, desde que presente o dever jurídico de agir, nos termos do art. 13, § 2º, do Código Penal (ex.: pai deixa de alimentar o filho, causando a sua morte por inanição).

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Obs.: sobre transmissão do vírus HIV, ver comentários ao artigo 129 (lesão grave em decor-rência de enfermidade incurável).

4.1.4. Sujeito ativo Qualquer pessoa (crime comum).

E se o crime for praticado por gêmeos xifópagos?

Gêmeos xifópagos são os denominados “gêmeos siameses”, que nascem unidos por partes do corpo, normalmente na altura do tórax.

Se os dois praticam o homicídio em consenso, ambos sofrerão as penas cabíveis.

Se apenas um deles tem a intenção de praticar o delito, apenas este será condenado. O problema surgirá no momento da execução da pena, já que é inadmissível compelir o gêmeo inocente a cum-pri-la em companhia do culpado.

A meu ver, a solução é sobrestar a execução da pena até o advento da prescrição, ou até que os gêmeos se submetam a eventual cirurgia de sepa-ração (se ainda não tiver decorrido o lapso prescri-cional).

Vale observar que sanções de caráter pecuniário podem ser cumpridas individualmente por um dos gêmeos (ex.: prestação pecuniária e multa).

Em sentido contrário, afirmando que a solução é absolvição do gêmeo culpado, afirma Euclides Custódia da Silveira:

“Se o fato é cometido por um, sem ou contra a vontade do outro, impor-se-á a absolvição do único sujeito ativo, se a separação cirúrgica é impraticável por qualquer motivo, não se podendo excluir sequer a recusa do inocente, que àquela não está obrigado. A absolvição se justifica, como diz Manzini, porque conflitando o interesse do Estado ou da sociedade com o da liberdade individual, esta é que tem de prevalecer. Se para punir um culpado é inevitável sacrificar um inocente, a única solução sensata há de ser a impunidade”1.

4.1.5. Sujeito passivo Qualquer pessoa com vida, independentemente

da condição física ou de saúde, nem da origem, raça, sexo, cor ou idade. Não se exige a viabilidade da vida extrauterina, bastando o nascimento com vida. Eventuais deformidades ou anomalias genéti-cas do nascente também não afastam o crime.

1. Crimes contra a pessoa, p. 25-26.

Não é possível, obviamente, o homicídio de pessoa já morta, tratando-se de crime impossível em razão da impropriedade absoluta do objeto material (art. 17 do CP). Também não caracteriza homicídio a conduta do agente que atenta contra a própria vida. O suicídio, embora possa ser consi-derado ilícito, já que a vida goza de proteção jurí-dica, não é tipificado no ordenamento pátrio.

E se as vítimas forem gêmeos xifópagos?

Se o agente tem a intenção de matar os dois gêmeos (dolo direto), responde por dois crimes de homicídio em concurso formal impróprio, diante da existência de desígnios autônomos (art. 70, caput, 2º parte, do CP).

Se a intenção do agente é matar apenas um dos gêmeos, mas sua conduta causar também a morte do outro, em razão do dano provocado aos órgãos comuns, responderá também pelo duplo homicídio em concurso formal impróprio. Em relação à vítima cuja morte era diretamente pretendida, estará pre-sente o dolo direto de primeiro grau e, quanto ao segundo ofendido, o dolo direto de 2º grau ou dolo de consequências necessárias.

Por fim, caso um dos gêmeos sobreviva, respon-derá o agente pelo homicídio consumado e pelo homicídio tentado, também em concurso formal impróprio.

4.1.6. Elemento subjetivo É o dolo de matar, denominado animus necandi

ou animus occidendi. Admite-se o dolo direto ou o dolo eventual (quando o agente não quer o resul-tado morte, mas assume o risco de produzi-lo).

É desnecessária qualquer finalidade especial, embora sua existência possa qualificar o delito (ex.: quando o homicídio é praticado com o especial fim de assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime, incide a qualificadora descrita no inciso V do § 2°).

4.1.7. Consumação e tentativa O crime se consuma com a morte da vítima

(crime material). O conceito de morte pode ser extraído da Lei 9.434/1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante. Segundo esta Lei, tais procedimentos devem ser precedidos de diagnóstico de morte encefálica (art. 3º), que é a cessação das atividades do tronco cerebral.

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MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

A morte é atestada por laudo pericial (exame necroscópico ou necropsia).

A tentativa é admissível, ocorrendo nas hipóte-ses em que o agente inicia a conduta visando à morte da vítima, mas não atinge o objetivo por circunstâncias alheias à sua vontade (ex.: agente desfere golpes de faca contra o ofendido, mas é impedido de prosseguir por terceiro, evitando-se a morte; indivíduo efetua disparo de arma de fogo contra o tórax da vítima, que é socorrida a tempo e sobrevive).

Se a vítima sofrer ferimentos (como nos exem-plos citados), a tentativa é denominada cruenta. Caso contrário (ex.: agente efetua disparo, mas não atinge o ofendido), chama-se tentativa branca ou incruenta.

4.1.8. Classificação Crime comum (pode ser praticado por qualquer

pessoa); material (a consumação exige resultado naturalístico, consistente na morte da vítima); comissivo, em regra (praticado mediante ação) ou omissivo impróprio ou comissivo por omissão (quando presente o dever de agir, nos termos do art. 13, § 2º, do CP); de dano (exige efetiva lesão ao bem jurídico); de forma livre (pode ser praticado de qualquer maneira, não se exigindo uma forma específica de realização da conduta); instantâneo (o resultado se dá em um momento específico, não se prolongando no tempo); unissubjetivo (pode ser praticado por um só agente); plurissubsistente, em regra (a conduta envolve a prática de mais de um ato); admite tentativa.

4.1.9. Homicídio simples hediondo (hipóteses)

Em regra, o homicídio simples não é crime hediondo.

Nos termos do artigo 1º, I, da Lei 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos), o homicídio simples somente é crime hediondo quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente (art. 121, § 6º, última figura).

4.2. Homicídio “privilegiado” (§ 1º)

Caso de diminuição de pena§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob

o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

A figura prevista no § 1º, embora usualmente denominada de homicídio “privilegiado”, tecnica-mente representa uma causa de diminuição da pena (a própria rubrica indica se tratar de um “caso de diminuição de pena”).

Assim, presente alguma das hipóteses elencadas no dispositivo, deverá o juiz, na terceira fase da dosimetria, reduzir a pena de 1/6 a 1/32.

Três hipóteses permitem o seu reconhecimento: relevante valor social, relevante valor moral e prática do crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.

4.2.1. Obrigatoriedade da redução A redação do dispositivo prevê que o juiz pode

reduzir a pena de 1/6 a 1/3. Indaga-se, assim, se tal redução seria obrigatória ou facultativa.

Sem dúvida, presentes os requisitos legais, a redução é obrigatória, limitando-se a discriciona-riedade do magistrado ao quantum da redução.

Não se pode olvidar que, tratando-se o homicí-dio de crime de competência do Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF), aos jurados caberá analisar a existência do privilégio. Uma vez reco-nhecido, a negativa do juiz togado em aplicar a redução da pena vulnera o princípio constitucional da soberania dos veredictos, consagrado no art. 5º, XXXVIII, “d”, da CF.

O privilégio é um quesito da defesa e, se não for objeto de votação, acarretará nulidade do jul-gamento. Nesse sentido é o teor da súmula 162 do STF: “É absoluta a nulidade do julgamento pelo júri, quando os quesitos da defesa não precedem aos das circunstâncias agravantes”.

4.2.2. Incomunicabilidade das causas de diminuição

As hipóteses trazidas no § 1º do art. 121 são causas de diminuição de pena, não se tratando de elementares típicas. São circunstâncias de nítido

2. Asautênticasfigurasprivilegiadastrazembalizassancionatóriasdiversas, sendo-lhes cominada penamínima emáximamaisbrandas.Nesseprisma,overdadeirohomicídioprivilegiadoéoinfanticídio(art.123doCP),punidocomdetenção,de2a6anos,emboraolegisladortenhaoptadoportipificá-lodemodoautônomo.

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caráter subjetivo, relacionando-se à motivação pes-soal do agente, de modo que não se comunicam aos demais comparsas (art. 30 do Código Penal).

Ex.: João, pretendendo eliminar a vida daquele que estuprou sua filha, solicita a ajuda de Pedro, alheio aos fatos. Devidamente ajustados, cercam o responsável pelo crime sexual e, conjuntamente, agridem-no até a morte. O privilégio do relevante valor moral poderá ser reconhecido apenas em favor de João (genitor), não se estendendo a Pedro.

Naturalmente, é possível que todos os agentes sejam beneficiados pela diminuição, mas desde que o motivo atenuador esteja presente em relação a cada um deles.

4.2.3. Homicídio privilegiado não é crime hediondo

A Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) relaciona como hediondo apenas o homicídio pra-ticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e o homi-cídio qualificado (art. 1º, I). Tratando-se de rol taxativo, não é possível enquadrar o homicídio privilegiado como crime hediondo.

4.2.4. Hipóteses de homicídio “privilegiado”

4.2.4.1. Relevante valor social ou moralÉ indiscutível a gravidade do crime de homicí-

dio, que atenta contra a vida, o mais precioso bem jurídico. A par disso, em determinadas situações, é possível vislumbrar certa nobreza na motivação de quem decide tirar a vida de outra pessoa. Assim, se o agente comete o delito impelido por motivo de relevante valor social ou moral, terá direito à mitigação da pena.

Consoante a Exposição de Motivos do Código Penal, “por motivo de relevante valor social ou moral, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indig-nação contra um traidor da pátria, etc”.

Qual a diferença entre relevante valor social e relevante valor moral?

Valor social se refere a interesses de natureza coletiva, supraindividual (comunitários, patrióticos etc.).

Exs.: matar um sujeito que está arregimentando crianças da comunidade para o tráfico de drogas; matar o traidor da pátria.

Já o valor moral diz respeito a interesses indi-viduais, pessoais (piedade, compaixão, amor paterno etc.).

Ex.: matar o estuprador da filha; matar alguém que está gravemente enfermo, para pôr fim ao seu sofrimento (eutanásia).

Em qualquer caso, o motivo deve ser relevante, ou seja, de considerável importância, devendo ser analisado segundo o padrão médio da sociedade e não conforme a opinião pessoal do agente.

O que significa eutanásia, ortotanásia, distanásia e mistanásia? Quais as suas consequências jurídi-cas?

Confira a seguir:

4.2.4.1.1. EutanásiaEutanásia é o homicídio praticado por piedade

ou compaixão, com o objetivo de pôr fim ao sofri-mento de pessoa acometido de grave enfermidade, porém não desenganado pela medicina.

A expressão eutanásia é originada do grego, significando “boa morte”. Pode se dar de forma ativa (por exemplo, ministrar medicamento letal no paciente) ou passiva (por exemplo, deixar de prover alimentação ao enfermo).

A eutanásia, ativa ou passiva, é tipificada no ordenamento jurídico brasileiro como homicídio, ensejando o reconhecimento da figura privilegiada, consistente no relevante valor moral (art. 121, § 1º, do CP).

4.2.4.1.2. OrtotanásiaA ortotanásia consiste em não interferir na

morte natural do paciente, que sofre de grave enfer-midade e está desenganado pela medicina, absten-do-se da utilização de recursos médicos (procedi-mentos e fármacos) que lhe causariam sofrimento e não trariam a possibilidade de cura.

Obs.: não se confundem a eutanásia passiva e a ortotanásia. Na eutanásia passiva, omitem-se ou suspendem-se arbitrariamente condutas que ainda eram indicadas e poderiam beneficiar o paciente. Já na ortotanásia inexiste possibilidade de cura, buscando-se prover o conforto ao paciente, sem encurtar o tempo natural de vida nem adiá-lo indevida e artificialmente, para que a morte chegue

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MANUAL DE DIREITO PENAL – Parte Geral e Parte Especial • Jamil Chaim Alves

na hora certa, quando o organismo efetivamente alcançou um grau de deterioração incontornável3.

Há controvérsia sobre as consequências jurídi-co-penais da ortotanásia. No âmbito médico, o procedimento é considerado ético, sendo objeto da Resolução n. 1805/2006, editada pelo Conselho Federal de Medicina. Permite-se ao médico, na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, limi-tar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para alívio dos sintomas, conforme a vontade do paciente ou de seu repre-sentante legal. Tal Resolução foi objeto de ação ajuizada pelo Ministério Público Federal, na qual se pleiteava o reconhecimento de sua nulidade. Embora inicialmente deferida a liminar, o feito teve desfecho de improcedência, acolhendo o MM. Juiz Roberto Luis Luchi Demo os fundamentos aduzidos pela Procuradora da República, Dra. Luciana Lou-reiro Oliveira. Transcrevo abaixo trechos do pare-cer:

1) o CFM tem competência para editar a Resolução nº 1805/2006, que não versa sobre direito penal e, sim, sobre ética médica e consequências disciplinares; 2) a ortotanásia não constitui crime de homicídio, inter-pretado o Código Penal à luz da Constituição Federal; 3) a edição da Resolução nº 1805/2006 não determinou modificação significativa no dia-a-dia dos médicos que lidam com pacientes terminais, não gerando, portanto, os efeitos danosos propugnados pela inicial; 4) a Resolução nº 1805/2006 deve, ao contrário, incen-tivar os médicos a descrever exatamente os procedi-mentos que adotam e os que deixam de adotar, em relação a pacientes terminais, permitindo maior transparência e possibilitando maior controle da atividade médica; 5) os pedidos formulados pelo Ministério Público Federal não devem ser acolhidos, porque não se revelarão úteis as providências preten-didas, em face da argumentação desenvolvida. (...) a omissão em adotar procedimentos terapêuticos extraordinários quando a morte já é certa (ortotaná-sia), não produz a morte do paciente, uma vez que nenhum ato do médico sobre ele poderá evitar o evento do desenlace. (...) Vê-se, pois, que se chega à conclusão da atipicidade material do suposto crime de homicídio, ainda que privilegiado, decorrente da prática de orto-tanásia, levando-se em consideração que a falta de adoção de terapêuticas extraordinárias, pelo médico, para prolongar um estado de morte já instalado em paciente terminal (desde que autorizado por quem de direito) não conduz a um resultado desvalioso no campo penal, considerando a necessária interação que os princípios constitucionais – todos derivados da diretriz primordial da preservação da dignidade da pessoa humana – têm de estabelecer com a moderna

3. VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial, p. 80.

teoria do fato típico, balizando a interpretação do direito penal vigente (Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014809-3, 14ª Vara Federal, j. 01/12/2010).

Antes mesmo da sentença, o tema foi contem-plado no Código de Ética Médica (Resolução 1931/2009) que, na linha da Resolução anterior, estabeleceu:

Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos dispo-níveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêu-ticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em con-sideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (art. 41, parágrafo único).

Entendo que a ortotanásia, nos moldes supra mencionados, não caracteriza homicídio – sequer privilegiado -, pelos seguintes argumentos:

a) não há nexo causal entre o resultado morte e a conduta do profissional, já que o falecimento do paciente é iminente e inevitável, abstendo-se o médico tão somente de empregar recursos que, de qualquer modo, não salvariam o enfermo e lhe propiciariam desnecessário sofrimento;

b) a omissão no emprego de procedimentos médi-cos para evitar a morte do paciente é irrelevante na prática, porque o profissional não poderia, de qualquer modo, impedir o resultado;

c) está ausente o elemento subjetivo do tipo (dolo), visto que a intenção do profissional não é cei-far a vida do paciente, mas mitigar os sintomas da enfermidade, proporcionando conforto ao doente (cuidados paliativos);

d) o princípio da dignidade da pessoa humana, cerne axiológico do ordenamento jurídico, abrange a autonomia privada, entendida como o direito de cada um tomar as próprias decisões. Obrigar alguém a se submeter a tratamento médico, mesmo quando isso se revela inútil e penoso, mais do que negar-lhe o direito de escolha, é negar-lhe o direito de morrer com dignidade, postura típica de um Estado pater-nalista e autoritário. Nessa ótica, o consentimento de ofendido, excludente supralegal de ilicitude, merece releitura constitucional, de modo a contemplar a possibilidade da pessoa abrir mão de bens tradicionalmente considerados indispo-níveis, quando tal opção se compatibilizar com a dignidade da pessoa humana.

Registro a posição contrária de Nelson Hungria:

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Nenhum médico tem a faculdade de ficar impassível ou como simples espectador em face do moribundo, desde que haja possibilidade de mantê-lo com vida. E aquele que assim proceder não será apenas um crimi-noso, senão também um profissional indigno, a quem se deve rasgar o diploma4.

4.2.4.1.3. DistanásiaDistanásia é a utilização de todos os recursos

existentes para prolongar a vida do paciente, ainda que extremamente penosos e sem possibilidade de cura. Do ponto de vista penal, evidentemente, tra-ta-se de conduta atípica.

4.2.4.1.4. Mistanásia Mistanásia, também denominada eutanásia

social, é a morte miserável e prematura de parcela desfavorecida da população, decorrente da falta ou deficiência de atendimento de saúde ou de erro médico. Por configurar crime, a depender do caso concreto (ex.: homicídio culposo em razão de negli-gência).

Em resumo:

EUTANÁSIA

Homicídio praticado por piedade, paracolocarfimaosofrimentodepessoaaco-metida de grave enfermidade, emboranão desenganada pela medicina. Podeocorrer de forma ativa (ex.: ministrarmedicamentoletal)oupassiva(ex.:dei-xardealimentaroenfermo).Configurahomicídioprivilegiado,emrazãodorele-vante valormoral (art. 121, § 1º, CP).

ORTOTANÁSIA

Consisteemnãointerferirnamortedopaciente,quesofredeenfermidadegraveeestádesenganadopelamedicina,dei-xandodeutilizarrecursosmédicosquecausariam sofrimento e não trariam acura. Enquanto na eutanásia passiva oagentedeixadeempregarmedidasqueeram indicadas para tratar o paciente,na ortotanásia não há mais a possi-bilidade de cura, adotando-se apenasprocedimentospara trazerconfortoaopaciente.Noâmbitomédico,oprocedi-mentoéconsideradoético,sendoobjetodaResoluçãon.1805/2006,editadapeloConselhoFederaldeMedicina.Entendoquenãoconfiguracrime,mashávozesafirmandoqueconfigurahomicídiopri-vilegiado(NelsonHungria,entreoutros).

4. Ortotanásia ou eutanásia por omissão sob o ponto de vista jurídico-penal”.In:ComentáriosaoCódigoPenal,v.I,tomoI,p.349

DISTANÁSIA

É a utilização de todos os recursosdisponíveis para prolongar a vida dopaciente, mesmo que isso seja extre-mamente penoso e não haja possibili-dadedecura.Evidentemente,nãocon-figura crime.

MISTANÁSIA

Tambémdenominadaeutanásiasocial,éamortemiseráveleprematuradepar-celadesfavorecidadapopulação,decor-rente da falta ou deficiência de aten-dimento de saúde ou de erro médico.Por configurar crime, a depender docaso concreto (ex.: homicídio culposoem razão de negligência).

4.2.4.1.5. Distinção da atenuante genérica prevista no art. 65, III, “a”

O motivo de relevante valor social ou moral, além de ser causa de diminuição de pena do crime de homicídio, também é considerado atenuante genérica (“Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena: (...) III – ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral”).

Diferem porque, na causa de diminuição, o agente comete o crime impelido pelo relevante valor, relevância motivacional muito mais intensa do que a exigida na atenuante, para a qual basta a prática do delito por motivo de relevante valor social ou moral.

Assim, é possível o afastamento da causa dimi-nuição e o reconhecimento da atenuante, entendendo o magistrado pela existência do relevante valor social ou moral, embora sem carga suficiente para ter impelido o agente à pratica do crime5.

HOMICÍDIO “PRIVILEGIADO”(ART. 121, § 1º)

ATENUANTE GENÉRICA(ART. 65, INC. III, “A”)

Agente pratica o crimeimpelido por motivo derelevante valor social oumoral.

Agentecometeocrimepormotivode relevante valorsocial oumoral.

↑Denotamaiorinten-sidade motivacio-nal.

↓ Denotamaior inten-sidademotivacional.

5. ÉtambémaposiçãodeFernandoGalvão(Aplicação da pena, p. 203) e José Antonio Paganalla Boschi (Das penas e seus critérios de aplicação, p.227).

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4.2.4.2. Domínio da violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima

São três os requisitos para o reconhecimento dessa figura:

a) Domínio de violenta emoção – Exige-se que o agente esteja dominado pela emoção, e que tal emoção seja violenta. É preciso, pois, que o sentimento seja de intensidade elevada, absor-vente, atuando com ímpeto sobre o agente, de modo a lhe obnubilar o equilíbrio psíquico e, consequentemente, os freios inibitórios, desbor-dando na reação contra a vítima.

b) Injusta provocação da vítima – Não é neces-sária a existência de agressão, exigindo a lei tão somente que haja provocação. Tal provocação pode ser tanto física (ex.: dar um tapa no rosto do agente) quanto verbal (ex.: xingar ou humi-lhar alguém). Pode ser dirigida contra o próprio agente ou contra terceiro (ex.: ofender a genitora do agente ou outra pessoa com quem ele tenha relação de afeto, por exemplo).

A provocação justa não permite diminuição da pena (ex.: guarda aplica multa de trânsito regular-mente, fiscal da prefeitura interdita estabelecimento comercial sem alvará de funcionamento, oficial de Justiça cumpre mandado de reintegração de posse etc.).

c) Imediatidade entre a provocação e a reação – Estabelece o Código Penal que a ação sob o domínio de violenta emoção deve ocorrer logo em seguida a injusta provocação da vítima. A expressão logo em seguida tem significado de imediatidade, devendo a ação e a reação acon-tecerem no mesmo contexto fático, subsequen-cialmente.

O decurso do tempo reduz paulatinamente o ímpeto da violenta emoção, arrefecendo os ânimos do agente e propiciando maior reflexão sobre seus atos. Desse modo, o intervalo de tempo substancial entre a ação e a reação (várias horas ou dias) faz desaparecer a violenta emoção, dando lugar, ao revés, à premeditação e à vingança, não acobertadas pelo dispositivo.

4.2.4.2.1. Violenta emoção e dolo eventual São compatíveis. É possível que o agente, sob o

domínio da violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima, venha a atacá-la, assumindo o risco de lhe causar a morte.

Ex.: João, conduzindo veículo, é abalroado pelo automóvel de Paulo que, depois da manobra impru-dente, faz-lhe gesto obsceno e busca se evadir. Dominado pela violenta emoção, João efetua disparo de arma de fogo querendo atingir o veículo de Paulo, mas vislumbrando a possibilidade de causar a sua morte.

4.2.4.2.2. Distinção da atenuante Segundo o artigo 65, III, “c”, última parte, do

Código Penal, é circunstância atenuante o fato de ter o agente cometido o crime “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima”.

Enquanto a causa de diminuição de pena exige o domínio da violenta emoção, a atenuante se contenta com a influência da violência emoção (requisito mais brando).

Ademais, a relação de imediatidade entre a ação e a reação, prevista na causa de diminuição e con-substanciada na expressão logo em seguida, não foi reproduzida na atenuante.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

STF: “A causa especial de diminuição de pena do § 1.º do art. 121 não se confunde com a atenuante genérica da alínea “a” do inciso III do art. 65 do Código Penal. A incidência da causa especial de diminuição de pena do motivo de relevante valor moral depende da prova de que o agente atuou no calor dos fatos, impulsionado pela motivação relevante. A atenuante incide, residual-mente, naqueles casos em que, comprovado o motivo de relevante valor moral, não se pode afirmar que a conduta do agente seja fruto do instante dos aconteci-mentos” (HC 89.814/MS, rel. Min. Carlos Britto, 1.ª T., j. 18.03.2008, v.u.).

HOMICÍDIO “PRIVILEGIADO”(ART. 121, § 1º)

ATENUANTE GENÉRICA(ART. 65, INC. III, “C”)

Domíniodaviolentaemo-ção.

Influênciadaviolentaemo-ção.

Logoemseguidaainjustaprovocação da vítima(relaçãodeimediatidade).

4.3. Homicídio qualificado (§ 2º)

Homicídio qualificado§ 2° Se o homicídio é cometido:

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737Título I • DOS CRIMES CONTRA A PESSOA

Part

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Cód

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Pena

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I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;II – por motivo fútil;III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissi-mulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

Feminicídio VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integran-tes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, compa-nheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: Pena – reclusão, de doze a trinta anos.

As qualificadoras são circunstâncias legais que integram o tipo penal do homicídio, provocando a modificação e o agravamento das balizas legislati-vas sancionatórias (pena mínima e máxima).

A pena do homicídio, que na modalidade fun-damental é de 6 a 20 anos de reclusão, na figura qualificada é elevada para 12 a 30 anos de reclusão.

4.3.1. Espécies de qualificadoras e comunicabilidade aos demais agentes

As qualificadoras do homicídio estão previstas no art. 121, § 2º, incisos I a VII, tendo por fundamento circunstâncias consideradas especialmente reprováveis.

As hipóteses previstas nos incisos I e II dizem respeito aos motivos do crime, (torpe e fútil, res-pectivamente); a qualificadora descrita no inciso III refere-se aos meios de execução do crime (insidioso, cruel, ou de que possa resultar perigo comum); a do inciso IV abrange os modos de execução do delito (mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido); a qualificadora do inciso V se liga à finalidade do agente, existindo conexão com outro delito (asse-gurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime); a do inciso VI guarda relação com a condição da vítima (matar mulher

por razões da condição de sexo feminino); por fim, a qualificadora do inciso VII também está relacio-nada à condição da vítima, exercente de função pública (certos agentes estatais no exercício da função ou em razão dela, bem como parentes con-sanguíneos até o 3º grau, em razão dessa condição).

Na hipótese de concurso de pessoas, as qualifica-doras se comunicam aos demais agentes?

As qualificadoras previstas nos incisos I, II e V têm natureza subjetiva, estando relacionadas a aspectos pessoais ou individuais do homicida.

Na hipótese de concurso de pessoas, as qualifica-doras de natureza subjetiva não se comunicam aos demais agentes, nos termos do art. 30 do Código Penal.

Ex.: João e Paulo se unem para matar Fernanda. João quer matá-la porque ela não saldou uma dívida de drogas (motivo torpe), sendo tal motivação des-conhecida e não partilhada por Paulo. A qualifica-dora do motivo torpe será aplicada a João, mas não se estenderá a Paulo.

Já as qualificadoras descritas nos incisos III e IV têm natureza objetiva, ou seja, estão ligadas ao fato praticado. Elas se comunicam aos demais agentes, desde que sejam de seu conhecimento.

Ex.: João e Paulo decidem matar Fernanda afogada. João prepara bebidas com forte teor alcóolico para embriagar Fernanda. Em seguida, Paulo a leva até a praia e a afoga no mar. A qualificadora da asfixia por afogamento se estende aos dois comparsas6.

Finalmente, as qualificadoras previstas nos inci-sos VI (feminicídio) e VII (homicídio funcional) têm natureza controvertida, como veremos oportu-namente.

QUALIFICADORAS DE NATUREZA SUBJETIVA

(não se comunicam aos comparsas)FUNDAMENTO

I. Paga ou promessa de recompensa,ou por outromotivo torpe.

Motivos docrime.

II.Motivo fútil. Motivos docrime.

V. Para assegurar a execução, a ocul-tação, a impunidade ou vantagem deoutro crime(qualificadora por conexão).

Finalidade doagente.

6. Os exemplos deste tópico foram retirados de casos reaisocorridos na comarca de Itanhaém/SP, embora eu tenhaalteradoosnomesdosenvolvidos.

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QUALIFICADORAS DE NATUREZA OBJETIVA

(comunicam-se aos comparsas)FUNDAMENTO

III. Emprego de veneno, fogo, explo-sivo,asfixia,torturaououtromeioinsi-dioso ou cruel, ou de que possa resul-tar perigo comum.

Meio de exe-cução.

IV.Àtraição,deemboscada,oumediantedissimulaçãoououtrorecursoquedifi-culte ou torne impossível a defesa doofendido.

Modo de exe-cução.

QUALIFICADORAS DE NATUREZA CONTROVERTIDA FUNDAMENTO

VI.Contraamulherporrazõesdacon-dição de sexo feminino (feminicídio).

Condição davítima.

VII. Contra autoridade ou agente des-crito nos arts. 142 e 144 da CF, inte-grantesdosistemaprisionaledaForçaNacionaldeSegurançaPública,noexer-cíciodafunçãoouemdecorrênciadela,oucontraseucônjuge,companheiroouparente consanguíneo até 3º grau, emrazão dessa condição(homicídio funcional).

Condição davítima.

4.3.2. Hipóteses de homicídio qualificado

4.3.2.1. Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe (inciso I)

a) Paga ou promessa de recompensa

Trata-se do denominado homicídio mercenário, praticado em troca de um prêmio ou compensação. É uma hipótese de motivo torpe, destacada pelo legislador.

Esta figura constitui um crime plurissubjetivo, plurilateral ou de concurso necessário, sendo necessária a presença de pelo menos duas pessoas: de um lado, quem paga ou promete a recompensa, e de outro quem a recebe ou espera recebê-la.

Na paga de recompensa, o prêmio já foi recebido pelo agente, enquanto na promessa há a expectativa de recebimento futuro. O efetivo recebimento é desnecessário para a configuração da qualificadora.

Como não se trata de crime patrimonial, a recompensa não precisa ter natureza econômica (ex.: dinheiro em espécie, valores ou bens), estando

abrangidas outras espécies de vantagem pessoal (profissional, sexual etc.).

Não incide a qualificadora se o crime for pra-ticado gratuitamente, sem o ajuste prévio de recom-pensa, ainda que depois de praticado haja algum pagamento.

A qualificadora é aplicável ao executor. Mas ela se comunica ao mandante?

Ex.: João paga Marcos para executar Fernanda. Marcos responderá por homicídio qualificado pela paga de recompensa. A qualificadora se comunica a João?

Existem duas correntes: Sim, pois a qualificadora é uma circunstân-

cia elementar do crime. Como tal, comunica-se ao mandante, ainda que de caráter subjetivo (conforme art. 30 do CP). Há precedente da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nesse sentido:

STJ: “Nos termos da jurisprudência desta Corte, no homicídio mercenário, a qualificadora da paga ou pro-messa de recompensa é elementar do tipo qualificado e se estende ao mandante e ao executor” (STJ, REsp 1262706/MG, Rel. Min. Reynaldo da Fonseca, 5ª T., j. 22/11/2016, v.u.).

 Não. A qualificadora não é uma elementar do crime, mas uma circunstância (no caso, de caráter subjetivo). Logo, não se comunica automa-ticamente ao mandante. É a posição majoritária, parecendo-me tecnicamente mais acertada.

Aliás, embora a motivação do executor do homi-cídio seja sempre torpe (recebimento de recompensa), o mesmo não se pode dizer em relação ao mandante. A motivação deste pode ser torpe (ex.: determinar a morte do pai para receber a herança), neutra, ou até mesmo caracterizar relevante valor moral ou social (ex.: movida por compaixão, pessoa contrata enfermeiro para praticar eutanásia de um ente querido).

Também afirmando que essa qualificadora é uma circunstância subjetiva, e como tal não se comunica automaticamente ao mandante, decidiu a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:

STJ: “O reconhecimento da qualificadora da “paga ou promessa de recompensa” (inciso I do § 2º do art. 121) em relação ao executor do crime de homicídio merce-nário não qualifica automaticamente o delito em relação ao mandante, nada obstante este possa incidir no refe-rido dispositivo caso o motivo que o tenha levado a empreitar o óbito alheio seja torpe. (...) nem sempre a

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