Manuel Bandeira e Alguma Poética da Alegria
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Manuel Bandeira e Alguma Poética da Alegria
Angeli Rose do Nascimento
Pós-doutoranda em Educação, Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE),
Laboratório de Estudos de Linguagem,leitura,escrita e educação (LEDUC),
Universidade federal do Rio de Janeiro(UFRJ), Rio de Janeiro,RJ,Brasil.
RESUMO
O presente artigo apresenta um exercício de leitura de poemas selecionados do poeta
Manuel Bandeira, tomando como referências teóricas, principalmente, a teoria da leitura
de Larrosa (1998) e o ensaio sobre a alegria de Clemént Rosset,”Alegria Maior”,
(2002). A alegria é tomada como uma categoria que se apresenta nestes textos do poeta
brasileiro sob aspectos diferentes. Para tanto, considerarmos para a formação das almas
as noções de leitura como formação e formação como leitura (Larrosa, 1998) e as
contribuições de parte da obra de Bandeira para desenvolverem-se práticas pedagógicas
em sala de aula. Em breve revisão bibliográfica realizada, O prazer do texto de Roland
Barthes, as relações entre poesia e música como uma política de escrita são alguns dos
elementos estruturadores de todo o movimento crítico empreendido sobre alguns
poemas e comportamentos do eu lírico ante as situações poéticas apresentadas. Neste
sentido, a interdisciplinaridade permeia o próprio pensar “sobre”, entendendo que tanto
o fazer literário, como o fazer crítico são saberes que se interpenetram conduzindo ao
sabor maior da alegria do processo de conhecer e aprender.
Palavras-chaves: Formação. Alegria. Leitura. Poesia
ABSTRACT
This article presents an exercise in reading selected poems by the poet Manuel
Bandeira, taking as theoretical references, mainly the Larrosa reading theory (1998) and
the essay on the joy of Clemént Rosset, Greater Joy, (2002). Joy is taken as a category
that presents itself in these texts of the Brazilian poet under different aspects. In order to
do so, let us consider the notions of reading as formation and formation as reading (for
the formation of souls) (Larrosa, 1998) and the contributions of part of the work of
Bandeira to develop pedagogical practices in the classroom. The review of Roland
Barthes' text, the relations between poetry and music as a writing policy are some of the
elements that structure the whole critical movement undertaken on some poems and
behaviors of the lyrical self in the poetic situations presented. In this sense,
interdisciplinarity permeates the very thinking about, understanding that both the
literary doing and the critical doing are knowledge that interpenetrates leading to the
greater flavor of the joy of the process of knowing and learning.
Key-words: Formation. Joy. Reading. Poetry
RESUMEN
El presente artículo presenta un ejercicio de lectura de poemas seleccionados del poeta
Manuel Bandeira, tomando como referencias teóricas, principalmente, la teoría de la lectura
de Larrosa (1998) y el ensayo sobre la alegría de Clemént Rosset, "Alegría Mayor", (2002) . La
alegría es tomada como una categoría que se presenta en estos textos del poeta brasileño bajo
diversos aspectos. Para ello, considerar para la formación de las almas las nociones de lectura
como formación y formación como lectura (Larrosa, 1998) y las contribuciones de parte de la
obra de Bandera para desarrollarse prácticas pedagógicas en el aula. En breve revisión
bibliográfica realizada, El placer del texto de Roland Barthes, las relaciones entre poesía y
música como una política de escritura, son algunos de los elementos estructuradores de todo
el movimiento crítico emprendido sobre algunos poemas y comportamientos del yo-lírico ante
las situaciones poéticas presentadas. En este sentido, la interdisciplinariedad y en el sentido de
que tanto el hacer literario, como el hacer crítico, son saberes que se interpenetran
conduciendo al sabor mayor de la alegría del proceso de conocer y aprender.
Palabras claves: Formación.alegría.lectura.poesía
Apresentação
Não é preciso ninar a vida
para ser feliz dentro dela.
(Mário de Andrade)
Este trabalho apresenta uma experiência de leitura de alguns textos da obra de
Manuel Bandeira relacionada à vida cultural do período Modernista, de modo a sugerir
a presença de uma "ética de alegria" na obra deste poeta, contribuição que pode ser vista
como um aspecto relevante para a "formação das almas". Tal categoria apoia-se na
concepção de “leitura como formação” e “formação como leitura” (Larrosa,
1998),principalmente,mas também no estudo que crítico literário,professor Antonio
Cândido, faz sobre a “Formação da Literatura Brasileira” em livro
homônimo(2000),onde reafirma a potência da literatura (e da arte) no desenvolvimento
humano,sem qualquer menção à ideia de progresso,que fique bem claro.A partir
disso,concluímos esta introdução com as palavras do mestre Cândido sobre “A literatura
e a formação do homem” em artigo : “Quero dizer que as camadas profundas da nossa
personalidade podem sofrer um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam
de maneira que não podemos avaliar.”(1999,p.84).E por fim,para início de
conversa,tomo as palavras de Barthes para situar melhor e imprecisamente o leitor deste
exercício de leitura sobre a bandeira da alegria em Bandeira:
Gostaria pois que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes
às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e
depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando
assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior da qual
a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo
que deles se faz.(2000,p.20)
Do Tema
Em "Poesia Brasileira do século XX", o professor e escritor Ítalo Moriconi ao
apresentar o Modernismo e especificamente a poética de Manuel Bandeira, registra a
virada do poeta, isto é, ressalta a mudança de atitude elaborada por Bandeira. Diz ele,
depois de comentar que tanto Mário de Andrade, como Oswald de Andrade - formando
o time de primeira ordem de fundação do movimento Modernista, antecedido por
Augusto dos Anjos, - conseguiram dar outro tom à poesia de então, passando de um
estado de melancolia para o de euforia e alegria, e sobre Bandeira arremata:
Porém, muito antes da perspectiva de cura, Bandeira deu a
virada modernista no rumo da euforia e, no poema
"Pneumotórax", consegue estabelecer um modelo ético de
postura diante das desgraças, substituindo a autocomiseração
choraminguenta e narcisista (no sentido negativo e
improdutivo) pela afirmação da alegria de viver, mesmo dentro
do infortúnio. Vale lembrar que pneumotórax era um
tratamento doloridíssimo(2002,p.51)
Da exposição do crítico sublinho a ideia de "ética" para sugerir um aspecto
importante em sua obra e que de certa maneira pode destacar o quanto a presença de
Manuel Bandeira se faz afirmativa na formação de leitores e transformação destes, entre
todos os motivos já conhecidos que a crítica literária a ele conferiu. Ao lado disso,
temos o discurso do crítico literário que, em conferência (1954), mesmo discordando de
seu companheiro de movimento literário, Mario de Andrade, não se omite e apresenta
de maneira clara sua divergência ao amigo. Tempos depois, irá estabelecer uma reflexão
humanizadora do crítico, ele mesmo, aparentemente conservador:
Considero [...] erro iniciar o período pelas formas oblíquas “o”, “a”, “os”,
“as”, ou “se” com o futuro ou o condicional, por não se basearem estes casos
em fatos da língua falada, popular ou culta: o povo não diz “O vi”, diz (e
muita gente boa também) “Vi ele”, forma que Mario só admitiu quando o
pronome é sujeito de um infinitivo seguinte (“Vi ele fazer”) ninguém,nem
povo,nem pessoa culta,diz “Se diria”.Discuti muito esses dois pontos com o
meu amigo.Sem que nenhum dos nós lograsse convencer o
outro.(Bandeira,1997,p.234)
Sua trajetória transpassada pela doença,certa tristeza e alguma alegria em
conhecer e compartilhar realidades e situações de criação com os parceiros e
companheiros das atividade literária.
O dado "extra-literário" e biográfico sobre a doença do poeta, a tuberculose,
torna-se capital para situar não só o poeta, mas o intelectual na vida literária modernista
e contemporânea. Sem querer justificar a obra através da vida, faz-se legítima a
referência particular na medida em que ela possibilita uma comunicação entre leitores,
sejam de vida e de texto.
Em "Itinerário de Pasárgada", entre as memórias, o poeta esclarece depois de
ter ouvido do médico (Dr. Bodmer) no sanatório em Clavadel que poderia viver "cinco,
dez, quinze anos... ":
Continuei esperando a morte para a qualquer
momento, vivendo sempre como que provisoriamente. Nos
primeiros anos da doença me amargurava muito a ideia de
morrer sem ter feito nada;depois a forçada ociosidade já disse
como publiquei "A cinza das Horas" para de certo modo
iludir o meu sentimento de vazia inutilidade.(1997,p.254)
A provisoriedade parece ter dado ao poeta a abertura necessária para aceitar a
própria condição, e exatamente na aceitação é que a resistência à morte fez-se possível
até os 82 anos.
Em "Itinerário", Bandeira fala em coragem, paciência, humildade,
alumbramento, mas também em presunção, personalidade, sentimentalismo e
veleidades. Valores que se intercambiam apontando para uma (trans) formação do leitor
confesso de maus e bons poetas, de modo a perceber o quanto de elaboração um poema
recebe quando chega à consciência do poeta:
Na minha experiência pessoal fui verificando que o meu
esforço consciente só resultava em insatisfação, ao passo que
o que me saía do subconsciente, numa espécie de transe ou
alumbramento, tinha ao menos a virtude de me deixar
aliviado de minhas angústias. (1997:40)
Para mais adiante acrescentar:
Mas ao mesmo tempo compreendi ainda antes de conhecer a
lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras,
se faz com palavras e não com ideias e sentimentos, muito
embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela
tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de
palavras onde há carga de poesia. (1997, p.40)
Sentir(se) e conhecer(se) sugerem uma base para a experiência estética configurar-se em
obra e numa formação.Sobre isto,Larrosa comenta e esclarece-nos: El processo de la
formación está pensado más bien como uma aventura.Y uma aventura es,justamente,un
viaje no planeado y no trazado antecipadamente,un viaje abierto en El que puede ocurri
cualquer cosa,y en el que no sabe donde se va a llegar,ni siquiere si se va a llegar a
alguna parte.(1998,p.458).Posto isto,pode-se indicar um aspecto de espontaneidade na
formação que não se submete ao controle,por exemplo,pedagogizado da literatura ou da
leitura literária.E prossegue o filósofo sobre a “formação como leitura” e a “leitura
como formação”(entenda-se que é sempre uma referência à leitura literária):
Se trata de La lectura como algo que nos forma(o nos de-forma o nos trans-
forma),como algo que nos constituye o nos pone em cuestión em aquillo que
somos(...).En La formación como lectura ló importante no ES El texto sino
La relación com El texto.Y esa relación tiene condición essencial: que no sea
de apropiación sino de escucha.(!998)
E podemos concluir a colaboração deste pensador sobre a noção de experiência no
processo de formação, contínuo e inacabado porque existencial : “La experiência de la
literatura,si alguna vez va de verdad,si alguna vez ES verdadera experiência,siempre
amenazará com su fascinación irreverente la seguridad Del mundo y la estabilidad de ló
que somos.”(!998,p.89).
Porém,ao longo dessas memórias Bandeira vai deixando entrever ao leitor o quanto a
"pequenês" das emoções subjetivas, quando aceitas, possibilitam transfigurar
arrebatamentos em palavras num estado de poesia.
Nesta direção é que se pode ler uma "ética da alegria", de maneira a pontuar
que a "sem razão" para vida faz manifestar a alegria de viver antecedente a qualquer
influência exterior.
Em "O Exterior", ensaio da coletânea "Modos de saber, modos de adoecer" de
Roberto Corrêa dos Santos, pontua-se acerca desta categoria:
Será a cultura média a grande interessada em insistir na crença e na
difusão da ideia da existência como a procura de identidade oculta
e pessoal, constituída pelo que se chama de sentimento íntimo,
vida interior. A arte burguesa é aquela que de algum modo crê e
faz crer no interior como valor primeiro. Quanto mais o interior
comanda os sentidos, menos arte (artifício). (1999, p.54)
Ou de outro moço, as afecções sobre os afetos, comandando a arte burguesa.
De certo jeito, enquanto Bandeira percebe-se "afetado", a melancolia e a ausência são
traços marcantes em sua obra e, sem ser linear ou progressivo, a porosidade trazida pelo
reconhecimento da inutilidade da vida e a certeza da morte- em algum momento ao
menos - criaram brechas para a mudança de estilo passando a integrar o grupo dos
modernistas.
1
Da Alegria
Em estudo sobre a alegria, Clément Rosset, filósofo, escritor, professor e
autodenominado terapeuta, intitulado "Alegria: A força maior", com ensaio quase
homônimo (A força maior) analisa o caráter totalitário e paradoxal da alegria. E para o
primeiro expõe:
Há na alegria um mecanismo aprovador que tende a ir além do
objeto particular que a suscitou, para afetar indiferentemente
qualquer objeto e chegar a uma afirmação do caráter jubiloso da
1 M. Bandeira: óleo do pintor russo-brasileiro Dimitri Ismailovitch,1970.
existência em geral. (2002,p.7)
Essa indiferença a um fato preciso que justifique a alegria, em realidade revela
o caráter integrativo do homem alegre com a existência, sem desconsiderar as
dissonâncias e os desencaixes. Oswald de Andrade, em outras palavras, em seu
manifesto antropofágico declarou: “A alegria é a prova dos nove”. E é nesse espírito
que o Modernismo pode romper com uma tradição melancólica para dar continuidade a
essa mesma tradição que buscava por vias diferentes afirmar a existência, fosse de um
país, de uma cultura, de uma mentalidade, ou de uma simples manifestação local ou
particular. Quanto ao caráter paradoxal da alegria desenvolve o filósofo (Rosset): "A
alegria é um regozijo incondicional da existência e a propósito da existência; ora, não há
nada menos jador do que e existência." (2002,p.22)
Ou seja, buscar qualquer "razão" para justificar a alegria de viver é insustentável, se
considerarmos a provisoriedade e a sem razão da existência.
No entanto, essa atitude de aprovação incondicional não despreza os
contentamentos circunstanciais, porém reconhece-Ihes o aspecto finito. Deste ponto de vista,
a alegria coincide com a tragicidade da vida e busca o saber e a consciência da realidade. Ora,
pode-se pensar que o Modemismo em sua expressão poética buscou conhecer a realidade
brasileira, ao menos aquela que parecia estar voltada para a condição de atraso cultural,
investigando e escancarando os supostos motivos de uma brasilidade comedida, até mesmo
dentro do monumental caráter romântico dado aos elementos constituintes de nossa cultura
na forma das artes em geral, daquele momento anterior.
O desatino da "ética da alegria" em Bandeira reside no fato de, em consciente da
realidade particular e social (leia-se existencial), como sua obra em diversos textos manifestou
ser afirmativa de uma realidade inócua porém digna de ser poetizada, porque aceita . Como
bem analisa a professora e especialista em Bandeira,Yudith Rosenbaum em artigo
breve,porém rigoroso,sobre o poema “Gesso”,”o que vale é a superação”(2013).
Da (po)ética
No campo formal,Bandeira vê-se afinado com o verso livre,marca dos
modernistas,entretanto, não se pode dizer que seria descolado de seu ânimo,manifestado ,por
vezes no eu lírico de seus poemas.Sobre tal recurso estratégico,posiciona-se o crítico Arrigucci:
o verso livre talvez exprima a inquietação moderna diante do
reconhecimento da heterogeneidade do real, da natureza mesclada da
realidade, sempre múltipla, muitas vezes caótica e aparentemente
inapreensível na sua totalidade, conforme se mostra nas esferas misturadas
da vida cotidiana.(1990,p.57)
Mas ao lado de tal observação aguçada sobre os usos e regimes do verbo em
Bandeira,podemos depositar um outro aspecto que levou alguns leitores de
Bandeira,inclusive, a musicá-lo,que é a aproximação da poesia da música.T.Eliot,Mario de
Andrade,Augusto de Campos,Antonio Cícero,C.Anderson e muitos outros,investigaram as
relações entre a poesia e a música,porém,nada se compara às execuções de Emily
Dickinson.Entretanto, num estudo bastante esclarecedor sobre poesia e
música,Daghlian(1985) em torno da produção de Dickinson dá-nos elementos para
compreender mais alguns aspectos da obra de Manuel Bandeira:
Sendo a poesia uma espécie de jogo de palavras valorizadas em suas
qualidades expressivas, ela desperta uma reação complexa e múltipla por
meio das repetições, mormente rítmicas. É nessa reação que está, em
grande parte,o prazer poético determinado pela relação da poesia com a
música.(1985,p.163)
O que dizer sobre “Debussy”?
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Um novelinho de linha...
Para cá, para lá...
Para cá, para lá...
Oscila no ar pela mão de uma criança
(Vem e vai...)
Que delicadamente e quase o adormecer o balança
– Psiu...
– Para cá, para lá...
Para cá e...
– O novelinho caiu. (1997)
Para além da obviedade que o título pode empreender ao texto poético, tornando-se
índice de uma relação de proximidade entre poesia e música, cabe lembrar os gêneros que
compuseram sua obra: canto, acalanto, balada, desafio, improviso, cantilena, entre
outros.Aliando tais gêneros textuais (ou musicais) a jogos literários de assonâncias,por
exemplo,que faziam dele um mestre na arte da poesia e na arte de ensina
literatura.Contudo,foi o comentário definitivo de Arrigucci(1990),mais uma vez,que demarcou
a relação que Bandeira tinha com a música em sua obra:
Bandeira elaborou efetivamente, segundo conta, essa influência através do
estudo de música, de tratados de composição (como o de Vicent d’Indy), de
livros de teoria musical (como o de Blanche Silva sobre a sonata), do
aprendizado de instrumentos (como o violão e o piano), procurando
mimetizar a forma musical, mediante recursos técnicos da forma poética,
mesmo percebendo que não lhe podiam dar senão “arremedo” de música.
Depois vem o reconhecimento de uma música específica da poesia, distinta
da música propriamente dita, mas que com esta se relaciona de modo sutil e
complexo – relação que é preciso compreender em profundidade porque é
o meio de se conhecer a afinidade íntima e o verdadeiro “abismo” que ora
une, ora separa as duas artes. (1990, p. 169)
"A cinza das horas", seu primeiro livro, vem marcado pelo uso e abuso das
reticências ( - esta pouca cinza fria ... ; eu faço versos como quem chora/ De desalento... de
desencanto ... ; teu corpo é chama e flameja/ como à tarde os horizontes .. .) sugestão e
evocação de um vago teor melancólico, tão impreciso quanto é a alegria de viver. Também em
"Carnaval" e "Ritmo dissoluto" faz-se possível perceber tal recurso como prolongamento de
imagens trazidas em alguns momentos pela memória e em outros, por uma emoção renitente.
No entanto, em "Na rua do sabão", por exemplo, encontra-se a crueldade da vida na
distração infantil de meninos. Crueldade que deixa à vista a crueza da
existência humana e que encontra por vezes alegria no diminuto. Transcrevo parte
do poema:
Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do sabão!
O que custou arranjar balãozinho de papel!]Quem fez foi o filho
da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.]
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor, compôs os
gomos oblongos ... ]
( ... )
Levou tempo para criar fôlego. Bombeava, tremia todo e
mudava de cor. A molecada da Rua do sabão.
Gritava com maldade!
Cai cai balão!( ... )
A cantoria ressonante da cantiga popular embala dissolutamente o prazer, por parte
da molecada, em tentar estragar o prazer do tísico José ver seu balão subir. O poeta registra a
consciência do canto não restrito ao aspecto encantatório, mas manifestação impregnada de
intenções contrárias (assobios/apupos/pedradas). Contudo, ainda vê-se que são necessárias as
águas puras do mar alto para de alguma maneira resistir - seja pelo balão, seja pelo próprio
desejo - à plena aceitação do ritmo dissonante que é viver.
Com "Libertinagem" Bandeira muda o tom como também observou o crítico Italo
Moriconi: "O movimento da tristeza para a alegria foi operado no interior da obra de Bandeira.
Bandeira começou melancólico e penumbrista, cultivando estados, sentimentais e
semimórbidos que refletiam o espírito do século anterior ( .. .)" (2002,p.50)
A morte aqui como contingência do fato de se estar vivo ("poema tirado de uma
notícia de jornal"; "Profundamente"; "Irene no céu") seja por escolha, no caso do suicídio, seja
por constatação, "estão todos dormindo", ou pela mobilidade em que a existência se
manifesta, - Licença, meu branco!, sem fantasmagorias ou sombras, apenas na simplicidade
aparente do verso livre multiplicado em diferentes acentos rítmicos.
Incluso o estranhamento que aproxima ao em vez de ameaçar, inaugurando qual o
nascimento uma outra percepção da realidade, como em os "Namorados" (A meninice brincou
de novo nos olhos dela) ou ainda, reconhecendo que o fato de não se acostumar com o corpo
da namorada que parece uma lagarta listrada em nada modifica o desejo de namorar, em tom
bem- humorado.Iêstranhamento igualo marcado pelo vocativo Antonia, sereno e de
constatação nas duas primeiras chamadas, porém expansivo e conclusivo no último verso.
"Namorados" em quem sabe como a vida, nada rima com nada, e no entanto, esse aspecto
nem sempre é impeditivo de aproximações.
Já em "Pneumotórax" e "Poética" apresenta-se a efetiva libertação de qualquer peso
melancólico que impeça a poesia de se manifestar, a partir da consciência de que não será
uma descoberta, um recurso tecnológico ou um estímulo presumível, que possibilitará o
apreço maior pela vida, então, o que resta? É tocar um tango argentino ou aceitar que a
marginalidade dos loucos, bêbados ou clow, está carregada de dor e consciência, mesmo
parecendo desatinada. Sem pieguices ou cabotinagem, Bandeira pole o verso de solenidades
diante da doença, da poesia ou da religiosidade ("Oração aTeresinha do Menino Jesus") perdi
o jeito de sofrer/ ou essa/ . ..! Santa Teresa!/ Santa Teresa não, Teresinha ... onde bairro de
moradia e a santa são íntimos do oeta, talvez porque esteja farto do lirismo comedido que sai
em busca da recompensa da eternidade. Lirismo que ficou na memória de um garoto que uma
porção de coisas não entendia bem e ainda acreditava que tudo lá parecia pregnado de
eternidade. "A evocação do Recife" aprovação do passado já ido e inconsciência de um
presente destituído de ilusões (Recife morte, Recife bom). E do mesmo modo, "Vou-me
embora pra Pasárgada" não resulta numa evasão romântica de uma vida ideal, justa e melhor,
ao contrário, o deslocamento para Pasárgada situa-se num lugar de situações mundanas onde
o alto é o terreno e o baixo é o conseqüente. No entanto, essa inversão irônica em relação a
qualquer aproximação da evasão romântica é provida de uma métrica mais regular, marcada
pela repetição do mote vou-me embora pra pasárgada.
Mas toda essa "ética da alegria" que se manifesta em sobriedade no verso está
presente com tensões, como num combate contínuo, dia após dia com as próprias
contradições, "Poema de finados", Ajoelha e reza uma oração! Não pelo pai, mas pelo filho! O
filho tem mais precisão (. . .) O que resta de mim na vida / É a amargura do que sofri. Para
focalizar principalmente "Libertinagem".
Tensão que procurou nessa obra, exemplarmente, confluir o tom pessoal,
subjetivo para o oceano social de poesia, superando - não por negligência - a
desgraça individual para acolher a vida em sua pluralidade. Tal como em “Belo, Belo”
confidencia o desejo que é aproximado à figura singular e irônica, topos instigador, e por que
não dizer de tom comediante do píncaro, no entanto, distante de qualquer estereótipo:
“Quero a solidão dos píncaros./ A água da fonte escondida./ A rosa que floresceu./ Sobre a
escarpa inacessível./ A luz da primeira estrela” .Porque o píncaro assim o é reconhecido
porque sua ação é fundamentalmente social e socializada.Deste modo, reencontramos nesse
“desejo” manifesto uma transposição da linguagem comum,o que nos aproxima do prazer de
ler um texto,ou de certa alegria(comedida) do poeta.Barthes,em “O prazer do texto”,ensaio
sobre a linguagem e os regimes possíveis de leitura,uma leitura lúdica e que joga com a
linguagem comenta sobre o estereótipo:
O estereótipo é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo,
como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a
cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de
ser sentido como uma imitação: palavra sem cerimônia, que pretende a
consistência e ignora sua própria insistência. (2002, p.71)
2
Da (trans) formação
Ler Bandeira, sejam seus poemas, cartas, críticas, discursos, crônicas ou memórias, é
perceber a provisoriedade da vida nos variados eus e vozes que onstituem e se destituem na
trajetória do homem, intelectual, poeta, amigo, rofessor, enfim, personalidade que com
humildade vai se despersonalizando, e por isso mesmo mais marcante torna-se para o leitor.
2 Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em 19 de abril de 1886,no Recife(PE).O poeta foi
professor do Colégio Pedro II,crítico de arte e literatura e tradutor.Foto de momento descontraído em sua
casa no RJ.
Ler Bandeira é conhecer o leitor (trans)formado pela literatura, pela vida, nas
relações sentidas que promoveram sentidos vários em sua obra. É ver o inacabamento
contínuo na descontinuidade entre versos e fatos.
Ler Bandeira é uma experiência desafiadora porque ética que sensibiliza para criar uma outra
estética de vida. Obra que decidiu aprovar a vida e a poesia mesmo quando aquela parecia ter-
lhe desaprovado. É leitura corporal por isso formadora. Leitura do corpo doente que se cura;
leitura de poesia que se transfigura; leitura sobre leitura. Talvez,porque para o poeta,como
para outro poeta inspirador escrever seja mesmo uma atividade transformadora e se
conjugada com a leitura,como o é,quase sempre é procedente ressoar as constatações
imprecisas ,porém certeiras do mexicano: “Escrevemos para ser o que somos ou para ser
aquilo que não somos. Em um ou em outro caso, nos buscamos a nós mesmos. E se temos a
sorte de encontrar-nos – sinal de criação – descobriremos que somos um desconhecido.”
(Paz,1984)
Bibliografia
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Companhia de Letras, 1990, São Paulo.
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________________.Aula.SP:Cultrix,14ª.ed.2000.
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Campinas, 1999.
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PAZ, Otávio. Os filhos do Barro. Do romantismo à vanguarda. Editora Nova
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Revista do Departamento de Letras da FFP/UERJ Número 25,jan.-jun. 2013.RJ.
ROSSET, Clément. Alegria: A Força Maior. RJ: Relume e Dumará, 2002.RJ.