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MORABEZA E LITERATURA: A CABOVERDIANIDADE EM DEVIR Maria Augusta Évora Tavares Teixeira * RESUMO: Após 34 anos de independência e um percurso de Nação de séculos, as ilhas da morabeza consideram-se herdeiras de uma cultura que encontra na Literatura o seu modo de ser e seu caminho de divulgação. O trabalho propõe dialogar os ícones da identidade cabo- verdiana que fizeram o trajeto entre a Claridade e os nossos dias com O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo de Germano Almeida. Introduz-se um espaço de debate em que referências identitárias já assumidas pelas sucessivas gerações de cabo-verdianos encontram lugar em Germano, no redesenhar do país-nação e no construir da morabeza. Palavras-chave: Morabeza, Literatura cabo-verdiana, identidade pós-colonial, escrita almeidiana. ABSTRACT: Morabeza is a kind of behaviour and feeling made in Cape Verde. Cape Verde has got a melting pot society where, in spite of nature challenges, people are very concerned about education policy and hospitality with foreigners. Cape Verdeans are very open minded to new deals and agree they all build their country, together, day by day. What does Morabeza mean exactly? What means exactly to be a Cape Verdean? What does morabeza have to do with literature? And how are all these questions shown among Germano Almeida and O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo? This article tries to answer to those questions, by relating the novel, to the so called cape Verdean identity icons portrayed by “Claridade” , its previous and post writers. Keywords: Morabeza, cape Verdean Literature, post-colonial identity, Germano Almeida writing. INTRODUÇÃO Sempre acreditei que não é possível nascer e sobreviver nessas rochas vazias e ser-se igual às outras pessoas de terras ricas em tudo e mais alguma coisa. Mas mais: amar estas pedras! Não desejar nenhum outro pedaço da terra porque daqui é que somos e aqui é que nos sentimos em casa. Esse sentimento de pertença não o temos em nenhuma outra parte do mundo e então podemos dizer como numa das canções da Maria Bethânia "que importa todo o mundo, se o mundo todo é aqui?". (Germano Almeida, “Correspondência MAET”: Mindelo, 30/09/2009). * Programa PEC-PG na UFF/CNPQ, Redatora do Parlamento de Cabo Verde.

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MORABEZA E LITERATURA: A CABOVERDIANIDADE EM DEVIR

Maria Augusta Évora Tavares Teixeira* RESUMO: Após 34 anos de independência e um percurso de Nação de séculos, as ilhas da morabeza consideram-se herdeiras de uma cultura que encontra na Literatura o seu modo de ser e seu caminho de divulgação. O trabalho propõe dialogar os ícones da identidade cabo-verdiana que fizeram o trajeto entre a Claridade e os nossos dias com O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo de Germano Almeida. Introduz-se um espaço de debate em que referências identitárias já assumidas pelas sucessivas gerações de cabo-verdianos encontram lugar em Germano, no redesenhar do país-nação e no construir da morabeza. Palavras-chave: Morabeza, Literatura cabo-verdiana, identidade pós-colonial, escrita almeidiana. ABSTRACT: Morabeza is a kind of behaviour and feeling made in Cape Verde. Cape Verde has got a melting pot society where, in spite of nature challenges, people are very concerned about education policy and hospitality with foreigners. Cape Verdeans are very open minded to new deals and agree they all build their country, together, day by day. What does Morabeza mean exactly? What means exactly to be a Cape Verdean? What does morabeza have to do with literature? And how are all these questions shown among Germano Almeida and O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo? This article tries to answer to those questions, by relating the novel, to the so called cape Verdean identity icons portrayed by “Claridade” , its previous and post writers. Keywords: Morabeza, cape Verdean Literature, post-colonial identity, Germano Almeida writing.

INTRODUÇÃO

Sempre acreditei que não é possível nascer e sobreviver nessas rochas vazias e ser-se igual às outras pessoas de terras ricas em tudo e mais alguma coisa. Mas mais: amar estas pedras! Não desejar nenhum outro pedaço da terra porque daqui é que somos e aqui é que nos sentimos em casa. Esse sentimento de pertença não o temos em nenhuma outra parte do mundo e então podemos dizer como numa das canções da Maria Bethânia "que importa todo o mundo, se o mundo todo é aqui?". (Germano Almeida, “Correspondência MAET”: Mindelo, 30/09/2009).

* Programa PEC-PG na UFF/CNPQ, Redatora do Parlamento de Cabo Verde.

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Ilha a ilha, soltemos a língua dos deuses que o mar transporta ao silêncio das rochas.

Prenhe de cantos, verdes frases moldam o coração dos homens e um salutar pensar presta

tributo aos filhos de 30. Semeador crioulo em ano d’azágua é o feto da lua, que ampara, em

mil voltas ao Sol, o ventre da Terra. E o milho nasce. E a espiga é tenra. E os meninos

jogam e são homens. E colhem e plantam; e fazem parir mais filhos do Sol...

E gargalhofam do Destino torto.

Chove chuva. Chuva mansa, chuva rija: Chuva Braba de Deus.

Se a esperança d’azágua se renova a cada dia e a boa nova da chuva é promessa de

ano bom, então à minha boca vêm palavras como milho, fartura, feijão, saúde, festas e

certeza.

Que o nosso Cabo Verde se faz em segunda sementeira: na monda e na ramonda; e

que as bonecas de milho, as cordeiras de feijão, o milho verde assado e a cachupa de cada

dia se cozinham, nas três pedras do fogão, no tomar a bênção e no rabo da enxada.

Semear e colher, com o coração de pescador e a “certeza do chão que pisas”, está

também nos livros, cada vez mais, cada vez sim, nos livros. Porque é nos livros que somos!

_ e foi contada a nossa história de azeviches. E, nos livros, a morabeza se dá a conhecer para

o mundo.

Chove em Cabo Verde.

Choveu em Outubro, em Setembro, em Agosto. Ano d’azágua. Choveu também em

Mindelo.

De Padre António Vieira a Mané Quim, haja Testamentos de muitos Napumocenos

para iluminar a nossa história de azeviches. E haja também Gracinhas, que herdem, no

feminino, uma “estória” para se contar: com as nossas próprias cabeças e com os pés bem

finkados na Terra.

Terra chão, Terra mar, Terra céu.

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É que, segundo Princezito (2008), lá, em Cabo Verde, “mar é purlongamentu di tera,

em forma di modjadu”i. Para verdianos e crioulas, nosso mar e nossa terra… é tudo uma

coisa só. E os nossos sonhos… nosso orgulho é tão grande, porque amparados por mil

águas: o doce da chuva e o salgado do mar.

Ensaiar o sentido da palavra morabeza é pensar Cabo Verde na sua especificidade de

arquipélago com nove ilhas falantes, mais a Santa Luzia e alguns ilhéus; são duas línguas

outorgadas com estatuto e funcionalidades diferentes, porém complementares. Conceber

uma sociedade em que relações pretensamente escravocratas deram lugar a uma junção de

forças numa solidariedade suscitada pelas agruras do meio, ou por um fenômeno de

globalização precoce, é descortinar um dos vieses da palavra morabeza.

Fustigado pelos ventos e pelas secas constantes, jogado no meio do Atlântico,

distando cerca de 450 km do continente e tendo uma população constituída inicialmente por

desterrados africanos e desterrados europeus, o homem da terra foi concebido num não-

lugar, terra de ninguém; e numa experiência que se entendeu “totalmente adversa” aos

planos de navegação.

O Rei Sol é astro por mero acaso. À noite, guarda a Lua, que é mulher – e confidente.

E jorra rios de prata nas serenatas da vida. E há o Mar. Que nos leva e traz “bilhetinhos de

saudade” na “crista das ondas” onde “se encerram nossas canções de amor”.ii

A independência chegou em 1975. A educação, a saúde, foram prioridades

conseguidas. Em 1990, assumimos o desafio do multipartidarismo. Eleições justas, diretas,

tranquilas, confirmaram que somos uma nação de Paz e colocaram no poder, em 1991, um

partido e governo que não era o da independência, e que foi aceito, governou e conseguiu

avanços significativos. Mudança de década, mudanças nas eleições, novas vitórias, novo

governo e novos desafios.

Os desafios continuam sendo muitos, mesmo depois de termos entrado no grupo de

países de desenvolvimento médio. A Dona Esperança muito contribuiu para que

deixássemos de ser “os flagelados do vento leste”. A Determinação e a senhora Coragem

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também. Mas a Excelentíssima Senhora Morabeza, sempre presente, com seu sorriso de que

sim, somos capazes: porque somos cabo-verdianos. E somos africanos.

1. Morabeza

O sentido mais prosaico da palavra Morabeza é a amabilidade tipicamente cabo-

verdiana que justifica uma forma de hospitalidade ímpar, baseada na generosidade, simpatia

e simplicidade que identificam o povo das ilhas como único no mundo.

Esta seria apenas uma vaga noção sobre o termo que há pouco mais de uma década

inaugurou uma nova entrada nos dicionários de Língua Portuguesa (de Portugal),

nomeadamente da Porto Editora.

A lexicografia batizava oficialmente o termo com origem atribuída ao (Crioulo) cabo-

verdiano, por força do uso e projeção. O termo faz ressonância no cotidiano e nos discursos

oficiais e é um bem de consumo propalado pelos roteiros turísticos internacionais.

O que depreender da relação entre o sentido da palavra morabeza e literatura?

A historicidade da palavra morabeza não se deixa capturar pela lexicografia como tal

instituída; nem se compraz com as entradas nos dicionários universais de língua portuguesa.

O respaldo da língua de Camões, e de Machado, e de Mia, e de Luandino ...e dos cabo-

verdianos e guineenses e santomenses…tal qual os filhos das ilhas que têm sempre um

nome de casa e outro de batismo, ele diz da sua existência oficial para os outros, para os fins

tidos por mais ortodoxos, de nivelamento. Mas ela transcende os sentidos do discurso. É um

modo de envolver também, e daí a razão de se dizer que a Morabeza não se explica: sente-

se. E numa visita a Cabo Verde.

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2. Pressupostos metodológicos

O trabalho propõe analisar os contornos da formação, afirmação e reformulação da

identidade cultural cabo-verdiana delineados pela literatura formal, enquanto elemento

constituinte e veículo do mapeamento da caboverdianidade. A leitura dessa sociedade pós-

colonial será amparada por Frantz Fanon. Uma leitura mais específica dos fenómenos de

identidade cultural terá como respaldo especialistas cabo-verdianos de renome.

Numa perspectiva de desobediência epistêmica, defendida por Walter Mignolo,

propomos uma análise que se inicia pela utilização do termo formal em oposição à literatura

tradicional, a utilização do termo mapeamento, ao lado do termo cartografia, e morabeza

como componente essencial da caboverdianidade.

Sublinhamos a importância da literatura como veículo e elemento da identidade cabo-

verdiana e da formação da morabeza, por meio de uma seleção de textos produzidos a partir

dos pré-claridosos. Tomando como referência o percurso literário da nação cabo-verdiana,

consideramos o legado das gerações anteriores à data da independência e, numa perspectiva

panorâmica, relacionaremos a literatura com a construção da identidade cabo-verdiana, em

seus momentos mais importantes.

O enfoque será dado, entretanto, à literatura pós-independência, por meio de O

Testamento do Sr Napumoceno da Silva Araújo, livro que inaugura oficialmente a carreira

do escritor Germano Almeida em 1989. Nele discutiremos a cartografia identitária dos cabo-

verdianos, após a gesta da libertação nacional.

Neste sentido, apresenta-se uma primeira contribuição para um espaço de debate

centrado na cartografia literária do período pós-independência, em que a identidade cultural

é construída e retroalimentada pela literatura.

Os textos literários falarão mais do que os teóricos. E esta proposta pretende ser

apenas um preâmbulo da reflexão que auguramos venha a se estabelecer no mundo

acadêmico brasileiro sobre o país da morabeza, suas gentes e suas letras. Considere-se este

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gesto como uma síntese introdutória para os iniciantes, um mote de discussão para os

calejados.

3. Identidade cabo-verdiana:

RESSACA: Baltazar Lopes

Venham todas as vozes, todos os ruídos e todos os gritos venham os silêncios compadecidos e também os silêncios satisfeitos; venham todas as coisas que não consigo ver na superfície da sociedade dos homens;

venham todas as areias, lodos, fragmentos de rocha que a sonda recolhe nos oceanos navegáveis; venham os sermões daqueles que não têm medo do destino das suas palavras venha a resposta captada por aqueles que dispõem de aparelhos detetores apropriados;

volte tudo ao ponto de partida, e venham as odes dos poetas, casem-se os poetas com a respiração do mundo; venham todos de braço dado na ronda dos pecadores, que as criaturas se façam criadores venha tudo o que sinto que é verdade além do círculo embaciado da vidraça... Eu estarei de mãos postas, à espera do tesouro que me vem na onda do mar... A minha principal certeza é o chão em que se amachucam os meus joelhos doloridos, mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores na linha de todas as batalhas.

Assumimos, à partida, o conceito de identidade enquanto marcos e características

comuns a um povo que, a um tempo, o identificam como nação e o distinguem dos demais.

Esta acepção de João Lopes Filho que também é partilhada por Elisa Andrade e M. Y.

Herkovits parece-nos ser um conceito abrangente o bastante para ser explorado no presente

trabalho: “Como conceito abstracto, a identidade é construída através de uma relação com

os lugares, testemunhos, acções, memórias e outros elementos com os quais nos

identificamos. “(LOPES FILHO, 2003: 34)

Barlavento e Sotavento claridosos

Os ensaios de Manuel Brito Semedo, publicados em dois volumes

Caboverdianamente Ensaiando I (1995) e Caboverdianmente Ensaiando II (sd) traçam um

percurso da literatura cabo-verdiana que interessa a este trabalho nos seguintes momentos:

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O mito lendário e utópico de as Ilhas de Cabo Verde serem as Hespérides surgiu com os poetas do séc XIX, impulsionados pela Cultura clássica adquirida no Seminário (mais tarde Seminário-Liceu) de S. Nicolau. Pedro Cardoso (1890-1942) e José Lopes (1972-1962) publicaram nessa linha e sob esse título, duas obras cada um deles: Jardim das Hespérides (1926) e Hespérides (fragmento de um poema perdido em triste e miserando naufrágio) (1930) e Hesperitanas (1933) e Jardim das Hespérides (sonetos do livro Hesperitanas) (1929), respectivamente. (SEMEDO, M. 1995)

De acordo com Brito Semedo, o mito da lenda da Atlântida é ressuscitado e os autores

continuam o paralelismo sugerido pela mitologia em que as maçãs de ouro produzidas no

jardim das Hespérides seriam a própria língua cabo-verdiana. É fato, todavia, que o mito das

Hespérides traça um cenário idílico, dissonante da realidade cabo-verdiana, que conduzirá a

uma ruptura que em 1936 dá origem à “Claridade”.

A Claridade é uma referência tanto para a literatura como para a identidade cabo-

verdiana em geral. Nome que passa a designar um movimento e uma revista, veicula os

princípios e idéias de um grupo de cabo-verdianos que propõe a oposição aos modelos

greco-latinos dos escritores antecedentes. Reforçada por meio da dialogia composta de uma

temática própria e da mudança de paradigma em termos de forma, a Claridade escolhe a

seca, as estiagens, o querer ficar/ter que partir (emigração “forçada”) a evasão e o

sofrimento em geral como alguns dos temas da sua escrita. O surgimento da “Claridade”

marca a história da literatura cabo-verdiana, por trazer uma nova postura: a de “fincar os pés

na terra cabo-verdiana”, numa estratégia de movimento que assenta numa alegoria:

É evidente a alegoria do corpo inteiro: com a cabeça para pensar a literatura que deveria convir à terra que os pés pisavam”; e citando (LOPES, Manuel, “O programa da Claridade”) diz: ”em contacto com a terra os pés se transformavam em raízes e as raízes se embeberiam no húmus autêntico das nossas ilhas”. ( SEMEDO, M. B. 1995: p.36 ).

À temática nova juntam-se a evocação e a intertextualidade com a escrita e os poetas

modernistas brasileiros que contribuíram para o consolidar de uma poesia de rotura/ruptura.

O estudioso cita Manuel Lopes “precisávamos de certezas sistemáticas que só podiam vir

como auxílio metodológico e como investigação de outras latitudes”; atitude necessária,

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enquanto ato de amor pelo “torrão natal” “dez ilhas espalhadas no meio do mar” entre outras

metáforas com que se designam o arquipélago.

Foi assim que poemas como “Eu gosto de você Brasil”, de Jorge Barbosa e “Saudade

Fina de Pasárgada”, de Baltasar Lopes, iniciaram um diálogo com o Brasil que, tanto pela

ressonância e evocação, quanto, mais tarde, pela resistência na nova poesia “como arma de

luta” da geração dos pós-claridosos, transformaram o Brasil em interlocutor.

Efetivamente, entre a poesia do deslumbramento e a poética do retorno com “Gritarei,

Berrarei, Matarei - Não vou para Pasárgada”, de Ovídio Martins, o termo Pasárgada passa

de paraíso imaginário, com função de denúncia à situação de abandono em que Cabo Verde

se encontrava (“Saudade Fina de Pasárgada”), para uma Pasárgada alvo a combater e função

de mobilização à resistência, para a geração do “Suplemento Cultural”. Mais tarde, para a

geração do “Seló”, a mesma referência a pasárgada, como lugar de evasão-realização,

assume a conotação negativa e função de combate contra a dominação vigente (“Evasão não

quero”).

Desde os “nativistas” e pré-claridosos, passando pelos expoentes da Claridade até a

geração de 50, ou seja, falar de Pedro Cardoso a Baltasar Lopes e de Eugénio Tavares a

Manuel Lopes, passando por Ovídio Martins e Arménio Vieira, cada geração, cada grupo,

cada movimento, seja de cariz artístico, cultural latu sensu ou político-revolucionário, a

literatura foi determinante para a cartografia identitária de Cabo Verde.

Note-se também que a temática e os ícones literários são sucessivamente retomados

pelos cabo-verdianos, sejam eles: escritores, homens da cultura ou cidadão comum, em seus

diferentes momentos de comunicação e de vivência. A geração pós-claridosa assume o

“fincar os pés na terra”, entretanto, como desafio e razão para; e o amor à terra e o

sacrifício e sofrimento como força motriz de um homem capaz de vencer obstáculos, num

morrer e ressuscitar todos os anos, mesmo que para isso se tenha que comer pedras, como

as cabras, para não perecermos. Uma luta social, político-revolucionária fez de

guerrilheiros poetas, da poesia um ato de amor e do amor uma razão para a luta:iii “Luta-se

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para se amar livremente, em terra livre, libertada. Ama-se para, com ardor redobrado, se

lutar pela nossa terra. O amor torna-se, assim, um acto de luta para que a luta se torne um

acto de amor. Para amar”. (MARTINS:1983).

A luta, aliás, é propalada pela geração de 50 como necessária e urgente para que Cabo

Verde e África se reconciliem e para que a dignidade do homem seja sinónimo de: paz, pão,

liberdade, fraternidade, respeito mútuo... entre outros valores que a geração de Cabral

otimizou, num projeto revolucionário em que a arte se aliou a um sonho de independência

supranacional, tanto para a Guiné e Cabo Verde como para a África em geral. Consagra-se

um momento em que a ideia da “diluição de África” é confrontada. A africanidade do cabo-

verdiano é levada ao extremo e torna-se necessária como ferramenta de luta. Gabriel

Fernandes (2002) defende que o “retorno às origens e a reafricanização dos espíritos” passa

a ser a palavra de ordem de uma nova orientação ideológica dos quadros cabo-verdianos que

leva à criação do PAIGC em 1956 e à deflagração, em 1963, da luta armada contra a

“dominação” portuguesa:

Essa luta ter-se-á constituído num dos principais mecanismos de materialização do retorno às origens, favorecendo a emergência de uma identidade de resistência e a fermentação de uma identidade projeto. Por outro lado, ela própria representa o ponto culminante de um processo de funcionalização política da identidade. Note-se, porém, que o retorno às origens também favoreceu uma autoconfrontação dos artífices identitários com o anverso e o não ponderável da sua produção, pondo a descoberto todos os vieses de uma identidade que se afirmou autonegando-se. (FERNANDES, 2002: p 20)

Em síntese, a partir da Claridade, os movimentos sucessores apontam para, ao lado da

independência literária, a viabilização de uma independência política. Da “Certeza” ao

“Suplemento Cultural” do Seló” à “Nova Poesia”, várias foram as gerações de cabo-

verdianos, residentes e na diáspora, cuja podução literária foi aliada da “funcionalização da

identidade cultural cabo-verdiana”, na desinação de Gabriel Fernandes.

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4. O Legado Transplantado por Germano Almeidaiv

Mais que uma “figura”, sempre vi “contador de estórias” como uma “postura”; isto é, para mim, escrever era estar na posição dos contadores de estória da minha infância à volta ou aos pés dos quais nos colocávamos para os ouvir falar horas infindas. Assim, quando escrevo, escrevo sempre para alguém, ainda que imaginário, uma pessoa a quem estou a contar uma estória. E então, eu escritor sou um contador de estórias que cria um narrador dentro da economia do livro. O narrador é ficção, o contador de estórias é GA. Mas claro que nem sempre é assim. Num livro como por exemplo A Ilha Fantástica não escondo nem um bocadinho que a figura do narrador se confunde a do contador de estórias, comigo, porque é a minha infância muito pouco ficcionada. Já na Família Trago, que é uma espécie de continuação da IF porém já abertamente ficcionado, o narrador já é personagem diferente do autor-contador de estórias. A questão é que não garanto ter feito absolutamente o mesmo em todos, mas de qualquer modo creio poder dizer que identificaria muito mais o contador de estórias com o autor do que com o narrador personagem… Será que me fiz entender? Espero! (ALMEIDA, G. ”Para a Augusta”, in Correspondências. Mindelo, 05/10/09).

Os textos de Germano assumem uma opacidade que finta a catalogação corriqueira de

ficção, a um tempo que o tom e a trama narrativa desmentem a catalogação oposta de não

ficção; tornam-se irrelevantes essas fronteiras (entre “ficção” e “realidade”) quando

Germano Almeida assume menos o título de escritor e mais o de “contador de estórias”.

Nesse entre lugar “não-ficção-não-realidade” a obra acontece, de tal modo que a

escritura se faz independente e peculiar. São moldes sem amarras aos clássicos que

cartografam a identidade do povo cabo-verdiano, em mais de uma dúzia de títulos

publicados: uma viagem inter-ilhas com trajeto Barlavento e Sotavento, em que os

tripulantes são o badiu e o sampadjuduv, o rico, o pobre e o remediado, homens e

mulheres… toda uma nação sonhada, caldeada e em devir.

A figura de contador de histórias não é uma figura textual e sim uma postura. Na

tessitura do texto, a oralidade e o tradicional (não necessariamente convencional), ganham

realce num modo de escrita que mostra o modo de ser de um povo. O povo das ilhas é muito

mais afeto à fruição das palavras, em sua morabeza, do que ao formalismo do cânone.

Estamos com Frantz Fanon: “A reivindicação de uma cultura nacional não reabilita apenas,

só justifica uma cultura nacional futura. A nível do equilíbrio psico-afectivo, ela provoca no

colonizado uma mudança com uma importância capital.” (FANON, 1979).

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O Papel de memória

Numa referência a Aristóteles, Márcio Seligman-Silva no seu texto “A Escritura da

memória: mostrar palavras e narrar imagens” diferencia memória de reminiscência:

A reminiscência é definida como a recuperação intencional de um conhecimento ou de uma sensação […] em Aristóteles portanto, encontramos tanto uma concepção da memória como escritura na nossa placa mnemónica das impressões do mundo, como também uma forte concepção de reminiscencia ou recordação, como um procedimento de leitura (SELIGMAN SILVA, p 33)

O texto que se inicia com uma epígrafe de Walter Benjamin coloca-nos perante a

sina da catástrofe disfarçada de progresso ou vide-versa. A questão que a todos interpela:

definição do presente como catástrofe […]: a catástrofe é o progresso, o progresso é a

catástrofe, é equacionada nesta leitura enquanto um desafio dos que vivem na era que se

convencionou chamar de era da globalização das novas e altas tecnologias:

Numa era como esta em que vivemos, como evitar uma total reformulação na nossa concepção de homem se agora podemos finalmente construir os nossos Golem, o nossos Franksteins ou os nossos robôs com inteligência artificial? Como traçar o nosso limite entre o “natural” e o “artificial”? Se a nossa “humanidade” se torna mais frágil na medida em que é submetida a cada dia a um processo de redesenhamento das suas fronteiras (e da sua “essência” ) não é de se estranhar que uma das nossas principais características, a de ser um “homem memor” ou seja , um “ser com memória”, também seja repensado no contexto da era do ciberarquivo potencialmente infinito. (SELIGMAN-SILVA, 2006:31).

A epígrafe do texto de Seligman-Silva sugeria que o progresso é a catástrofe. O texto

repensa o auto-isolamento “em frente a tela lisa e fria do monitor”. A questão de partida é

um desafio ao repensar da nossa postura como ser humano no concernente ao valor da

memória e do ser humano enquanto aquele que tem tal faculdade no presente “contexto da

era do ciberarquivo potencialmente infinito”.

Serve-nos a “memória enquanto vis” , ou seja, a força vital e construtora da identidade

que é oposta à “memoria enquanto ars (procedimento mecânico de arquivamento e

recuperação de informações)” (SELIGMAN-SILVA, 2006: 37).

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Associa-se a essa preocupação uma necessidade constante de o homem crioulo se

afirmar e de reformular a sua identidade num cenário de apagamento da memória e busca-

conseguimento desta reformulação através da reminiscência e do testemunho. Serve-nos o

conceito aristotélico utilizado por Seligman-Silva de memória e reminiscência em que esta

“é definida como recuperação intencional de um conhecimento ou de uma sensação”. Neste

caso, o papel do contador de estórias é ressuscitado, mas como tudo que existe em Cabo

Verde, passa por um caldeamento cultural, ritual de passagem do homem das ilhas.

Efetivamente, na “memória enquanto vis”, a nação cabo-verdiana faz manter as suas

tradições, realiza e se reconhece, sem que “venha a ser substituída pela máquina”, numa

tentativa de se auto-definir. Ainda com Seligman:

A necessidade de se recosturar as identidades antes oprimidas e impedidas de se manifestar, ao lado do próprio movimento de luto pela perda de vidas geradas pela Grande Guerra, pelos movimentos de auto-afirmação das minorias e pelas lutas contra governos totalitários e autoritários, gerou uma cultura da memória. […] Não podemos esquecer que essa cultura da memória nasce da resistência ao esquecimento ‘oficial’ e a uma cultura da amnésia, do apagamento do passado, que caracteriza nossa sociedade globalizada pós-industrial. (SELIGMAN-SILVA 2006:39).

São estes os conceitos que fazem luz na análise ao Testamento de Germano Almeida.

O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo

Uma nova luz sobre a vida e pessoa do ilustre extinto, foi como o Sr. Américo Fonseca, já a caminho de Lombo de Tanque, definiu a abertura do testamento do Sr. Napumoceno. E o Sr. Armando Lima, com o seu rigor de contabilista aposentado, pareceu que a luz parecia total. E andando ao lado do Sr. Fonseca ia filosofando que nenhum homem poderá alguma vez pretender conhecer outro em toda a extensão e profundidade do seu mistério (ALMEIDA, 1989:14).

Na cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, em duas semanas, Germano Almeida

escreve, à mão, seu primeiro livro publicado em 1989. No mesmo ano de 1989, no mês de

Agosto, ele dá por findo o romance de 452 páginas intitulado O Meu Poeta onde consolida,

com uma fina ironia, uma crítica já iniciada no primeiro livro, dirigida à sociedade cabo-

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verdiana do período pós-independência. Diz-nos Germano que, entre o início de O meu

Poeta (1984/85) e a publicação em 1990 houve um interregno em que O Meu Poeta ficou

em tempo de espera.

Enquanto isso, apresenta-se, assim, o romance cujo protagonista, o Sr. Napumoceno

da Silva Araújo, homem metódico e ambicioso, natural de S. Nicolau, que chega a Mindelo,

S. Vicente, de pés descalços, consegue prosperar e conquistar respeito dos seus habitantes e

de outras ilhas de Cabo Verde.

A leitura do testamento cerrado do Sr. Napumoceno da Silva Araújo consumiu uma tarde inteira. Ao chegar à 150º página o notário confessava-se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo d’água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias. (ALMEIDA, 1989:9).

O Testamento sugere a hipocrisia da vida pública e privada da sociedade mindelense e

cabo-verdiana que, sob o olhar atento do leitor, se transforma, no fundo, num paradigma de

qualquer sociedade moderna. Neste aspecto, O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva

Araújo narra a história de um homem que conseguiu enriquecer vendendo 10 mil guarda-

chuvas num arquipélago cujo principal problema é a seca permanente e cuja vida íntima

contrasta com a imagem pública de austeridade e contenção: é depois da sua morte que se

vem a descobrir a filha ilegítima, filha da sua ligação com Chica, sua empregada de

limpeza. Maria da Graça foi “feita” em cima da secretária Luís XV, que por sua vez tem

“pernas” de leões, os mesmos leões que simbolizam o Sporting Clube de Portugal, pelo qual

Napumoceno é fanático. Aliás, acrescente-se que o distinto senhor fora atraído pela Chica

“por culpa” da saia verde, cor do SPC, que ela usava naquele dia.

Tão surpresos estavam os seus amigos com a confissão “póstuma” da filha ilegítima

quanto com o fato de Napumoceno ter deserdado Carlos, seu sobrinho e colaborador na

firma:

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Era de se esperar que um homem tão minucioso como o Sr. Napumoceno explicasse logo no testamento e com mais abundância de pormenores as razões que o tinham levado a deixar ao seu sobrinho, tido pela cidade inteira como seu único e universal herdeiro, apenas o velho pardieiro de Mato Inglês que não obstante em estado de total abandono ele garantiu vir a valer no futuro alguns bons milhares de contos de reis. Mas para Carlos até nisso o velho concupiscente se revelara um pantomineiro do arco da velha. Primeiro fora a história do testamento que pretendia ter sido escrito dez anos antes da sua morte, depois a conversa sobre o fato. Algures neste casarão está escondido um fato, disse Carlos à Graça tempos depois, já passada a mágoa da preterição. Ou então o velho estava chéché de todo. Porque estás a ver, se o testamento é mesmo de 1974, e sem dúvida que ele morreu em 84, isto quer dizer que de 74 a 84, e mesmo à razão de 2 anos um fato, ele teve ainda mais 5. Portanto… (ALMEIDA, 1989:31).

No Testamento nota-se a hipocrisia da burguesia das sociedades modernas. Duas caras

e duas vidas tem o sr. Napumoceno: a primeira, a fachada principal do comerciante bem

sucedido que se esconde por detrás da fachada do seu edifício comercial e do verde das

quinas/do Sporting; a segunda, a íntima, o verde da saia da Chica, da sua vida íntima, da

filha ilegítima e de todos os filhos ilegítimos cujo (bom-)nome do branco-patrão não

permitiu que fossem assumidos. Entre as duas fachadas da vida do Sr. Araújo há um

testamento, um livro de memórias que recupera a identidade perdida de Maria da Graça. Tal

qual todos os filhos de Cabo Verde, Gracinha sofre de um apagamento do passado cuja

memória/reminiscência procura sem cessar numa tentativa de se inscrever no mundo:

Finalmente chegou uma altura em que o Sr. Napumoceno considerou que já justificava dar ao armazém a aparência de uma firma. Assim, na parte de frente que sempre destinara a escritório, mandou construir uma fachada que logo impressionou toda a cidade pela sua imponência e sobriedade e na qual se lia em relevo, pintado de verde escuro sobre um fundo branco, as palavras ARAÚJO, LTDA. – IMPORT-Export. Porque a grande fraqueza de toda a vida do Sr. Napumoceno tinha sido o Sporting Club de Portugal e por arrastamento qualquer outra equipa que usasse a cor verde. Considerava o verde a sua tara, o seu destino e a sua sorte e disse no seu testamento que a sua filha Maria da Graça ficara a dever-se à saia verde da D. Mari Chica que lhe apeteceu logo levantar quando a viu dobrada sobre a secretária…Mas esta parte da sua vida ainda vem longe, nesta altura apenas se ocupa da fachada da firma, da parte exterior em forma de edifício de escritório, por dentro um descampado armazém coberto de telha francesa. (ALMEIDA, 1989: 72-73).

Ironia e desapontamento permanentes da obra dialogam com uma rede de

contradições que mapeiam o destino e a natureza de Cabo Verde: o verde do nome contrasta

com a seca constante; o acaso da descoberta e a natureza agreste das ilhas vai de encontro ao

carácter pacífico de seus filhos, utilizado no passado como estratégia de ascensão social,

sinal de civilidade mas que marca a diferença com os outros “povos da África considerados

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indígenas” (ALMEIDA, 1989:47); as contradições prosseguem nos sentimentos de amor-

ódio do pai pelo filho ilegítimo e pela recusa-negação do filho em relação ao pai. A

identidade de Maria da Graça e demais protagonistas está presa à memória que ambos

representam, no apagamento/esquecimento e na reminiscência/ recuperação _ a um tempo

de orgulho e de vergonha _, de reconhecimento e de subjugação, em síntese, de aceitação e

repúdio.

A herança colonial e a simbologia do Ocidente erudito contrastam com o fincar os pés

na terra e o retorno às origens. Por isso, a especificidade do ser cabo-verdiano, seja ele

pobre ou remediado/filho da terra é possível através da morte do pai. Napumoceno deixa de

viver em 1974, ano em que ele se considera morto. Entretanto, Carlos e Gracinha sabem-no

muito bem que o velho só vem a morrer efetivamente em 1984. Em dez anos, não só não

terá comprado nenhum fato, à razão de dois por ano, como costume, como ainda deixou de

cuidar do único que foi encontrado cheio de mofo. Após a sua pretensa morte em 1974 e a

sua morte “oficial” em 1984 deixa para Carlos, seu sobrinho, como única herança, um

pardieiro velho no Mato Inglês.

De duas mortes sofreu Napumoceno: a primeira em 1974, ano da Revolução dos

Cravos, e o fim da soberania de Portugal nas Colónias. Dez anos após se abrirem as portas

do Campo de Concentração do Tarrafal, morre, de novo. Mas o que morreu em 1984?

Enterrou-se o homem, ao som da marcha de Beethoven como ele próprio exigira, mas

a memória persiste e Napumoceno pervive, através de suas memórias e principalmente nas

fitas gravadas e nas laudas à máquina e à mão deixadas à Gracinha.

Seguem alguns princípios que, junto com os já sublinhados, mapeiam e cartografam

Cabo Verde e sua nação no mundo: o desprendimento e sacrifício em nome de um amanhã

glorioso (ou de uma nação a construir); a emigração forçada: ter que partir e querer ficar,

como estratégia de vencer a crise; a saga dos filhos ilegítimos e a (tida por) ingratidão

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característica dos que não regressam para a mãe; a Chuva benfazeja e madrasta

(ALMEIDA, 1989: 47, 66, 67).

Outros ícones como “uma cultura de paz/ um país de brandos costumes” (ALMEIDA,

1989:47), Febre técnica no regresso dos EUA (ALMEIDA, 1989:55 -56), dificuldade em

assumir a nossa identidade (ALMEIDA, 1989:61); identidade e música (ALMEIDA,

1989:67); o estatuto da Língua Portuguesa distante dos sentimentos reais e registo informal

(ALMEIDA, 1989:71), a funcionalidade da Língua cabo-verdiana na esfera afetiva e de

informalidade... todos eles devidamente identificados mas de uma exaustão impossível de

caber nas 20 laudas deste texto.

5. Conclusão

Os estudos e a escrita “para sair da sepa torta”

Há aqui cleros e cônegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão auctorisados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas cathedraes”(Pe António Vieira, 1652).vi

A família Ramires e a firma Ramires e Ramires aparecem no início do percurso de

Napumoceno como homem de negócios. Enquanto símbolo da arrogância e da ostentação,

que tentam disfarçar a falência, num intertexto com a obra de Eça de Queirós. A imagem é

recuperada pelo narrador, para demarcar a consciência crítica de Napumoceno que, após

uma primeira ilusão, com a “fachada” dos Ramires, persegue uma postura sensata,

mantendo a austeridade. Assim, disse que houvera uma altura da sua vida em que um tanto

levianamente aceitara uma proposta de afirmação com uma conhecida firma desta praça

Ramires e Ramires Ltda, para a criação da Ramires-Araújo, Ltda… Porém, antes de se

decidir,

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[...] não cuidara da obtenção dos necessários pormenores seguramente exactos acerca da

situação e estabilidade dos Ramires, não só fiado na voz pública de que Ramires é forte,

Ramires é sólido, Ramires tem capital e crédito etc., como também pela arrogância dos

Ramires que positivamente se comportavam nesta cidade como se tivessem rei na barriga e

não só arriscavam grandes somas nas batotas do grémio Club, como também passavam o

tempo a oferecer jantaradas em casa. (ALMEIDA, 1989:21).

Aconteceu, porém, que pouco tempo depois de ter dado aquela patada de toda a sua

vida de comerciante, começou ouvindo da parte dos Ramires queixas financeiras. E quase

que como rotina procedeu a uma sumaríssima investigação que largamente o alarmou

porque “constato que os Ramires navegavam em mar de desoladores apertos, estavam

economicamente debilitados e mesmo gravemente dificultados de realizarem a quota em

que se tinham comprometido na nova sociedade.” (ALMEIDA, 1989:21).

Livre da tradição do nome pelo nome, Napumoceno, tenaz, também não compreende

algumas contradições da época da independência. Comportamentos que considera

autênticos paradoxos foram por ele observados em cidadãos comuns e figuras públicas. O

próprio Germano Almeida ressalta a posição e o sentir de muitos cabo-verdianos que, tal

como na ficção, não se identifcaram com o 5 de Julho:

A seguir à independência, houve muitas pessoas que saíram de Cabo Verde ou porque não acreditavam num país independente, ou porque eram ou se sentiam de facto portugueses. Mas depois chegaram aqui e constataram que são cabo-verdianos, diz o autor. É injusto não reconhecermos que para muita gente a independência foi uma violência. Para essas pessoas que viveram sempre como portuguesas e que viam Cabo Verde como mais um pedacinho de Portugal, a independência representou de facto um corte, uma violência psicológica. Nós só faremos as pazes com a História no dia em que aceitarmos que essa gente também tem lugar na nossa sociedade. (In Público, Mil Folhas, 22-04-06).

Napumoceno acredita que, a exemplo de Lincoln, ele poderá vir a ser um político

importante, quem sabe Presidente da República (ALMEIDA, 1989:55). Tanto a personagem

como a obra retratam bem a crença dos cabo-verdianos na recompensa depois do esforço e

principalmente no valor dos estudos e na aposta na educação como única alternativa para

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um país sem recursos naturais. Reforça a imagem consolidada de Cabo Verde, que, durante

séculos, simbolizou o local da latinização de negros e mestiços, escravos ou não, filhos da

terra e estrangeiros e nação-estado cujos recursos orçamentais depois da independência

foram investidos essencialmente no setor de educação. Uma leitura da imponência da

secretária e a posição que ela ocupa no Gabinete de Napumoceno; o presente pelas festas do

Ano Novo dado ao próprio Carlos: as chaves de uma secretária; as visitas de Napumoceno à

filha acontecem à saída do Liceu; a preocupação principal com o envio da mesada visa aos

estudos da Gracinha; a maior decepção que o tio teve com Carlos foi pelo fato de ele não ter

concluído o 5º ano dos Liceus.

A vocação para a escrita começa desde cedo. Sem que saibamos, no livro é-nos

anunciada tal tendência desde o episódio da secretária comprovado na página 131. O

próprio testamento em si é uma alocução à importância da escrita como a arte de uma certa

memória e ao ofício primordial do protagonista, ainda que revelado postumamente.

Não seria descabido pensar que o morrer e ressuscitar de Napumoceno _ a sua

pervivência _ foi factível por causa da escrita: a arte que liberta, através da memória-

esquecimento e, no olvidar libertário, re-inscreve, através da memória-reminiscência:

Um triste episódio, passado na sua terra natal, Boa Vista, ajudou-o a desenvolver esse gosto pela escrita. ‘Quando tinha os meus 14 ou 15 anos, aconteceu uma tragédia e nela morreram mais de uma dezena de pessoas. Essa quantidade de mortos aterrorizavam-me e daí pensei, se escrevesse sobre isso, talvez me libertasse.’. E assim aconteceu, nunca mais parou, escrevendo com mais afinco na tropa, em Angola. Nos meus livros conto sempre histórias da nossa realidade social, gosto de dar Cabo Verde a conhecer, acrescenta o autor. (In Público, Mil Folhas, 22-04-06).

O mito de Anteu relembra a força advinda do pé, os mesmos pés que pousaram em

Mindelo e fizeram brotar um Napumoceno bem sucedido, que aliás compara a sua vida à de

Abrham Lincoln enquanto self made man. A dedicação ao trabalho, a austeridade e o

comedimento pessoal lembram a mobilização (necessária) após a afirmação da geração de

50 que não só remonta às origens africanas dos cabo-verdianos como reafirma o fincar os

pés na terra e apela ao sacrifício desmedido em prol da construção nacional.

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Diz a esse propósito Frantz Fanon:

Durante o período colonial convidava-se o povo a lutar contra a opressão. Depois da libertação nacional, ele é convidado a lutar contra a miséria, o analfabetismo, o subdesenvolvimento. A luta, afirmam todos, continua. O povo verifica que a vida é um combate sem fim. A violência do colonizado, já o dissemos unifica o povo. Por sua própria estrutura, com efeito, o colonialismo é separatista e regionalista. Não contente em contar a existência de tribos, o colonialismo reforça-as, diferencia-as. O sistema colonial nutre as chefias e reativa as velhas confrarias marabúticas. (FANON, 1979:73-74).

O discurso de que o cabo-verdiano deve viver em eterno sacrifício, para vencer a

natureza madrasta “num desafio aos deuses e aos homens”vii ressoa ainda em Cabo Verde.

Na inexistência de grupos étnicos ou de conflitos tribais, não há dúvida de que as nossas

referências identitárias são diversificadas, mas partilhadas.

Num momento em que Cabo Verde faz parte do grupo de países de desenvolvimento

médio, haja vista os desafios a que nos propusemos vencer, não obstante a pobreza e a

escassez de recursos naturais, parece-nos importante seja feita uma reflexão à volta da

cultura, da identidade, da unidade nacionais: um diagnóstico da nossa “auto-estima” de

nação, uma revisão dos nossos valores, uma revisita ao nosso passado e uma análise

conclusiva da nossa inserção no contexto global, para que o “desenvolvimento sustentado”

que se propala não traga alienação nem seja fruto dela.

[...] a opção descolonial é epistémica, ou seja, ela se desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ocidentais e da acumulação de conhecimento. […] Por ‘Ocidente’ eu não quero me referir à Geografia por si só, mas à geopolítica do conhecimento. Consequentemente, a opção descolonial significa, entre outras coisas, aprender a desaprender. (MIGNOLO, 2008: p. 290).

Germano Almeida, Cabo Verde e suas gentes, por meio do seu saber herdado e do

saber transplantado/assumido reinscrevem, por via da cultura das línguas, seu papel e

estatuto, as relações familiares (filiação legítima e ilegitima), a música, o auto-retrato do

filho da terra, a (i)legitimização dos descendentes dos colonizadores, seu perfil e

principalmente o valor dos estudos para “sair da cepa torta”.

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Valerão a pesquisa e o trabalho se nos puderem ajudar a pensar o nosso Cabo Verde

com as nossas próprias cabeçasviiie se o fizermos com os pés fincados na terra.ix

Recebido em outubro de 2009

Aprovado em novembro de 2009

NOTAS

i O mar é um prolongamento da nossa terra, só que na versão molhada. ii Paráfrase ao “Poema Salgado” de Ovídio Martins. iii Paráfrase a poemas de Ovídio Martins (MARTINS, 1983). iv A expressão “legado transplantado” foi tomada de empréstimo à ementa da disciplina “Identidades Culturais” regida pela Prof. Dra. Laura Padilha da UFF-RJ/2008. v “Badiu” é a designação do cabo-verdiano de Santiago e “sampadjudu” é o termo que, em oposição, designa o cabo-verdiano de outras ilhas, especialmente o de Barlavento. vi Em sua passagem pela ilha de Santiago na viagem ao Brasil escreve uma carta ao “Pe confesor de sua alteza” In: Boletim de Cabo Verde, Ano II, nº 23, Agosto de 1951. vii Referência ao poema “Nós somos os flagelados do vento Leste” (MARTINS, 1998). viii Um dos apelos mais emblemáticos de Amílcar Cabral. ix Adaptação duma expressão crioula”finka pé na Txon” (finque os pés no Chão), uma palavra de ordem que encoraja a prosseguir não obstante aos desafios e fazê-lo com força, sem se perder nas adversidades. REFERÊNCIAS

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