Maria Márcia Murta e Fabio Almeida Lopes -...

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26 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 22, NOVEMBRO 2005 Recebido em 2/8/04, aceito em 4/11/05 O intenso trabalho experimen- tal realizado por vários biólo- gos na primeira metade do século 20 culminou no desenvolvimen- to de uma nova disciplina, a Biologia Molecular. Etapa crucial desta investi- gação ocorreu em 1953, quando Watson e Crick propuseram a estrutura de dupla hélice para a molécula de ADN (ácido desoxirribonucléico), estabelecendo assim a base molecu- lar para a hereditarie- dade. Uma molécula formada por duas fitas complementares explicaria sua capa- cidade de auto-repli- cação e, conseqüen- temente, a reprodu- ção dos caracteres hereditários. Este evento, junta- mente com os desen- volvimentos que se seguiram, estabele- ceu o que se conhe- ce como dogma central da Biologia Molecular: o ADN dirige sua própria replicação e transcrição, formando uma seqüência de ARN (ácido ribonu- cléico) complementar; a tradução do ARN na seqüência correspondente de aminoácidos garante a expressão Maria Márcia Murta e Fabio Almeida Lopes A compreensão da origem das moléculas orgânicas e, por conseguinte, da formação de biomoléculas complexas, é considerada um dos pilares necessários nas tentativas de se investigar a origem da vida. Neste artigo, serão apresentadas algumas das principais abordagens experimentais acerca dos prováveis mecanismos de síntese das moléculas orgânicas que constituem o alicerce das formas de vida atuais, como os aminoácidos, as bases nitrogenadas do ADN e os açúcares, a partir dos cenários propostos para a Terra primordial. evolução química, síntese pré-biótica, ácido cianídrico desses caracteres graças à síntese de proteínas. Em 1970, em seu livro O acaso e a necessidade, Jacques Monod (1910- 1976) fez uso da metáfora de “progra- ma genético” para tratar as então re- centes descobertas dos mecanismos de hereditariedade, para as quais ele, juntamente com François Jacob e seus alunos, tanto contribuíram. Embora o esclarecimento da estru- tura da molécula de ADN, associada à no- ção de programa ge- nético, esteja na base da investigação da química pré-biótica, deve-se esclarecer que a pesquisa gené- tica nos últimos anos modificou substan- cialmente o conceito de gene, como foi bri- lhantemente eviden- ciado por Evelyn Fox Keller no livro O sécu- lo do gene. Sob o prisma da origem da vida, o uso da noção de programa genético implica compreender o aparecimento do primeiro programa, buscando reproduzir em laboratório as supostas condições físico-químicas da Terra que permitiram tal fato. A investigação experimental do te- ma se baseia nas propostas desenvol- vidas de forma independente pelo botânico russo Aleksandr Oparin (1894-1980) e pelo geneticista britânico John B.S. Haldane (1892-1964), que prevêem um processo gradual de desenvolvimento com três fases con- secutivas: 1) síntese pré-biótica de mo- léculas orgânicas; 2) formação de agregados moleculares com um metabolismo primitivo; e 3) evolução para organismos com aparato bioquí- mico semelhante ao existente atual- mente. Serão tratadas neste artigo algu- mas das abordagens experimentais para se estudar a química pré-biótica, ou seja, a síntese de substâncias pre- sentes em organismos vivos sob con- dições que poderiam ter levado à emergência da vida, inaugurada com o experimento clássico de Stanley Miller, em 1953. Antes, porém, é preci- so retroceder no tempo até os pri- mórdios do Planeta para entender as condições da pré-biogênese. Cenários de um mundo pré-biótico De acordo com os cálculos geoló- gicos mais aceitos atualmente, a Terra se formou há cerca de 4,5 bilhões de Sobre a origem das moléculas orgânicas na Terra A origem da vida pode ser vista como um processo gradual de desenvolvimento com três fases consecutivas: 1) síntese pré-biótica de moléculas orgânicas; 2) formação de agregados moleculares com um metabolismo primitivo; e 3) evolução para organismos com aparato bioquímico semelhante ao existente atualmente

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 22, NOVEMBRO 2005

Recebido em 2/8/04, aceito em 4/11/05

Ointenso trabalho experimen-tal realizado por vários biólo-gos na primeira metade do

século 20 culminou no desenvolvimen-to de uma nova disciplina, a BiologiaMolecular. Etapa crucial desta investi-gação ocorreu em 1953, quandoWatson e Crick propuseram a estruturade dupla hélice para a molécula deADN (ácido desoxirribonucléico),estabelecendo assim a base molecu-lar para a hereditarie-dade. Uma moléculaformada por duasfitas complementaresexplicaria sua capa-cidade de auto-repli-cação e, conseqüen-temente, a reprodu-ção dos caractereshereditários.

Este evento, junta-mente com os desen-volvimentos que seseguiram, estabele-ceu o que se conhe-ce como dogma central da BiologiaMolecular: o ADN dirige sua própriareplicação e transcrição, formandouma seqüência de ARN (ácido ribonu-cléico) complementar; a tradução doARN na seqüência correspondente deaminoácidos garante a expressão

Maria Márcia Murta e Fabio Almeida Lopes

A compreensão da origem das moléculas orgânicas e, por conseguinte, da formação de biomoléculascomplexas, é considerada um dos pilares necessários nas tentativas de se investigar a origem da vida. Nesteartigo, serão apresentadas algumas das principais abordagens experimentais acerca dos prováveis mecanismosde síntese das moléculas orgânicas que constituem o alicerce das formas de vida atuais, como os aminoácidos,as bases nitrogenadas do ADN e os açúcares, a partir dos cenários propostos para a Terra primordial.

evolução química, síntese pré-biótica, ácido cianídrico

desses caracteres graças à síntese deproteínas.

Em 1970, em seu livro O acaso e anecessidade, Jacques Monod (1910-1976) fez uso da metáfora de “progra-ma genético” para tratar as então re-centes descobertas dos mecanismosde hereditariedade, para as quais ele,juntamente com François Jacob e seusalunos, tanto contribuíram.

Embora o esclarecimento da estru-tura da molécula deADN, associada à no-ção de programa ge-nético, esteja na baseda investigação daquímica pré-biótica,deve-se esclarecerque a pesquisa gené-tica nos últimos anosmodificou substan-cialmente o conceitode gene, como foi bri-lhantemente eviden-ciado por Evelyn FoxKeller no livro O sécu-

lo do gene.Sob o prisma da origem da vida, o

uso da noção de programa genéticoimplica compreender o aparecimentodo primeiro programa, buscandoreproduzir em laboratório as supostascondições físico-químicas da Terra que

permitiram tal fato.A investigação experimental do te-

ma se baseia nas propostas desenvol-vidas de forma independente pelobotânico russo Aleksandr Oparin(1894-1980) e pelo geneticista britânicoJohn B.S. Haldane (1892-1964), queprevêem um processo gradual dedesenvolvimento com três fases con-secutivas: 1) síntese pré-biótica de mo-léculas orgânicas; 2) formação deagregados moleculares com ummetabolismo primitivo; e 3) evoluçãopara organismos com aparato bioquí-mico semelhante ao existente atual-mente.

Serão tratadas neste artigo algu-mas das abordagens experimentaispara se estudar a química pré-biótica,ou seja, a síntese de substâncias pre-sentes em organismos vivos sob con-dições que poderiam ter levado àemergência da vida, inaugurada como experimento clássico de StanleyMiller, em 1953. Antes, porém, é preci-so retroceder no tempo até os pri-mórdios do Planeta para entender ascondições da pré-biogênese.

Cenários de um mundo pré-bióticoDe acordo com os cálculos geoló-

gicos mais aceitos atualmente, a Terrase formou há cerca de 4,5 bilhões de

Sobre a origem das moléculas orgânicas na Terra

A origem da vida pode servista como um processo

gradual de desenvolvimentocom três fases consecutivas:

1) síntese pré-biótica demoléculas orgânicas; 2)formação de agregados

moleculares com ummetabolismo primitivo; e 3)evolução para organismoscom aparato bioquímicosemelhante ao existente

atualmente

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anos a partir de material estelar prove-niente do Sol e, por algumas centenasde milhões de anos, ainda sofreu im-pacto de enormes meteoritos (Figura1). Uma parte dos fósseis procarióticosprovém dos estromatólitos, rochas emque o carbonato de cálcio (CaCO3) foiparcialmente substituído por silício,indicando que as formas de vida maisantigas conhecidas surgiram no Pla-neta há pelo menos 3,6 bilhões deanos. O tempo para o desenvolvimentoda vida a partir da matéria inerte, apósa diminuição do bombardeamento decorpos celestes, foi de aproximada-mente 400 milhões de anos, relativa-mente rápido se considerarmos o signi-ficado da transição e a escala geoló-gica de acontecimentos.

Não existe acordo sobre a consti-tuição da atmosfera da Terra à época.O estudo das composições de nuvensde poeira estelar e de certos meteoritosou, ainda, de gases presos em rochasantigas, fornece pistas que orientam aspesquisas. Com base nesses dados,as hipóteses estudadas focam-se nainteração entre os elementos mais co-muns - hidrogênio, carbono, oxigênioe nitrogênio -, agrupados em compos-tos simples, como amônia (NH3),metano (CH4), formaldeído (HCHO),vapor d’água, e ácido cianídrico (HCN),propondo atmosferas primitivas oramais, ora menos redutoras, atingidas

por radiação ultravioleta proveniente doSol.

A atividade vulcânica e o resfria-mento do Planeta contribuíram parauma mudança da atmosfera original,acrescentando dióxido de carbono(CO2) e dióxido de enxofre (SO2) e dimi-nuindo a concentração de CH4. Nãose cogita a presença do gás oxigênio,cujas moléculas corrosivas surgiramcomo resultado do metabolismo dosseres vivos fotossintetizantes, queapareceram mais tarde, há cerca de2,7 bilhões de anos. Estima-se que umacúmulo rápido de O2 tenha ocorridoem torno de 2 bilhões de anos atrás,atribuído ao provável esgotamento dosreagentes passivos disponíveis e àproliferação de cianobactérias fotossin-tetizadoras.

Também conseqüência da quedana temperatura global, a liquefação daágua e seu acúmulo sobre a crosta doPlaneta na forma de oceanos, lagos elagoas teria proporcionado um meioreacional adequado para a interaçãoentre as entidades químicas, emborase considere este fato uma fraquezada teoria, já que implica em altíssimadiluição dos compostos orgânicos pre-sentes. Os trabalhos de GunterWächtershäuser (1993) indicam queessa dificuldade pode ser contornadapela possibilidade de compostos orgâ-nicos serem fixados em uma superfície

cristalina, como, por exemplo, os cris-tais catiônicos de pirita.

Ácido cianídrico e formaldeído po-dem ter sido as peças que começa-ram a se juntar na água para formarcompostos mais elaborados, numamistura aquosa e ligeiramente aque-cida que, em razão dessas caracterís-ticas, se convencionou chamar de“sopa primordial”.

Apesar de grande parte das pes-quisas e das teorias mais aceitas pro-porem a interação atmosfera-hidros-fera como provável local para a origemda vida, há indícios que corroboramoutras teses. Uma delas aponta não asuperfície, mas o fundo dos oceanos,na verdade as fissuras da crosta poronde o magma fervente invadia asmassas de água, com suas condiçõesextremas de temperatura e pressão,como o local do surgimento da vida.

Outro cenário alternativo é a vindade insumos orgânicos de corpos inte-restelares. Quantidade significativa dematéria orgânica chegou ao Planetapelo bombardeio sofrido do espaço.O estudo do meteorito de Murchinson,encontrado na Austrália em 1969,revelou a existência de compostosorgânicos que poderiam ter servidocomo precursores da vida, incluindoaminoácidos. Mais recentemente, aALH84001, rocha originária de Marte,apresentou possíveis vestígios deseres vivos no planeta vermelho.

Nenhuma teoria exclui por comple-to as demais, sendo possível mais deuma ou mesmo todas terem con-corrido com alguma parcela para aemergência dos seres vivos na Terra.A importância da questão reside nãona certeza, mas na indicação dos pres-supostos para a formulação de expe-rimentos que pretendem refazer os pri-meiros passos da matéria rumo à vida.

Experimentos para sintetizarmoléculas orgânicas em laboratório apartir do HCN

A origem das espécies, implícita notema origem da vida, evidencia opotencial criativo inerente às formas deauto-organização que emergem damatéria, quando submetida às restri-ções impostas pelas condições encon-tradas no ambiente do planeta Terra.O mais curioso é toda essa diversidade

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Figura 1: Evolução do universo até o surgimento da vida na Terra.

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a nossa volta, quando vista no nível mo-lecular, revelar a unidade existente en-tre todos os seres vivos.

Um grupo de 20 aminoácidos-pa-drão compreende os monômerosconstituintes de todas as proteínasexistentes nos sistemas vivos. As puri-nas e as pirimidinas, bases nitroge-nadas, são os blocos construtores dosácidos nucléicos (ADN e ARN) nos se-res vivos atuais. O metabolismo dosaçúcares proporciona fonte, acúmuloe troca de energia entre indivíduos deespécies distintas e o meio ambiente.A seguir, serão apresentadas diversaslinhas de pesquisa pré-biótica experi-mental que estudaram a síntese des-sas moléculas a partir do HCN.

1) HCN: Síntese e distribuiçãoJames Ferris e colaboradores inves-

tigaram intensamente o possível papeldos compostos derivados do HCN nasíntese pré-biótica. Os ciano-com-postos encontram-se distribuídos emoutros planetas do sistema solar: HCNem Júpiter; cianoacetileno, cianogênioe HCN em Titã, a maior lua de Saturno,bem como na cauda de cometas.

Tais fatos, juntamente com a facili-dade com que o próprio HCN é sinteti-zado a partir da mistura de diferentesgases (Tabela 1), corroboram a supo-sição de que esses compostos esti-veram presentes na Terra primitiva,sendo possíveis precursores sintéticosna formação tanto dos aminoácidos-padrão quanto das bases nitrogena-das dos ácidos nucléicos.

2) Síntese de aminoácidosEm 1953, Stanley L. Miller, quando

aluno de doutorado de Harold C. Urey,

tomando por base os pressupostos deOparin e Haldane, deu início à químicapré-biótica experimental. Num sistemafechado (Figura 2), injetou supostoscomponentes da atmosfera primordial:H2O, NH3, CH4 e H2. Esses gases fo-ram submetidos a centelhas elétricas(para simular raios) e, a seguir, conden-sados. Após o prazo de uma semana,a 100 °C, os produtos foram coletadose analisados, apresentando uma consi-derável concentração (em torno de15%) de carbono na forma de compos-tos orgânicos, entre os quais algunsaminoácidos, em especial a glicina.

Diversos outros experimentos fo-ram propostos utilizando condiçõespré-bióticas alternativas, modificando-se os reagentes, concentrações e fon-tes de energia, que resultaram na for-mação de aminoácidos, possivelmentevia condensação do tipo Strecker(Esquema 1), indicando a elevada via-bilidade de síntese dessas moléculas.

O experimento de Miller foi semdúvida revolucionário, tanto pelo seuobjetivo quanto por seus resultados.Porém, sem que isto afete seu valorhistórico, foi também controverso. Ascondições propostas, em especial acomposição da atmosfera, são objetode críticas por seu caráter fortementeredutor. A fonte de energia mais aceitapara a ocorrência das reações deixoude ser as descargas elétricas e passouà radiação ultravioleta, dada a ausênciade uma camada protetora de ozônio.Por fim, a formação não enantiossele-tiva dos produtos deixa em aberto aquiralidade dos aminoácidos-padrãopresentes em todos os seres vivos jáestudados.

3) Síntese de purinasEm 1960, foi publicado o primeiro

experimento relativo à síntese pré-bió-tica de bases purínicas, a partir doHCN. Juan Oró mostrou que quandouma solução aquosa de cianeto deamônio (1-15 mol/L) era aquecida a70 °C por vários dias e, em seguida,submetida à hidrólise com HCl 6 mol/L, era possível isolar adenina e outrasbases purínicas.

Mais tarde, Ferris e Hagan (1984)mostraram que esta síntese poderia es-tar baseada na formação do tetrâme-ro do HCN, a diaminomaleonitrila ouDAMN (3) (Esquema 2). Ao estudaremas etapas da oligomerização do HCN,encontraram que o tetrâmero era rapi-damente formado a temperatura am-biente em solução aquosa de HCNcom as concentrações variando na fai-xa 0,1-1,0 mol/L. Abaixo de 0,01 mol/L,a reação dominante é a hidrólise doHCN à formamida e posterior oxidaçãoa ácido fórmico.

Tanto a iminoacetonitrila (1), o dí-mero do HCN, quanto seu trímero (2)nunca foram isolados da solução deoligômeros obtida, embora o últimopossa ser sintetizado e estocado na for-ma de seu sal tosilado. O trímero 2 rea-ge rapidamente com HCN para formarDAMN (3), que teve sua configuraçãocis confirmada por análise de difraçãopor raios X, consistente com um mo-mento de dipolo µ = 7,8 D.

Em seu trabalho original, Oró pro-pôs que a adenina poderia ter sido for-

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Figura 2: Experimento de Miller para a sín-tese de aminoácidos.

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mada a partir da condensação do trí-mero do HCN (2) com formamidina (4)(obtida da reação do HCN com NH3).Estudos posteriores de Ferris e co-laboradores mostraram que a veloci-dade de reação entre HCN e seu trí-mero (2) era muito maior que a velo-cidade da reação entre a formamidina(4) e o trímero do HCN e propuseramo envolvimento da DAMN (3) na sínte-se da adenina (6) (Esquema 3). Oestudo dessa reação mostrou comoproduto principal 4-aminoimidazol-5-carbonitrila (5, AICN), mais adenina e4-aminoimidazol-5-carboxamida (7,AICA), formados apenas depois de umtempo mais longo de reação. Ainda, asíntese da guanina, a outra basepurínica, pode ser alcançada a partirda reação de 5 com uréia, com rendi-mentos na faixa 5-10%.

4) Síntese de pirimidinasO meteorito de Murchison apresen-

tou uma quantidade significativa debases pirimidínicas, na proporção de1:5 em relação às bases purínicas, su-gerindo que uma síntese eficientedessas substâncias seria possível emcondições potencialmente pré-bióti-cas. Duas rotas alternativas foram pro-postas para a investigação experimen-tal da síntese da citosina. A primeiraenvolveu a reação de uma solução decianato (obtido da hidrólise do ciano-gênio) 1,0 mol/L com uma solução decianoacetileno 0,1 mol/L para produzircitosina, com aproximadamente 5% derendimento, depois de aquecimento a100 °C durante 24 horas (Esquema 4).

Do ponto de vista pré-biótico estasíntese não é completamente satisfa-tória, pois a rápida hidrólise de ambos,cianoacetileno e cianato, limitaria emdemasiado suas concentrações na

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Terra primitiva. Mais recentemente,Robertson e Miller mostraram que areação de cianoacetaldeído (obtido dahidratação do cianoacetileno) comuréia fornecia citosina com rendimen-tos na faixa 30-50%, diretamente pro-porcionais à concentração de uréia(Esquema 5).

5) Síntese de açúcaresA síntese de açúcares a partir de

uma série de condensações aldólicasdo formaldeído, catalisada por uma ba-se alcalina terrosa como, por exemplo,o hidróxido de cálcio, é conhecida des-de 1861. Esta síntese foi descrita porBluterow e é conhecida como reaçãoformose (Esquema 6).

Os dois açúcares majoritários nosseres vivos são a ribose e a glicose. Aribose é o açúcar constituinte dos áci-

dos nucléicos que possuem proprie-dades bem adaptadas às suas fun-ções, isto é, estocagem e transferênciade informação, entre outras. Ácidoshexosenucléicos sintéticos são muitorígidos para cumprir essas funções. Aglicose, por outro lado, poderia ter sidodisponibilizada para transformaçõesem várias reações para geração deenergia, que teriam proporcionado oinício dos ciclos metabólicos atuais,além de seus polímeros e derivadosservirem de base estrutural para váriosorganismos.

Considerações finaisAs sínteses dos diversos tipos de

moléculas orgânicas envolvidas nometabolismo dos seres vivos em su-postas condições pré-bióticas têmcontribuído para indicar rotas plausíveis

Esquema 1: Síntese de Strecker.

Esquema 2: Auto-condensação do HCN: formação do tetrâmero DAMN (3), a diamino-maleonitrila (Ferris e Hagan, 1984).

Esquema 3: Síntese de purinas.

Esquema 4: Síntese de pirimidinas.

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Abstract: Pre-Biotic Chemistry: On the Origin of Organic Molecules on Earth – The understanding of the origin of organic molecules and, consequently, of the formation of complex bio-moleculesis considered one of the necessary pillars in the attempts to investigate the origin of life. Taking into account the proposed scenarios for primeval Earth, some of the main experimental approachesto the probable synthesis mechanisms of organic molecules that constitute the foundation for the current life forms, such as amino acids, DNA nitrogenated bases, and sugars, are presented in thispaper.Keywords: chemical evolution, pre-biotic synthesis, hydrocyanic acid

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da evolução química. A partir de for-maldeído e HCN pode-se obter, emlaboratório, precursores de aminoáci-dos, bases nitrogenadas e açúcares.

A DAMN, tetrâmero do HCN, tem semostrado uma poderosa ferramenta desíntese de muitas biomoléculas. Comoassinala Ferris, o único obstáculo realna participação da DAMN é a necessi-dade de concentrações relativamentealtas de HCN (0,01 mol/L ou maioresna ausência de radiação ultravioleta)para se obter a oligomerização. Umasugestão de cenário que permita alcan-çar a concentração crítica de HCN paraque ocorra a formação de oligômerostem sido apontada. O resfriamento a -23,4 °C de solução aquosa de HCNconduz à formação de uma faseeutética contendo 74,5% de HCN(25 mol/L), que após oito dias forneceDAMN com rendimento de 30,5%.

Esquema 5: Síntese de pirimidinas.

Esquema 6: Síntese de açúcares, conhecida como reação formose.

Referências bibliográficasFERRIS, J.P.; HAGAN JR. e W.J. HCN

and chemical evolution: The possiblerole of cyano compounds in prebioticsynthesis. Tetrahedron, v. 40, p. 1093-1120, 1984 (e referências citadas).

MAUREL, M-C. e DÉCOUT, J-L. Ori-gins of life: Molecular foundations andnew approaches. Tetrahedron, v. 55, p.3141-3182, 1999.

SUTHERLAND, J.D. e WHITFIELD,J.N. Prebiotic chemistry: A bioorganicperspective. Tetrahedron, v. 53, p.11493-11527, 1997.

WÄCHTERSHÄUSER, G. The cradlechemistry of life: On the origin of naturalproducts in a pyrite-pulled chemoau-totrophic origin of life. Pure and AppliedChemistry, v. 65, p. 1343-1348, 1993.

Para saber maisATLAN, H. Entre o cristal e a fumaça.

Ensaio sobre a organização biológica doser vivo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.Neste ensaio, o médico e biólogo HenriAtlan analisa a organização dos siste-mas biológicos e suas representações,discutindo sobretudo a complexidadepelo ruído

EL-HANNI, C.N. e VIDEIRA, A.A.P.(Orgs.). O que é vida? Para entender aBiologia do século XXI. Rio de Janeiro:Relume Dumará, 2001. Contribuiçãoimportante para alunos e professores doEnsino Médio, mas também de inter-esse para o Ensino Superior e o públicoem geral, os ensaios contidos nesse li-vro cobrem alguns dos conceitos funda-mentais nas Ciências Biológicas.

KELLER, E.F. O século do gene. BeloHorizonte: Crisálida, 2002. Neste livro,a professora de História e Filosofia daCiência do Instituto de Tecnologia deMassachussetts (MIT) mostra o alcancedo Projeto Genoma Humano e sua re-percussão para o pensamento biológicoque inaugura uma era na compreensãoda relação dos genes com a construçãode um organismo.

MONOD, J. O Acaso e a necessidade.Ensaio sobre a filosofia natural da Biolo-gia Moderna. Rio de Janeiro: Vozes,1971. O biólogo Jacques Monod fazuma análise brilhante das repercussõespara o pensamento contemporâneo doestabelecimento da estrutura moleculardo ADN e do código genético.

Muito embora as rotas de síntesedos constituintes básicos estejam sen-do apontadas, muitos esforços têmsido direcionados no sentido de secompreender a formação das macro-moléculas e, principalmente, a inte-ração entre elas em um metabolismocoordenado. Outras questões relevan-tes, como a agregação das moedasenergéticas baseadas em fósforo (ATP,ADP, GDP etc.) e a homoquiralidaderecorrente nos aminoácidos-padrão eaçúcares, também precisam ser res-pondidas. Essas dúvidas e dificulda-des e a multidisciplinaridade indicamuma longa vida à evolução químicaenquanto campo de estudo.

Maria Márcia Murta ([email protected]), bacharel emQuímica pela USP (campus de Ribeirão Preto),mestre em Química e doutora em Ciências (QuímicaOrgânica) pela Unicamp, é docente do Instituto deQuímica da Universidade de Brasília (IQ-UnB). FabioAlmeida Lopes é discente do IQ-UnB.