Mario JM Bastos Economia e Fetiche da Religião no Alvorecer da Civilização Medieval
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8/9/2019 Mario JM Bastos Economia e Fetiche da Religio no Alvorecer da Civilizao Medieval
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Economia e Fetiche da Religio no Alvorecer da Civilizao Medieval (sculos V/VIII)
Mrio Jorge da Motta Bastos (UFF)
Venho, desde h muito, mas de forma mais efetiva desde a realizao do doutorado, 1 me
dedicando a um projeto de pesquisa cuja amplitude talvez me faa carreg-lo pelo resto da vida: ode vislumbrar, em suas diversas nuanas, a constituio da civilizao camponesa que emerge ao
primeiro plano da cena histrica no alvorecer da Idade Mdia. Em meio a esse quadro histrico to
apaixonante e polmico por ser ele, inclusive, o da famosa transio da Antigidade ao Medievo
(sculos IV/VIII) digamos que eu tenha definido como fio condutor da anlise o fenmeno da
afirmao e expanso de novas formas de dominao social e, claro, das manifestaes de
resistncia que foram opostas a esse processo. Poderamos dizer o mesmo de outra forma, a partir
do ponto de vista dos atores sociais: trata-se da imposio da dominao aristocrtica e daresistncia que lhe foi oposta pelo campesinato. Convm, desde j, esclarecer que tais fenmenos
dominao e resistncia no so manifestaes episdicas, irregulares, exploses momentneas
reveladoras de um problema conjuntural que afeta uma dada sociedade. Ao contrrio, so
expresses cotidianas, caractersticas e essenciais ao funcionamento de todo e qualquer sistema
social no igualitrio, e so, portanto, fenmenos histricos intimamente associados. Toda
expresso de poder supe a dialtica de sua contestao!
Ora, este objeto de estudo de minha eleio nada tem de simplrio em sua caracterizao,
ou ao menos eu preciso crer rigorosamente nisso j que me proponho a dedicar o que espero que
sejam longos anos de vida que tenho pela frente ao seu estudo. E, de fato, no h desservio maior
que possamos prestar sua histria, e reflexo terica que ele envolve, do que lhe subordinar
viso muito pobre e reducionista decorrente de frmulas como a do marxismo vulgar: de sua
palheta decorreria um quadro panormico da civilizao da Alta Idade Mdia pintado em cores
simples e traado grosseiro, revelando, no fundo da cena, os camponeses vergados, exauridos pelo
peso extremo das exigncias senhoriais, elas prprias impostas por meio de manifestaes
cotidianas de violncia aberta e deflagrada.
A crtica que acaba de ser feita no supe, de minha parte, e segundo uma expresso que os
menos jovens aqui presentes talvez conheam, a inteno de jogar fora o beb junto com a gua
suja do banho! De minha parte afirmo desconhecer, tendo em vista a temtica que me mobiliza, e
que lhes divulguei h pouco, qualquer corpo terico mais vigoroso e profcuo, elaborado at o
presente momento, do que o marxismo, desde que ele, como qualquer outro corpo terico, no seja
assimilado de forma acrtica e dogmtica.
Para ser coerente com o que acabo de afirmar, chamo a ateno de vocs para uma breve
referncia do autor de O Capital, vigorosa e propcia a vrios desdobramentos. No volume I dessa
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obra,2de cerca de 1867, Marx se refere s caractersticas essenciais das formas pr-capitalistas de
produo, dentre as quais eu destaco a sua observao de que este tipo de economia estranho s
mistificaes econmicas que acompanham a produo mercantil e o uso da moeda. Elas seriam, no
entanto, marcadas pela onipresena das representaes religiosas, aquelas tpicas das antigas
religies naturais ou populares que expressam a estreiteza das relaes sociais e as limitaes davida material, ou seja, a extrema proximidade fsica que caracteriza as relaes estabelecidas pelos
homens entre si e com a natureza. Peo a vocs que retenham na memria essa referncia, porque
vou retom-la daqui h pouco. E, para lhes ajudar, recorro a uma variante dessa formulao, de
certo menos incmoda e mais palatvel para os medievalistas, porque devida a Jean-Claude
Schmitt:
Na sociedade medieval, como naquelas estudadas pelos antroplogos, no possvel falar de religio no sentido atual do termo. A religio seconstitua, naquela altura, como um vasto sistema de representaes e de
prticas simblicas por meio das quais os homens do perodo encontraramum sentido e uma ordem para o mundo, aqui entendido como composto,simultaneamente, pela natureza, pela sociedade e pela pessoa humana.3
O mesmo autor, em artigo anterior, afirmava que um elemento determinante do carter a ser
atribudo religio na Idade Mdia decorre do baixo nvel atingido, naquela sociedade (em
comparao com o das economias industrializadas) pelo desenvolvimento das foras produtivas,
alm do elevado grau de intimidade que caracterizava as relaes humanas, inclusive com o meio
natural.4As sociedades a que Marx e Schmitt se referiram, e apesar da diversidade de suas formas e
nveis, compreendem, em geral, a natureza por analogia com o mundo humano, representando as
foras e realidades invisveis da natureza como sujeitos, como seres dotados de conscincia, de
vontade, que se comunicam entre si e com o homem. A natureza misteriosa vai muito alm da sua
aparncia visvel, sendo tambm constituda, para a conscincia humana, em mundos profundos
imaginrios habitados por sujeitos que personificam as suas foras invisveis e seus poderes
superiores. Essa leitura essencialmente religiosa do mundo que o concebe governado por seressemelhantes, mas superiores ao homem faz da religio um meio de ao sobre esses personagens
ideais, que em sendo anlogos ao homem so capazes de escutar, de ouvir seus apelos e de
responder favoravelmente. Parece-me claro, do que acabo de expor, que a perspectiva que assumo
ope-se a qualquer concepo restritiva de religio, ou, como diria Gramsci, da religio como
fenmeno em si. Apoiado no autor5 considero que a religio nos remete estrutura global de uma
dada sociedade, integrando e revelando as suas hierarquias, desigualdades, imiscuindo-se aos
processos de dominao e resistncia que caracterizam.
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A Europa Ocidental da Alta Idade Mdia foi caracterizada por um vertiginoso processo que,
revelado em sua manifestao mais explcita, consistiu em um avano insidioso da grande
propriedade fundiria aristocrtica em detrimento da pequena propriedade camponesa. O que tal
movimento ensejou foi a afirmao da hegemonia aristocrtica no Ocidente da Alta Idade Mdia,
calcada na dominao imposta a amplos setores do campesinato, submetidos a relaes pessoais dedependncia que tiveram no controle do acesso terra como meio de produo essencial um
instrumento fundamental de afirmao. Convm destacar, contudo, que tal monoplio no
esgotou em si mesmo de forma mecnica e direta a complexidade da relao social a que me
refiro. Mas, que especificidade da sociedade em questo me leva a considerar que o controle do
acesso ao principal meio de subsistncia e reproduo no perodo no bastou para afirmar o controle
aristocrtico absoluto sobre o campesinato?
Ora, a submisso do campesinato grande propriedade ou ao senhorio no representou, deforma alguma, uma alterao radical ou absoluta de suas condies de vida e trabalho. As famlias
camponesas, e na extenso as comunidades constitudas por tais famlias reunidas em aldeias
preservaram, nesse nvel, um considervel grau de autonomia: dispunham perenemente da posse da
terra, esse tal fator primordial da produo; organizavam o essencial do processo produtivo no
interior da famlia e da comunidade, bem como construam e mantinham todos os utenslios e
instrumentos de produo, detendo, portanto, a propriedade deles (veremos, a seguir, a
manifestao dessa autonomia tambm em relao aos fatores ideais de produo). A aristocracia
fundiria medieval impunha-se menos ao nvel da produo no eram os senhores os principais
organizadores desse processo mas na apropriao e arrecadao da renda, que se realizava no
momento da colheita dos frutos daquele processo.
Se assim o era, como entender, nesse caso, a possibilidade do exerccio da explorao?
Como viabilizar e garantir a perenidade de um processo pelo qual as famlias, gozando de um grau
considervel de autonomia na produo e reproduo de suas vidas, entregassem uma parcela de
seus magros rendimentos aos senhores diretos? Nas formas pr-capitalistas de produo a
apropriao do excedente envolve, necessariamente, uma considervel diversidade de meios e de
coeres. Dentre estes, quero me deter nas expresses religiosas, partindo da premissa de que
revelem o processo em toda a sua amplitude, com os mecanismos, matizes, contradies e limites
que o caracterizaram.
Se entendermos a religio como um sistema de representaes e de prticas relativas ao
sagrado, por meio das quais os homens definem e expressam as relaes estabelecidas entre eles
prprios e com a natureza, resulta claro, no mnimo, o seu paralelismo com um outro conceito
essencial, o de produo, que diz respeito a essa mesma relao social essencial, a do homem com a
natureza. Mas, assim como a produo experimentada de formas distintas pelos vrias classes
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sociais, tampouco a religio constitui (ou talvez apenas o faa raramente) um sistema unvoco e
fechado, e como tal plenamente aceito, vivenciado e partilhado pelo conjunto de uma dada
sociedade. Se isso chega a ocorrer (e no nvel em que chega a ocorrer), deve-se a um considervel
investimento dos grupos sociais dominantes em fazer dilatar-se, generalizar-se pelos diversos
estratos sociais as suas concepes de mundo. No contexto ao que se refere esta anlise, parece-mechave a ntima conexo existente entre a disseminao de novas formas de exerccio do poder e da
dominao e a implantao e expanso do cristianismo, com as concepes que elabora, divulga e
busca afirmar socialmente acerca daquele amplssimo arco das relaes humanas. Vejamos, ento,
algumas referncias documentais (tomando a Hispnia Visigtica dos sculos V a VIII como base)
A documentao visigtica nos permite vislumbrar, ainda que em cores plidas, mas
reiteradamente ao longo do perodo em questo, um conjunto de crenas e prticas definidas como
pags e, na extenso, condenadas e combatidas pelas autoridades, expresses que vm mobilizandoa ateno de uma enorme linhagem de especialistas dedicados ao problema da converso da Idade
Mdia ao Cristianismo. Vamos a um breve inventrio. Das atas conciliares6 do primeiro conclio
celebrado na Hispania entre os anos de 300 e 306, o de Elvira, destaco a proibio de que
proprietrios cristos fossem coniventes com as concepes e prticas simblicas relacionadas
produo agrria ritos de fertilidade intrnsecos ao processo produtivo aceitando descontar do
total das rendas que lhes seriam pagas pelos camponeses a parcela que era oferecida aos deuses
pagos. Esse tpico extremamente relevante para o que abordaremos a seguir, revelador do
embate travado em um dos nveis essenciais do desenvolvimento das foras produtivas no perodo.
Outro cnone do mesmo conclio impe perptua excomunho aos camponeses que dedicassem os
primeiros frutos da colheita beno de um judeu, ao incompatvel, na viso dos bispos, com o
reconhecimento da verdadeira interveno do sagrado no mistrio germinao das sementes: os
frutos seriam concesses divinas, dons de Deus ofertados aos homens em decorrncia da beno
oficiada pelo sacerdote cristo. O cnone 41, ainda do Conclio de princpios do sculo IV, probe
aos senhores cristos a manuteno de imagens de deuses pagos em suas casas, exceo permitida
apenas queles que temessem provocar, com tal iniciativa, a rebelio ou revolta de seus servi. Ser
possvel admitir, depois disso, que uma crena religiosa decorra, imediata e mecanicamente, do
vnculo de submisso e dependncia pessoais?
Nos conclios de Braga, em particular no II, de 572, presidido por So Martinho, as
determinaes fazem eco ao seu famoso sermo, o De Correctione Rusticorum: condenao do
recurso a adivinhos e sortlegos para purificao das casas, da celebrao das tradies e festejos
pagos (Calendas), de considerar o curso da lua e dos astros para a construo da casa, a semeadura
e a celebrao do matrimnio, alm do emprego de frmulas supersticiosas pela mulheres no
trabalho domstico Segundo os cnones do III Conclio de Toledo, realizado em 589, a idolatria
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estaria arraigada por quase toda a Hispnia. Neste mesmo conclio os camponeses so repreendidos
pela prtica de cantos e danas indecorosas nos dias dos santos. A partir dele, inclusive, as
disposies cannicas assumem, integralmente, o carter das penalidades impostas pela legislao
rgia, recorrendo-se violncia fsica e ao terror visando a reduo dos fiis a conformidade das
prticas e ao monoplio do sagrado cristo. O cnone 16 desse mesmo III Conclio de Toledo,impe a ao conjunta de bispos e juizes na erradicao da idolatria, e os castigos previstos s
excetuam a pena de morte. No mesmo ano de 589, o snodo provincial de Narbona condena a
celebrao do quinto dia da semana, em honra a Jpiter, entregando-se os camponeses ao cio com
a paralisao das atividades laborais. O mesmo conclio, em seu cnone IV, probe o trabalho no
domingo, sobretudo aquele relacionado s atividades agrcolas, como a conduo de bois nos
campos. Tais prticas foram tambm condenadas no sermo de Martinho de Braga, como aquelas as
quais me refiro a seguir.Por intermdio dos Conclios IV e V de Toledo, realizados, respectivamente, em 633 e 636,
sabemos que as comemoraes das Calendas mantinham-se a pleno curso, assim como as prticas
divinatrias. Por fim, os conclios XII e XVI de Toledo voltariam a carga contra as prticas
idoltricas. O primeiro, realizado em 681, no seu cnone XI, determina punio para aqueles que
servem a deuses alheios, ou cultuam os astros, e a todos os adoradores de dolos que veneram as
pedras, acendem velas, e adoram fontes e rvores. Ao teor semelhante das referncias encontradas
no segundo dos conclios assinalados, de 693, a interveno rgia determina que fossem conduzidas
igreja mais prxima da localidade as oferendas entregues aos deuses pagos. A legislao
visigtica tambm nos fornece referncias esparsas a prticas condenadas pelo vnculo estabelecido
com o paganismo ou, na extenso, com a interveno diablica. O Forum Iudicum, promulgado em
654, incorpora leis anteriores condenando os augrios. Fossem de condio livre os divinadores e
seus consulentes, deveriam ser submetidos, alm de a pena corporal, ao confisco de suas
propriedades e a reduo condio de escravos. No caso do envolvimento de escravos a lei
estabelece a pena de tortura e venda para regies dalm mar7.
O breve inventrio acima estabelecido abre-se a um vasto campo de consideraes que
reduzirei, contudo, a alguns elementos centrais. Se, em relao s crenas e prticas condenadas ao
longo do perodo, nos detivermos no nas fugidias tentativas de definir as suas origens ou
pedigree, para nos concentrarmos nos seus campos de manifestao (como diria Joo Bernardo,
explicar no apontar a origem de um dado fenmeno, mas estabelecer as conexes que o
constituem!), destaca-se a vinculao de cada uma delas com atividades e necessidades vrias,
fundamentais e correntes na vida quotidiana e trabalho das comunidades camponesas: garantia da
fertilidade dos campos, dos rebanhos e da prpria famlia, garantia e preservao das colheitas,
proteo da casa e do trabalho domstico, alm daquelas manifestaes que parecem estar
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associadas importncia crucial das atividades econmicas realizadas nas reas incultas, como
expressa o culto s rvores, rios, mar, fontes. Referem-se, todas elas, portanto, e em nveis diversos,
quela relao primria e essencial existncia e reproduo da espcie humana, travada
cotidianamente com o seu laboratrio inorgnico, a natureza.
Quanto aos instrumentos que so postos em ao e que viabilizam essa tal relao, via deregra sobressaem aqueles cuja materialidade revela, inclusive, o nvel de desenvolvimento das
foras produtivas atingido por uma dada sociedade. E, no entanto, qualquer sistema cujo objetivo
a socializao da natureza combina intimamente aspectos materiais e imateriais ou ideais. Qualquer
tentativa de interpretao das relaes humanas travadas com o meio natural deve ter em conta a
interao dinmica entre as tcnicas usadas e os sistemas simblicos que as organizam. Nenhuma
ao material do homem sobre a natureza pode ocorrer sem envolver, desde seu incio, uma gama
de realidades ideais, isto , as representaes da natureza e do seu funcionamento.
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Quando analisamos, ressalta Godelier, o aspecto mais material das realidades sociais, as
foras produtivas de que a sociedade dispe para agir sobre a natureza que a cerca, constata-se a
existncia de componentes intrinsecamente articulados, uma parte material, composta pelos
utenslios, ferramentas, pelo prprio homem, e uma parte ideal manifesta nas representaes da
natureza, nas regras de fabricao e emprego dos utenslios, etc. Toda prtica, a produtiva inclusive,
, portanto, uma totalidade orgnica, na qual os aspectos materiais e os ideais esto intimamente
articulados, e no h sentido em pretender atribuir a preeminncia a qualquer um deles. Toda ao,
todo processo de trabalho comea por uma representao das condies e procedimentos
necessrios sua execuo material, que se ajusta, inclusive, em decorrncia dessa execuo.
Devemos, no h dvida, Antropologia Econmica a percepo profunda desses processos
de estruturao social e produtiva, to caractersticos das sociedades pr-capitalistas. E no sem
um grau de inveja considervel que lemos os antroplogos, imersos por anos a fio nas sociedades
que estudam, tomando notas que podem ser revistas e aprimoradas por mil vezes, debatendo-as at,
muitas vezes, com os seus nativos. J os nossos morreram h sculos, e nos deixaram apenas os
ecos quase inaudveis de suas vozes, filtradas que foram pelos etnlogos da poca. Os registros a
que me referi anteriormente foram elaborados por homens da Igreja, uma elite forjada com base na
cultura clssica e muito pouco condescendente, se no mesmo totalmente avessa, a tudo que
consideravam supersties grosseiras e/ou sobrevivncias pags. Assim, expresses diversas de
crenas e prticas que de certo faziam parte de complexos sistemas de apreenso do mundo e de
ao sobre ele foram reduzidas, nos registros de bispos e monges, a manifestaes isoladas e
desconexas, crendices fteis originrias das mentes bestiais de camponeses rsticos e ignorantes. E,
no entanto, o sentido pleno daquilo que mal se vislumbra em meio fragmentao dos registros a
expresso autonmica das condies ideais de produo que fundamentava as atividades
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camponesas. Ser possvel, portanto, que um mesmo sistema social e produtivo esteja atravessado
por idealidades distintas, mais ou menos concorrentes, conflitantes e irredutveis entre si,
sobretudo em situaes de profundas clivagens sociais? Mas, o exerccio do poder e da dominao,
que se materializa, como j destaquei, na apropriao de grande parte dos resultados da produo,
no transcender o mbito material at envolver a construo e a partilha das representaes daordem do mundo e do seu funcionamento?
O fato que, a par das crenas e prticas condenadas e combatidas, a que j me referi, a
Igreja promoveu uma gama de frmulas rituais divulgadas por agentes diversos santos, bispos e
monges e particularmente registrada nos livros litrgicos. O Liber Ordinum, por exemplo
manual litrgico da Igreja Visigtica elaborado desde o sculo VI contm uma longa srie de
cerimnias de exorcismos e de bnos que veiculam as alternativas crists apresentadas aos fiis
visando satisfao de seus anseios mais profundos, e revelam a plena percepo, pela Igreja, doscampos de manifestao das crenas e prticas alternativas condenadas. O cristianismo ensejou, de
fato, ritos vrios que significam mais do que a simples depurao de prticas tradicionais na gua
do batismo9, uma vez que subvertem a lgica primria que as fundamentava. Um dos primeiros
rituais fixados no Liber Ordinum refere-se ao exorcismo e bno do leo, para que por seu
intermdio fosse expelido um amplo espectro de doenas. Vrias so tambm as frmulas de
exorcismo e bno do sal e da gua, utilizados em cerimnias de purificao em condies e
ambientes diversos, alternativas, por exemplo, s cerimnias pags condenadas por So Martinho.
Ainda no primeiro item do Liber Ordinum localizam-se algumas destas frmulas, vinculadas
purificao de uma casa. O sal era oferecido ante o altar, sob o olhar do Senhor, a fim de que
afastasse todas as criaturas imundas, encantamentos e monstros dos lugares onde fosse aspergido,
preservando a fidelssima proteo de Cristo. Misturado gua benta, teriam ambos o poder de
repelir todos os demnios, quaisquer que sejam e de onde quer que advenham, seja das grutas, de
todos os lugares, das fendas das pedras, dos rios e das fontes10, elementos cujo culto fora
condenado por S. Martinho e pelos cnones conciliares, e que so aqui reafirmados como locais da
manifestao demonaca. Esta mesma mistura devia ser espargida na casa, em suas paredes e
fundao, alm de aplicada no caso de febres e contuses na virilha, e mesmo nas chagas dos
animais, para afastar as incurses malignas e restabelecer a sade original.
Da longa srie de preces e missas destinadas aos fiis que viriam a empreender uma longa
viagem revela-se a autoridade divina expressa no comando da natureza. Na Orao sobre aquele
que vai viajar, o sacerdote implora ao Pai indulgente que defenda seus servos (famuli) em tal
caminho, para que no estejam expostos aos perigos dos rios, das tempestades, dos ladres ou das
feras. E quando tenham chegado ao local desejado com segurana e sade, imolem em louvor a ti
uma hstia, devedores, sempre, pelo futuro, da graa.11 Ressalte-se, nesta ltima referncia, o
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aspecto manifesto do carter da relao entre o crente e a divindade, que explicita a natureza
assimtrica da relao: de um lado, a ascendncia absoluta de um Senhor que concede
gratuitamente, e que alheio a qualquer deficincia. Na cerimnia da bno da uva, cujas
primcias os fiis levavam ao trio da igreja, o sacerdote relaciona a oferenda garantia da
fecundidade. Rogando a Deus que as aceite, generosamente, das mos de seus servos, destaca: Noque necessites delas, Senhor, porque a tudo preenche e contm.12 Tal modelo consagra, pois, a
concepo senhorial das relaes sociais fundadas na munificncia, na liberalidade caracterstica da
aristocracia, mas que atua em prol do fortalecimento de seu prestgio social, do seu poder, e, em
ltima anlise, da sua capacidade de impor-se ao contingente de seus dependentes.
O Liber Ordinum registra, ainda, uma srie de bnos e oraes reveladores da concepo
da divindade provedora, do Deus Produtor. Fonte do milagre da reproduo das sementes, senhor
das condies ideais da produo, uma srie de ritos definem o sentido cristo das relaes dohomem com a natureza, contrapondo-se aos rituais de fertilidade e de proteo circunscritos e
combatidos sob a acusao de pagos. Na bno das sementes, o oficiante refere-se a Deus como
Criador de todas as criaturas, que deste condio a todas as sementes de gerar, criar e frutificar;
rogamos-te que piedoso voltes o olhar nossa prece, e assim atribuas uma graa superior nos
cultivos das sementes, a fim de que retorne cem vezes mais numerosa e fecunda pelos anos
seguintes.13 Na bno das primcias, objeto de controvrsia e de condenaes no Conclio de
Elvira, em princpios do sculo IV, o sacerdote invoca o Senhor na sua condio de pleno
proprietrio da terra que foi entregue ao homem em usufruto elemento material central da relao
rogando-lhe que se volte sobre as primcias dos frutos ou qualquer gnero de alimento, o qual
ns, teus servos, oferecemos a ti; (...) pelas quais imploramos a tua clemncia, Deus Nosso Senhor,
para que o sol no abrase a terra e as plantas, que o granizo no irrompa, nem a tempestade destrua;
mas, com tua proteo, sejam conduzidas maturidade, para que teu povo te bendiga por todos os
dias de sua vida.14Em uma outra orao de bno dos gros, a liturgia avana em um paralelismo
simblico entre a germinao sagrada de Jesus Cristo e o milagre cotidiano da reproduo da
semente, originado da concesso divina aos homens da chuva, a fim de que germinasse a erva na
terra, evoluindo at a maturidade.15
Na liturgia visigtica, os rituais cristos de fertilidade, proteo e controle da natureza,
submetidos em conjunto ao poder amplo e discricionrio e aos dons divinos, dirigissem-se tambm
ao exorcismo e bno dos meios de produo. Aps o arroteamento de um novo campo, na
cerimnia de sua sagrao, o oficiante vincula a prpria atividade produtiva prescrio divina ao
homem, para que trabalhasse a terra e fosse alimentado pelo po, rogando, em seguida, ao
Onipotente, a concesso do benefcio da abundncia a seus servos. Na bno das novas foices a
serem utilizadas na poda das vinhas e de rvores frutferas, o produto dos campos caracteriza-se,
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ainda uma vez, como dom divino, decorrendo a abundncia dos frutos do contato mgico com o
instrumento ungido pelo Senhor.16 E seria possvel considerar, a par deste ltimo, o ritual da bno
da rede de pesca, ampliando-se a uma atividade vinculada ao saltus a concepo ampla da
divindade provedora que envolve, antes de mais, o prprio instrumento, neste locus tradicional de
manifestao demonaca. rede, submetida ao olhar divino diante de seu altar, requisitava ooficiante a proteo crucial que lhe permitiria produzir o alimento em abundncia. No permitas
embara-la com alguma arte dos inimigos, nem emaranhar-se pelas palavras detestveis dos
encantadores.17 Isto posto, a bno consecutiva requisitava apenas a cotidiana manifestao do
dispensador de todos os bens, concepo com base na qual o alimento, ou o produto do trabalho,
decorre menos da ao humana do que da misericrdia do Senhor.18
Enfim, a concepo do Deus nico, Criador e Senhor de todas as criaturas do universo,
reitor de todos os elementos, prdigo dispensador de dons e benesses, e da vida inteira, no poderiamanter-se alheia sua fonte essencial, a gua, que fertiliza a terra e o homem, regenerando-o pelo
batismo. Tal paralelismo simblico manifesta-se, no Liber Ordinum, em primeiro lugar na
cerimnia da bno da fonte, gua celestial santificada pelo Verbo divino.19 Contra qualquer
perspectiva de divinizao da criatura, o sagrado que regurgita da terra em forma de nascente uma
manifestao do poder regenerador de Deus, que suprime a aridez da terra, e um smbolo do milagre
restaurador que ocorre na fonte batismal, onde os homens, redimidos, renovam-se, e renascem. Na
bno do novo poo ou cisterna, o sacerdote invoca a clemncia da piedade divina para santificar a
gua de uso cotidiano, afastando do cerne da vida da comunidade toda e qualquer incurso da
tentao diablica, para que sejam merecedores de render-te graas todos os dias, Senhor
santificador e salvador de todos20.
bem provvel que vrios destes rituais tenham se originado de prticas institudas nas
pequenas igrejas rurais onde o proco, inserido nas comunidades camponesas, dividindo-se muitas
vezes entre o ofcio divino e o labor dos campos, partilhava os anseios e urgncias de uma vida
exaurida pela dura rotina das atividades agrcolas, de resultados incertos, rendimentos pfios, e em
parte considervel apropriados por mos alheias. A proliferao das igrejas pelos campos, em que
pese os conflitos gerados no seio da aristocracia pelo seu controle e gesto de suas rendas, e as
crticas recorrentes baixa formao do clero local, foi um elemento determinante da efetiva
insero do cristianismo na vida cotidiana do indivduo, da famlia e da comunidade. A urgncia da
experincia integral da f parece ter, de alguma forma, ou em algum nvel, se realizado, e a
religio importada do Oriente espraiou-se pelos campos ocidentais. Mas, ainda assim, o u
No faltaram, ao menos, e a profuso de santos patronos locais e dos ritos litrgicos parecem
comprov-lo, canais ortodoxos acessveis aos fiis nos vrios momentos e atividades cruciais da
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vida que demandavam o apoio e o aval das potncias superiores do Universo, ainda que
domesticadas, hierarquizadas, monopolizadas e submetidas total ascendncia do Deus nico.
1 Realizado entre os anos de 1998 e 2002, no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de So Paulo,sob orientao do Prof. Dr. Hilrio Franco Junior.2 Karl Marx, O Capital: crtica da economia poltica, vol. I, So Paulo, Editora Abril Cultural, 1983.3 Jean-Claude Schmitt, Une histoire religieuse du Moyen ge est-elle possible?Prfaces, 19, 1990, p. 77-78.4 Jean-Claude Schmitt, Religion populaire et culture floklorique,Annales E.S.C., 31e anne, n.5, 1976, p.946.5 Antonio Gramsci,Prison notebooks, New York, International, 1971.6 Jos Vives(ed), Conclios Visigticos e Hispanoromanos, Madrid, CSIC, 1963.7Apud Stephen McKenna, Paganism and Pagan Survivals in Spain up to the Fall of the Visigothic Kingdon,Washington D.C., The Catholic University of America, 1938, p. 121.8 Maurice Godelier,Lidel et le materiel. Pense, conomies, socits, Paris: Fayard, 1984.9 Perspectiva ainda recentemente assumida por Jacques Le Goff, Maravilhoso, in Jacques Le Goff & Jean-ClaudeSchmitt (coords.),Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval, II, So Paulo, EDUSC, 2002, p. 113.10 Op. cit., col. 15: (...) quicumque sunt uel undecumque aduenerint, siue ex antris, siue ex omnibus locis, siue exfissuris petrarum, siue ex locis fluminum atque fontium (...).11Id., Oratio super eum qui in itinere progreditur, col. 93: Et cum securi atque saluati ad loca sibi desiderataperuenerint, ymolent tibi hostiam laudis, future semper gratie debitores.12Id.,Benedictio Uue, col. 169: Non quod his indigeas, Domine, quia omnia reples et contines.13 Id, Benedictio Seminis, col. 166: (...) qui omnium seminum gignendi serendique atque fructificandi condicionemdedisti; te deprecamur, ut pius ad precem nostram respicias, et ita demum in serendis seminibus amplificatam gratiam
tribuas; ut centupliciter augmentada magisque recurrentibus annis reddas fecunda. Segundo o editor, todas asfrmulas de bnos e preces encontradas neste captulo doLiber Ordinum so especficas da liturgia visigtica.14Id.,Benedictio Primitiarum, col. 168: (...) pomorum uel quodcumque generis alimenti, quod tibi offerimus famulitui; (...) pro qua re petimus clementiam tuam, Domine Deus noster, ne sol urat, ne grando cedat, ne tempestas excutiat;sed, te protegente, ad maturitatem perducas, ut populus tuus benedicat te per omnes dies uite sue.15Id.,Benedictio Graneas (sic), col. 167: (...) ut germinaret terra erbam, et ad maturitatem perduxisti.16Id., Benedictio nouarum falcium uinearum, col. 167: Te supplices exoramus, eterne inmense Deus, ut quicquid falces iste per chrisma benedictionis tue peruncte incidendo tetigerint, tue benedictionis gratiam in germine uitis et pomorum infundere digneris, (...) et fructus eorum ubertate repleas. O editor afirma no ter encontrado nenhumafrmula semelhante nas liturgias do perodo.17Id.,Benedictio retis, col. 174: Non eum sinas aduersantium arte aliqua inligare, nec uerbis incantantium pessimisinretiri.18Id., col. 174: Presta nobis, Deus, ut huius retis exhibitione repleamur, et gratie tue muneribus gratulemur.19Id.,Benedictio fontis, cols. 29-30: (...) montibus pressa non clauderis, scopulis inlisa non frangeris, terris diffusanon deficis (...) gestata nubibus imbre iucundo arua fecundas.20Id.,Oratio uel Benedictio putei noui, cols. 173-174: (...) ut tibi semper sanctificatori et saluatori omnium Dominogratias agere mereatur.