Mario JM Bastos Economia e Fetiche da Religião no Alvorecer da Civilização Medieval

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    Economia e Fetiche da Religio no Alvorecer da Civilizao Medieval (sculos V/VIII)

    Mrio Jorge da Motta Bastos (UFF)

    Venho, desde h muito, mas de forma mais efetiva desde a realizao do doutorado, 1 me

    dedicando a um projeto de pesquisa cuja amplitude talvez me faa carreg-lo pelo resto da vida: ode vislumbrar, em suas diversas nuanas, a constituio da civilizao camponesa que emerge ao

    primeiro plano da cena histrica no alvorecer da Idade Mdia. Em meio a esse quadro histrico to

    apaixonante e polmico por ser ele, inclusive, o da famosa transio da Antigidade ao Medievo

    (sculos IV/VIII) digamos que eu tenha definido como fio condutor da anlise o fenmeno da

    afirmao e expanso de novas formas de dominao social e, claro, das manifestaes de

    resistncia que foram opostas a esse processo. Poderamos dizer o mesmo de outra forma, a partir

    do ponto de vista dos atores sociais: trata-se da imposio da dominao aristocrtica e daresistncia que lhe foi oposta pelo campesinato. Convm, desde j, esclarecer que tais fenmenos

    dominao e resistncia no so manifestaes episdicas, irregulares, exploses momentneas

    reveladoras de um problema conjuntural que afeta uma dada sociedade. Ao contrrio, so

    expresses cotidianas, caractersticas e essenciais ao funcionamento de todo e qualquer sistema

    social no igualitrio, e so, portanto, fenmenos histricos intimamente associados. Toda

    expresso de poder supe a dialtica de sua contestao!

    Ora, este objeto de estudo de minha eleio nada tem de simplrio em sua caracterizao,

    ou ao menos eu preciso crer rigorosamente nisso j que me proponho a dedicar o que espero que

    sejam longos anos de vida que tenho pela frente ao seu estudo. E, de fato, no h desservio maior

    que possamos prestar sua histria, e reflexo terica que ele envolve, do que lhe subordinar

    viso muito pobre e reducionista decorrente de frmulas como a do marxismo vulgar: de sua

    palheta decorreria um quadro panormico da civilizao da Alta Idade Mdia pintado em cores

    simples e traado grosseiro, revelando, no fundo da cena, os camponeses vergados, exauridos pelo

    peso extremo das exigncias senhoriais, elas prprias impostas por meio de manifestaes

    cotidianas de violncia aberta e deflagrada.

    A crtica que acaba de ser feita no supe, de minha parte, e segundo uma expresso que os

    menos jovens aqui presentes talvez conheam, a inteno de jogar fora o beb junto com a gua

    suja do banho! De minha parte afirmo desconhecer, tendo em vista a temtica que me mobiliza, e

    que lhes divulguei h pouco, qualquer corpo terico mais vigoroso e profcuo, elaborado at o

    presente momento, do que o marxismo, desde que ele, como qualquer outro corpo terico, no seja

    assimilado de forma acrtica e dogmtica.

    Para ser coerente com o que acabo de afirmar, chamo a ateno de vocs para uma breve

    referncia do autor de O Capital, vigorosa e propcia a vrios desdobramentos. No volume I dessa

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    obra,2de cerca de 1867, Marx se refere s caractersticas essenciais das formas pr-capitalistas de

    produo, dentre as quais eu destaco a sua observao de que este tipo de economia estranho s

    mistificaes econmicas que acompanham a produo mercantil e o uso da moeda. Elas seriam, no

    entanto, marcadas pela onipresena das representaes religiosas, aquelas tpicas das antigas

    religies naturais ou populares que expressam a estreiteza das relaes sociais e as limitaes davida material, ou seja, a extrema proximidade fsica que caracteriza as relaes estabelecidas pelos

    homens entre si e com a natureza. Peo a vocs que retenham na memria essa referncia, porque

    vou retom-la daqui h pouco. E, para lhes ajudar, recorro a uma variante dessa formulao, de

    certo menos incmoda e mais palatvel para os medievalistas, porque devida a Jean-Claude

    Schmitt:

    Na sociedade medieval, como naquelas estudadas pelos antroplogos, no possvel falar de religio no sentido atual do termo. A religio seconstitua, naquela altura, como um vasto sistema de representaes e de

    prticas simblicas por meio das quais os homens do perodo encontraramum sentido e uma ordem para o mundo, aqui entendido como composto,simultaneamente, pela natureza, pela sociedade e pela pessoa humana.3

    O mesmo autor, em artigo anterior, afirmava que um elemento determinante do carter a ser

    atribudo religio na Idade Mdia decorre do baixo nvel atingido, naquela sociedade (em

    comparao com o das economias industrializadas) pelo desenvolvimento das foras produtivas,

    alm do elevado grau de intimidade que caracterizava as relaes humanas, inclusive com o meio

    natural.4As sociedades a que Marx e Schmitt se referiram, e apesar da diversidade de suas formas e

    nveis, compreendem, em geral, a natureza por analogia com o mundo humano, representando as

    foras e realidades invisveis da natureza como sujeitos, como seres dotados de conscincia, de

    vontade, que se comunicam entre si e com o homem. A natureza misteriosa vai muito alm da sua

    aparncia visvel, sendo tambm constituda, para a conscincia humana, em mundos profundos

    imaginrios habitados por sujeitos que personificam as suas foras invisveis e seus poderes

    superiores. Essa leitura essencialmente religiosa do mundo que o concebe governado por seressemelhantes, mas superiores ao homem faz da religio um meio de ao sobre esses personagens

    ideais, que em sendo anlogos ao homem so capazes de escutar, de ouvir seus apelos e de

    responder favoravelmente. Parece-me claro, do que acabo de expor, que a perspectiva que assumo

    ope-se a qualquer concepo restritiva de religio, ou, como diria Gramsci, da religio como

    fenmeno em si. Apoiado no autor5 considero que a religio nos remete estrutura global de uma

    dada sociedade, integrando e revelando as suas hierarquias, desigualdades, imiscuindo-se aos

    processos de dominao e resistncia que caracterizam.

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    A Europa Ocidental da Alta Idade Mdia foi caracterizada por um vertiginoso processo que,

    revelado em sua manifestao mais explcita, consistiu em um avano insidioso da grande

    propriedade fundiria aristocrtica em detrimento da pequena propriedade camponesa. O que tal

    movimento ensejou foi a afirmao da hegemonia aristocrtica no Ocidente da Alta Idade Mdia,

    calcada na dominao imposta a amplos setores do campesinato, submetidos a relaes pessoais dedependncia que tiveram no controle do acesso terra como meio de produo essencial um

    instrumento fundamental de afirmao. Convm destacar, contudo, que tal monoplio no

    esgotou em si mesmo de forma mecnica e direta a complexidade da relao social a que me

    refiro. Mas, que especificidade da sociedade em questo me leva a considerar que o controle do

    acesso ao principal meio de subsistncia e reproduo no perodo no bastou para afirmar o controle

    aristocrtico absoluto sobre o campesinato?

    Ora, a submisso do campesinato grande propriedade ou ao senhorio no representou, deforma alguma, uma alterao radical ou absoluta de suas condies de vida e trabalho. As famlias

    camponesas, e na extenso as comunidades constitudas por tais famlias reunidas em aldeias

    preservaram, nesse nvel, um considervel grau de autonomia: dispunham perenemente da posse da

    terra, esse tal fator primordial da produo; organizavam o essencial do processo produtivo no

    interior da famlia e da comunidade, bem como construam e mantinham todos os utenslios e

    instrumentos de produo, detendo, portanto, a propriedade deles (veremos, a seguir, a

    manifestao dessa autonomia tambm em relao aos fatores ideais de produo). A aristocracia

    fundiria medieval impunha-se menos ao nvel da produo no eram os senhores os principais

    organizadores desse processo mas na apropriao e arrecadao da renda, que se realizava no

    momento da colheita dos frutos daquele processo.

    Se assim o era, como entender, nesse caso, a possibilidade do exerccio da explorao?

    Como viabilizar e garantir a perenidade de um processo pelo qual as famlias, gozando de um grau

    considervel de autonomia na produo e reproduo de suas vidas, entregassem uma parcela de

    seus magros rendimentos aos senhores diretos? Nas formas pr-capitalistas de produo a

    apropriao do excedente envolve, necessariamente, uma considervel diversidade de meios e de

    coeres. Dentre estes, quero me deter nas expresses religiosas, partindo da premissa de que

    revelem o processo em toda a sua amplitude, com os mecanismos, matizes, contradies e limites

    que o caracterizaram.

    Se entendermos a religio como um sistema de representaes e de prticas relativas ao

    sagrado, por meio das quais os homens definem e expressam as relaes estabelecidas entre eles

    prprios e com a natureza, resulta claro, no mnimo, o seu paralelismo com um outro conceito

    essencial, o de produo, que diz respeito a essa mesma relao social essencial, a do homem com a

    natureza. Mas, assim como a produo experimentada de formas distintas pelos vrias classes

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    sociais, tampouco a religio constitui (ou talvez apenas o faa raramente) um sistema unvoco e

    fechado, e como tal plenamente aceito, vivenciado e partilhado pelo conjunto de uma dada

    sociedade. Se isso chega a ocorrer (e no nvel em que chega a ocorrer), deve-se a um considervel

    investimento dos grupos sociais dominantes em fazer dilatar-se, generalizar-se pelos diversos

    estratos sociais as suas concepes de mundo. No contexto ao que se refere esta anlise, parece-mechave a ntima conexo existente entre a disseminao de novas formas de exerccio do poder e da

    dominao e a implantao e expanso do cristianismo, com as concepes que elabora, divulga e

    busca afirmar socialmente acerca daquele amplssimo arco das relaes humanas. Vejamos, ento,

    algumas referncias documentais (tomando a Hispnia Visigtica dos sculos V a VIII como base)

    A documentao visigtica nos permite vislumbrar, ainda que em cores plidas, mas

    reiteradamente ao longo do perodo em questo, um conjunto de crenas e prticas definidas como

    pags e, na extenso, condenadas e combatidas pelas autoridades, expresses que vm mobilizandoa ateno de uma enorme linhagem de especialistas dedicados ao problema da converso da Idade

    Mdia ao Cristianismo. Vamos a um breve inventrio. Das atas conciliares6 do primeiro conclio

    celebrado na Hispania entre os anos de 300 e 306, o de Elvira, destaco a proibio de que

    proprietrios cristos fossem coniventes com as concepes e prticas simblicas relacionadas

    produo agrria ritos de fertilidade intrnsecos ao processo produtivo aceitando descontar do

    total das rendas que lhes seriam pagas pelos camponeses a parcela que era oferecida aos deuses

    pagos. Esse tpico extremamente relevante para o que abordaremos a seguir, revelador do

    embate travado em um dos nveis essenciais do desenvolvimento das foras produtivas no perodo.

    Outro cnone do mesmo conclio impe perptua excomunho aos camponeses que dedicassem os

    primeiros frutos da colheita beno de um judeu, ao incompatvel, na viso dos bispos, com o

    reconhecimento da verdadeira interveno do sagrado no mistrio germinao das sementes: os

    frutos seriam concesses divinas, dons de Deus ofertados aos homens em decorrncia da beno

    oficiada pelo sacerdote cristo. O cnone 41, ainda do Conclio de princpios do sculo IV, probe

    aos senhores cristos a manuteno de imagens de deuses pagos em suas casas, exceo permitida

    apenas queles que temessem provocar, com tal iniciativa, a rebelio ou revolta de seus servi. Ser

    possvel admitir, depois disso, que uma crena religiosa decorra, imediata e mecanicamente, do

    vnculo de submisso e dependncia pessoais?

    Nos conclios de Braga, em particular no II, de 572, presidido por So Martinho, as

    determinaes fazem eco ao seu famoso sermo, o De Correctione Rusticorum: condenao do

    recurso a adivinhos e sortlegos para purificao das casas, da celebrao das tradies e festejos

    pagos (Calendas), de considerar o curso da lua e dos astros para a construo da casa, a semeadura

    e a celebrao do matrimnio, alm do emprego de frmulas supersticiosas pela mulheres no

    trabalho domstico Segundo os cnones do III Conclio de Toledo, realizado em 589, a idolatria

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    estaria arraigada por quase toda a Hispnia. Neste mesmo conclio os camponeses so repreendidos

    pela prtica de cantos e danas indecorosas nos dias dos santos. A partir dele, inclusive, as

    disposies cannicas assumem, integralmente, o carter das penalidades impostas pela legislao

    rgia, recorrendo-se violncia fsica e ao terror visando a reduo dos fiis a conformidade das

    prticas e ao monoplio do sagrado cristo. O cnone 16 desse mesmo III Conclio de Toledo,impe a ao conjunta de bispos e juizes na erradicao da idolatria, e os castigos previstos s

    excetuam a pena de morte. No mesmo ano de 589, o snodo provincial de Narbona condena a

    celebrao do quinto dia da semana, em honra a Jpiter, entregando-se os camponeses ao cio com

    a paralisao das atividades laborais. O mesmo conclio, em seu cnone IV, probe o trabalho no

    domingo, sobretudo aquele relacionado s atividades agrcolas, como a conduo de bois nos

    campos. Tais prticas foram tambm condenadas no sermo de Martinho de Braga, como aquelas as

    quais me refiro a seguir.Por intermdio dos Conclios IV e V de Toledo, realizados, respectivamente, em 633 e 636,

    sabemos que as comemoraes das Calendas mantinham-se a pleno curso, assim como as prticas

    divinatrias. Por fim, os conclios XII e XVI de Toledo voltariam a carga contra as prticas

    idoltricas. O primeiro, realizado em 681, no seu cnone XI, determina punio para aqueles que

    servem a deuses alheios, ou cultuam os astros, e a todos os adoradores de dolos que veneram as

    pedras, acendem velas, e adoram fontes e rvores. Ao teor semelhante das referncias encontradas

    no segundo dos conclios assinalados, de 693, a interveno rgia determina que fossem conduzidas

    igreja mais prxima da localidade as oferendas entregues aos deuses pagos. A legislao

    visigtica tambm nos fornece referncias esparsas a prticas condenadas pelo vnculo estabelecido

    com o paganismo ou, na extenso, com a interveno diablica. O Forum Iudicum, promulgado em

    654, incorpora leis anteriores condenando os augrios. Fossem de condio livre os divinadores e

    seus consulentes, deveriam ser submetidos, alm de a pena corporal, ao confisco de suas

    propriedades e a reduo condio de escravos. No caso do envolvimento de escravos a lei

    estabelece a pena de tortura e venda para regies dalm mar7.

    O breve inventrio acima estabelecido abre-se a um vasto campo de consideraes que

    reduzirei, contudo, a alguns elementos centrais. Se, em relao s crenas e prticas condenadas ao

    longo do perodo, nos detivermos no nas fugidias tentativas de definir as suas origens ou

    pedigree, para nos concentrarmos nos seus campos de manifestao (como diria Joo Bernardo,

    explicar no apontar a origem de um dado fenmeno, mas estabelecer as conexes que o

    constituem!), destaca-se a vinculao de cada uma delas com atividades e necessidades vrias,

    fundamentais e correntes na vida quotidiana e trabalho das comunidades camponesas: garantia da

    fertilidade dos campos, dos rebanhos e da prpria famlia, garantia e preservao das colheitas,

    proteo da casa e do trabalho domstico, alm daquelas manifestaes que parecem estar

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    associadas importncia crucial das atividades econmicas realizadas nas reas incultas, como

    expressa o culto s rvores, rios, mar, fontes. Referem-se, todas elas, portanto, e em nveis diversos,

    quela relao primria e essencial existncia e reproduo da espcie humana, travada

    cotidianamente com o seu laboratrio inorgnico, a natureza.

    Quanto aos instrumentos que so postos em ao e que viabilizam essa tal relao, via deregra sobressaem aqueles cuja materialidade revela, inclusive, o nvel de desenvolvimento das

    foras produtivas atingido por uma dada sociedade. E, no entanto, qualquer sistema cujo objetivo

    a socializao da natureza combina intimamente aspectos materiais e imateriais ou ideais. Qualquer

    tentativa de interpretao das relaes humanas travadas com o meio natural deve ter em conta a

    interao dinmica entre as tcnicas usadas e os sistemas simblicos que as organizam. Nenhuma

    ao material do homem sobre a natureza pode ocorrer sem envolver, desde seu incio, uma gama

    de realidades ideais, isto , as representaes da natureza e do seu funcionamento.

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    Quando analisamos, ressalta Godelier, o aspecto mais material das realidades sociais, as

    foras produtivas de que a sociedade dispe para agir sobre a natureza que a cerca, constata-se a

    existncia de componentes intrinsecamente articulados, uma parte material, composta pelos

    utenslios, ferramentas, pelo prprio homem, e uma parte ideal manifesta nas representaes da

    natureza, nas regras de fabricao e emprego dos utenslios, etc. Toda prtica, a produtiva inclusive,

    , portanto, uma totalidade orgnica, na qual os aspectos materiais e os ideais esto intimamente

    articulados, e no h sentido em pretender atribuir a preeminncia a qualquer um deles. Toda ao,

    todo processo de trabalho comea por uma representao das condies e procedimentos

    necessrios sua execuo material, que se ajusta, inclusive, em decorrncia dessa execuo.

    Devemos, no h dvida, Antropologia Econmica a percepo profunda desses processos

    de estruturao social e produtiva, to caractersticos das sociedades pr-capitalistas. E no sem

    um grau de inveja considervel que lemos os antroplogos, imersos por anos a fio nas sociedades

    que estudam, tomando notas que podem ser revistas e aprimoradas por mil vezes, debatendo-as at,

    muitas vezes, com os seus nativos. J os nossos morreram h sculos, e nos deixaram apenas os

    ecos quase inaudveis de suas vozes, filtradas que foram pelos etnlogos da poca. Os registros a

    que me referi anteriormente foram elaborados por homens da Igreja, uma elite forjada com base na

    cultura clssica e muito pouco condescendente, se no mesmo totalmente avessa, a tudo que

    consideravam supersties grosseiras e/ou sobrevivncias pags. Assim, expresses diversas de

    crenas e prticas que de certo faziam parte de complexos sistemas de apreenso do mundo e de

    ao sobre ele foram reduzidas, nos registros de bispos e monges, a manifestaes isoladas e

    desconexas, crendices fteis originrias das mentes bestiais de camponeses rsticos e ignorantes. E,

    no entanto, o sentido pleno daquilo que mal se vislumbra em meio fragmentao dos registros a

    expresso autonmica das condies ideais de produo que fundamentava as atividades

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    camponesas. Ser possvel, portanto, que um mesmo sistema social e produtivo esteja atravessado

    por idealidades distintas, mais ou menos concorrentes, conflitantes e irredutveis entre si,

    sobretudo em situaes de profundas clivagens sociais? Mas, o exerccio do poder e da dominao,

    que se materializa, como j destaquei, na apropriao de grande parte dos resultados da produo,

    no transcender o mbito material at envolver a construo e a partilha das representaes daordem do mundo e do seu funcionamento?

    O fato que, a par das crenas e prticas condenadas e combatidas, a que j me referi, a

    Igreja promoveu uma gama de frmulas rituais divulgadas por agentes diversos santos, bispos e

    monges e particularmente registrada nos livros litrgicos. O Liber Ordinum, por exemplo

    manual litrgico da Igreja Visigtica elaborado desde o sculo VI contm uma longa srie de

    cerimnias de exorcismos e de bnos que veiculam as alternativas crists apresentadas aos fiis

    visando satisfao de seus anseios mais profundos, e revelam a plena percepo, pela Igreja, doscampos de manifestao das crenas e prticas alternativas condenadas. O cristianismo ensejou, de

    fato, ritos vrios que significam mais do que a simples depurao de prticas tradicionais na gua

    do batismo9, uma vez que subvertem a lgica primria que as fundamentava. Um dos primeiros

    rituais fixados no Liber Ordinum refere-se ao exorcismo e bno do leo, para que por seu

    intermdio fosse expelido um amplo espectro de doenas. Vrias so tambm as frmulas de

    exorcismo e bno do sal e da gua, utilizados em cerimnias de purificao em condies e

    ambientes diversos, alternativas, por exemplo, s cerimnias pags condenadas por So Martinho.

    Ainda no primeiro item do Liber Ordinum localizam-se algumas destas frmulas, vinculadas

    purificao de uma casa. O sal era oferecido ante o altar, sob o olhar do Senhor, a fim de que

    afastasse todas as criaturas imundas, encantamentos e monstros dos lugares onde fosse aspergido,

    preservando a fidelssima proteo de Cristo. Misturado gua benta, teriam ambos o poder de

    repelir todos os demnios, quaisquer que sejam e de onde quer que advenham, seja das grutas, de

    todos os lugares, das fendas das pedras, dos rios e das fontes10, elementos cujo culto fora

    condenado por S. Martinho e pelos cnones conciliares, e que so aqui reafirmados como locais da

    manifestao demonaca. Esta mesma mistura devia ser espargida na casa, em suas paredes e

    fundao, alm de aplicada no caso de febres e contuses na virilha, e mesmo nas chagas dos

    animais, para afastar as incurses malignas e restabelecer a sade original.

    Da longa srie de preces e missas destinadas aos fiis que viriam a empreender uma longa

    viagem revela-se a autoridade divina expressa no comando da natureza. Na Orao sobre aquele

    que vai viajar, o sacerdote implora ao Pai indulgente que defenda seus servos (famuli) em tal

    caminho, para que no estejam expostos aos perigos dos rios, das tempestades, dos ladres ou das

    feras. E quando tenham chegado ao local desejado com segurana e sade, imolem em louvor a ti

    uma hstia, devedores, sempre, pelo futuro, da graa.11 Ressalte-se, nesta ltima referncia, o

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    aspecto manifesto do carter da relao entre o crente e a divindade, que explicita a natureza

    assimtrica da relao: de um lado, a ascendncia absoluta de um Senhor que concede

    gratuitamente, e que alheio a qualquer deficincia. Na cerimnia da bno da uva, cujas

    primcias os fiis levavam ao trio da igreja, o sacerdote relaciona a oferenda garantia da

    fecundidade. Rogando a Deus que as aceite, generosamente, das mos de seus servos, destaca: Noque necessites delas, Senhor, porque a tudo preenche e contm.12 Tal modelo consagra, pois, a

    concepo senhorial das relaes sociais fundadas na munificncia, na liberalidade caracterstica da

    aristocracia, mas que atua em prol do fortalecimento de seu prestgio social, do seu poder, e, em

    ltima anlise, da sua capacidade de impor-se ao contingente de seus dependentes.

    O Liber Ordinum registra, ainda, uma srie de bnos e oraes reveladores da concepo

    da divindade provedora, do Deus Produtor. Fonte do milagre da reproduo das sementes, senhor

    das condies ideais da produo, uma srie de ritos definem o sentido cristo das relaes dohomem com a natureza, contrapondo-se aos rituais de fertilidade e de proteo circunscritos e

    combatidos sob a acusao de pagos. Na bno das sementes, o oficiante refere-se a Deus como

    Criador de todas as criaturas, que deste condio a todas as sementes de gerar, criar e frutificar;

    rogamos-te que piedoso voltes o olhar nossa prece, e assim atribuas uma graa superior nos

    cultivos das sementes, a fim de que retorne cem vezes mais numerosa e fecunda pelos anos

    seguintes.13 Na bno das primcias, objeto de controvrsia e de condenaes no Conclio de

    Elvira, em princpios do sculo IV, o sacerdote invoca o Senhor na sua condio de pleno

    proprietrio da terra que foi entregue ao homem em usufruto elemento material central da relao

    rogando-lhe que se volte sobre as primcias dos frutos ou qualquer gnero de alimento, o qual

    ns, teus servos, oferecemos a ti; (...) pelas quais imploramos a tua clemncia, Deus Nosso Senhor,

    para que o sol no abrase a terra e as plantas, que o granizo no irrompa, nem a tempestade destrua;

    mas, com tua proteo, sejam conduzidas maturidade, para que teu povo te bendiga por todos os

    dias de sua vida.14Em uma outra orao de bno dos gros, a liturgia avana em um paralelismo

    simblico entre a germinao sagrada de Jesus Cristo e o milagre cotidiano da reproduo da

    semente, originado da concesso divina aos homens da chuva, a fim de que germinasse a erva na

    terra, evoluindo at a maturidade.15

    Na liturgia visigtica, os rituais cristos de fertilidade, proteo e controle da natureza,

    submetidos em conjunto ao poder amplo e discricionrio e aos dons divinos, dirigissem-se tambm

    ao exorcismo e bno dos meios de produo. Aps o arroteamento de um novo campo, na

    cerimnia de sua sagrao, o oficiante vincula a prpria atividade produtiva prescrio divina ao

    homem, para que trabalhasse a terra e fosse alimentado pelo po, rogando, em seguida, ao

    Onipotente, a concesso do benefcio da abundncia a seus servos. Na bno das novas foices a

    serem utilizadas na poda das vinhas e de rvores frutferas, o produto dos campos caracteriza-se,

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    ainda uma vez, como dom divino, decorrendo a abundncia dos frutos do contato mgico com o

    instrumento ungido pelo Senhor.16 E seria possvel considerar, a par deste ltimo, o ritual da bno

    da rede de pesca, ampliando-se a uma atividade vinculada ao saltus a concepo ampla da

    divindade provedora que envolve, antes de mais, o prprio instrumento, neste locus tradicional de

    manifestao demonaca. rede, submetida ao olhar divino diante de seu altar, requisitava ooficiante a proteo crucial que lhe permitiria produzir o alimento em abundncia. No permitas

    embara-la com alguma arte dos inimigos, nem emaranhar-se pelas palavras detestveis dos

    encantadores.17 Isto posto, a bno consecutiva requisitava apenas a cotidiana manifestao do

    dispensador de todos os bens, concepo com base na qual o alimento, ou o produto do trabalho,

    decorre menos da ao humana do que da misericrdia do Senhor.18

    Enfim, a concepo do Deus nico, Criador e Senhor de todas as criaturas do universo,

    reitor de todos os elementos, prdigo dispensador de dons e benesses, e da vida inteira, no poderiamanter-se alheia sua fonte essencial, a gua, que fertiliza a terra e o homem, regenerando-o pelo

    batismo. Tal paralelismo simblico manifesta-se, no Liber Ordinum, em primeiro lugar na

    cerimnia da bno da fonte, gua celestial santificada pelo Verbo divino.19 Contra qualquer

    perspectiva de divinizao da criatura, o sagrado que regurgita da terra em forma de nascente uma

    manifestao do poder regenerador de Deus, que suprime a aridez da terra, e um smbolo do milagre

    restaurador que ocorre na fonte batismal, onde os homens, redimidos, renovam-se, e renascem. Na

    bno do novo poo ou cisterna, o sacerdote invoca a clemncia da piedade divina para santificar a

    gua de uso cotidiano, afastando do cerne da vida da comunidade toda e qualquer incurso da

    tentao diablica, para que sejam merecedores de render-te graas todos os dias, Senhor

    santificador e salvador de todos20.

    bem provvel que vrios destes rituais tenham se originado de prticas institudas nas

    pequenas igrejas rurais onde o proco, inserido nas comunidades camponesas, dividindo-se muitas

    vezes entre o ofcio divino e o labor dos campos, partilhava os anseios e urgncias de uma vida

    exaurida pela dura rotina das atividades agrcolas, de resultados incertos, rendimentos pfios, e em

    parte considervel apropriados por mos alheias. A proliferao das igrejas pelos campos, em que

    pese os conflitos gerados no seio da aristocracia pelo seu controle e gesto de suas rendas, e as

    crticas recorrentes baixa formao do clero local, foi um elemento determinante da efetiva

    insero do cristianismo na vida cotidiana do indivduo, da famlia e da comunidade. A urgncia da

    experincia integral da f parece ter, de alguma forma, ou em algum nvel, se realizado, e a

    religio importada do Oriente espraiou-se pelos campos ocidentais. Mas, ainda assim, o u

    No faltaram, ao menos, e a profuso de santos patronos locais e dos ritos litrgicos parecem

    comprov-lo, canais ortodoxos acessveis aos fiis nos vrios momentos e atividades cruciais da

  • 8/9/2019 Mario JM Bastos Economia e Fetiche da Religio no Alvorecer da Civilizao Medieval

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    vida que demandavam o apoio e o aval das potncias superiores do Universo, ainda que

    domesticadas, hierarquizadas, monopolizadas e submetidas total ascendncia do Deus nico.

    1 Realizado entre os anos de 1998 e 2002, no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade de So Paulo,sob orientao do Prof. Dr. Hilrio Franco Junior.2 Karl Marx, O Capital: crtica da economia poltica, vol. I, So Paulo, Editora Abril Cultural, 1983.3 Jean-Claude Schmitt, Une histoire religieuse du Moyen ge est-elle possible?Prfaces, 19, 1990, p. 77-78.4 Jean-Claude Schmitt, Religion populaire et culture floklorique,Annales E.S.C., 31e anne, n.5, 1976, p.946.5 Antonio Gramsci,Prison notebooks, New York, International, 1971.6 Jos Vives(ed), Conclios Visigticos e Hispanoromanos, Madrid, CSIC, 1963.7Apud Stephen McKenna, Paganism and Pagan Survivals in Spain up to the Fall of the Visigothic Kingdon,Washington D.C., The Catholic University of America, 1938, p. 121.8 Maurice Godelier,Lidel et le materiel. Pense, conomies, socits, Paris: Fayard, 1984.9 Perspectiva ainda recentemente assumida por Jacques Le Goff, Maravilhoso, in Jacques Le Goff & Jean-ClaudeSchmitt (coords.),Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval, II, So Paulo, EDUSC, 2002, p. 113.10 Op. cit., col. 15: (...) quicumque sunt uel undecumque aduenerint, siue ex antris, siue ex omnibus locis, siue exfissuris petrarum, siue ex locis fluminum atque fontium (...).11Id., Oratio super eum qui in itinere progreditur, col. 93: Et cum securi atque saluati ad loca sibi desiderataperuenerint, ymolent tibi hostiam laudis, future semper gratie debitores.12Id.,Benedictio Uue, col. 169: Non quod his indigeas, Domine, quia omnia reples et contines.13 Id, Benedictio Seminis, col. 166: (...) qui omnium seminum gignendi serendique atque fructificandi condicionemdedisti; te deprecamur, ut pius ad precem nostram respicias, et ita demum in serendis seminibus amplificatam gratiam

    tribuas; ut centupliciter augmentada magisque recurrentibus annis reddas fecunda. Segundo o editor, todas asfrmulas de bnos e preces encontradas neste captulo doLiber Ordinum so especficas da liturgia visigtica.14Id.,Benedictio Primitiarum, col. 168: (...) pomorum uel quodcumque generis alimenti, quod tibi offerimus famulitui; (...) pro qua re petimus clementiam tuam, Domine Deus noster, ne sol urat, ne grando cedat, ne tempestas excutiat;sed, te protegente, ad maturitatem perducas, ut populus tuus benedicat te per omnes dies uite sue.15Id.,Benedictio Graneas (sic), col. 167: (...) ut germinaret terra erbam, et ad maturitatem perduxisti.16Id., Benedictio nouarum falcium uinearum, col. 167: Te supplices exoramus, eterne inmense Deus, ut quicquid falces iste per chrisma benedictionis tue peruncte incidendo tetigerint, tue benedictionis gratiam in germine uitis et pomorum infundere digneris, (...) et fructus eorum ubertate repleas. O editor afirma no ter encontrado nenhumafrmula semelhante nas liturgias do perodo.17Id.,Benedictio retis, col. 174: Non eum sinas aduersantium arte aliqua inligare, nec uerbis incantantium pessimisinretiri.18Id., col. 174: Presta nobis, Deus, ut huius retis exhibitione repleamur, et gratie tue muneribus gratulemur.19Id.,Benedictio fontis, cols. 29-30: (...) montibus pressa non clauderis, scopulis inlisa non frangeris, terris diffusanon deficis (...) gestata nubibus imbre iucundo arua fecundas.20Id.,Oratio uel Benedictio putei noui, cols. 173-174: (...) ut tibi semper sanctificatori et saluatori omnium Dominogratias agere mereatur.