MATOS, Gregório de. ‘Crônica do Viver...

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Crônica do Viver Baiano Seiscentista, Gregório de Matos Fonte: MATOS, Gregório de. Obra Poética. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1992. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina Crônica do Viver Baiano Seiscentista Gregório de Matos I - A NOSSA SÉ DA BAHIA Gregório de Matos A NOSSA SÉ DA BAHIA AOS CAPITULARES DO SEU TEMPO. PONDERA ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO QUAM GLORIOSA HE A PAZ DA RELIGIÃO. AO ILUSTRISSIMO SENHOR D. Fr. MANUEL DA RESURREYÇÃO. A MORTE DO MESMO SENHOR SUCCEDIDA DE HUMA FEBRE MALIGNA EM BELLEM ANDANDO EM VISITA. EPITAFIO À SEPULTURA DO MESMO EXmo. SENHOR ARCEBISPO. A CHEGADA DO ILLUSTRISSIMO SENHOR D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA TENDO SIDO JA BISPO EM ANGOLLA. A FROTA EM QUE VEYO O PALLIOLO DESTE GRANDE PRELADO. AO MESMO ILLUSTRISSIMO SENHOR CHEGANDO DE VISITA A VILLA DE S. FRANCISCO, ONDE Ò ESPERAVAM MUYTOS CLERIGOS PARA TOMAREM ORDENS. A MAGNIFICENCIA COM QUE OS MORADORES DAQUELLA VlLLA RECEBERAM O DITO SENHOR COM VARIOS ARTIFICIOS DE FOGO POR MAR, E TERRA CONCORRENDO PARA A DESPEZA O VIGARIO. OBRIGADOS OS ORDENANDOS A CANTAR O CANTO CHAM DESAFINARAM PERTURBADOS A VISTA DO PRELADO, E OS OBRIGOU, A QUE ESTUDASSEM OS SETTE SIGNOS. CELEBRA O POETA ESTE CASO, E LOUVA A PREDICA, QUE FEZ SUA ILLUSTRISSIMA. A MORTE VIOLENTA QUE LUIZ FERREYRA DE NORONHA CAPITÃO DA GUARDA DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DEO À JOZÉ DE MELLO SOBRINHO DESTE PRELADO. AO RETIRO QUE FES ESTE ILLUSTRISSIMO PRELADO SENTIDISSIMO, E MAGUADO PELA TYRANNA, E VIOLENTA MORTE QUE O CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA DEO A SEU SOBRINHO.

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Crônica do Viver Baiano Seiscentista, Gregório de Matos Fonte: MATOS, Gregório de. Obra Poética. 3ª ed., Rio de Janeiro: Editora Record, 1992. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina

Crônica do Viver Baiano Seiscentista

Gregório de Matos I - A NOSSA SÉ DA BAHIA Gregório de Matos A NOSSA SÉ DA BAHIA AOS CAPITULARES DO SEU TEMPO. PONDERA ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO QUAM GLORIOSA HE A PAZ DA RELIGIÃO. AO ILUSTRISSIMO SENHOR D. Fr. MANUEL DA RESURREYÇÃO. A MORTE DO MESMO SENHOR SUCCEDIDA DE HUMA FEBRE MALIGNA EM BELLEM ANDANDO EM VISITA. EPITAFIO À SEPULTURA DO MESMO EXmo. SENHOR ARCEBISPO. A CHEGADA DO ILLUSTRISSIMO SENHOR D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA TENDO SIDO JA BISPO EM ANGOLLA. A FROTA EM QUE VEYO O PALLIOLO DESTE GRANDE PRELADO. AO MESMO ILLUSTRISSIMO SENHOR CHEGANDO DE VISITA A VILLA DE S. FRANCISCO, ONDE Ò ESPERAVAM MUYTOS CLERIGOS PARA TOMAREM ORDENS. A MAGNIFICENCIA COM QUE OS MORADORES DAQUELLA VlLLA RECEBERAM O DITO SENHOR COM VARIOS ARTIFICIOS DE FOGO POR MAR, E TERRA CONCORRENDO PARA A DESPEZA O VIGARIO. OBRIGADOS OS ORDENANDOS A CANTAR O CANTO CHAM DESAFINARAM PERTURBADOS A VISTA DO PRELADO, E OS OBRIGOU, A QUE ESTUDASSEM OS SETTE SIGNOS. CELEBRA O POETA ESTE CASO, E LOUVA A PREDICA, QUE FEZ SUA ILLUSTRISSIMA. A MORTE VIOLENTA QUE LUIZ FERREYRA DE NORONHA CAPITÃO DA GUARDA DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DEO À JOZÉ DE MELLO SOBRINHO DESTE PRELADO. AO RETIRO QUE FES ESTE ILLUSTRISSIMO PRELADO SENTIDISSIMO, E MAGUADO PELA TYRANNA, E VIOLENTA MORTE QUE O CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA DEO A SEU SOBRINHO.

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AOS MISSIONARIOS, À QUEM O ARCEBISPO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEUS RECOMENDAVA MUYTO AS VIAS SACRAS, QUE ENCHENDO A CIDADE DE CRUZES CHAMAVÃO DO PULPITO AS PESSOAS POR SEUS NOMES, REPREHENDENDO, À QUEM FALTAVA. A CERTO PROVINCIAL DE CERTA REGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TA, RIDICULOS QUE MAIS SERVIO DE MOTIVO DE RIZO, DO QUE DE COMPAIXÃO. AO CURA DA SÉ QUE ERA NAQUELLE TEMPO, INTRODUZIDA ALI POR DINHEYRO, E COM PRESUNÇÕES DE NAMORADO SATYRIZA O POETA COMO CREATURA DO PRELADO. AO ILLUSTRISSIMO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEOS MUDANDO-SE PARA O SEU NOVO PALACIO, QUE COMPROU. O DEÃO ANDRE GOMES CAVEYRA SE INTRODUZIO DE TAL MODO COM ÊSTE PRELADO EM DESABONO DO POETA, QUE ESTIMULADO O DITO FÊZ O SEGUINTE. COMO ACREDITOU ESTE PRELADO MAIS OS MEXERICOS DE CAVEYRA, DO QUE AS LIZONJAS DO POETA, LHE FEZ ESTA SÁTIRA. LOUVA O POETA O SERMÃO, QUE PREGOU CERTO MESTRE NA FESTA, QUE A JUSTIÇA FAZ, AO SPIRITO SANTO NO CONVENTO DO CARMO NO ANO 1686. CELEBRA O POETA (ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO), A BURLA, QUE FIZERAM OS RELIGIOSOS COM UMA PATENTE FALSA DE PRIOR A FREI MIGUEL NOVELLOS, APELIDADO O LATINO POR IVERTIMENTO EM HUM DIA DE MUYTA CHUVA. AO VIGARIO DA VILLA DE S. FRANCISCO POR HUMA PENDENCIA, QUE TEVE COM HUM OURIVES A RESPEYTO DE HUMA MULATA, QUE SE DIZIA CORRER POR SUA CONTA. A OUTRO VIGARIO DE CERTA FREGUEZIA, CONTRA QUEM SE AMOTINÁVAM OS FREGUEZES POR SER MUYTO AMBICIOSO. AO VIGARIO ANTONIO MARQUES DE PERADA ENCOMENDADO NA IGREJA DA Va DE S. FRANCISCO AMBICIOSO, E DESCONHECIDO. AO PADRE DAMASO DA SYLVA PARENTE DO POETA, E SEU OPPOSTO, HOMEM DESBOCCADO, E PRESUNÇOSO COM GRANDES IMPLUSOS DE SER SER VIGARIO, SENDO POR ALGUM TEMPO EM NOSSA SENHORA DO LORETO. RETRATO DO MESMO CLERIGO. AO MESMO CLERIGO APPELLIDANDO DE ASNO AO POETA AO MESMO COM PRESUNÇÕES DE SABIO, E INGENHOSO. A OUTRO CLERIGO AMIGO DO FRIZÃO, QUE SE DEZIA ESTAR AMANCEBADO DE PORTAS ADENTRO COM DUAS MULHERES COM HUMA NEGRA, E OUTRA MULATA. AO PADRE MANUEL ALVARES CAPELLÃO DA MARAPÉ REMOQUEANDO AO POETA HUMA PEDRADA QUE LHE DERAM DE NOYTE ESTANDO SE PROVENDO: E PERGUNTANDOLHE PORQUE SE NÃO SATYRIZAVA DELLA! ESCANDALIZADO, E PICADO, PORQUE O POETA HAVIA SATYRIZADO OS CLERIGOS, QUE VINHÃO DE PORTUGAL. ENTRA AGORA O POETA A SATIRIZAR O DITO PADRE. AO PADRE MANUEL DOMINGUES LOUREYRO QUE REHUSANDO IR POR CAPELLÃO PARA ANGOLLA POR ORDEM DE SUA ILUSTRISSIMA, FOY AO DEPOIS PREZO, E MALTRATADO, PORQUE RESISTIO AS ORDENS DO MESMO PRELADO.

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AO VIGARIO DA MADRE DE DEOS MANUEL RODRIGUES SE QUEYXA O POETA DE TREZ CLERIGOS QUE LHE FORAM A CASA PELA FESTA DO NATAL, ONDE TAMBEM ELLE ESTAVA E COM GALANTARIA O PERSUADE, A QUE SACUDA OS HOSPEDES FORA DE CASA PELO GASTO, QUE FAZIAM. AOS MESMOS PADRES HOSPEDES ENTRE OS QUAIS VINHA O Pe PERICO, QUE ERA PEQUENINO. AO MESMO VIGARIO GALANTEA O POETA FAZENDO CHISTES DE HUM MIMO, QUE LHE MANDÁRA BRITES HUMA GRACIOSA COMADRE SUA, ENTRE O QUAL VINHA PARA O POETA HUM CAJÚ. AO CELEBRE FR. JOANNICO COMPREHENDIDO EM LISBOA EM CRIMES DE SODOMITA. A FR. PASCOAL QUE SENDO ABBADE DE N. S. DAS BROTAS HOSPEDOU ALI COM GRANDEZA A D. ANGELA, E SEUS PAYS, QUE FORAM DE ROMARIA À AQUELLE SANTUARIO. A FR. THOMAZ D'APRESENTAÇÃO PREGANDO EM TERMOS LACONICOS A PRIMEYRA DOMINGA DA QUARESMA. HUM AMIGO DESTE RELIGIOSO PEDIO AO POETA SUAS APROVAÇÕES SOBRE A MESMA PREDICA, A PEDITORIO DO MESMO PREGADOR NESTE. O MESMO AMIGO PEDIO AO POETA EM OUTRA OCCASIÃO LHE GLOZASSE ESTE MOTTE, CUJA MATERIA FOY HAVER TRIUNFADO O DITO FR. THOMAZ DE CERTA OPPOSIÇÃO CAPITULAR. AO SOBREDITO RELIGIOSO DESDENHANDO CRITICO DE HAVER GONÇALLO RAVASCO, E ALBUQUERQUE NA PRESENÇA DE SUA FREYRA VOMITADO HUMAS NAUSEAS, QUE LOGO COBRIO COM O CHAPEO. A CERTO FRADE NA VILLA DE SAM FRANCISCO, A QUEM HUA MOÇA FINGINDOSE AGRADECIDA À SEUS REPETIDOS GALANTEYOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE HUMA PANELLA DE MERDA. O CERTO FRADE QUE GALANTEANDO HUAS SENHORAS NO CONVENTO DE ODIVELAS, LHES ENTREGOU HABITO, E MENORES PARA UM FINGIDO ENTREMEZ, E CONHECENDO O CHASCO, EM ALTA NOYTE DEO EM CANTAR O MISERERE, BORRANDO, E OURINANDO TODO O PARLATORIO, PELO QUE A ABADEÇA LHE DEO OS SEUS HÁBITOS, E HUA LANTERNA PARA SE RETIRAR À LISBOA. A CERTO FRADE, QUE QUERENDO EMBARCAR-SE PARA FORA DA CIDADE, FURTOU HUM CABRITO, O QUAL SENDO CONHECIDO DA MAY PELO BERRO O FOY BUSCAR DENTRO DO BARCO, E COMO NÃO TEVE EFFEYTO O DITO ROUBO,TRATOU LOGO DE FURTAR OUTRO, E O LEVOU ASSADO. A CERTO FRADE QUE PREGANDO MUITOS DESPROPOSITOS NA MADRE DE DEOS FOI APEDREJADO PELOS RAPAZES, E SE FINGIO DESMAYADO POR ESCAPAR: MAS DEPOIS FURTANDO AO POETA UM BORDÃO, E AO ARPISTA DA FESTA UM CHAPEO SE RETIROU: POREM SABENDO-SE DO FURTO LHE FOY AO CAMINHO TIRAR DAS MÃOS HUM MULATO DE DOMINGOS BORGES. INDO CERTO FRADE A CASA DE HUMA MERETRIZ LHE PEDIO ESTA QUINZE MlL REIS DANTEMÃO PARA TIRAR HUMAS ARGOLLAS, QUE TINHA EMPENHADAS. SATYRIZA OUTRO CASO DE HUMA NEGRA QUE FOY ACHADA COM OUTRO FRADE, E FOY BEM MOIDA COM UM BORDÃO POR SEU AMAZIO, POR CUJA CAUSA SE SAGROU, E SE FINGIO MANCA DE HUM PÉ. A CERTO FRADE QUE TRATAVA COM HUMA DEPRAVADA MULATA POR NOME VICENCIA QUE MORAVA JUNTO AO CONVENTO, E ATUALMENTE Á ESTAVA VIGIANDO DESTE CAMPANARIO. AO LOUCO DESVANECIMENTO, COM QUE ESTE FRADE TIRANDO ESMOLLAS

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CANTAVA REGAÇANDO O HABITO POR MOSTRAR AS PERNAS, COM PRESUNÇÕES DE GENTILHOMEM, BOM MEMBRO, E BOA VOZ. AO MESMO FRADE TORNA A SATYRIZAR O POETA, SEM OUTRA MATERIA NOVA, SENÃO PRESUMINDO, QUE QUEM O DEMO TOMA HUMA VEZ SEMPRE LHE FICA HUM GEYTO. A CERTO FRADE QUE INDO PREGAR A HUM CONVENTO DE FREYRAS, E ESTANDO COM HUMA NA GRADE, LHE DEO TAL DOR DE BARRIGA, QUE SE CAGOU POR SI. A NOSSA SÉ DA BAHIA com ser um mapa de festas é um presépio de bestas. e se nisto maldigo ou me engano, eu me submeto à Santa Madre Igreja. Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso, não lhe chameis Religioso chamai-lhe embora de Frade Jesu, nome de Jesu! AOS CAPITULARES DO SEU TEMPO. A nossa Sé da Bahia, com ser um mapa de festas, é um presépio de bestas, se não for estrebaria: várias bestas cada dia vemos, que o sino congrega, Caveira mula galega, o Deão burrinha parda, Pereira besta de albarda, tudo para a Sé se agrega. PONDERA ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO QUAM GLORIOSA HE A PAZ DA RELIGIÃO. Quem da religiosa vida não se namora, e agrada, já tem a alma danada, e a graça de Deus perdida: uma vida tão medida pela vontade dos Céus, que humildes ganham troféus, e tal glória se desfruta, que na mesa a Deus se escuta, no Coro se louva a Deus. Esta vida religiosa tão sossegada, e segura a toda a boa alma apura, afugenta a alma viciosa: há cousa mais deliciosa, que achar o jantar, e almoço sem cuidado, e sem sobrosso

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tendo no bom, e mau ano sempre o pão quotidiano, e escusar o Padre nosso! Há cousa como escutar o silêncio, que a garrida toca depois da comida pare cozer o jantar! há cousa como calar, e estar só na minha cela considerando a panela, que cheirava, e recendia no gosto de malvasia na grandeza da tigela! Há cousa como estar vendo uma só Mãe religião sustentar a tanto Irmão mais, ou menos Reverendo! há maior gosto, ao que entendo, que agradar ao meu Prelado, para ser dele estimado, se ao obedecer-lhe me animo, e depois de tanto mimo ganhar o Céu de contado! Dirão réprobos, e réus, que a sujeição é fastio, pois para que é o alvedrio, senão para o dar a Deus: quem mais o sujeita aos céus, esse mais livre se vê, que Deus (como ensina a fé) nos deixou livre a vontade, e o mais é mor falsidade, que os montes de Gelboé. Oh quem, meu Jesus amante, do Frade mais descontente me fizera tão parente, que fora eu seu semelhante! Quem me vira neste instante tão solteiro, qual eu era, que na Ordem mas austera comera o vosso maná! Mas nunca direi, que lá virá a fresca Primavera. AO ILUSTRISSIMO SENHOR D. Fr. MANUEL DA RESURREYÇÃO. Subi a púrpura já, raio luzente Do sol Americano, que em dourado Dossel o Tibre vos verá sagrado Dar um dia leis à sua corrente. Entonces da Tiara a vossa frente, E vosso Patriarca coroado Um redil deveremos, e um cajado Às vossas claves, e a seu zelo ardente. Subi a cumes tão esclarecidos, ó vos, de cuja remendada capa

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sombras são já purpúreos resplandores. Em quem divinamente reunidos Os brasões de Seráfico, e de Papa Verão os vossos dous Progenitores. A MORTE DO MESMO SENHOR SUCCEDIDA DE HUMA FEBRE MALIGNA EM BELLEM ANDANDO EM VISITA. Neste túmulo a cinzas reduzido Da virtude o Herói mais portentoso Se oculta, feito estrago lastimoso Da dura Parca, de que foi vencido. De um incêndio cruel ficou rendido Aquele peito forte, e valeroso, Que por Deus tantas vezes amoroso Tinha grandes incêndios padecido. Porém a Parca andou muito advertida Em Ihe tirar a vida desta sorte, E tirana não foi, sendo homicida. Que se o matou em um incêndio forte, Foi, porque se de incêndios teve a vida, De incêndios era bem tivesse a morte. EPITÁFIO À SEPULTURA DO MESMO EXmo. SENHOR ARCEBISPO Este mármore encerra, ó Peregrino, Se bem, que a nossos olhos já guardado, Aquele, que na terra foi sagrado, Para que lá no céu fosse divino. De seu merecimento justo, e digno Prêmio, pois na terra nunca irado Se viu o seu poder, e o seu cajado Neste nosso hemisfério ultramarino. Enfim relíquias de um Prelado santo Oculta este piedoso monumento: As lágrimas detém, enxuga o pranto. Prosta-te reverente, e beija atento As cinzas, de quem deu ao mundo espanto, E a todos os Prelados documento. A CHEGADA DO ILLUSTRISSIMO SENHOR D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA TENDO SIDO JA BISPO EM ANGOLLA. Hoje os Matos incultos da Bahia Se não suave for, ruidosarnente Cantem a boa vinda do Eminente Príncipe desta Sacra Monarquia.

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Hoje em Roma de Pedro se Ihe fia Segunda vez a Barca, e o Tridente, Porque a pesca, que fez já no Oriente, A destinou para a do meio-dia. Oh se quisera Deus, que sendo ouvida A Musa bronca dos incultos Matos Ficasse a vossa púrpura atraída! Oh se como Arion, que a doces tratos Uma pedra atraiu endurecida, Atraísse eu, Senhor, vossos sapatos! A FROTA EM QUE VEYO O PALLIOLO DESTE GRANDE PRELADO. Tal frota nunca viram as idades De rota, desmembrada, e detençosa, Mui Santa deve ser, e religiosa, Pois de dous em dous veio, como frades. Não Ihe duvido eu destas qualidades, Se veio na Almirante venturosa Aquela insígnia Santa, e poderosa, Que à Mitra episcopal dá potestades. Chegou o Pálio enfim, que de um Prelado, Que nos veio a medida do desejo Tão merecido foi, como esperado. Eu ouço repicar, e folgar vejo: Repica a Sé, o Carmo está folgado, Louco devo eu de ser, pois não doudejo. AO MESMO ILLUSTRISSIMO SENHOR CHEGANDO DE VISITA A VILLA DE S. FRANCISCO, ONDE Ò ESPERAVAM MUYTOS CLERIGOS PARA TOMAREM ORDENS. Bem-vindo seja, Senhor, Vossa llustríssima A este sítio famoso do Seráfico, Onde nesta canção de verso alcaico Ouça a ovelha balar sua amantíssima Aqui verá correr água claríssima Do grande Seregipe rio antártico, Onde para tomar o eclesiástico Caráter Santo há gente prestantíssima. Aqui de Pedro a rede celebérrima Cuido, que fez os lanços hiperbólicos, Que na Bíblia se lêem Santa integérrima. Porque estes Pescadores tão católicos Nunca uma pesca fazem tão pulquérrima, Que os buchos nos não deixem melancólicos.

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A MAGNIFICENCIA COM QUE OS MORADORES DAQUELLA VlLLA RECEBERAM O DITO SENHOR COM VARIOS ARTIFICIOS DE FOGO POR MAR, E TERRA CONCORRENDO PARA A DESPEZA O VIGARIO. Apareceram tão belas no mar canoas, e truzes, que se o céu é mar de luzes, o mar era um céu de estrelas: era uma armada sem velas movida de outro elemento, era um prodígio, um portento ver com tanto desafogo esta navegar com fogo, se outras arribam com vento. Sua Ilustríssima estava assustado sobre absorto, porque via um rio morto o fogo, em que se abrasava: grande cuidado Ihe dava ver, que o mar morria então infamado na opinião, e como um judeu queimado, sendo, que o mar é sagrado, que inda é mais que ser cristão. Lá no vale ardia o ar, e por ser, comua a guerra, no mar há fogo de terra, na terra há fogo do mar: toda a esfera a retumbar fazia correspondência, e com alegre aparênca luzia na ardente empresa fogo do ar por alteza, e do mar por excelência. Em cima as rodas paravam, que varia a fortuna toda desandava a sua roda, e as do fogo não paravam: os mestres se envergonhavam, que era Lourenço, e Diogo: e eu vi, que a Lourenço logo a face se quebrantava, com que a mim mais me queimava o seu rosto, que o seu fogo. Deu-se fogo em conclusão a uma roda de encomenda, foi como a minha fazenda, que ardeu num abrir de mão: estava em meio do chão um rasto, para que ardesse uma câmara, e parece, que uma faísca caiu, disparou: quem jamais viu, que o fogo em câmeras desse. Era grande a multidão do Clero, e dos Seculares,

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que a graça destes folgares consiste na confusão: Sua llustríssima então se foi, que o fogo não zomba, aqui queima, ali arromba: segue-lhe o vigário os trilhos, que as rodas não tinham filhos mas pariam muita bomba. A gente ficou pasmada, porque viu a gente toda, que era a resposta da roda de bombarda respostada: ficou a turba enganada, porque enfim nos perturbarnos: mas todos nos alegramos, que isto somos, e isso fomos, que então alegres nos pomos quando mais nos enganamos. Entre o desar, e entre o risco a noite alegre passou: que mais noite! se a gabou té o Padre São Francisco: nas mais paróquias foi cisco, foi sombra, foi ar, foi nada do nosso Prelado a entrada, e a desconfiança é vã de o Cura ter bolsa chã, se a vontade é tão sobrada. OBRIGADOS OS ORDENANDOS A CANTAR O CANTO CHAM DESAFINARAM PERTURBADOS A VISTA DO PRELADO, E OS OBRIGOU, A QUE ESTUDASSEM OS SETTE SIGNOS. CELEBRA O POETA ESTE CASO, E LOUVA A PREDICA, QUE FEZ SUA ILLUSTRISSIMA. Senhor; os Padres daqui por b quadro, e por b mol cantam bem ré mi fá sol, cantam mal lá sol fá mi: a razão, que eu nisto ouvi, e tenho para vos dar, é, que como no ordenar fazem tanto por luzir, cantam bem para subir, cantam mal para baixar. Porém como cantariam os pobres perante vós? tão bem cantariam sós, quão mal, onde vos ouviam: quando o fabordão erguiam cad'um parece, que berra, e se um dissona, o outro erra, mui justo me pareceu, que sempre à vista do Céu fique abatido, o que é terra. Os Padres cantaram mal como está já pressuposto, e inda assim vos deram gosto, que eu vi no riso o sinal.

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foi-se logo cada qual direito às suas pousadas a estudar nas tabuadas da música os sete signos, não por cantar a Deus hinos, mas por vos dar badaladas. Vós com voz tão doce, e grata enleastes meus sentidos, que ficaram meus ouvidos, engastados nessa prata: tanto o povo se desata ouvindo os vossos espritos! que com laudatórios gritos dou eu fé, que uma Donzela disse, qual outra Marcela, o cântico Benedictus. A MORTE VIOLENTA QUE LUIZ FERREYRA DE NORONHA CAPITÃO DA GUARDA DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DEO À JOZÉ DE MELLO SOBRINHO DESTE PRELADO. Brilha em seu auge a mais luzida estrela, Em sua pompa existe a flor mais pura, Se esta do prado frágil formosura, Brilhante ostentação do céu aquela. Quando ousada uma nuvem a atropela, Se a outra troca em lástima a candura, Que há também para estrelas sombra escura, Se para flores há, quem as não zela. Estrela e flor, José, em ti se encerra, Porque ser flor, e estrela mereceu Teu garbo, a quem a Parca hoje desterra. E para se admirar o indulto teu, Como flor te sepultas cá na terra, Como estrela ressurges lá no céu. AO RETIRO QUE FES ESTE ILLUSTRISSIMO PRELADO SENTIDISSIMO, E MAGUADO PELA TYRANNA, E VIOLENTA MORTE QUE O CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA DEO A SEU SOBRINHO. Um benemérito peito, uma Sacra Dignidade sentir vem na soledade da parca o cruel efeito: que de um golpe sem respeito quis cortar o vital fio, sem atender Senhorio, nem ver, o despojo horrendo, de quem se agravara, vendo desautorizado o brio. Já de todo o mal distando em Belém busca o retiro, onde um, e outro suspiro a pena estão aumentando:

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e no pesar contemplando jamais será divertido, vendo de todo perdido por culpa de um traidor vil aquele Adônis gentil a cadáver reduzido Se a lei se deve observar, como agora falta, e tarda? a Justiça apenas guarda, que agradou por aguardar: privou por se depravar pela via nunca usada, deu ao vício franca entrada, e bem se pode entender, que enquanto vivo há de ser privado pela privada. Mas que muito haja amparado um Calígula tirano a seu amigo inumano Capitão de cama, e lado? o vulgo tem murmurado, e a maldade não se doma, e a sem-razão, que se assoma, como demais já sobeja contra um Ministro da Igreja um nefando de Sodoma. AOS MISSIONARIOS, À QUEM O ARCEBISPO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEUS RECOMENDAVA MUYTO AS VIAS SACRAS, QUE ENCHENDO A CIDADE DE CRUZES CHAMAVÃO DO PULPITO AS PESSOAS POR SEUS NOMES, REPREHENDENDO, À QUEM FALTAVA. Via de perfeição é a sacra via, Via do céu, caminho da verdade: Mas ir ao Céu com tal publicidade, Mais que à virtude, o boto à hipocrisia. O ódio é d'alma infame companhia, A paz deixou-a Deus à cristandade: Mas arrastar por força, uma vontade, Em vez de perfeição é tirania. O dar pregões do púlpito e indecência, Que de Fulano? venha aqui sicrano: Porque o pecado, o pecador se veja: E próprio de um Porteiro d'audiência, E se nisto maldigo, ou mal me engano, Eu me submeto à Santa Madre Igreja. A CERTO PROVINCIAL DE CERTA REGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TA, RIDICULOS QUE MAIS SERVIO DE MOTIVO DE RIZO, DO QUE DE COMPAIXÃO. Inda está por decidir, meu Padre Provincial, se aquele sermão fatal

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foi de chorar, se de rir: cada qual pode inferir, o que melhor lhe estiver, porque aquela má mulher da preversa sinagoga fez no sermão tal chinoga, que o não deixou entender. Certo, que este lava-pés me deixou escangalhado, e quanto a mim foi traçado para risonho entremez: eu lhe quero dar das três a outro qualquer Pregador, seja ele quem quer que for, já filósofo, ou já letrado, e quero perder dobrado, se fizer outro pior. E vossa Paternidade, pelo que deve à virtude, de tais pensamentos mude, que prega mal na verdade: faça atos de caridade, e trate de se emendar, não nos venha mais pregar, que jurou o Mestre Escola, que por pregar pare Angola o haviam de degradar. AO CURA DA SÉ QUE ERA NAQUELLE TEMPO, INTRODUZIDA ALI POR DINHEYRO, E COM PRESUNÇÕES DE NAMORADO SATYRIZA O POETA COMO CREATURA DO PRELADO. O Cura, a quem toca a cura de curar esta cidade, cheia a tem de enfermidade tão mortal, que não tem cura: dizem, que a si só se cura de uma natural sezão, que lhe dá na ocasião de ver as Moças no eirado, com que o Cura é o curado, e as Moças seu cura são. Desta meizinha se argúi, que ao tal Cura assezoado mais lhe rende o ser curado, que o Curado, que possui, grande virtude lhe influi o curado exterior: mas o vício interior Amor curá-lo procura, porque Amor todo loucura, se a cura é de louco amor. Disto cura o nosso Cura, porque é curador maldito, mas ao mal de ser cabrito nunca pôde dar-lhe cura: É verdade, que a tonsura meteu o Cabra na Sé, e quando vai dizer "Te Deum laudamus" aos doentes,

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se lhe resvela entre dentes, e em lugar de Te diz me. Como ser douto cobiça, a qualquer Moça de jeito onde pôs o seu direito, logo acha, que tem justiça: a dar-lhe favor se atiça, e para o fazer com arte, não só favorece a parte, mas toda a prosápia má, se justiça lhe não dá, lhe dá direito, que farte. Porque o demo lhe procura tecer laços, e urdir teias, não cura de almas alheias, e só do seu corpo cura: debaixo da capa escura de um beato capuchinho é beato tão maligno o cura, que por seu mal com calva sacerdotal é sacerdote calvino. Em um tempo é tão velhaco, tão dissimulado, e tanto, que só por parecer santo canoniza em santo um caco: se conforme o adágio fraco ninguém pode dar, senão aquilo, que tem na mão, claro está que no seu tanto não faria um ladrão santo, senão um Santo Ladrão. Estou em crer, que hoje em dia já os cânones sagrados não reputam por pecados pecados de simonia: os que vêem tanta ousadia, com que comprados estão os curados mão por mão, devem crer, como já creram, que ou os cânones morreram, ou então a Santa unção. AO ILLUSTRISSIMO D. FR. JOÃO DA MADRE DE DEOS MUDANDO-SE PARA O SEU NOVO PALACIO, QUE COMPROU. Sacro Pastor da América florida, Que para o bom regímen do teu gado De exemplo fabricastes o cajado, E de frauta te sene a mesma vida. Outros tua virtude esclarecida Cantem: mas teu palácio por sagrado Cante Apolo de raios coroado Na musa humilde de álamos cingida. Gusano a tua folha me alimente,

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Tua sombra me ampare peregrino, Passarinho o teu ramo me sustente. Tecerei tua historia em ouro fino, De meus versos serás templo freqüente, Onde glórias te cante de contino. O DEÃO ANDRE GOMES CAVEYRA SE INTRODUZIO DE TAL MODO COM ÊSTE PRELADO EM DESABONO DO POETA, QUE ESTIMULANDO O DITO FÊZ O SEGUINTE. MOTE O mundo vai-se acabando, cada qual olhe por si, porque dizem, que anda aqui uma Caveira falando. Chegou o nosso Prelado tão galhardo, e tão luzido, tão douro, e esclarecido, tão nobre, e tão ilustrado, e não houve Prebendado, que para o ir enganando se lhe não fosse chegando; mas só Caveira asnaval é, quem co Prelado val: O mundo vai-se acabando. Como não há de acabar-se, se uma Caveira tão feia ao Prelado galanteia a risco de enamorar-se! onde se viu galantear-se o roxete carmesi pela caveira de Heli? não é mentira, é verdade; pois para seguridade cada qual olhe por si. Olhe por si cada qual, e não se dêem por seguros, sabendo, que anda extramuros esta Caveira infernal: ela anda pelo arrebal, e dacolá para aqui, eu por mil partes a vi: o leigo, o frade, e o monge não a imaginem de longe, Porque dizem, que anda aqui. Aqui anda, e aqui está rosnando sempre entre nós, Deão com cara de algoz, e pertensões de Bispá: ele é, o que os pontos dá,

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e os vícios vai acusando com zelo torpe, e nefando, com que nos bota a perder: porque quem não há de crer Uma Caveira falando. COMO ACREDITOU ESTE PRELADO MAIS OS MEXERICOS DE CAVEYRA, DO QUE AS LIZONJAS DO POETA, LHE FEZ ESTA SÁTIRA. Eu, que me não sei calar, mas antes tenho por míngua, não purgar-se qualquer língua a risco de arrebentar: vos quero, amigo, contar, pois sois o meu secretário, um sucesso extraordinário, um caso tremendo, e atroz; porém fique aqui entre nós. Do Confessor Jesuíta, que ao ladrão do confessado não só absolve o pecado, mas os furtos lhe alcovita: do Percursor da visita, que na vanguarda marchando vai pedindo, e vai tirando, o demo há de ser algoz: porém fique aqui entre nós. O ladronaço em rigor não tem para que o dizer furtos, que antes de os fazer, já os sabe o confessor: cala-os para ouvir melhor, pois com ofício alternado confessor, e confessado ali se barbeiam sós: porém fique aqui entre nós. Aqui o Ladrão consente sem castigo, e com escusa, pois do mesmo se lhe acusa o confessor delinqüente: ambos alternadamente um a outro, e outro a um o pecado, que é comum confessa em comua voz: porém fique aqui entre nós. Um a outro a mor cautela vem a ser neste acidente confessor, e penitente, porque fique ela por ela: o demo em tanta mazela diz: faço, porque façais, absolvo, porque absolvais, pacto inopinado pôs; porém fique aqui entre nós. Não se dá a este Ladrão penitência em caso algum, e somente em um jejum

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se tira a consolação: ele estará como um cão de levar a bofetada: mas na cara ladrilhada emenda o pejo não pôs: porém fique aqui entre nós. Mecânica disciplina vem a impor por derradeiro o confessor marceneiro ao pecador carapina: e como qualquer se inclina a furtar, e mais furtar, se conjura a escavacar as bolsas um par de enxós: porém fique aqui entre nós. O tal confessor me abisma, que releve, e não se ofenda, que um Frade Sagrado venda o sagrado óleo da crisma: por dinheiro a gente crisma, não por cera, havendo queixa, que nem a da orelha deixa, onde crismando a mão pôs: porém fique aqui entre nós. Que em toda a Franciscania não achasse um mau Ladrão, quem lhe ouvisse a confissão, mais que um padre da panhia! nisto, amigo, há simpatia, e é, porque lhe veio a pêlo, que um atando vá no orelo, e outro enfiando no cós: porém fique aqui entre nós. Que tanta culpa mortal se absolva! eu perco o tino, pois absolve um Teatino pecados de pedra, e cal: quem em vida monacal quer dar à Filha um debate condenando em dote, ou date vem a dar-lhe o pão, e a noz; porém fique aqui entre nós. As Freiras com santas sedes saem condenadas em pedra, quando o ladronaço medra roubando pedra, e paredes: vós, amigo, que isto vedes, deveis a Deus graças dar por vos fazer secular, e não zote de albernoz: porém fique aqui entre nós. LOUVA O POETA O SERM ÃO, QUE PREGOU CERTO MESTRE NA FESTA, QUE A JUSTIÇA FAZ, AO SPIRITO SANTO NO CONVENTO DO CARMO NO ANO 1686. Alto sermão, egrégio, e soberano

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Em forma tão civil, tão erudita, Que sendo o pregador um carmelita, Julguei eu, que pregava um Ulpiano. Não desfez Alexandre o nó Gordiano, Co'a espada o rompeu (traça esquisita) Soltais na forma legal, e requisita Soltais o nó do magistrado arcano. Ó Príncipes, Pontífices, Monarcas, Se o Mestre excede a Bártolos, e Abades Vesti-lhe a toga, despojai-lhe alparcas. Rompam-se logo as leis das Majestades, Ouçam Ministros sempre os Patriarcas, Pois mais podem, que leis, autoridades. CELEBRA O POETA (ESTANDO HOMIZIADO NO CARMO), A BURLA, QUE FIZERAM OS RELIGIOSOS COM UMA PATENTE FALSA DE PRIOR A FREI MIGUEL NOVELLOS, APELIDADO O LATINO POR DIVERTIMENTO EM HUM DIA DE MUYTA CHUVA. Victor, meu Padre Latino, que só vós sabeis latim, que agora se soube enfim, para um breve tão divino: era num dia mofino de chuva, que as canas rega, eis a patente aqui chega, e eu por milagre o suspeito na Igreja Latina feito, para se pregar na grega. Os sinos se repicaram de seu moto natural, porque o Padre Provincial, e outros Padres lhe ordenaram: os mais Frades se abalaram a lhe dar obediência, e eu em tanta complacência, por não faltar ao primor, dizia a um Victor Prior, Victor, vossa Reverência. Estava aqui retraído o Doutor Gregório, e vendo um breve tão reverendo ficou co queixo caído: mas tornando em seu sentido de galhofa perenal, que não vi patente igual, disse: e é cousa patente, que se a patente não mente, é obra de pedra, e cal. Vctor, Victor se dizia, e em prazer tão repentino, sendo os vivas ao latino soavam a ingresia: era tanta a fradaria, que nesta casa Carmela

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não cabia refestela, mas recolheram-se enfim cada qual ao seu celim, e eu fiquei na minha cela. AO VIGARIO DA VILLA DE S. FRANCISCO POR HUMA PENDENCIA, QUE TEVE COM HUM OURIVES A RESPEYTO DE HUMA MULATA, QUE SE DIZIA CORRER POR SUA CONTA. Naquele grande motim, onde acudiu tanta gente, a título de valente também veio valentim: puxou pelo seu faim, e tirando-lhe a barriga, você se quer, que lho diga, disse ao Ourives da prata, na obra desta Mulata mete muita falsa liga: Briga, briga. É homem tão desalmado, que por lhe a prata faltar, a estar sempre a trabalhar bate no vaso sagrado: não vê que está excomungado, porque com tanta fadiga a peça da igreja obriga numa casa excomungada com censura reservada, pela qual Deus o castiga: Briga, briga. Porque com modos violentos a um vigário tão capaz sobre quatro, que já traz, cornos, lhe põe quatrocentos! deixe-se desses intentos, e reponha a rapariga, pois a repô-la se obriga, quando afirma, que a possui, e se a razão não conclui, vai esta ponta à barriga: Briga, briga. Senhor Ourives, você não é ourives da prata? pois que quer dessa Mulata, que cobre, ou tambaca é? Restitua a Moça, que é peça da Igreja antiga: restitua a rapariga, que se vingará o Vigário talvez no confessionário, e talvez na desobriga: Briga, briga. A Mulata já lhe pesa de trocar odre por odre, pois o leigo é membro podre, e o Padre membro da igreja: sempre esta telha goteja, sempre dá grão esta espiga,

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e a bola da rapariga quer desfazer esta troca, e deixando a sua toca quer fazer co Padre liga Briga, briga. Largai a Mulata, e seja logo logo a bom partido, que como tem delinqüido se quer acolher à igreja: porque todo o mundo veja, que quando a carne inimiga tenta a uma rapariga, quer no cabo, quer no rabo a Igreja vence ao diabo com outra qualquer cantiga. Briga, briga. A OUTRO VIGARIO DE CERTA FREGUEZIA, CONTRA QUEM SE AMOTINÁVAM OS FREGUEZES POR SER MUYTO AMBICIOSO. Reverendo vigário, Que é título de zotes ordinário, Como sendo tão bobo, E tendo tão larguíssimas orelhas, Fogem vossas ovelhas De vós, como se fôsseis voraz Lobo. O certo é, que sois Pastor danado, E temo, que se a golpe vem de fouce, Vos há de cada ovelha dar um couce: Sirva de exemplo a vosso desalinho, O que ovelhas têm feito ao Padre Anjinho, Que por sua tontice, e sua asnia o tem já embolsado na euxovia; Porém a vós, que sois fidalgo asneiro, Temo, que hão de fazer-vos camareiro. Quisestes tosquear o vosso gado, E saístes do intento tosqueado; Não vos cai em capelo, O que o provérbio tantas vezes canta, Que quem ousadamente se adianta. Em vez de tosquear fica sem pêlo? Intentastes sangrar toda a comarca, Mas ela vos sangrou na veia d'arca Pois ficando faminto, e sem sustento, Heis de buscar a dente qual jumento Erva para o jantar, e para a ceia, E se talvez o campo a escasseia, Mirrado heis de acabar no campo lhano, Fazendo quarentena todo o ano: Mas então poderá vossa porfia Declarar aos Fregueses cada dia. Sois tão grande velhaco, Que a pura excomunhão meteis no saco: Já diz a freguesia, Que tendes de Saturno a natureza, Pois os Filhos tratais com tal crueza, Que os comeis, e roubais, qual uma harpia;

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Valha-vos; mas quem digo, que vos valha? Valha-vos ser um zote, e um canalha: Mixelo hoje de chispo, Ontem um passa-aqui do Arcebispo. Mas oh se Deus a todos nos livrara De Marão com poder, vilão com vara! Fábula dos rapazes, e bandarras, conto do lar, cantiga das guitarras. Enquanto vos não parte algum corisco, Que talvez vos despreza como cisco, E fugindo a vileza desse couro, Vos vai poupando a cortadora espada, Azagaia amolada, A veloz seta, o rápido pelouro: Dizei a um confessor dos aprovados, Vossos torpes pecados, Que se bem o fazeis, como é preciso Fareis um dia cousa de juízo: E uma vez confessado, Como vos tenha Deus já perdoado, Todos vos perdoaremos Os escândalos mil, que de vós temos, E comendo o suor de vosso rosto Dareis a Deus prazer, aos homens gosto. AO VIGARIO ANTONIO MARQUES DE PERADA ENCOMENDADO NA IGREJA DA Va DE S. FRANCISCO AMBICIOSO, E DESCONHECIDO. Da tua Perada mica não te espantes, que me enoje, porque é força, que a entoje sendo doce de botica: o gosto não se me aplica a uma conserva afamada, e em botes tão redomada, que sempre por ter que almoces, achas para tão maus doces a tutia preparada. Se tua Tia arganaz te fez essa alcomonia, com colher não ta faria, com espátula ta faz: criaste-te de rapaz co pingue dessas redomas, e hoje tal asco lhe tomas, que tendo uma herança rica hás raízes da botica, contudo não tens, que comas. Teu juízo é tão confuso, que quando a qualquer cristão lhe entra o uso de rezão, de então lhe perdeste o uso: sempre foste tão obtuso, que já desde estudantete te tinham por um doudete, porque eras visto por alto, na fala falso contralto, na vista fino falsete.

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Correndo os anos cresceste, e se dizia em sussurro, que era o teu crescer de burro, pois cresceste, e aborreceste: logo em tudo te meteste, querendo ser eminente nas artes, que estuda a gente, mas deixou-te a tua asnia Abel na filosofia, na poesia inocente. Deram-te as primeiras linhas versos de tão baixa esfera, que o seu menor erro era serem feitos às Negrinhas: com estas mesmas pretinhas, por mais que te desbatizes, gastaste os bens infelizes do Marquês fino herbolário, porque todo o Boticário é mui rico de raízes. Sendo um zote tão supino, és tão confiado alvar, que andas por i a pregar geringonças ao divino: pregas como um capuchino, porque essa traça madura um curado te assegura, crendo Sua Senhoria, que a botica te daria as virtudes pare a cura. Mas ele se acha enganado, porque vê evidentemente, que os botes para um doente são, mas não pare um curado: entraste tao esfaimado a comer do sacrifício, que todo o futuro ofício cantaste sobre fiado, pelo tirar de contado ao dono do benefício. Nenhuma outra cousa é este andar dos teus alparques, mais que ser Filho de Marques vizinho da Santa Sé: outro da mesma ralé tão Marques, e tão bribante te serve agora de Atlante, porque para conjurer-se, é facil de congregar-se um com outro semelhante. AO PADRE DAMASO DA SYLVA PARENTE DO POETA, E SEU OPPOSTO, HOMEM DESBOCCADO, E PRESUNÇOSO COM GRANDES IMPLUSOS DE SER SER VIGARIO, SENDO POR ALGUM TEMPO EM NOSSA SENHORA DO LORETO. Dâmaso, aquele madraço, que em pés, mãos, e mais miúdos

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pode bem dar seis, e ás ao major Frisão de Hamburgo: Cuja boca é mentideiro, onde acode todo o vulgo a escutar sobre la tarde las mentiras como punho: Mentideiro freqüentado de quantos senhores burros perdem o nome de limpos pela amizade de um sujo. Cuja língua é relação aonde acham os mais puros para acusar um fiscal para cortar um verdugo. Zote muito parecido aos vícios todos do mundo, pois nunca os alheios corta, sem dar no seu próprio escudo: Santo Antônio de baeta, que em toda a parte do mundo os casos, que sucederam, viu, e foi presente a tudo: O Padre papa jantares, hóspede tão importuno, que para todo o banquete traz sempre de trote o bucho: Professo da providência, que sem lograr bazaruco, para passar todo um ano nem dous vinténs faz de custo: Que os amigos o sustentam, e lhe dão como de juro o jantar, quando lhes cabe a cada qual por seu turno. Essa vez, que tem dinheiro, que é de sete em sete lustros: três vinténs com um tostão, ou dous tostões quando muito: Com um vintém de bananas, e de farinha dous punhos, para passar dia, e meio tem certo o pão, e conduto: Lisonjeiro sem recato adulador sem rebuço, que por papar-lhe um jantar de um sacristão faz um Núncio: De um Tambor um General, um Branco de um Mamaluco, de uma senzala um palácio, e um galeão de um pantufo. Em passando a ocasião, tendo já repleto o bucho, desanda co'a taramela, e a todos despe de tudo: Outro sátiro de Esopo, Que co mesmo bafo astuto Esfriava o caldo quente, E aquentava o frio punho: O Zote, que tudo sabe O grande Jurisconsulto Dos Litígios fedorentos Desta cidade monturo: O Bártolo de improviso, O subitâneo Licurgo, Que anoitece um sabe-nada, E amanhece um sabe-tudo: O Letrado gratis dato, e o que com saber infuso quer ser Legista sem mestre, canonista sem estudo:

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Agraduado de douto na academia dos burros, que é braba universidade para doutorar brandúzios: desaforado sem susto, entremetido sem riso, e sem desar abelhudo: Filho da puta com dita, alcoviteiro sem lucro, cunhado do Mestre-Escola, parente que preza muito. Fraquíssimo pelas mãos, e valentão pelo vulto, no corpo um grande de Espanha, no sangue escória do mundo. Este tal, de quem falamos, como tem grandes impulsos de ser batiza-crianças, para ser soca-defuntos: A Majestade d'El-Rei tem já com mil esconjuros ordenado, que o não colem nem numa igreja de juncos. Ele por matar desejos foi-se ao adro devoluto da Senhora do Loreto, onde está Pároco intruso: Ouvir é um grande prazer, e vê-lo é um gosto sumo, quando diz "os meus fregueses" sem temor de um abrenuntio. Item é um grande prazer nas manhãs, em que madrugo vê-lo repicar o sino, para congregar o vulgo. E como ninguém acode, se fica o triste mazulo em solitária estação dizendo missa aos defuntos: Quando o Frisão considero, o menos que dele cuido, é ser Pároco boneco feito de trapos imundos. RETRATO DO MESMO CLERIGO. Pois me enfada o teu feitio, quero, Frisão, neste dia retratar-te em quatro versos as maravi, maravi, maravilhas. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão, da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. A cara é um fardo de arroz, que por larga, e por comprida é ração de um Elefante vindo da Índia. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas

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A boca desempenada é a ponte de Coimbra, onde não entram, nem saem, mais que mentiras. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. Não é a língua de vaca por maldizente, e maldita, mas pelo muito, que corta de Tiriricas. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. No corpanzil torreão a natureza prevista formou a fresta da boca para guarita. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. Quisera as mãos comparar-lhe às do Gigante Golias, se as do Gigante não foram tão pequeninas. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas Os ossos de cada pé encher podem de relíquias para toda a cristandade as sacristias. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. É grande conimbricense, sem jamais pôr pé em Coimbra, e sendo ignorante sabe mais que galinha. Ouçam, olhem, venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. Como na lei de Mafoma não se argumenta, e se briga ele, que não argumenta, tudo porfia. Ouçam, olhem,

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venham, venham, verão o Frisão da Bahia, que está retratado às maravi, maravi, maravilhas. AO MESMO CLERIGO APPELLIDANDO DE ASNO AO POETA Padre Frisão, se vossa Reverência Tem licença do seu vocabulário Para me pôr um nome incerto, e vário, Pode fazê-lo em sua consciência: Mas se não tem licença, em penitência De ser tão atrevido, e temerário Lhe quero dar com todo o Calendário, Mais que a testa lhe rompa, e a paciência. Magano, infame, vil alcoviteiro, Das dodas corretor por dous tostões, E enfim dos arreitaços alveitar: Tudo isto é notório ao mundo inteiro, Se não seres tu obra dos culhões De Duarte Garcia de Bivar. AO MESMO COM PRESUNÇÕES DE SABIO, E INGENHOSO. Este Padre Frisão, este sandeu Tudo o demo lhe deu, e lhe outorgou, Não sabe musa musae, que estudou, Mas sabe as ciências, que nunca aprendeu. Entre catervas de asnos se meteu, E entre corjas de bestas se aclamou, Naquela Salamanca o doutorou, E nesta salacega floresceu. Que é um grande alquimista, isso não nego, Que alquimistas do esterco tiram ouro, Se cremos seus apógrafos conselhos. E o Frisão as Irmãs pondo ao pespego, Era força tirar grande tesouro, Pois soube em ouro converter pentelhos. A OUTRO CLERIGO AMIGO DO FRIZÃO, QUE SE DEZIA ESTAR AMANCEBADO DE PORTAS ADENTRO COM DUAS MULHERES COM HUMA NEGRA, E OUTRA MULATA. A vós, Padre Baltasar, vão os meus versos direitos, porque são vossos defeitos mais que as areias do mar: e bem que estais num lugar tão remoto, e tão profundo

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com concubinato imundo, como sois Padre Miranda, o vosso pobre tresanda pelas conteiras do mundo. Cá temos averiguado, que os vossos concubinatos são como um par de sapatos um negro, outro apolvilhado: de uma, e outra cor calçado saís pela porta fora, hora negra, e parda hora, que um zote camaleão toda a cor toma, senão que a da vergonha o não cora. Vossa luxúria indiscreta é tão pesada, e violenta, que em dous putões se sustenta uma Mulata, e uma Preta: c’uma puta se aquieta o membro mais desonesto, porém o vosso indigesto, há mister na ocasião a negra para trovão, e a parda para cabresto. Sem uma, e outra cadela não se embarca o Polifemo, porque a negra o leva a remo, e a mulata o leva a vela: ele vai por sentinela, porque elas não dêem a bomba; porém como qualquer zomba do Padre, que maravilha, que elas disponham da quilha, e ele ao feder faça tromba. Elas sem mágoa, nem dor lhe põem os cornos em pinha, porque a puta, e a galinha, têm o ofício de pôr: ovos a franga pior, cornos a puta mais casta, e quando a negra se agasta, e c’o Padre se disputa, lhe diz, que antes quer ser puta, que fazer com ele casta. A negrinha se pespega c’um amigão de corona, que sempre o Frisão se entona, que ao maior amigo apega: a mulatinha se esfrega c’um mestiço requeimado destes do pernil tostado, que a cunha do mesmo pau em obras de bacalhau fecha como cadeado. Com toda esta cornualha diz ele cego do amor, que as negras tudo é primor, e as brancas tudo canalha:

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isto faz a erva, e palha, de que o burro se sustenta, que um destes não se contenta salvo se lhe dão por capa para a rua numa gualdrapa, para a cama uma jumenta. Há bulhas mnito renhidas em havendo algum ciúme, porque ele sempre presume de as ver sempre presumidas: mas elas de mui queridas vendo, que o Padre de borra em fogo de amor se torra, andam por negar-lhe a graça elas com ele de massa, se ele com elas à porra. Veio uma noite de fora, e achando em seu vitupério a mulata em adultério tocou alarma por fora: e por que pegou com mora no raio do chumbo ardente, foi-se o cão seguramente: que como estava o coitado tão leve, e descarregado se pôde ir livremente. Porque é grande demandão o senhor zote Miranda, que tudo, o que vê demanda, seja de quem for o chão: por isso o Padre cabrão de contino está a jurar que os cães lhe hão de pagar, e que as fodas, que tem dado, lhas hão de dar de contado, e ele as há de recadar. AO PADRE MANUEL ALVARES CAPELLÃO DA MARAPÉ REMOQUEANDO AO POETA HUMA PEDRADA QUE LHE DERAM DE NOYTE ESTANDO SE PROVENDO: E PERGUNTANDOLHE PORQUE SE NÃO SATYRIZAVA DELLA! ESCANDALIZADO, E PICADO, PORQUE O POETA HAVIA SATYRIZADO OS CLERIGOS, QUE VINHÃO DE PORTUGAL. Não me espanto, que você, meu Padre, e meu camarada, me desse a sua cornada sendo rês de Marapé: mas o que lhe lembro, é, que se acaso a carapuça da sátira se lhe aguça, e na testa se ajustou, a chuçada eu não lhe dou, você se meta na chuça. E se por estes respeitos diz, que versos não farei à pedrada, que eu levei quando fazia os meus feitos: agora os dará por feitos, pois eu de boga arrancada

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a uma, e outra pedrada os faço, à que levei já, e à que agora você dá, que é inda maior pedrada. Era pelo alto serão, fazia um luar tremendo, quando eu estava fazendo ou câmara, ou vereação: não sei, que notícia então teve um Moço, um boa-peça, pôs-se à janela com pressa tão sem propósito algum, que quis ter comigo um quebradeiro de cabeça. Cum torrão na mão se apresta, e tirando-o com seu momo me fez o memento homo, pondo-me a terra na testa: fez-me uma pequena fresta, de que arto Sangue corria, mas eu disse, quem seria um Médico tão sem lei, que primeiro me purguei, do que levasse a sangria. Ergui-me com pressa tanta, que um amigo me gritou, inda agora se purgou, tão depressa se levanta? Sim, Senhor, de que se espanta? Se este Médico, este tramposo é médico tão forçoso, que faz levantar num dia depois de curso, e sangria ao doente mais mimoso. Este caso, e desventura foi na verdade, contado, e sendo eu por mim curado, o Moço me deu a cura: com uma, e outra brabura jurei, e prometi, que lhe daria um pontapé: mas o Moço acautelado me deixou calamocado para servir a você. ENTRA AGORA O POETA A SATIRIZAR O DITO PADRE. Reverendo Padre Alvar, basta, que por vossos modos saís a campo por todos os Mariolas de altar? mal podia em vos falar, quem notícia, nem suspeita tem d’asno de tão má seita: mas como vos veio ao justo a sátira, estais com susto, de que por vós fora feita.

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Convosco a minha camena não fala, se vos não poupa, porque sois mui fraca roupa para alvo da minha pena: se alguém se queima, e condena, por que vê, que os meus apodos vão frisando por seus modos, ninguém os tome por si, um pelo outro isso si, que assim frisarão com todos. Vós com malícia veloz aplicai-o a um coitado, que este tal terá cuidado de vo-lo aplicar a vós: desta aplicação atroz de um por outro, e outro por um, como não livrar nenhum, ninguém do Poeta então se virá a queixar, senão do poema que é comum. Bonetes na minha mão, como os lanço ao ar direitos, caindo em vários sujeitos nuns servem, e noutros não: não consiste o seu senão, nem menos está o seu mal na obra, ou no oficial, está na torpe cabeça, que se ajusta, e endereça pelos moldes de obra tal. E pois, Padre, vos importa nos meus moldes não entrar, deveis logo endireitar a cabeça, que anda torta: mas sendo uma praça morta, e um zotíssimo ignorante vir-vos-á a Musa picante a vós, Padre mentecapto, de molde como sapato, e ajustada como um guante. Outra vez vos não metais sentir alheios trabalhos, que dirão, que comeis alhos galegos, pois vos queimais: e porque melhor saibais, que os zotes, de que haveis dor, são de abatido valor, vede nos vossos sentidos, quais serão os defendidos, sendo vós o defensor. AO PADRE MANUEL DOMINGUES LOUREYRO QUE REHUSANDO IR POR CAPELLÃO PARA ANGOLLA POR ORDEM DE SUA ILUSTRISSIMA, FOY AO DEPOIS PREZO, E MALTRATADO, PORQUE RESISTIO AS ORDENS DO MESMO PRELADO. Para esta Angola enviado vem por força do destino, um marinheiro ao divino,

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ou mariola sagrado: com ser no monte gerado o espírito lhe notei, que com ser besta de lei, tanto o ser vilão esconde, que vem da vila do conde morar na casa d'EI-Rei. Por não querer embarcar com ousadia sobeja atado das mãos da Igreja veio ao braço secular: a empuxões, e a gritar deu baque o Padre Loureiro: riu-se muito o carcereiro, mas eu muito mais me ri, pois nunca Loureiro vi enxertado em Limoeiro. No argumento, com que vem da navegação moral, diz bem, e argumenta mal, diz mal, e argumenta bem: porém não cuide ninguém, que com tanta matinada deixou de fazer jornada, porque a sua teima astuta o pôs de coberta enxuta, mas mal acondicionada. O Mestre, ou o capitão (diz o Padre Fr. Orelo), que há de levar um capelo, se não levar capelão: vinha branco, e negro pão diz, que no mar fez a guerra, pois logo sem razão berra, quando na passada mágoa trouxe vinho como água, e farinha como terra. Com gritos a casa atroa, e quando o caso distinga, quer vomitar na moxinga, antes que cagar na proa: querer levá-lo a Lisboa com brandura, e com carinho, mas o Padre é bebedinho, e ancorado a porfiar diz, que não quer navegar salvo por um mar de vinho. Aquentou muito a História sobre outras ações velhacas ter-lhe aborcado as patacas .- o magano do Chicória: mas sendo a graça notória, diz o Padre na estacada, que ficarão a pancada, quando um, e outro desfeche se o Loureiro de escabeche, o Chicória de selada. AO VIGARIO DA MADRE DE DEOS MANUEL RODRIGUES SE

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QUEYXA O POETA DE TREZ CLERIGOS QUE LHE FORAM A CASA PELA FESTA DO NATAL, ONDE TAMBEM ELLE ESTAVA E COM GALANTARIA O PERSUADE, A QUE SACUDA OS HOSPEDES FORA DE CASA PELO GASTO, QUE FAZIAM. Padre, a casa está abrasada, porque é mais danosa empresa pôr três bocas numa mesa, que trezentas numa espada: esta trindade sagrada, com que toda a case abafa a tomara ver já safa, porque à casa não convém trindade, que em si contém três Pessoas, e uma estafa. Vós não podeis sem dar pena pôr à mesa três Pessoas, nem sustentar três coroas em cabeça tão pequena: se a fortuna vos condena, que vejais a casa rasa com gente, que tudo abrasa, não sofro, que desta vez vos venham coroas três fazer princípio de casa. Se estamos na Epifania, e os três coroas são Magos, hão de fazer mil estragos no caju, na valancia: mágica é feitiçaria, e a terra é tão pouco esperta, e a gentinha tão incerta, que os três a vosso pesar não vos hão de oferta dar, e hão de mamar-vos a oferta. O incenso, o ouro, a mirra que eles vos hão de deixar, é, que vos hão de mirrar, se vos não defende um irra: o Crasto por pouco espirra, porque é dado a valentão, e se lhe formos à mão no comer, e no engolir, aqui nos há de frigir como postas de cação. AOS MESMOS PADRES HOSPEDES ENTRE OS QUAIS VINHA O Pe PERICO, QUE ERA PEQUENINO. Vierarn Sacerdotes dous e meio Para a casa do grande sacerdote, Dous e meio couberam em um bote, Notável carga foi para o granjeiro. O barco, e o Arrais, que ia no meio, Tanto que em terra pôs um, e outro zote, Se foi buscar a vida a todo o trote, Deixando a carga, o susto, e o recreio.

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Assustei-me em ver tanta clerezia, Que como o trago enfermo de remela, Cuidei, vinham rezar-me a agonia. Porém ao pôr da mesa, e postos nela, Entendi, que vieram da Bahia Não mais que por papar a cabidela. AO MESMO VIGARIO GALANTEA O POETA FAZENDO CHISTES DE HUM MIMO, QUE LHE MANDÁRA BRITES HUMA GRACIOSA COMADRE SUA, ENTRE O QUAL VINHA PARA O POETA HUM CAJÚ. Ao Padre Vigário a flor, ao pobre Doutor o fruito, há nisto, que dizer, muito, e dirá muito o Doutor: tenho por grande favor, que a título de compadre deis, Brites, a flor ao Padre: mas dando-me o fruito a mim, o que se me deu assim, é força, que mais me quadre. Quadra-me, que o fruito influa, que uma flor, que eu não queria, Se dê, a quem principia e o fruito, a quem continua: se o fruito faz, que se argua, que eu sou o dono da planta, a flor seja tanto, ou quanta, sempre o dono a quer perdida, porque pelo chão caída faz, que o fruito se adianta. Quem é do fruito Senhor sabe as Leis d'agricultura, que todo o fruito assegura, e despreza toda a flor: e inda que chamam favor dar a sua flor a Dama àquele, por quem se inflama eu entendo de outro modo, e ao fruito mais me acomodo, que honra, e proveito se chama. Porque na testa vos entre o mistério, que isto encerra, quem me dá o fruito da terra, me pode dar do seu ventre: e porque se reconcentre este vaticínio imundo no vosso peito fecundo, digo qual bem augureiro, que quem me deu o primeiro, me pode dar o segundo. O Padre andou muito tolo em vos estimar a flor, porque era folha o favor, e o meu todo era miolo: com meu favor me consolo de sorte, e tão por inteiro, que afirmou por derradeiro,

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que um favor, e outro suposto, eu levo de vós o gosto, e o Padre vigário o cheiro. Eu do Vigário zombei, porque vejo, que levou uma flor, que se murchou, e eu o fruito vos papei: este exemplo lhe gravei, y este desengaño doy dela dicha, em que me estoy cantando a su flor ansi, que ayer maravilla fui, y oy sombra mia aun no soy. AO CELEBRE FR. JOANNICO COMPREHENDIDO EM LISBOA EM CRIMES DE SODOMITA. Furão das tripas, sanguessuga humana, cuja condição grave, meiga, e pia, sendo cristel dos Santos algum dia, hoje urinol dos presos vive ufana. Fero algoz já descortês profana Sua imagem do nicho da enxovia, Que esse amargoso traje em profecia Com a lombriga racional se dana. Ah, Joanico fatal, em que horoscopos, Ou porque à costa, ou porque à vante deste, Da camandola Irmão quebraste os copos. Enfim Papagaio humano te perdeste, Ou porque enfim darias nos cachopos, Ou porque em culis mundi te meteste. A FR. PASCOAL QUE SENDO ABBADE DE N. S. DAS BROTAS HOSPEDOU ALI COM GRANDEZA A D. ANGELA, E SEUS PAYS, QUE FORAM DE ROMARIA À AQUELLE SANTUARIO. Prelado de tan alta perfecion, Que supo em un aplauso, en un festin Congregar en su casa um serafin Cercado de tan alta relacion: Ya mas tenga en su cargo dissension, Ni en sus Fraylecitos vea motin: Ninguno Hijuelo suyo sea ruin, Y los crie en su santa bendicion. Llena estè la cosina de sarten, Y siempre el refectorio abunde en pan, Que bien merece Frayle tan de bien. A quien el sacro bago se le dan Regir la casa santa de Belen, Y que ya sela quite al soliman.

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A FR. THOMAZ D'APRESENTAÇÃO PREGANDO EM TERMOS LACÔNICOS A PRIMEYRA DOMINGA DA QUARESMA. Padre Tomás, se Vossa Reverência Nos pregar as Paixões desta arte mesma, Viremos a emender, que na Quaresma Não há mais pregador do que vossência. Pregar com tão lacônica eloqüência Em um só quarto, o que escrevo em resma, À fé, que o não fazia Frei Ledesma, Que pregava uma resma de abstinência. Quando pregar o vi, vi um São Francisco, Senão mais eficaz, menos chagado, E de o ter por um Anjo estive em risco. Mas como no pregar é tão azado, Achei, que no evangélico obelisco É Cristo no burel ressuscitado. HUM AMIGO DESTE RELIGIOSO PEDIO AO POETA SUAS APROVAÇÕES SOBRE A MESMA PREDICA, A PEDITORIO DO MESMO PREGADOR NESTE. MOTE Louvar vossas orações é próprio do Pregador, e a mim me dá mais temor o Pregador, que os sermões. Só o vosso entendimento vos pode Tomás louvar, e eu se pudera imitar qualquer vosso pensamento: para mostrar seu talento fez um círculo em borrões Apeles com dous carvões; quem vira uma risca vossa? Riscai vós, para que eu possa Louvar vossas orações. A causa é melhor, que o efeito na boa filosofia, e assim é vossa energia menor, que o vosso sujeito: logo se no humano peito não há alcançar o primor nas obras de tal autor, mal a causa alcançarão, pois o pregar do sermão É próprio do Pregador.

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Se louvo vossa alta idéia, sou culpado em me atrever, e sou culpado em meter, a fouce em seara alheia: nesta empresa, em que receia entrar o engenho major, entra o néscio sem pavor, porque a louca valentia dá ao néscio a ousadia, E a mim me dá mais temor. Ou cobarde, ou atrevido, ou ousado, ou não ousado hei de dizer empenhado, o que calava entendido: um amigo a vós rendido pede a vossas orações as minhas aprovações, e eu calando lhe obedeço, porque fique em maior preço O Pregador, que os sermões. O MESMO AMIGO PEDIO AO POETA EM OUTRA OCCASIÃO LHE GLOZASSE ESTE MOTTE, CUJA MATERIA FOY HAVER TRIUNFADO O DITO FR. THOMAZ DE CERTA OPPOSIÇÃO CAPITULAR. MOTE Nuvens, que em oposição o sol querem desluzir, seus raios sabem sentir por ser seu cuidado em vão. No Céu pardo de Francisco pardo à força de nublados há vapores humilhados, e soberbos com seu risco: o soberbo ao sol arisco se põe, e o humilhado não, e o sol menos queima então as nuvens, que chegar vê em acatamentos, que Nuvens, que em oposição. As nuvens, que se lhe opõem com tão néscio atrevimento, o sol de um raio violento queima, abrasa, e descompõe: tudo o mais o sol dispõe pare o manter, e cobrir criar, e reproduzir, e com razão não tem fé co’as nuvens ingratas, que O sol querem desluzir. O sol por sua altiveza, e nativo luzimento não recebe abatimento e abatê-lo é louca empresa: quando se atreve a vileza

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do vapor, que o vai seguir na nuvem, que o quer cobrir, se a subir não tem desmaios, ao resistir dos seus raios Seus raios sabem sentir. Sentem com tanto pesar, que têm por melhor partido não haver ao sol subido que subir para baixar: era força escarmentar na queda de Faetão, e na Icária perdição, que estes outros se arruinaram, quando ao sol subir cuidaram, Por ser seu cuidado em vão. AO SOBREDITO RELIGIOSO DESDENHANDO CRITICO DE HAVER GONÇALLO RAVASCO, E ALBUQUERQUE NA PRESENÇA DE SUA FREYRA VOMITADO HUMAS NAUSEAS, QUE LOGO COBRIO COM O CHAPEO. Quem vos mete, Fr. Tomás, em julgar as mãos de amor, falando de um amador que pode dar-vos seis e ás? Sendo vós disso incapaz, quem vos mete, Fr. Franquia, julgar, se foi policia o vômito, que arrotastes, se quando vós o julgastes, vomitastes uma asnia: Sabeis, por que vomitou aquele amante em jejum? lembrou-lhe o vosso budum, e a lembrança o enjoou; e porque considerou, que o tal budum vomitado era um fedor refinado, por não ver poluto um céu, o cobriu com seu chapéu, e em cobri-lo o fez honrado. Vós sois um pantufo em zancos, mais oco do que um tonel, e se estudais no burel, entendereis de tamancos: que as ações dos homens brancos, tão brancos como Fuão, não as julga um maganão criado em um oratório, julgador de refectório, que dá o nosso Guardião. O que sabeis, Frei Garrafa, é a traça, e a maneira, com que estafais uma Freira, dizendo, que vos estafa: vós saís com a manga gafa do palangana, e tigela d'ovos moles com canela,

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e tão mal correspondeis, que esse tempo, que a comeis, são as têmporas para ela. Item sabeis tresladar falto de próprios conselhos de trezentos sermões velhos um sermão para pregar: e como entre o pontear, e cirgir obras alheias se enxergam vossas idéias, mostrais pregando de falso, que sendo um Frade descalço, andais pregando de meias. E pois vossa Reverência quis ser julgador de nora, tenha paciência, que agora se lhe tira a residência: e inda que a minha clemência se há com dissimulação, livre-se na relação dos cargos, em que é culpado ser glutão como um capado, como um bode fodinchão. A CERTO FRADE NA VILLA DE SAM FRANCISCO, A QUEM HUA MOÇA FINGINDOSE AGRADECIDA À SEUS REPETIDOS GALANTEYOS, LHE MANDOU EM SIMULAÇÕES DE DOCE HUMA PANELLA DE MERDA. Reverendo Frei Antônio se vos der venérea fome, praza a Deus, que Deus vos tome, como vos toma o demônio: uma purga de antimônio devia a moça tomar, quando houve de vos mandar um mimo, em que dá a emender, que já vos ama, e vos quer tanto, como o seu cagar. Fostes-vos mui de lampeiro vós, e os amigos de cela ao miolo da panela, e achastes um camareiro: metestes a mão primeiro, de que vos desenganásseis, e foi bem feito, que achásseis, cagalhões, que então sentistes, porque aquilo, que não vistes, quis o demo, que cheirásseis. A hora foi temerária, o caso tremendo, e atroz, e essa merda para vós se não serve, é necessária: se a peça é mui ordinária, eu de vós não tenho dó: e se não dizei-me: é pó mandar-vos a ponto cru a Moça prendas do cu, que tão vizinho é do có?

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Se vos mandara primeiro o mijo num panelão, não ficáreis vós então mui longe do mijadeiro: mas a um Frade malhadeiro sem correia, nem lacerda, que não sente a sua perda, seu descrédito, ou desar, que havia a Moça mandar, senão merda com mais merda? Dos cagalhões afamados diz esta plebe inimiga, que eram de ouro de má liga não dobrões, porém dobrados: aos Fradinhos esfamiados, que abrindo a panela estão, daí por cabeça um dobrão, e o mais mandai-o fechar; que por isso, e por guardar, manhã serei guardião. Se os cagalhões são tão duros, tão gordos, tão bem dispostos, é, porque hoje foram postos, e ainda estão mal maduros: que na enxurrada dos tais é de crer, que abrandem mais, porque a Moça cristãmente não quer, que quebreis um dente, mas deseja, que os comais. O CERTO FRADE QUE GALANTEANDO HUAS SENHORAS NO CONVENTO DE ODIVELAS, LHES ENTREGOU HABITO, E MENORES PARA UM FINGIDO ENTREMEZ, E CONHECENDO O CHASCO, EM ALTA NOYTE DEO EM CANTAR O MISERERE, BORRANDO, E OURINANDO TODO O PARLATORIO, PELO QUE A ABADEÇA LHE DEO OS SEUS HÁBITOS, E HUA LANTERNA PARA SE RETIRAR À LISBOA. Reverendo Frei Carqueja, quentárida com cordão, magano da religião, e mariola da Igreja: Frei Sarna, ou Frei Bertoeja, Frei Pirtigo, que o centeio moes, e não dás receio, Frei Burro de Lançamento, pois que sendo um Frei Jumento, és um jumento sem freio. Tu, que nas pardas cavernas vives de um grosso saial, és carvoeiro infernal, pois andas com saco em pernas: lembram-te aquelas fraternas, que levaste a teu pesar, quando a Prelada Bivar por culpa, que te cavou, de dia te desfradou para à noite te expulsar. Pela dentada, que Adão

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deu no vedado fruteiro, de folhas fez um cueiro, e cobriu seu cordavão: a ti o querer ser glutão de outra maçã reservada, ao vento te pôs a ossada, mas com diferença muita, que se nu te pôs a fruita, tu não lhe deste a dentada. De José se diz cad'hora, que o fez um seno de chapa deixar pela honra a capa nas mãos da amante senhora: tu na mão, que te namora, por honra, e por pundonor deixas hábito, e menor, mas com desigual partido, que José de acometido, e tu de acometedor. Desfradado em conclusão te vistes em couro puro, como vinho bem maduro, sendo, que és um cascarrão: era pelo alto serão, quando a gente às adivinhas viu entre queixas mesquinhas na varanda um Frade andeiro saído do Limoeiro a berrar pelas casinhas. Como Galeno na praça apareceste ao luar pobre, roubado do mar, que era ver-te um mar de graça: quando um pasma, e outro embaça; não me tenham por visão, frade sou inda em cueiros, tornei-me aos anos primeiros, e Bivar foi meu Jordão. Porque luz se te não manda, tu por não dar num ferrolho, dizem, que abriste o teu olho, que é cancela, que tresanda: chovias por uma banda, e por outra trovejavas, viva tempestade andavas, porque à comédia assistias, que era tramóia fingias, e na verdade o passavas. Ninguém há, que vitupere aquele lanço estupendo, quando o teu pecado vendo tomaste o teu miserere: mas é bem, que me exaspere de ver, que todo o sandeu, que nos tratos se meteu de Freiras, logo confessa, que isso lhe deu na cabeça, e a ti só no cu te deu.

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Dessa hora temerária ficou a grade de guisa, que se até ali foi precisa, desde então foi necessária: tu andaste como alimária, mas isso não te desdoura, porque fiado na coura da brutesca fradaria estercaste estrebaria, o que gostas manjedoura. Que és frade de habilidade, dás grandíssima suspeita, pois deixas câmara feita, o que foi té agora grade: tu és um corrente Frade nos lances de amor, e brio, pois achou teu desvario ser melhor, e mais barato, do que dar o teu retrato, pôr na grade o teu feitio. Corrido enfim te ausentaste, mas obrando ao regatão, pois levaste um lampião pela cera, que deixaste: sujamente te vingaste Frei Azar, ou Frei Piorno, e estás com grande sojorno, e posto muito de perna, sem veres, que essa lanterna te deram, por dar-te um corno. O com que perco o sentido, é ver, que em tão sujo tope levando a Freira o xarope tu ficaste o escorrido: na câmara estás provido e de ruibarbo com capa, mas lembro-te Frei Jalapa, que por cagar no sagrado o cu tens excomungado, se não recorres ao Papa. Muito em teus negócios medras com furor, que te destampa, pois sendo um louco de trampa, te tem por louco de pedras: é muito, que não desmedras, vendo-te trapo, e farrapo, antes co’a Freira no papo, como no sentido a tinhas, parece, que a vê-la vinhas, pois vinhas com todo o trapo. Tu és magano de lampa, Bivar é Freira travessa, a Freira pregou-te a peça, mas tu armaste-lhe a trampa: se o teu cagar nunca escampa, nunca estie o seu capricho, e pois ta pregou, Frei Mixo, chame-se por todo o mapa ela travessa de chapa, e tu magano de esguicho.

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A CERTO FRADE, QUE QUERENDO EMBARCAR-SE PARA FORA DA CIDADE, FURTOU HUM CABRITO, O QUAL SENDO CONHECIDO DA MAY PELO BERRO O FOY BUSCAR DENTRO DO BARCO, E COMO NÃO TEVE EFFEYTO O DITO ROUBO, TRATOU LOGO DE FURTAR OUTRO, E O LEVOU ASSADO. De fornicário em ladrão se converteu Frei Foderibus o lascivo em mulieribus, o mui alto fodinchão: foi o caso, que um verão tratando o Frade maldito de ir da cidade ao distrito, querendo a cabra levar, para mais a assegurar, embarcou logo o cabrito. Mas a cabra esquiva, e crua a outro pasto já inclinada não quis fazer a jornada, nem que a faça cousa sua: balou uma, e outra rua com tal dor, e tal paixão, que respondendo o mamão alcançou todo o distrito nas respostas do cabrito o codilho do cabrão. Estava ele muito altivo com seu jogo bem assaz, porém, por roubar sem ás perdeu bolo, cabra, e chibo: porque sem pôr pé no estrivo saltou na barca do Alparca, e dizendo desembarca saiu co filho a correr, porque então não quis meter com tal cabrão pé em barca. O Frade ficou num berro, porque temia o maldito se não levasse o cabrito, de achar, que lhe pegue um perro: e por não cair nesse erro num rebanho em boa fé outro, a quem o Frei Caziqui, quando ele dizia mihi, ele respondia mé. Do mé desaparecido foi logo o dono avisado, que o Frade lhe havia achado antes dele o haver perdido: e sendo o sítio corrido, se achou, que a modo de pá num forno o cabrito está, que o Frade é destro ladrão porém nesta ocasião saiu-lhe a fornada má. A CERTO FRADE QUE PREGANDO MUITOS DESPROPOSITOS

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NA MADRE DE DEOS FOI APEDREJADO PELOS RAPAZES, E SE FINGIO DESMAYADO POR ESCAPAR: MAS DEPOIS FURTANDO AO POETA UM BORDÃO, E AO ARPISTA DA FESTA UM CHAPEO SE RETIROU: POREM SABENDO-SE DO FURTO LHE FOY AO CAMINHO TIRAR DAS MÃOS HUM MULATO DE DOMINGOS BORGES. Reverendo Padre em Cristo, Fr. Porraz por caridade, Padre sem paternidade salvo a tem pelo Anticristo: não me direis, que foi isto, que dizem, quando pregastes, tão depressa vos pagastes, que antes que o sermão findara tanto cascalho embolsastes. Pregastes tanta parvoíce de tolo, e de beberrão, que o povo bárbaro então entendeu, que era louquice: quis-vos seguir a doudice, e posto no mesmo andar, em lugar de persignar uma pedrada vos prega, que a testa ainda arrenega de tal modo de pregar. Aqui-d'EI-Rei me aturdistes, e como um Paulo pregáveis, entendi, quando gritáveis, que do cavalo caístes: vós logo me desmentistes, dizendo, não tenho nada, fingi aquela gritada, porque entre tantos maraus com seixos, limões, e paus não viesse outra pedrada. Bem creio eu, Peralvilho, que sois cavalo de Troia, e fazeis uma tramóia co'a morte no garrotilho: mas se perdendo o codilho, que ganhais a mão, dizeis, a vós o engano fazeis, porque se quem compra, e mente, se diz, que na bolsa o sente, vós na testa o sentireis. Vendo-vos escalavrado o Vigário homem do céu em casa vos recolheu, por vos salvar no sagrado: vós sois tão desaforado, que não quisestes cear, não mais que pelo poupar, sendo que sois tão má preia, que lhe poupastes a ceia, por lhe roubar o jantar. Fostes-vos de madrugada, deixando-lhe aberta a porta,

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mas a porta pouco importa, importa a casa roubada: fizestes uma trocada, que só a pudera fazer um beberrão a meu ver, d’um por outro chapéu podre, que trocar odre por odre venha o demo a escolher. Ficou o Mestre solfista sem chapéu destro, ou sinestro, e ainda que na arpa é destro, vós fostes maior arpista: quem por ladrão vos alista, saiba, que sois mau ladrão, que não perdendo ocasião, lá em cima na vossa estada, levastes a bordoada, cá em baixo o meu bordão. Tomastes do rio a borda, e vendo os amigos Borges, que leváveis tais alforjes, trataram de dar-vos corda: mas vendo, que vos engorda, mais do que a vaca, o capim, puseram-vos um selim, um freio, e um barbicacho, porque sendo um burro baio logreis honras de rocim. Vendo-vos ajaezado, pela ocasião não perder, botastes logo a correr atrás das éguas mangado: apenas tínheis chegado de Caípe à casaria, quando um Mulataço harpia arrogante apareceu, e vos tirou o chapéu sem vos fazer cortesia. Tirou-vos o meu cajado, porque sois ladrão tão mau, que levastes o meu pau, que não serve a um barbado: e vendo-vos despojado dos furtos deste lugar vos pusestes a admirar, de que um Mulato valente de vos despir se contente, podendo-vos açoutar. Nunca vós, borracho alvar, a pregar-nos vos metais, que se a rapazes pregais, eles vos lá hão de pregar: tratai logo de buscar alguma Dona Bertola, para pregar pela gola, como aqui sempre fizestes, que esse é o pregar, que aprendestes, do que podeis pôr escola.

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E guardai-vos, maganão bêbado, jeribiteiro, de tornar a este oiteiro fazer vossa pregação: que o Mestre Pantaleão, e o Doutor, a quem roubastes, e os mais, que aqui encontrastes vos esperam com escarbas. para arrancar-vos as barbas, se é que a vinho as não pelastes. INDO CERTO FRADE A CASA DE HUMA MERETRIZ LHE PEDIO ESTA QUINZE MlL REIS DANTEMÃO PARA TIRAR HUMAS ARGOLLAS, QUE TINHA EMPENHADAS. Quinze mil-réis dantemão Cota a pedir-me se atreve, o diabo a mim me leve, se ela val mais que um tostão: que outra fêmea de canhão, por seis tostões, que lhe dei toda a noite a pespeguei, e a quem faz tal peditório Borrório. Ora está galante o passo; Menina, não me direis, se vos deu quinze mil-réis, quem vos tirou o cabaço? fazeis de mim tão madraço, que vos dê tanto dinheiro por um triste parrameiro, que está junto ao cagatório? Borrório. Quereis argolas tirar Co'as moedas, que são minhas? para tirar argolinhas só lança vos posso dar; vós pedis por pedinchar sem vergonha, nem receio, como se eu tivera cheio de dinheiro um escritório: Borrório. Saís muito à vossa Mãe nos costumes de pedir, e eu em não contribuir me pareço com meu Pai: essa petição deixai; quereis sustentar-vos só vossa Mãe, e vossa Avó, e todo o mais avolório? Borrório. Vindes a mui ruim mato, Menina, fazer a lenha, que outra fêmea mais gamenha mo fazia mais barato: buscai outro melhor pato; quereis depenar, a quem a penas segura tem a ração do refeitório? Borrório.

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Quereis, que o Prelado astuto me tome conta da esmola, e que a bom livrar dê a sola? que tal faça! fideputo: eu não sou amba macuto, nem sou tampouco matreiro, que vós comais o dinheiro, e eu fique de gorgotório? Borrório. Vós quereis sem mais nem mais, que no sermão de repente eu faça chorar a gente, para que vós vos riais? tão ruim alma me julgais, que para as vossas cobiças tome capelas de missas, e que chore o Purgatório? Borrório. Ora enfim vós a pedir, e eu Cota a vo-lo negar, ou vós havei de cansar, ou eu me hei de sacudir: com que venho a inferir destas vossas petições, que heis de pedir-me os culhões, a parvoíce, e zimbório Borrório. SATYRIZA OUTRO CASO DE HUMA NEGRA QUE FOY ACHADA COM OUTRO FRADE, E FOY BEM MOIDA COM UM BORDÃO POR SEU AMAZIO, POR CUJA CAUSA SE SAGROU, E SE FINGIO MANCA DE HUM PÉ. Nunca cuidei do burel, nem menos do seu cordão, que fosse tão cascarrão, tão duro, nem tão cruel: mas vós como sois novel, e ignorais o bom, e o mau, e o que tirastes do escote foi ver, que era o seu picote tão duro como um bom pau Vós fostes bem esfregada do burel esfregador, mas depois o pão do amor vos deixou mais bem pisada: no bananal enramada vos atastes ao cordão, que vos fez a esfregação; depois quem vos vigiou, nas costas vos assentou as costuras cum bordão. Fingistes-vos mui doente, e atastes no pé um trapo, sendo a doença o marzapo do Franciscano insolente: enganastes toda a gente

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fingidamente traidora, mas eu soube na mesma hora, que nos tínheis enganado, e por haver-vos deitado, fingis deitar-vos agora. Eu sinto em todo o rigor os vossos sucessos maus, pois levastes com dois paus um do Frade, outro do amor: qual destes paus foi pior vós nos haveis de dizer, que eu não deixo de saber, que sendo negras, ou brancas é sempre um só pau de trancas pouco para uma mulher. Não vades ao bananal, que e cousa escorregadia, e eis de levar cada dia lá no có, cá no costal: sed libera nos a mal dizei no vosso rosário, e se o Frade é frandulário, vá folgar a seu convento, que vós no vosso aposento tendes certo o centenário. Muito mal considerastes, no que o sucesso parou, que o Frade vos não pagou, e vós em casa o pagastes: tal miserere levastes, que vos digo na verdade, fora melhor dá-lo ao Frade porque é maior indecência dá-lo a vossa negligência, que à sua Paternidade. A CERTO FRADE QUE TRATAVA COM HUMA DEPRAVADA MULATA POR NOME VICENCIA QUE MORAVA JUNTO AO CONVENTO, A ATUALMENTE Á ESTAVA VIGIANDO DESTE CAMPANARIO. Reverendo Fr. Sovela, saiba vossa Reverência, que a caríssima Vivência põe cornos de cabidela: tão vária gente sobre ela vai, que não entra em disputa, se a puta é mui dissoluta, sendo, que em todos os povos a galinha põe os ovos e põe os cornos a puta. Se está vossa Reverência sempre à janela do coro, como não vê o desaforo dos Vicêncios co'a Vicência? como não vê a concorrência de tanto membro, e tão vário, que ali entra de ordinário? mas se é Frade caracol, bote esses cornos ao sol

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por cima do campanário. Do alto verá você a puta sem intervalos tangida de mais badalos, que tem a torre da Sé: verá andar a cabra mé berrando atrás dos cabrões, os ricos pelos tostões os pobres por piedade, os leigos por amizade, os Frades pelos pismões. Verá na realidade aquilo, que já se entende de uma puta, que se rende às porcarias de um Frade: mas se não vê de verdade tanto lascivo exercício, é, porque cego do vício não lhe entra no oculorum o secula seculorum de uma puta de ab initio. AO LOUCO DESVANECIMENTO, COM QUE ESTE FRADE TIRANDO ESMOLLAS CANTAVA REGAÇANDO O HABITO POR MOSTRAR AS PERNAS, COM PRESUNÇÕES DE GENTILHOMEM, BOM MEMBRO, E BOA VOZ. Ouve, Magano, a voz, de quem te canta Em vez de doces passos de garganta Amargos pardieiros de gasnate: Ouve, sujo Alparcate, As aventuras vis de um Dom Quixote Revestido em remendo de picote. Remendado dos pés até o focinho Me persuado, que és Frade Antoninho: Por Frei Basílio sais de São Francisco, E entras Frei Basilisco, Pois que deixas à morte as Putas todas, Ou já pela má vista, ou pelas fodas. Tu tens um membralhaz aventureiro, Com que sais cada trique ao terreiro A manter cavalhadas, e fodengas, Com que as putas derrengas; Valha-te: e quem cuidara, olhos de alpistre, Que seria o teu membro o teu enristre! Gabas-te, que se morrem as Mulatas Por ti, e tens razão, porque as matas De puro pespegar, e não de amores, Ou de puros fedores, Que exalam, porcalhão, as tuas bragas, Com que matas ao mundo ou as estragas. Dizem-me, que presumes de três partes, E as de Pedro serão de malas artes: Boa voz, boa cara, bom badalo, Que é parte de cavalo: Que partes podes ter, vilão agreste,

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Se não sabes a parte, onde nasceste? Vestido de burel um salvajola Que partes pode ter? de mariola: Quando o todo é suor, e porcaria, A parte que seria? Cada parte budum, catinga, e lodos, Que estas as partes são dos Frades todos. Não te desvaneça andar-te a puta ao rabo, Que Joana Lopes dormirá c’o diabo; E posto que a Mangá também forniques, Que é moça de alfiniques, Supõe, que tinha então faminta a gola, E que te quis mamar o pão da esmola. Não hão mister as putas gentilezas, Que arto bonitas são, arto belezas: O que querem somente, é dinheiro, E se as cavalgas tu, pobre sendeiro, É, porque dando esmolas, e ofertório, Quando as pespegas, geme o refectório. Prezas-te de galã, bonito, e pulcro, E os fedores da boca é um sepulcro A cães mortos te fede a dentadura, E se há puta, que te atura Tais alentos de boca, ou de traseiro, É porque tu as incensas com dinheiro. O hábito levantas no passeio, E cuidas, que está nisso o galanteio, Mostras a perna mui lavada, e enxuta, Sendo manha de puta Erguer a saia por mostrar as pernas, Com que és hermafrodita nas cavernas. Tu és Filho de um sastre de bainhas, E botas muito mal as tuas linhas, Pois quando fidalgão te significas, A ti mesmo te picas, E dando pontos em grosseiro pano, Mostras pela entertela, que és magano. Torna em teu juízo, louco Durandarte, Se algum dia o tiveste, a quem tornar-te; Teme a Deus, que em tão louco desatino De algum celeste signo Hei medo, que um badalo se despeça, E te rompa a cabaça, ou a cabeça. Se és Frade, louva ao Santo Patriarca, Que te sofre calçar-lhe a sua alparca, Que juro a tal, se ao século tornaras, Nem ainda te fartaras De ser um tapanhuno de carretos, Por não ser mariola, onde há pretos. AO MESMO FRADE TORNA A SATYRIZAR O POETA, SEM OUTRA MATERIA NOVA, SENÃO PRESUMINDO, QUE QUEM O DEMO TOMA HUMA VEZ SEMPRE LHE FICA HUM GEYTO.

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Reverendo Fr. Fodaz, não tenho matéria nova, de que vos faça uma trova, mas de antiga tenho assaz: que como sois tão capaz de ires de mau a pior, suponho de vosso humor, que enquanto a velha, e o frade sois sempre em qualquer idade mais ou menos fodedor. Na boa filosofia mais ou menos não difere, e assim vós que estais, se infere, na mesma velhacaria: Lembra-me a mim cada dia tanto sucesso indecente, que de vós refere a gente, que inda que d'outra monção, sei, que de hoje para então nada tendes diferente. Se o burel, que se remenda, e o ser frade, e ser vilão vos fazem mais fodinchão, como haveis de ter emenda? Será inútil contenda querer, que vos emendeis, pois como vós não deixeis de ser frade, e ser vilão, sempre heis de ser fodinchão, fodereis, mais fodereis. Quem a causa não desfaz, não destrói o seu efeito, com que vós no hábito estreito sempre haveis de ser fodaz. Valha o diabo o mangaz, que em vendo a pinta, e a franga aqui, em Jacaracanga, em público, e em secreto, se lhe cheira o vaso preto, logo a porra se lhe emanga. De um pirtigo tão velhaco, que tão súbito se engrossa, que direi, senão que almoça vinte picas de Macaco: membro, que em todo o buraco se quer meter apressado, qual arganaz assustado, fugindo ao ligeiro gato, que direi, que é membro rato? Não: porque este é consumado. Pois logo que hei de dizer, como, e com que paridade porei o membro de um frade, a quem não farta o foder? Eu não me sei nisto haver, nem por que apodo me reja: mas o mundo saiba, e veja,

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que o membro deste mangado é já membro desmembrado da justiça, mais da Igreja. A CERTO FRADE QUE INDO PREGAR A HUM CONVENTO DE FREYRAS, E ESTANDO COM HUMA NA GRADE, LHE DEO TAL DOR DE BARRIGA, QUE SE CAGOU POR SI. Ficaram neste intervalo pagos a Freira, e o Frade, ela a ele deu-lhe a grade, que a vós não convém correr com homem tão despejado, ele a ela deu-lhe o ralo: fê-lo ir com tanto abalo o seu sujo proceder, que se andar tão desatado, logo vos há de feder. Estas novas enxurradas fizeram com novo estilo na casa da grade um Nilo, catadupa nas escadas: não foram mal suportadas dos vizinhos do lugar, se chegaram a alcancar (como ouvimos referir) que os índios perdem o ouvir, cá perdessem o cheirar. Ao Frade, que assim vos trata, porque outra vez não se entorne, mandai, que à grade não torne, até soldar a culatra: que escopeta, que não mata, quando tão junto atirou, bem mostra, que se errou, e toda a munição troca, não rebentou pela boca, pela escorva rebentou. Neste hediondo tropel cem mil causas achareis, que não são para papéis, posto que as ponha em papel: o passo foi tão cruel, que a dizê-lo me tentou: se bem lastimado estou, do que deste Frade ouvi, torne ele mesmo por si, já que por si se entornou. Do monte Olimpo se conta, que quando há maior tromento deixa sua altura isenta, porque das mais se remonta: não sei, se vós nessa conta entrastes, Senhora, então naquela suja ocasião; só sei, que o Frade seria, pelo que dele corria, monte, mais o limpo não.

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Deste Frade ouvi dizer, e é cousa digna de riso, que tendo-se por Narciso, fez fonte para se ver: e deve-se reprender, Dama bela, se vos praz o que este Narciso faz, pois ofende o fino amante, deixando claro diante, ver-se no escuro de trás. Foi o Padre aqui mandado para pregar: grande error! Não pode ser pregador um Frade tão despregado: seja do ofício privado, e de entre a gente falar, pois todos vêem alcançar o seu salvo presumir, que sendo mau para ouvir, é pior para cheirar. II - O BURGO Gregório de Matos E POIS CORONISTA SOU DESCREVE O QUE ERA REALMENTE NAQUELLE TEMPO A CIDADE DA BAHIA DE MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA. À CIDADE E ALGUNS PICAROS, QUE HAVIÃO NELLA. FINGINDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES,SIGNALANDOLHES OS VICIOS, EM QUE ALGUNS DELLES SE DEPRAVAVÃO. DEFINE A SUA CIDADE. QUEYXA-SE A BAHIA POR SEU BASTANTE PROCURADOR, CONFESSANDO, QUE AS CULPAS. QUE LHE INCREPÃO, NÃO SÃO SUAS, MAS SIM DOS VICIOSOS MORADORES, QUE EM SI ALVERGA. QUEIXAS DA SUA MESMA VERDADE. TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE. Meus males de quem procedem? Não é de vós? claro é isso: Que eu não faço mal a nada por ser terra e mato arisco. Isto sois, minha Bahia, Isto passa em vosso burgo E POIS CORONISTA SOU.

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Se souberas falar também falarás também satirizaras, se souberas, e se foras poeta, poetaras. Cansado de vos pregar cultíssimas profecias, quero das culteranias hoje o hábito enforcar: de que serve arrebentar, por quem de mim não tem mágoa? verdades direi como água, porque todos entendais os ladinos, e os boçais a Musa praguejadora. Entendeis-me agora? Permiti, minha formosa, que esta prosa envolta em verso de um Poeta tão perverso se consagre a vosso pé, pois rendido à vossa fé sou já Poeta converso Mas amo por amar, que é liberdade. DESCREVE O QUE ERA REALMENTE NAQUELLE TEMPO A CIDADE DA BAHIA DE MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA. A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar a cabana, e vinha, Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um freqüentado olheiro, Que a vida do vizinho, e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, Para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos Mulatos desavergonhados, Trazidos pelos pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, Todos, os que não furtam, muito pobres, E eis aqui a cidade da Bahia. À CIDADE E ALGUNS PICAROS, QUE HAVIÃO NELLA. Quem cá quiser viver, seja um Gatão, Infeste toda a terra, invada os mares, Seja um Chegai, ou um Gaspar Soares, E por si terá toda a Relação. Sobejar-lhe-á na mesa vinho, e pão, E siga, os que Ihe dou, por exemplares, Que a vida passará sem ter pesares,

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Assim como os não tem Pedro de Unhão Quem cá se quer meter a ser sisudo Nunca Ihe falta um Gil, que o persiga, E é mais aperreado que um cornudo. Furte, coma, beba, e tenha amiga, Porque o nome d'EI-Rei dá para tudo A todos, que El-Rei trazem na barriga. FlNGINDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES, SIGNALANDOLHES OS VICIOS, EM QUE ALGUNS DELLES SE DEPRAVAVÃO. Uma cidade tão nobre, uma gente tão honrada veja-se um dia louvada desde o mais rico ao mais pobre: Cada pessoa o seu cobre, mas se o diabo me atiça, que indo a fazer-lhe justiça, algum saia a justiçar, não me poderão negar, que por direito, e por Lei esta é a justiça, que manda El-Rei. 0 Fidalgo de solar se dá por envergonhado de um tostão pedir prestado para o ventre sustentar: diz, que antes o que furtar por manter a negra honra, que passar pela desonra, de que Ihe neguem talvez; mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei, esta é a justiça, que manda El-Rei. A Donzela embiocada mal trajada, e mal comida, antes quer na sua vida ter saia, que ser honrada: à pública amancebada por manter a negra honrinha, e se Iho sabe a vizinha, e Iho ouve a clerezia dão com ela na enxovia, e paga a pena da lei: esta é a justiça, que manda El-Rei. A casada com adorno e o Marido mal vestido, crede, que este mal Marido penteia monho de corno: se disser pelo contorno, que se sofre a Fr. Tomás, por manter a honra o faz, esperai pela pancada, que com carocha pintada de Angola há de ser Visrei: esta é a justiça, que manda El-Rei.

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Os Letrados Peralvilhos citando o mesmo Doutor a fazer de Réu, o Autor comem de ambos os carrilhos: se se diz pelos corrilhos sua prevaricação, a desculpa, que lhe dão, é a honra de seus parentes e entonces os requerentes, fogem desta infame grei: esta é a justiça, que manda El-Rei. O Clérigo julgador, que as causas julga sem pejo, não reparando, que eu vejo, que erra a Lei, e erra o Doutor: quando vêem de Monsenhor a Sentença Revogada por saber, que foi comprada pelo jimbo, ou pelo abraço, responde o Juiz madraço, minha honra é minha Lei: esta é a justiça, que manda El-Rei. 0 Mercador avarento, quando a sua compra estende, no que compra, e no que vende, tira duzentos por cento: não é ele tão jumento, que não saiba, que em Lisboa se Ihe há de dar na gamboa; mas comido já o dinheiro diz, que a honra está primeiro, e que honrado a toda Lei: esta é a justiça, que manda El-Rei. A viúva autorizada, que não possui um vintém, porque o Marido de bem deixou a casa empenhada: ali vai a fradalhada, qual formiga em correição, dizendo, que à casa vão manter honra da casa, se a virdes arder em brasa, que ardeu a honra entendei: esta é a justiça, que manda EL-Rei. 0 Adônis da manhã, o Cupido em todo o dia, que anda correndo a Coxia com recadinhos da Irmã: e se Ihe cortam a lã, diz, que anda naquele andar por a honra conservar bem tratado, e bem vestido, eu o verei tão despido, que até as costas Ihe verei: esta é a justiça, que manda El-Rei. Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso,

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não Ihe chameis Religioso, chamai-lhe embora de Frade: e se o tal Paternidade rouba as rendas do Convento para acudir ao sustento da puta, como da peita, com que livra da suspeita do Geral, do Viso-Rei: esta é a justiça, que manda El-Rei. DEFINE A SUA CIDADE. MOTE De dous ff se compõe esta cidade a meu ver um furtar, outro foder. Recopilou-se o direito, e quem o recopilou com dous ff o explicou por estar feito, e bem feito: por bem Digesto, e Colheito só com dous ff o expõe, e assim quem os olhos põe no trato, que aqui se encerra, há de dizer, que esta terra De dous ff se compõe. Se de dous ff composta está a nossa Bahia, errada a ortografia a grande dano está posta: eu quero fazer aposta, e quero um tostão perder, que isso a há de preverter, se o furtar e o foder bem não são os ff que tem Esta cidade a meu ver. Provo a conjetura já prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco que são B-A-H-I-A: logo ninguém me dirá que dous ff chega a ter, pois nenhum contém sequer, salvo se em boa verdade são os ff da cidade um furtar, outro foder. QUEYXA-SE A BAHIA POR SEU BASTANTE PROCURADOR, CONFESSANDO, QUE AS CULPAS, QUE LHE INCREPÃO, NÃO SÃO SUAS, MAS SIM DOS VICIOSOS MORADORES, QUE EM SI ALVERGA. Já que me põem a tormento murmuradores nocivos, carregando sobre mim suas culpas, e delitos:

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Por crédito de meu nome, e não por temer castigo confessar quero os pecados, que faço, e que patrocino. E se alguém tiver a mal descobrir este sigilo, não me infame, que eu serei pedra em poço, ou seixo em rio. Sabei, céu, sabei, estrelas, escutai, flores, e lírios, montes, serras, peixes, aves luz, sol, mortos, e vivos: Que não há, nem pode haver desde o Sul ao Norte frio cidade com mais maldades, nem província com mais vícios: Do que sou eu, porque em mim recopilados, e unidos estão juntos, quantos têm mundos, e reinos distintos. Tenho Turcos, tenho Persas homens de nação Impios Magores, Armênios, Gregos, infiéis, e outros gentios. Tenho ousados Mermidônios, tenho Judeus, tenho Assírios, e de quantas castas há, muito tenho, e muito abrigo. E se não digam aqueles prezados de vingativos, que santidade têm mais, que um Turco, e um Moabito? Digam Idólatras falsos, que estou vendo de contino, adorarem ao dinheiro, gula, ambição, e amoricos. Quantos com capa cristã professam o judaísmo, mostrando hipocritamente devoção à Lei de Cristo! Quantos com pele de ovelha são lobos enfurecidos, ladrões, falsos, e aleivosos, embusteiros, e assassinos! Estes por seu mau viver sempre péssimo, e nocivo são, os que me acusam de danos, e põem labéus inauditos. Mas o que mais me atormenta, é ver, que os contemplativos, sabendo a minha inocência, dão a seu mentir ouvidos. Até os mesmos culpados têm tomado por capricho, para mais me difamarem, porem pela praça escritos.

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Onde escrevem sem vergonha não só brancos, mas mestiços, que para os bons sou inferno, e para os maus paraíso. Ó velhacos insolentes, ingratos, mal procedidos, se eu sou essa, que dizeis, porque não largais meu sítio? Por que habitais em tal terra, podendo em melhor abrigo? eu pego em vós? eu vos rogo? respondei! dizei, malditos! Mandei acaso chamar-vos ou por carta, ou por aviso? não viestes para aqui por vosso livre alvedrio? A todos não dei entrada, tratando-vos como a filhos? que razão tendes agora de difamar-me atrevidos? Meus males, de quem procedem? não é de vós? claro é isso: que eu não faço mal a nada por ser terra, e mato arisco. Se me lançais má semente, como quereis fruito limpo? lançai-a boa, e vereis, se vos dou cachos opimos. Eu me lembro, que algum tempo (isto foi no meu princípio) a semente, que me davam, era boa, e de bom trigo. Por cuja causa meus campos produziam pomos lindos, de que ainda se conservam alguns remotos indícios. Mas depois que vós viestes carregados como ouriços de sementes invejosas, e legumes de maus vícios: Logo declinei convosco, e tal volta tenho tido, que, o que produzia rosas, hoje só produz espinhos. Mas para que se conheça se falo verdade, ou minto, e quanto os vossos enganos têm difamado o meu brio: confessar quero de plano, o que encubro por servir-vos e saiba, quem me moteja, os prêmios, que ganho nisso. Já que fui tão pouco atenta, que a luz da razão, e o siso não só quis cegar por gosto, mas ser do mundo ludíbrio. Vós me ensinastes a ser

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das inconstâncias arquivo, pois nem as pedras, que gero, guardam fé aos edifícios. Por vosso respeito dei campo franco, e grande auxílio para que se quebrantassem os mandamentos divinos. Cada um por suas obras conhecerá, que meu xingo, sem andar excogitando, para quem se aponta o tiro. PRECEITO 1 Que de quilombos que tenho com mestres superlativos, nos quais se ensinam de noite os calundus, e feitiços. Com devoção os freqüentam mil sujeitos femininos, e também muitos barbados, que se presam de narcisos. Ventura dizem, que buscam; não se viu maior delírio! eu, que os ouço, vejo, e calo por não poder diverti-los. O que sei, é, que em tais danças Satanás anda metido, e que só tal padre-mestre pode ensinar tais delírios. Não há mulher desprezada, galã desfavorecido, que deixe de ir ao quilombo dançar o seu bocadinho. E gastam pelas patacas com os mestres do cachimbo, que são todos jubilados em depenar tais patinhos. E quando vão confessar-se, encobrem aos Padres isto, porque o têm por passatempo, por costume, ou por estilo. Em cumprir as penitências rebeldes são, e remissos, e muito pior se as tais são de jejuns, e cilícios. A muitos ouço gemer com pesar muito excessivo, não pelo horror do pecado, mas sim por não consegui-lo. PRECEITO 2 No que toca aos juramentos,

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de mim para mim me admiro por ver a facilidade, com que os vão dar juízo. Ou porque ganham dinheiro, por vingança, ou pelo amigo, e sempre juram conformes, sem discreparem do artigo. Dizem, que falam verdade, mas eu pelo que imagino, nenhum, creio, que a conhece, nem sabe seus aforismos. Até nos confessionários se justificam mentindo com pretextos enganosos, e com rodeios fingidos. Também aqueles, a quem dão cargos, e dão ofícios, suponho, que juram falso por conseqüências, que hei visto. Prometem guardar direito, mas nenhum segue este fio, e por seus rodeios tortos são confusos labirintos. Honras, vidas, e fazendas vejo perder de contino, por terem como em viveiro estes falsários metidos. PRECEITO 3 Pois no que toca a guardar dias Santos, e Domingos: ninguém vejo em mim, que os guarde, se tem, em que ganhar jimbo. Nem aos míseros escravos dão tais dias de vazio, porque nas leis do interesse, é preceito proibido. Quem os vê ir para o templo com as contas e os livrinhos de devoção, julgará, que vão p'ra ver a Deus Trino: Porém tudo é mero engano, porque se alguns escolhidos ouvem missa, é perturbados desses, que vão por ser vistos. E para que não pareça, aos que escutam, o que digo, que há mentira, no que falo com a verdade me explico: Entra um destes pela Igreja, sabe Deus com que sentido, e faz um sinal-da-cruz contrário ao do catecismo.

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Logo se põe de joelhos, não como servo rendido, mas em forma de besteiro cum pé no chão, outro erguido. Para os altares não olha, nem para os Santos no nicho, mas para quantas pessoas vão entrando, e vão saindo. Gastam nisto o mais do tempo, e o que resta divertidos se põem em conversação, com os que estão mais propínquos Não contam vidas de Santos, nem exemplos ao divino, mas sim muita patarata, do que não há, nem tem sido. Pois se há sermão, nunca o ouvem, porque ou se põem de improviso a cochilar como negros, ou se vão escapulindo. As tardes passam nos jogos, ou no campo divertidos dando Leis, e dando arbítrios. As mulheres são piores, porque se lhes faltam brincos manga a volá, broche, troço, ou saia de labirintos, não querem ir para a Igreja, seja o dia mais festivo, mas em tendo essas alfaias, saltam mais do que cabritos. E se no Carmo repica, ei-las lá vão rebolindo, o mesmo para São Bento, Colégio, ou São Francisco. Quem as vir muito devotas, julgará sincero, e liso, que vão na missa, e sermão a louvar a Deus com hinos. Não quero dizer, que vão, por dizer mal do Maridos, aos amantes, ou talvez cair em erros indignos. Debaixo do parentesco, que fingem pelo apelido, mandando-lhes com dinheiro muitos, e custosos mimos. PRECEITO 4 Vejo, que morrem de fome os Pais daquelas, e os Tios, ou porque os vêem Lavradores, ou porque tratam de ofícios. Pois que direi dos respeitos, com que os tais meus mancebinhos

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tratam esses Pais depois que deixam de ser meninos? Digam-no quantos o vêem, que eu não quero repeti-lo, a seu tempo direi como criam estes morgadinhos. Se algum em seu testamento cerrado, ou nuncupativo a algum parente encarrega sua alma, ou legados pios: Trata logo de enterrá-lo com demonstrações de amigo, mas passando o Resquiescat tudo se mate no olvido. Da fazenda tomam posse até do menor caquinho; mas para cumprir as deixas adoecem de fastio. E desta omissão não fazem escrúpulo pequenino, nem se Ihes dá, que o defunto arda, ou pene em fogo ativo. E quando chega a apertá-los o tribunal dos resíduos, ou mostram quitações falsas, ou movem pleitos renhidos. Contados são, os que dão a seus escravos ensino, e muitos nem de comer, sem Ihes perdoar serviço. Oh quantos, e quantos há de bigode fernandino, que até de noite às escravas pedem selários indignos, Pois no modo de criar aos filhos parecem símios, causa por que os não respeitam, depois que se vêem crescidos. Criam-nos com liberdade nos jogos, como nos vício, persuadindo-lhes, que saibam tanger guitarra, e machinho. As Mães por sua imprudência são das filhas desperdício, por não haver refestela, onde as não levem consigo. E como os meus ares são muito coados, e finos, se não há grande recato, têm as donzelas perigo. Ou as quebranta de amores o ar de algum recadinho, ou pelo frio da barra saem co ventre crescido. Então vendo-se opiladas, se não é do santo vínculo,

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para livrarem do achaque, buscam certos abortinhos. Cada dia o estou vendo, e com ser isto sabido, contadas são, as que deixam de amar estes precipícios. Com o dedo a todas mostro, quanto indica o vaticínio, e se não querem guardá-lo, não culpam meu domicílio. PRECEITO 5 Vamos ao quinto preceito, Santo Antônio vá comigo, e me depare algum meio, para livrar do seu risco. Porque suposto que sejam quietos, mansos, benignos, quantos pisam meus oiteiros, montes, vales, e sombrios; Pode suceder, que esteja algum áspide escondido entre as flores, como diz aquele provérbio antigo. Faltar não quero à verdade nem dar ao mentir ouvidos, o de César dê-se a César, o de Deus a Jesus Cristo. Não tenho brigas, nem mortes pendências, nem arruídos, tudo é paz, tranqüilidade, cortejo com regozijo: Era dourada parece, mas não é como eu a pinto porque debaixo deste ouro tem as fezes escondido. Que importa não dar aos corpos golpes, catanadas, tiros, e que só sirvam de ornato espada, e cotós limpos? Que importa, que não se enforquem os ladrões, e os assassinos, os falsários, maldizentes, e outros a este tonilho? Se debaixo desta paz, deste amor falso, e fingido há fezes tão venenosas, que o ouro é chumbo mofino É o amor um mortal ódio, sendo todo o incentivo a cobiça do dinheiro, ou a inveja dos ofícios. Todos pecam no desejo de querer ver seus patrícios

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ou da pobreza arrastados, ou do crédito abatidos. E sem outra cousa mais se dão a destro, e sinistro pela honra, e pela fama golpes cruéis, e infinitos. Nem ao sagrado perdoam, seja Rei, ou seja Bispo, ou Sacerdote, ou Donzela metida no seu retiro. A todos enfim dão golpes de enredos, e mexericos tão cruéis, e tão nefandos, que os despedaçam em cisco. Pelas mãos nada; porque não sabem obrar no quinto; mas pelas línguas não há leões mais enfurecidos. E destes valentes fracos nasce todo o meu martírio; digam todos, os que me ouvem, se falo a verdade, ou minto. PRECEITO 6 Entremos pelos devotos do nefando Deus Cupido, que também esta semente não deixa lugar vazio. Não posso dizer, quais são por seu número infinito, mas só digo, que são mais do que as formigas, que crio. Seja solteiro, ou casado, é questão, é já sabido não estar sem ter borracha seja do bom, ou mau vinho. Em chegando a embebedar-se de sorte perde os sentidos. que deixa a mulher em couros, e traz os filhos famintos: Mas a sua concubina há de andar como um palmito, para cujo efeito empenham as botas com seus atilhos. Elas por não se ocuparem com costuras, nem com bilros, antes de chegar aos doze vendem o signo de Virgo. Ouço dizer vulgarmente (não sei, é certo este dito) que fazem pouco reparo em ser caro, ou baratinho. O que sei é, que em magotes

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de duas, três, quatro, cinco as vejo todas as noites sair de seus esconderijos E como há tal abundância desta fruita no meu sítio, para ver se há, quem as compre, dão pelas ruas mil giros. E é para sentir, o quanto se dá Deus por ofendido não só por este pecado, mas pelos seus conjuntivos: como são cantigas torpes, bailes, e toques lascivos, venturas, e fervedouros, pau de forca, e pucarinhos. Quero entregar ao silêncio outros excessos malditos, como do Pai carumbá, Ambrósio, e outros pretinhos. Com os quais estas formosas vão fazer infames brincos governados por aqueles, que as trazem num cabrestinho. PRECEITO 7 Já pelo sétimo entrando sem alterar o tonilho, digo, que quantos o tocam sempre o tiveram por crítico Eu sou, a que mais padeço de seus efeitos malignos, porque todos meus desdouros pelo sétimo têm vindo. Não falo (como lá dizem) ao ar, ou libere dicto, pois diz o mundo loquaz, que encubro mil latrocínios Se é verdade, eu o não sei, pois acho implicância nisto porque o furtar tem dous verbos um furor, outro surrípio. Eu não vejo cortar bolsas, nem sair pelos caminhos, como fazem nas mais partes salvo alguns negros fugidos. Vejo, que a forca, ou picota paga os altos do vazio, e que o carrasco não ganha nem dous réis para cominhos Vejo, que nos tribunais há vigilantes Ministros, e se houvera em mim tal gente andara à soga em contino. Porém se disto não há,

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com que razão, ou motivo dizem por aí, que sou um covil de Latrocínios! Será por verem, que em mim é venerado, e querido Santo Unhate, irmão de Caco, porque faz muitos prodígios. Sem questão deve de ser, porque este Unhate maldito faz uns milagres, que eu mesma não sei, como tenho tino. Pode haver maior milagre (ouça bem quem tem ouvidos) do que chegar um Reinol de Lisboa, ou lá do Minho ou degredado por crimes ou por Moço ao Pai fugido, ou por não ter que comer no Lugar, onde é nascido: E saltando no meu cais descalço, roto, e despido, sem trazer mais cabedal, que piolhos, e assobios: Apenas se ofrece a Unhate de guardar seu compromisso, tomando com devoção sua regra, e seu bentinho: Quando umas casas aluga de preço, e valor subido, e se põe em tempo breve com dinheiro, e com navios? Pode haver maior portento, nem milagre encarecido, como de ver um Mazombo destes cá do meu pavio, que sem ter eira, nem beira engenho, ou juro sabido tem amiga, e joga largo veste sedas, põe polvilhos? Donde Ihe vem isto tudo? Cai do Céu? Tal não afirmo; ou Santo Unhate Iho dá, ou do Calvário é prodígio. Consultam agora os sábios, que de mim fazem corrilhos se estou ilesa da culpa, que me dão sobre este artigo. Mas não quero repetir a dor e o pesar, que sinto por dar mais um passo avante para o oitavo suplício. PRECEITO 8 As culpas, que me dão nele, são, que em tudo o que digo, me aparto do verdadeiro

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com ânimo fementido. Muito mais é, do que falo, mas é grande barbarismo, quererem, que pague a albarda, o que comete o burrinho. Se por minha desventura estou cheia de percitos, como querem, que haja em mim fé, verdade, ou falar liso? Se como atrás declarei, se oudera cobro nisto, a verdade aparecera cruzando os braços comigo. Mas como dos tribunais proveito nenhum se há visto, a mentira está na terra, a verdade vai fugindo. O certo é, que os mais deles têm por gala, e por capricho não abrir a boca nunca sem mentir de fito a fito. Deixar quero os pataratas, e tornando a meu caminho, quem quiser mentir o faça, que me não toca impedi-lo. PRECEITO 9 Do nono não digo nada, porque para mim é vidro, e quem o quiser tocar, vá com o olho sobreaviso. Eu bem sei, que também trazem o meu crédito perdido, mas valha sem sê-lo ex causa, ou Ihos ponham seus maridos. Confesso, que tenho culpas, porém humilde confio, mais que em riquezas do mundo, da virtude num raminho. PRECEITO 10 Graças a Deus que cheguei a coroar meus delitos com o décimo preceito, no qual tenho delinqüido. Desejo, que todos amem, seja pobre, ou seja rico, e se contentem com a sorte, que têm, e estão possuindo. Quero finalmente, que

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todos, quantos têm ouvido, pelas obras, que fizerem, vão para o Céu direitinhos. QUEIXAS DA SUA MESMA VERDADE. Quer-me mal esta cidade......pela verdade, Não há, quem me fale, ou veja............ de inveja, E se alguém me mostra amor....é temor. De maneira, meu Senhor, que me hão de levar a palma meus três inimigos d'alma Verdade, Inveja, e Temor. Oh quem soubera as mentiras....do milimbiras, Fora aqui senhor do bolo....... como tolo, E feito tolo, e velhaco.....fora um caco. Meteria assim no saco Servindo, andando e correndo as ligas, que vão fazendo Milimbiras, Tolo, e Caco. Tirara cinzas tiranas......das bananas Outro se os meus dez réis......de pastéis E porque isento não fosse........até do doce. Teria assim, com que almoce o meu amancebamento, pois lhe basta por sustento Bananas, Pastéis, e Doce. Prendas, que a empenhar obrigo.......pelo amigo, Dobrar-lhe eu o valor......e primor, Cobrando em dous bodegões.......os tostões. E seus donos asneirões ao desfazer da moeda perdem da mesma assentada Amigo, Primor, Tostões. Ao jimbo, que se lhe conta.......boa conta, E já por amigo vejo...... sem ter pejo,

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Pois lhe tira de corrida.......a medida. Mas verdadeira, ou mentida a conta ajustada vem, sendo um homen, que não tem, Conta, Pejo, nem Medida. Dever-me-ão camaradas.....mil passadas, E o triste do companheiro.... o dinheiro, E à conta das minhas brasas........as casas. Assim lhe empatara as vazas, pois o mesmo, que eu devia, por força me deveria Passadas, Dinheiro, e Casas. TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE. Que falta nesta cidade?......Verdade Que mais por sua desonra........Honra Falta mais que se lhe ponha......Vergonha. O demo a viver se exponha, por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha. Quem a pôs neste socrócio?......Negócio Quem causa tal perdição?......Ambição E o maior desta loucura?.......Usura. Notável desventura de um povo néscio, e sandeu, que não sabe, que o perdeu Negócio, Ambição, Usura. Quais são os seus doces objetos?..... Pretos

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Tem outros bens mais maciços?..........Mestiços Quais destes lhe são mais gratos?........... Mulatos. Dou ao demo os insensatos, dou ao demo a gente asnal, que estima por cabedal Pretos, Mestiços, Mulatos. Quem faz os círios mesquinhos?........Meirinhos Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas Quem as tem nos aposentos?...........Sargentos. Os círios lá vêm aos centos, e a terra fica esfaimando, porque os vão atravessando Meirinhos, Guardas, Sargentos, E que justiça a resguarda?.......... Bastarda É grátis distribuída?............ Vendida Quem tem, que a todos assusta?........Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, o que EL-Rei nos dá de graça, que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta. Que vai pela clerezia?... Simonia E pelo membros da Igreja?.......Inveja Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha. Sazonada caramunha! enfim que na Santa Sé o que se pratica, é Simonia, Inveja, Unha. E nos Frades há manqueiras?......Freiras Em que ocupam os serões?......Sermões Não se ocupam em disputas?.......Putas. Com palavras dissolutas me concluís na verdade,

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que as lidas todas de um Frade são Freiras, Sermões, e Putas. O açúcar já se acabou?.......Baixou E o dinheiro se extinguiu?.......Subiu Logo já convalesceu?...... Morreu. À Bahia aconteceu o que a um doente acontece, cai na cama, o mal lhe cresce, Baixou, Subiu, e Morreu. A Câmara não acode?............ Não pode Pois não tem todo o poder?........... Não quer É que o governo convence?...........Não vence. Quem haverá que tal pense, que uma Câmara tão nobre por ver-se mísera, e pobre Não pode, não quer, não vence. III - OS HOMENS BONS Gregório de Matos 1 - PESSOAS MUITO PRINCIPAIS 2 - SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA 3 - A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA 4 - AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS. A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO. 5 - AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APARECIDO. 6 - AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE SENDO ANTIGO HE MUYTO BELLO. 7 - A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR. 8 - A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA. 9 - AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCASIÃO. 10 - AO SANTÍSSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR

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11 - ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR. 12 - A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS NAQUELLE TEMPO:'BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?" O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO ÀS TENTAÇÕ DIABOLICAS. 13 - AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO RECOPYLADO NA FLOR DE MARACUJÁ. 14 - RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO? NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS RESPOSTAS DE NOSSOS POETAS. 15 - AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA COUSA MAIS QUE A PROVIDÊNCIA DIVINA. 16 - NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA. 17 - CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS. 18 - CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E VIDA RELAXADA. 19 - O DIA DO JUIZO 20 - A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA. 21 - A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA. 22 - AO MESMO ASSUMPTO. 23 - A N. SENHORA DO ROSARIO. 24 - AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N. SENHORA DE MONSARRATE. 25 - A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO. 26 - AO GLORIOSO PORTUGUES SANTO ANTONIO. 27 - AO MESMO ASSUMPTO. 28 - AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR. 29 - A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA. 30 - SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIM SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA, PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CRÉDITO DA VENERÁVEL RELIGIOSA. Senhor, bem-vinda seja Vossa Senhoria Eu sou aquele que os passados anos Cantei na minha lira maldizente Torpezas do Brasil, vícios e enganos. Que néscio que eu era então. 1 - PESSOAS MUITO PRINCIPAIS ... certa pessoa muito principal ... Manuel Pereira Rabelo, licenciado do Céu toda a Majestade

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em tão pequeno distrito. SALVE RAINHA A VIRGEM SANTÍSSIMA. Salve, Celeste Pombinha, Salve, divina Beleza, Salve, dos Anjos Princesa, e dos céus, Salve Rainha. Sois graça, luz, e concórdia entre os maiores horrores, sois guia de pecadores, Madre de Misericórdia Sois divina Formosura, sois entre as sombras da morte o mais favorável Norte, e sois da vida Doçura Sois a peregrina Ave, pois minha fé vos alcança sois pois ditosa esperança Esperança nossa Salve Vosso favor invocamos como remédio mais raro, não nos falte vosso amparo, e vede, que a vós bradamos Os da Pátria desterrados viver na pátria desejam; quereis vós, que dela sejam deste mundo os degradados? De Jesus tanto agrado leva de com os homens viver, nós somos, bem podeis ver, os mesmos Filhos de Eva. Humildes vos invocamos com rogos enternecidos, e desse amparo rendidos, Senhora, a vós supiramos. Se Deus nos perdoa, quando a nossa culpa é chorada, estamos por ser perdoada aqui gemendo, e chorando. Mas vós, por quem mais se vale, Lírio do Vale, chorais, e o vosso pranto val mais neste de Lágrimas Vale Já que tão piedosa sois não tardeis com vosso rogo, alcançai o perdão logo, apressai-vos eia pois. Porque desde agora possa triunfar qualquer de nós de inimigo tão atroz pedi advogada nossa. E enquanto nestes abrolhos do mundo postos estamos, de nós, que o caminho erramos

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não tireis os vossos olhos. Sejam sempre piedosos para nos favorecer, e para nos socorrer sejam misericordiosos. Favorecer-nos quereia, de vossos olhos co'a guia, gloriosa Virgem Maria sempre eles a nós volvéi Livrai-nos de todo erro para que assim consigamos graça enquanto aqui andamos e depois deste desterro Pois vosso Filho é a luz e alumiar-nos quereis, para que esta mostreis nos amostrai a Jesus E se como raio bruto o fruto vemos vedado noutro paraíso dado veremos o bento Fruto Em nossos corações entre seu amor, pois é razão, seja meu de coração, o que foi do vosso ventre De Jericó melhor Rosa, puro, e cândido Jasmim, quereis vós, que seja assim ó clemente, ó piedosa. Tenhamos esta alegria, esta doçura tenhamos, pois que tanta em vós achamos, ó doce Virgem Maria Pois quem mais pode, sois vós, chegando a Deus a pedir para melhor vos ouvir, pedi, e rogai por nós. Que então os favores seus muito melhor seguramos, pois que neles empenhamos a Santa Madre de Deus. Fazei-nos sempres benignos entre deste mundo os sustos para que sejamos justos para que sejamos dignos E se nos concedeis isto, que vos pede o nosso rogo mui dignos nos fareis logo ser das promessas de Cristo Seja pois, divina luz, melhor Estrela, assim seja para que por nós se veja Vosso amparo. Amém Jesus

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A N. SENHORA DA MADRE DE DEOS INDO LÁ O POETA Venho, Madre de Deus, ao Vosso monte E reverente em vosso altar sagrado, Vendo o Menino em berço argenteado O sol vejo nascer desse Horizonte. Oh quanto o verdadeiro Faetonte Lusbel, e seu exército danado Se irrita, de que um braço limitado Exceda na soltura a Alcidemonte. Quem vossa devoção não enriquece? A virtude, Senhora. é muito rica, E a virtude sem vós tudo empobrece. Não me espanto, que quem vos sacrifica Essa hóstia do altar, que vos ofrece, Que vós o enriqueçais, se a vós a aplica. AO MENINO JESUS DE N. SENHORA DAS MARAVILHAS, A QUEM INFIÉIS DESPEDAÇARAM ACHANDO-SE A PARTE DO PEYTO. Entre as partes do todo a melhor parte Foi a parte, em que Deus pôs o amor todo Se na parte do peito o quis pôr todo O peito foi foi do todo a melhor parte. Parta-se pois de Deus o corpo em parte, Que a parte, em que Deus ficou o amor todo Por mais partes, que façam deste todo De todo fica intacta essa só parte. O peito já foi parte entre as do todo, Que tudo mais rasgaram parte a parte; Hoje partem-se as partes deste todo Sem que do peito todo rasguem parte, Que lá quis dar por partes o amor todo, E agora o quis dar todo nesta parte. AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO. O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo. Em todo o sacramento está Deus todo, E todo assiste inteiro em qualquer parte, E feito em partes todo em toda a parte, Em qualquer parte sempre fica o todo. O braço de Jesus não seja parte, Pois que feito Jesus em partes todo Assiste cada parte em sua parte. Não se sabendo parte deste todo, Um braço, que lhe acharam, sendo parte, Nos disse as partes todas deste todo. AO MENINO JESUS DO COADJUTOR DE S. ANTÔNIO QUE SENDO ANTIGO HE MUYTO BELLO.

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Oh, quanta divindade, oh quanra graça, Menino, em vosso vulto sacro, e belo Infunde a mão de tal gentil modelo, Inspira o Autor de tão divina traça! Se o tempo aos mais vultos desengraça Na vossa Imagem não deslustra um pêlo: Reverente o tratou com tal desvelo, Que o que eleva menino, velho embaça. Quanto a idade usurpa de beleza Nos que somos mortais, paga em respeito, Venerações, que atrai a antiguidade. Mas de vossa escultura a gentileza Tem trocado do tempo o edaz efeito Venera-se a beleza, ama-se a idade. A N. SENHOR JESUS CHRISTO COM ACTOS DE ARREPENDIDO E SUSPIROS DE AMOR. Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade, É verdade, meu Deus, que hei delinqüido, Delinqüido vos tenho, e ofendido, Ofendido vos tem minha maldade. Maldade, que encaminha à vaidade, Vaidade, que todo me há vencido; Vencido quero ver-me, e arrependido, Arrependido a tanta enormidade. Arrependido estou de coração, De coração vos busco, dai-me os braços, Abraços, que me rendem vossa luz. Luz, que claro me mostra a salvação, A salvação pertendo em tais abraços, Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus. A CHRISTO S. N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA Meu Deus, que estais pendente em um madeiro, Em cuja lei protesto viver, Em cuja santa lei hei de morrer Animoso, constante, firme, e inteiro. Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minh vida anoitecer, É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai manso Cordeiro. Mui grande é vosso amor, e meu delito, Porém pode ter fim todo o pecar, E não o vosso amor, que é infinito. Esta razão me obriga a confiar, Que por mais que pequei, neste conflito Espero em vosso amor de me salvar. AO MESMO ASSUMPTO E NA MESMA OCCASIÃO. Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

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Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinqüido, Vos tenho a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-nos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida, e já cobrada Glória tal, e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória. AO SANCTISSIMO SACRAMENTO ESTANDO PARA COMUNGAR. Tremendo chego, meu Deus Ante vossa divindade, que a fé é muito animosa, mas a culpa mui cobarde. À vossa mesa divina como poderei chegar-me, se é triaga da virtude e veneno da maldade? Como comerei de um pão, que me dais, porque me salve? um pão, que a todos dá vida, e a mim temo, que me mate. Como não hei de ter medo de um pão, que tão formidável vendo, que estais todo em tudo, e estais todo em qualquer parte? Quanto a que o sangue vos beba, isso não, e perdoai-me: como quem tanto vos ama, há de beber-vos o sangue? Beber o sangue do amigo é sinal de inimizade; pois como quereis, que o beba, para confirmarmos pazes? Senhor, eu não vos entendo; vossos preceitos são graves, vossos juízos são fundos, vossa idéia inescrutável. Eu confuso neste caso entre tais perplexidades de salvar-me, ou de perder-me, só sei, que importa salvar-me. Oh se me déreis tal graça, que tenho culpas a mares, me virá salvar na tábua de auxílios tão eficazes! E pois já à mesa cheguei, onde é força alimentar-me deste manjar, de que os Anjos fazem seus prórios manjares:

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Os Anjos, meu Deus, vos louvem, que os vossos arcanos sabem, e os Santos todos da glória, que, o que vos devem, vos paguem. Louve-vos minha rudeza, por mais que sois inefável, porque se os brutos vos louvam, será a rudeza bastante. Todos os brutos vos louvam, troncos, penhas, montes, vales, e pois vos louva o sensível, louve-vos o vegetável. ACTO DE CONTRIÇÃO O QUE FÊZ DEPOIS DE SE CONFESSAR. Meu amado Redentor, Jesu Cristo soberano Divino Homem, Deus Humano, da terra, Deus criador: por seres, quem sois, Senhor, e porque muito vos quero, me pesa com rigor fero de vos haver ofendido, do que agora arrependido, meu Deus, o perdão espero. Bem sei, meu Pai soberano, que na obstinação sobejo corri sem temor, nem pejo pelos caminhos do engano: bem sei também, que o meu dano muito vos tem agravado, porém venho confiado em vossa graça, e amor, que também sei, é maior, Senhor, do que meu pecado. Bem não vos amo, confesso, várias juras cometi, missa inteira nunca ouvi, a meus Pais não obedeço: matar alguns apeteço, luxurioso pequei, bens do próximo furtei, falsos levantei às claras, desejei mulheres raras, cousas de outrem cobicei. Para lavar culpas tantas, e ofensas, Senhor,tão feias são fortes de graça cheias essas chagas sacrossantas: sobre mim venham as santas correntes do vosso lado; para que fique lavado, e limpo nessas correntes, comunica-me as enchentes da graça, meu Deus amado. Assim, meu Pai, há de ser, e proponho, meu Senhor, com vossa graça, e amor nunca mais vos ofender: prometo permanecer em vosso amor firmemente,

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para que mais nunca intente ofensas contra meu Deus, a quem os sentidos meus ofereço humildemente. Humilhado desta sorte, meu Deus do meu coração, vos peço ansioso o perdão por vossa paixão, e morte: à minha alma em ânsia forte perdão vossas chagas dêem, e com o perdão também espero o prêmio dos Céus, não pelos méritos meus, mas do vosso sangue: amém. A HUMAS CANTIGAS, QUE COSTUMAVAM CANTAR OS CHULOS NAQUELLE TEMPO: "BANGUÉ, QUE SERÁ DE TI?" E OUTROS MAIS PIEDOSOS CANTAVÃO: "MEU DEOS, QUE SERÁ DE MIM?" O QUE O POETA GLOZOU ENTRE A ALMA CHRISTÃ RESISTlNDO ÀS TENTAÇÕES DIABOLICAS. MOTE Meu Deus, que será de mim? Bangüê, que será de ti? Alma Se o descuido do futuro, e a lembrança do presente é em mim tão continente, como do mundo murmuro? Será, porque não procuro temer do princípio o fim? Será, porque sigo assim cegamente o meu pecado? mas se me vir condenado, Meu Deus, que será de mim? Se não segues meus enganos, e meus deleites não segues, temo, que nunca sossegues no florido dos teus anos: vê, como vivem ufanos os descuidados de si; canta, baila, folga, e ri, pois os que não se alegraram. dous infernos militaram. Bangüê, que será de ti? Alma Se para o céu me criastes, Meu Deus, à imagem vossa, como é possível, que possa fugir-vos, pois me buscastes: e se para mim tratastes o melhor remédio, e fim, eu como ingrato Caim deste bem tão esquecido

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tenho-vos tão ofendido: Meu Deus, que será de mim? Demônio Todo o cantar alivia, e todo o folgar alegra toda a branca, parda e negra tem sua hora de folia: só tu na melancolia tens alívio? canta aqui, e torna a cantar ali, que desse modo o praticam, os que alegres pronosticam, Bangüê, que será de ti? Alma Eu para vós ofensor, vós para mim ofendido? eu já de vós esquecido, e vós de mim redentor? ai como sinto, Senhor, de tão mau princípio o fim: se não me valeis assim, como àquele, que na cruz feristes com vossa luz, Meu Deus, que será de mim? Demônio Como assim na flor dos anos colhes o fruto amargoso? não vês, que todo o penoso é causa de muitos danos? deixa, deixa desenganos, segue os deleites, que aqui te ofereço: porque ali os mais, que cantando vão, dizem na triste canção, Bangüê que será de ti? Alma Quem vos ofendeu, Senhor? Uma criatura vossa? como é possível, que eu possa ofender meu Criador? triste de mim pecador, se a glória, que dais sem fim perdida num serafim se perder em mim também! Se eu perder tamanho bem, Meu Deus, que será de mim? Demônio Se a tua culpa merece do teu Deus a esquivança a folga no mundo, e descansa,

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que o arrepender aborrece: se o pecado te entristece, como já em outros vi, te prometo desde aqui, que os mais da tua facção, e tu no inferno dirão, Bangüê, que será de ti? AO MISTERIOSO EPÍLOGFOLOGO DOS INSTRUUMENTOS DA PAYXAO RECOPILADO NA FLOR DO MARACUJÁ. Divina flor, se en essa pompa vana Los martirios ostentas reverente, Corona con los clavos a tu frente, Pues brillas con las llagas tan losana. Venera essa corona altiva, y ufana, Y en tus garbos te ostenta floreciente: Los clavos enarbola eternamente, Pues Dios com sus heridas se te hermana. Si flor nasciste para mas pomposa Desvanecer floridos crescimientos Ya, flor, te reconocen mas dichosa. Que el cielo te ha gravado en dos tormentos En clavos la corona mas gloriosa, Y en llagas sublimados luzimientos. RENDE-SE A PESSOA DE BERNARDO VIEYRA RAVASCO? NESTE SONETO, PELOS MESMOS CONSOANTES DE OUTRO FEITO À FLOR DO MARACUJÁ PARA CONSTAR DO DITO QUE ERAM ESTAS RESPOSTAS DO NOSSO POETA. Ya rendida, y prostrada mas que vana A vuestros pies mi Musa reverente Por coronar com ellos a su frente Del suelo sube al cielo mas losana. Por convencido ostenta gloria ufana, Que tiene por corona floreciente El quedar-se rendida eternamente, Porque humilhada al triumpho se germana. Rendimiento fiel haze pomposa, Que en beber los castalios crescimientos Se adquire la ventura mas dichosa. A que Phenix nos causa mil tormentos Ver, que triumpha humilhada, y tan gloriosa Por ser rendida a vuestro luzimiento. AFIRMA QUE A FORTUNA, E O FADO NÃO É OUTRA COUSA MAIS QUE A PROVIDENCIA DIVINA. Isto, que ouço chamar por todo o mundo Fortuna, de uns cruel, d'outros impia, É no rigor da boa teologia Providência de Deus alto, e profundo. Vai-se com temporal a Nau ao fundo carregada de rica mercancia, Queixa-se da Fortuna, que a envia, E eu sei, que a submergiu Deus iracundo.

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Mas se faz tudo a alta Providência De Deus, como reparte justamente À culpa bens, e males à inocência? Não sou tão perspicaz, nem tão ciente, Que explique arcanos d'alta Inteligência, Só vos lembro, que é Deus o providente. NO SERMÃO QUE PREGOU NA MADRE DE DEOS D. JOÃO FRANCO DE OLIVEYRA PONDERA O POETA A FRAGILIDADE HUMANA. Na oração, que desaterra.......... aterra Quer Deus, que, a quem está o cuidado.......dado Pregue, que a vida é emprestado.........estado Mistérios mil, que desenterra....... enterra. Quem não cuida de si, que é terra.........erra Que o alto Rei por afamado........ amado, E quem lhe assiste ao desvelado .......lado Da morte ao ar não desaferra......... aferra. Quem do mundo a mortal loucura..........cura, A vontade de Deus sagrada.......... agrada, Firmar-lhe a vida em atadura........ dura. Ó voz zelosa, que dobrada........ brada, Já sei, que a flor da formosura......... usura Será no fim desta jornada......... nada. CONTINUA O POETA COM ESTE ADMIRAVEL A QUARTA FEYRA DE CINZAS

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Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te, Te lembra hoje Deus por sua Igreja, De pó te faz espelho, em que se veja A vil matéria, de que quis formar-te. Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te, E como o teu baixel sempre fraqueja Nos mares da vaidade, onde peleja, Te põe à vista a terra, onde salvar-te. Alerta, alerta pois, que o vento berra, E se assopra a vaidade, e incha o pano, Na proa a terra tens, amaina, e ferra. Todo o lenho mortal, baixel humano Se busca a salvação, tome hoje terra, Que a terra de hoje é porto soberano. CONSIDERA O POETA ANTES DE CONFESSAR-SE NA ESTREYTA CONTA, E VIDA RELAXADA. Ai de mim! Se neste intento, e costume de pecar a morte me embaraçar o salvar-me, como intento? que mau caminho freqüento para tão estreita conta; oh que pena, e oh que afronta será, quando ouvir dizer: vai, maldito, a padecer, onde Lucifer te aponta. Valha-me Deus, que será desta minha triste vida, que assim mal logro perdida, onde, Senhor, parará? que conta se me fará lá no fim, onde se apura o mal, que sempre em mim dura, o bem, que nunca abracei, os gozos, que desprezei, por uma eterna amargura. Que desculpa posso dar, quando ao tremendo juízo for levado de improviso, e o demônio me acusar? Como me hei de desculpar sem remédio, e sem ventura, se for para aonde dura o tormento eternamente, ao que morre impenitente sem confissão, nem fé pura. Nome tenho de cristão, e vivo brutualmente, comunico a tanta gente sem ter, quem me dê a mão: Deus me chama co perdão por auxílios, e conselhos, eu ponho-me de joelhos e mostro-me arrependido; mas como tudo é fingido, não me valem aparelhos.

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Sempre que vou confessar-me, digo, que deixo o pecado; porém torno ao mau estado, em que é certo o condenar-me: mas lá está quem há de dar-me o pago do proceder: pagarei num vivo arder de tormentos repetidos sacrilégios cometidos contra quem me deu o ser. Mas se tenho tempo agora, e Deus me quer perdoar, que lhe hei de mais esperar, para quando? ou em qual hora? que será, quando traidora a morte me acometer, e então lugar não tiver de deixar a ocasião, na extrema condenação me hei de vir a subverter. AO DIA DO JUIZO. O alegre do dia entristecido, O silêncio da noite perturbado O resplandor do sol todo eclipsado, E o luzente da lua desmentido! Rompa todo o criado em um gemido, Que é de ti mundo? onde tens parado? Se tudo neste instante está acabado, Tanto importa o não ser, como haver sido. Soa a trombeta da maior altura, A que a vivos, e mortos traz o aviso Da desventura de uns, d'outros ventura. Acabe o mundo, porque é já preciso, Erga-se o morto, deixe a sepultura, Porque é chegado o dia do juízo. A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSIMA. Para Mãe, para Esposa, Templo, e Filha Decretou a Santíssima Trindade Lá da sua profunda eternidade A Maria, a quem fez com maravilha. E como esta na graça tanto brilha, No cristal de tão pura claridade A segunda Pessoa humanidade Pela culpa de Adão tomar se humilha Para que foi aceita a tal Menina? Para emblema do Amor, obra piedosa Do Padre, Filho, e Pomba essência trina: É logo conseqüência esta forçosa, Que Estrela, que fez Deus tão cristalina Nem por sombras da sombra a mancha goza. A CONCEYÇÃO IMMACULADA DE MARIA SANTISSINA Como na cova tenebrosa, e escura,

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A quem abriu o Original pecado, Se o próprio Deus a mão vos tinha dado; Podíeis vós cair, ó virgem pura? Nem Deus, que o bem das almas só procura, De todo vendo o mundo arruinado, Permitira a desgraça haver entrado, Donde havia sair nova ventura. Nasce a rosa de espinhos coroada Mas se é pelos espinhos assistida, Não é pelos espinhos magoada. Bela Rosa, ó virgem esclarecida! Se entre a culpa se vê, fostes criada, Pela culpa não fosse ofendida. AO MESMO ASSUMPTO. Antes de ser fabricada do mundo a máquina digna, já lá na mente divina, Senhora, estáveis formada: com que sendo vós criada então, e depois nascida (como é cousa bem sabida) não podíeis, (se esta sois) na culpa, que foi depois, nascer, Virgem, comprendida Entre os nascidos só vós por privilégio na vida fostes, Senhora, nascida isenta da culpa atroz: mas se Deus (sabemos nós) que pode tudo, o que quer, e vos chegou a eleger para Mãe sua tão alta, impureza, mancha, ou falta nunca em vós podia haver. Louvem-vos os serafins, que nessa Glória vos vêem, e todo o mundo também por todos os fins dos fins: Potestades, querubins, e enfim toda a criatura, que em louvar-vos mais se apura, confessem, como é razão, que foi vossa conceição sacra, rara, limpa, e pura. 0 Céu para coroar-vos estrelas vos oferece, o sol de luzes vos tece a gala, com que trajar-vos: a lua para calçar-vos dedica o seu arrebol, e consagra o seu farol, porque veja o mundo todo, que brilham mais deste modo Céu. estrelas, lua, e sol. A N. SENHORA DO ROSARIO. A Rainha celestial,

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venceu o seu contrário, nosso pobre cabedal hoje do Santo Rosário lhe faz um arco triunfal. O arco é de paz, e guerra, com que sempre há de triunfar, e tal virtude em si encerra, que por ele hei de chegar ao alto céu desde a terra. Este é o arco dos céus, que sobre as nuvens se vê, dado para nós por Deus, por cujo meio com fé teremos grandes troféus. Porque o rosário rezado quando a alma em graça está, é sinal, que Deus tem dado, de que não me afogará no dilúvio do pecado. Este é o arco triunfal, por onde a alma gloriosa livre do corpo mortal vai aos céus a ser esposa do Príncipe celestial. Tem o homem seu contrário dentro em sua mesma terra, que lhe vence de Ordinário, e a Virgem por esta guerra dá-lhes as contas do Rosário. Esta é boa artilharia para o justo, e pecador, tirai a alma em pontaria co fogo do vosso amor, e co'as balas de Maria. Toda alma, que fizer conta de si, e sua salvação, ouça, o que a Virgem lhe aponta: suba, que em sua oração será degrau cada conta. AS LAGRIMAS QUE SE DIZ, CHOROU N.SENHORA DE MONSARRATE. Temor de um dano, de uma oferta indício Pronta em divina Origem desatado, Que tendo por horrível ao pecado Sois a Deus agradável sacrifício. Esperança da fé, terror do vício, Enigma em dois assuntos decifrado, Que pareceis castigo ameaçado E sois executado benefício. Duas cousas qualquer delas possível Tendes, ó pranto, para ser forçoso, e envolveis o prodígio para crível. Tendo um motivo ingrato, outro piedoso, Um na minha dureza aborrecível, Outro no vosso amparo generoso.

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A S. FRANCISCO TOMANDO O POETA O HABITO DE TERCEYRO. Ó magno serafim, que a Deus voaste Com asas de humildade, e paciência, E absorto já nessa divina essência Logras o eterno bem, a que aspiraste: Pois o caminho aberto nos deixaste, Para alcançar de Deus também clemência Na ordem singular de penitência Destes Filhos Terceiros, que criaste. A Filhos, como Pai, olha queridos, E intercede por nós, Francisco Santo, Para que te sigamos, e imitemos. E assim desse teu hábito vestidos Na terra blasonemos de bem tanto, E depois para o Céu juntos voemos. AO GLORIOSO PORTUGUEZ SANTO ANTONIO MOTE Deus, que é vosso amigo d'alma, na palma se vos vem pôr, para mostrar, que de amor só vós levastes a palma. Quando o livrinho perdestes lá na mata do botão, Antônio, grande aflição dentro em vossa alma tivestes: e se da dor, que vencestes levastes vitória, e palma, bem se colhe, que em tal calma tal dor, e tal agonia só aliviar-vos podia Deus, que é vosso amigo d'alma. Fez-vos Deus nessa ocasião visita bem lisonjeira, e por não puxar cadeira, se sentou na vossa mão: foi larga a conversação, que o assunto foi de amor, e porque um Frade menor, (sendo menor que o Menino) era de tal palma digno, Na palma se vos vem pôr. Convosco o Menino então um jogo, Antônio, jogou: ele a palma vos ganhou, mas vós ganhastes por mão: não jogou entonces não com o seu Servo o Senhor para mostrar, que o favor nasceu da ociosidade, senão por mais majestade Para mostrar, que de amor.

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Mostrou, que em quererdes bem a um Deus, a quem imitastes, não só premissas pagastes, mas os dízimos também: e por deixar em refém deste amor a mais pura alma, pois todas deixais em calma, cantam os coros celestes, que porque a palma a Deus destes Só vos levastes a palma. AO MESMO ASSUMPTO. MOTE Qual dos dois terá mor gosto, Antônio em braços com Cristo, ou Cristo em seus braços posto? Gosta Cristo de mostrar que é de Antônio amante fino, por isso se faz menino, para em seus braços estar: mas quem poderá falar, quando está de rosto a rosto Cristo com Antônio posto, Antônio com Cristo em braços em tão amorosos laços Qual dos dois terá mor gosto? Mas sendo Cristo o que vem para em seus braços se ver, com razão se há de dizer, que Cristo mor gosto tem: mas se ainda houver alguém, que duvide assim ser isto, em seus braços bem se há visto Cristo, porque quis mostrar, que somente pode estar Antônio em braços com Cristo. Foi tão raro, e peregrino este Santo Lusitano, que mereceu, sendo humano, adorações de divino: finalmente foi tão digno de excelências, que em seu rosto realça de Cristo o gosto: pois onde Cristo estiver, logo Antônio se há de ver, Ou Cristo em seus braços posto. AO MESMO QUE LHE DERAM A GLOZAR. MOTE Bêbado está Santo Antônio Entrou um bêbado um dia pelo templo sacrossanto do nosso Português Santo,

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e para o Santo investia: a gente, que ali assistia, cuidando, tinha o demônio, lhe acudiu a tempo idôneo, gritando-lhe todos, tá, tem mão, olha, que acolá, Bêbado, está Santo Antônio. A CANONIZAÇÃO DO BEATO STANISLAO KOSCA. Na conceição o sangue esclarecido, No nascimento a graça, consumada, Na vida a perfeição mais regulada, E na morte o triunfo mais devido. O sangue mal na Europa competido, A graça nas ações sempre admirada, A profissão no breve confirmada, O triunfo no eterno merecido. Tudo se vincula ao ser profundo De Estanislau, que a glória do seu norte Foi ser portento ao céu, prodígio ao mundo. Por isso teve a fama de tal sorte, Que o fazem nela unidos sem segundo Conceição, Nascimento, Vida, e Morte. SOLILOQUIO DE Me. VIOLANTE DO CEO AO DIVINISSIMO SACRAMENTO: GLOZADO PELO POETA, PARA TESTEMUNHO DE SUA DEVOÇÃO, E CREDITO DA VENERAVEL RELIGIOSA. MOTE Soberano Rei da Glória, que nesse doce sustento sendo todo entendimento quisestes ficar memória. Numa cruz vos exaltastes, meu Deus, para padecer, e nas ânsias de morrer ao Eterno Pai clamastes: sangue com água brotastes do lado para memória, e como consta da História, quisestes morrer constante por serdes tão fino amante, Soberano Rei da Glória. Se na glória, em que reinais, amante vos concedeis bem mostrais, no que fazeis, que extremosamente amais: mas se em pão vos disfarçais, dando-vos por alimento, o entendimento, onde assistis com mais luz? mas direis, doce Jesus Que nesse doce sustento. Sabendo enfim, que morríeis,

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amante vos entregastes, e no Horto, quando orastes ânsias de morte sentíeis: já, divino Amor, sabíeis, da vossa morte o tormento, e já desde o nascimento todo o saber comprendestes, porque, Senhor, já nascestes Sendo todo entendimento. Vivas lembranças deixastes da vossa morte, Senhor, e para maior amor mesmo em lembrança ficastes: numa ceia apresentastes vosso corpo em tanta glória, que para contar a história da vossa morte, e tormento, no divino Sacramento Quisestes ficar memória. MOTE Sol, que estando abreviado nesse cândido Oriente, abonais o mais ardente, ostentando o mais nevado. Sendo Sol, que dominais dos céus a máquina fera, em tão limitada esfera, como esse Sol ostentais? creio, que a entender nos dais, meu Redentor extremado, que em lugar tão limitado só o amor caber se atreve como num círculo breve Sol, que estando abreviado Bem nesse lugar tão breve vemos com tanto arrebol abrasar-se tanto sol nos epiciclos da neve: muito a vosso amor se deve, pois como Sol no nascente pelo cristal transparente divinamente ilustrais, e todo vos abrasais Nesse cândido Oriente. Todo neve na brancura, todo sol, no que brilhais, como sol nos abrasais, sendo neve na frescura: mas tanto o divino apura no cristal o transparente, que ali fazendo patente o quanto estais empenhado, de fino amor abrasado Abonais o mais ardente. Nascem desempenhos tais desses divinos primores, que em requintados amores todo a nós nos dedicais: mas bem que vos empenhais, vejo-vos mui bem trajado

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nessa gala de encarnado, que tomastes de Maria, agora por bizarria Ostentando o mais nevado. MOTE Emblema de amor mais puro, enigna de amor mais raro, que sendo à vista tão claro, sois também à vista escuro. Depois de crucificado vos admirei, bom Senhor, fino retrato do amor, quando vos vi retratado: então de um iluminado sanguinosamente escuro, se bem que estou mui seguro das finezas do Calvário, vos contemplei no sudário Emblema de amor mais puro E suposto o pensamento se pasma do escuro enigma, mais o mistério sublima vendo-vos no Sacramento: ali meu entendimento conhecendo-vos tão claro, melhor esforça o reparo de que estais tão luzido, quando melhor comprendido Enigma de amor mais raro Que no Sacramento estais todo, e toda a divindade, conheço com realidade, suposto que o disfarçais: para que vos ocultais nesse mistério tão raro, se a maravilha reparo, penetrando-vos atento, mais claroao entendimento, Que sendo à vista tão claro? Que se de neve coberto fica o divino admirado, bem se pode um disfarçado conhecer melhor ao perto: porém vós andais tão certo, e tanto em recatos puro, que se ver-vos me asseguro nesse disfarce, em que andais, inda que patente estais, Sois também à vista escuro. MOTE Agora que entre candores a vosso amor dais a palma, escutai, Senhor, uma alma, que por vós morre de amores. Todo amante, e todo digno vos veio estar neste trono,

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prestando ao amor de abono quilates do ardor mais fino: porém, Senhor, se contino abrasado estais de amores, entre tantos resplandores, que por fineza ocultais, vede, que nos abrasais Agora, que entre candores. De amor tão qualificado digo, ó cordeiro bendito, que vos aclame infinito tanto espírito elevado: que eu vos não louvo ajustado, bem que supra afetos d'alma, pois meu amor nesta calma, sendo do vosso vencido, reconheço, que subido A vosso amor dais a palma. Mas por amor tão subido ouvi, como tenro amante, este pecador constante, que se chega arrependido: seja de vós admitido o pranto, em que se desalma para crédito da palma, que dais a vossos amores, dos humildes pecadores Escutai, Senhor, uma alma. Ouvi desta alma humilhada, Senhor, um fraco conceito, e é, que entreis em meu peito a fazer vossa morada: achareis de boa entrada tormentos, ânsias, e dores, que deram os malfeitores em toda a vossa paixão, e vereis um coração, Que por vós morre de amores. MOTE Escutai vossos efeitos em grosseiras humildades que para vós as verdades têm mais valor, que os conceitos. Já sei, meu Senhor, que vivo depois que em meu peito entrastes, porque logo me deixastes ardendo em um fogo ativo: agora tenho motivo para melhorar conceitos, quando dos vossos respeitos palpita meu peito o ardor, e para ver vosso amor Escutai vossos efeitos Mas se o infinito ardor pode atalhar, quanto diga, sempre o meu termo periga nas eloqüências de amor: cale-se a língua melhor em tantas dificuldades, vos intenta ponderar, mil erros lhe haveis de achar Em grosseiras humildades.

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Quem, Senhor, na confissão andara tão acertado, que do mais leve pecado soubera ter contrição: que de todo o coração com assaz de realidades sentira essas propriedades confessando, o que mandais, pois sei, que não quereis mais Que para vós as verdades. Bem advertido, Senhor, estou, que sois lince vós, e que penetrais em nós os movimentos de amor: tanto conheceis a dor, que temos em nossos peitos, que sendo de amor efeitos os verdadeiros sinais, convosco verdades tais Têm mais valor, que os conceitos. MOTE Exercite os mais subidos, quem busca humanos agrados, que sempre são levantados, os que são de vós ouvidos. Oh quem tivera empregados em vós, meu Amor divino, cuidados, que de contino se multiplicam cuidados: fazei, que a vós levantados se acreditem de luzidos pensamentos, que abatidos seguem do mundo os enganos, e que deixando os humanos, Exercite os mais subidos. Quem conquistando, Senhor, vosso amor, perdera a vida, porque a dá por bem perdida quem a perde em vosso amor! Se eu, terníssimo Pastor, acudira a vossos brados, então sim, que os meus cuidados coroara de alta dita, já que fino se acredita Quem busca humanos agrados. Porque aqueles, que vos amam, e em tais delícias se enlevam, o prêmio consigo levam, e filhos vossos se aclamam: que como no amor se inflamam, os que são vossos amados, já purificados por filhos do vosso amor, quem há de negar, Senhor, Que sempre são levantados? Quem de contino a bradar por vós no maior rigor nas enchentes desse amor não acha de graça um mar?

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quero com ânsias mostrar a dor, a pena, os gemidos; pois sendo a vós repetidos, serão de vós bem lembrados, que são bem-aventurados Os que são de vós ouvidos. MOTE Ai Senhor, quem alcançara um bem tão alto, e divino, que de meus ais o contino a tais ouvidos chegara! Ai meu Deus, quem merecera trazer-vos tão dentro d'alma, que abrasado em viva calma do vosso amor falecera! Ai Senhor, quem padecera por vós, e só vos amara! ai quem por vós desprezara tanta enganosa ruína, e vossa graça divina Ai Senhor, quem alcançara. Ai quem fora tão ditoso, que soubera bem amar-vos, e na ação de conquistar-vos rejeitara o mais custoso! quem, Senhor, tão sequioso todo amante, e todo fino elevara o seu destino a beber da fonte clara, que desta sorte lograra, Um bem tão alto, e divino. Quem disposto a padecer por vós buscara os retiros. onde com ais, e suspiros soubera por vós morrer! quem sabendo comprender desse vosso amor o fino se elevara peregrino por um amor de tal porte, que me dera a melhor sorte, Que de meus ais o contino! Só então fora feliz, e fora então venturoso, se conhecera ditoso, que meus suspiros ouvis: se minha dor admitis, ditoso então me chamara; oh se de uma dor tão rara ouvísseis um só gernido, e se um ai enternecido A tais ouvidos chegara! MOTE Porém justamente espera cada qual chegar-vos logo,

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porque a suspiros de fogo nunca nos negais esfera. Esta alma, meu Redentor, que vos busca peregrina, por vossa grasa divina suspira em contlnua dor: diz, e protesta, Senhor, que se mil vidas tivera, todas por vós as perdera, e não só não se embaraça no pedir da vossa graça, Porém justamente espera. Espera, e não estranheis o confiar de um preverso, que pertende já converso, que a todos, Senhor, salveis: peço-vos, que nos livreis desse dilúvio de fogo; ouvi por todos meu rogo, inda que vos não compete, que todos juntos, promete Cada qual chegar-vos logo. Porque se abrasado o peito vosso amor está chamando, não é muito, que chorando seja cada qual desfeito: bem posso formar conceito desta causa, Senhor, logo, pois vós ouvistes meu rogo, e atendeis à minha mágoa, porque vós venceis com água Porque a suspiros de fogo. Arde meu peito em calor, se bem estou anelando, quando me estou abrasando em tanto fogo de amor: se se realça o ardor, que um peito amante verbera quem o favor não espera de tanto carinho ao rogo, se a chamas de ativo fogo Nunca vos negais esfera? MOTE Ai meu bem! ai meu Esposo! ai Senhor Sacramentado! que mal pode o disfarçado ocultar o poderoso. Ai meu Deus, que já não sei vendo, que vos ausentais, dizer, como me deixais neste abismo, em que fiquei ai Senhor! e que farei para alcançar venturoso, o que por menos ditoso perdi, ou talvez de indigno: ai meu Redentor divino! Ai meu bem! ai meu Esposo Ai Senhor, que me deixais

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nesta dura soledade morto na realidade, bem que vivo me vejais: mistérios de amor guardais, porque estais inda encerrado em dar-me a vida empenhado, e do vosso amor a palma: ai amante da minha alma! Ai Senhor Sacramentado! Se nos disfarces metido roubar as almas quereis, que importa, vos disfarceis, ficando à vista o vestido? mas de que (já conhecido pelo vestido encarnado) vos importa o rebuçado: pois conhecido o poder, tanta luz escurecer Que mal pode o disfarçado. Diáfano, e transparente esse cristal puro, e fino com resguardar o divino declara o onipotente: tanto nele permanente está sempre o majestoso, que então brilha mais lustroso pelas veias do cristal, e oculta instrumento tal Ocultar o poderoso. MOTE Ai que bem se deixa ver nessa Hóstia, Rei Supremo, que quanto é maior o extremo, tanto é maior o poder. Cuidei que não permitisse vosso poder sublimado, que estando assim disfarçado, tão claramente vos visse: mas porque bem arguísse, qual seja o vosso poder, breve cheguei a colher pelo cristal transparente, o que em vós como acidente Ai que bem se deixa ver! Bendito seja, e louvado, pelo que tem de amoroso, um Deus, que é tão poderoso, um Senhor tão sublimado: deixar de ser exaltado poder tão grande, não temo, pois se vê de extremo a extremo, que a grandeza, que se sabe cabendo em vós, toda cabe Nessa Hóstia, Rei Supremo. Exaltada a Majestade seja de um Rei tão divino, e louvada de contino tão suprema divindade: porque, Senhor, na verdade

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dessas profundezas temo, quando a razão, Rei Supremo, responde à minha rudeza (sobre o subir da grandeza) Que quanto é maior o extremo. E colhida a admiração no Sacramento está visto quando Pão, ser todo Cristo quando Cristo, todo Pão unido na Encarnação ao divino e humano ser e sendo imortal morrer um Deus, que tanto se humilha sendo grande a maravilha Tanto é maior o poder MOTE Porque, quem em pão se encerra Ser divino, e Ser humano, que muito que soberano fabricasse o céu, e a terra. Se no pão vos disfarçais, por cobrir vossa grandeza, já do pão na natureza toda a grandeza expressais. melhor no pão publicais o poder a toda a terra, pasme o mar, e trema a serra, e reconheça o percito, que o Pão é Deus infinito; Porque quem em pão se encerra? Neste Pão sacramentado, que dos Anjos é sustento, têm as almas grande alento por meio de um só bocado: perdoa a todo o pecado por mais torpe, e desumano, e eu me confesso tirano, porque me não arrependo se estou no Pão conhecendo Ser divino, e ser humano. Na Ceia se apresentou o Senhor com realidade, neste Pão da divindade, que a todos sacramentou: se a cada um transformou, passando a divino o humano que muito, que o desumano pecador já convertido seja aos Anjos preferido? Que muito, que soberano? Quem assim o permitiu com tão alta onipotência, que o pó da suma indigência sobre as esferas subiu: quem este pó preferiu à luz, que luzes desterra, que muito a contrária guerra pacifique aos elementos? que muito, que a seus intentos

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Fabricasse o Céu, e a terra? MOTE Que muito, que vivo alento desse a um barro insensível um Deus, que lhe foi possível dar-se a si mesmo em sustento. De um barro frágil, e vil, Senhor, o homem formastes, cuja obra exagerastes por engenhosa, e sutil: graças vos dou mil a mil, pois em conhecido aumento tem meu ser o fundamento na razão, em que se estriba, se lhe infundis alma viva, Que muito, que vivo alento. Depois de feita a escultura, e por um Deus acabada, obra não houve extremada como a humana criatura: ali para mais ventura (sendo o barro assaz terrível) alma lhe deu infalível, e me admira ver, que aquela alma, que ali fez tão bela Desse a um barro insensível. Possível lhe foi fazer este Arquiteto divino participando do Trino aquela alma a seu prazer: para mais se engrandecer engrandeceu o insensível, desatando-se passível daquele sagrado nó, que apertava três, e só Um Deus, que lhe foi possível. Foi grandeza do poder aquele querer mostrar sendo divino encarnar para humano vir nascer: e foi grandeza o morrer um Deus, que é todo portento; e se bem no Sacramento se adverte grande fineza, de seu poder foi grandeza Dar-se a si mesmo em sustento. MOTE Ó divina Onipotência! Ó divina Majestade! que sendo Deus na verdade sois também Pão na aparência. Já requintada a fineza Nesse Pão sacramentado temos, Senhor, ponderado vossa inaudita grandeza:

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mas o que apura a pureza da vossa magnificência é, quererdes, que uma ausência não padeça, quem deixais, pois que partindo ficais, Ó divina Onipotência. Permiti por vossa cruz, por vossa morte, e paixão, que entrem no meu coração os raios da vossa luz: clementíssimo Jesus sol de imensa claridade, sem vós a mesma verdade, com que vos amo, periga; guiai-me, porque vos siga, Ó divina Majestade. Na verdade esclarecida do vosso trono celeste toda a potência terrestre de comprender-vos duvida: porém na forma rendida de um cordeiro a Majestade aos olhos da humanidade melhor a potência informa, sendo cordeiro na forma, Que sendo Deus na verdade. Cá neste trono de neve, onde humanado vos vejo, melhor aspira o desejo, melhor a vista se atreve: aqui sabe, o que vos deve (vencendo a maior ciência) amor, cuja alta potência adverte nesse distrito, que sendo Deus infinito, Sois também Pão na aparência. MOTE Ó Soberana Comida! Ó maravilha excelente! pois em vós é acidente, o que em mim eterna vida. À mesa do Sacramento cheguei, e vendo a grandeza admirei tanta beleza, dei graças de tal portento: com santo conhecimento só então folguci ter vida, pois vendo-a convosco unida na flama de tanta calma disse (recebendo-a n'alma) Ó Soberana Comida! Naquela mesa admirando anda a graça tanto a rodo, que dando-se a todos, todo vos estais comunicando: e de tal modo exaltando vosso ser onipotente, que quando estais tão patente nessa nevada pastilha, vos louvam por maravilha, Ó maravilha excelente!

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Como num excelso trono realmente verdadeiro, na Hóstia estais todo inteiro, Senhor, por maior abono: se por ser das almas dono vos empenhais tão patente, hei de apelidar contente com a voz ao céu subida, que esse Pão me seja vida, Pois em vós é acidente. Neste excesso do poder só podia o majestoso obrar ali de amoroso, o que chegou a emprender: eu, que venho a merecer lograr a Deus por comida, tenho por cousa sabida neste excesso do Senhor serem delíquios do amor, O que em mim eterna vida. MOTE Ó poder sempre infinito, que o céu admira suspenso, pois se encerra um Deus imenso em tão pequeno distrito. Três vezes grande, Senhor, o mesmo céu nos publica, e este louvor multiplica com repetido clamor: não cessa o santo louvor, porque não cessando o grito de tanto elevado esprito, isso mesmo é propriedade, que defende a majestade O poder sempre infinito. Quem chegar a compreender essa grande imensidade, há de pasmar na verdade reconhecido o poder: porém eu hei de dizer, que nesse globo in extenso vejo aquele sol imenso, que tantos pasmos conduz, vejo aquela imensa luz, que o Céu admira suspenso. Tal a meus olhos exposto vos vejo no Sacramento. que supre esse entendimento os delírios do meu gosto: porém se encobris o rosto, já desanimo suspenso, e vós sabeis por extenso da águia, que se vos aplica, qual se desmaia, e qual fica, Pois se encerra um Deus imenso. Quando em partes dividido vos creio nas partes todo, e vos vejo em raro modo todo nas partes unido: e de empenho tão subido a inteligência repito,

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pois me informa o infinito, que estar pode na verdade do Céu toda a majestade Em tão pequeno distrito. MOTE Com razão, divina neve, a vós se prostram coroas, pois inclue três pessoas a partícula mais breve. Sol de justiça divino sois, Amor onipotente, porque estais continuamente no luzimento mais fino: porém, Senhor, se o contino resplandecer se vos deve, fazendo um reparo breve desse sol no luzimento, sois sol, mas no Sacramento Com razão divina neve. Só em vós, meu Redentor, S tanta grandeza se encerra: porque dos céus, e da terra sois absoluto Senhor: da terra o poder maior um tempo em ardentes loas humilharam três pessoas, prostrando-se ao vosso pé bem advertidos, de que A vós se prostram coroas. Mas porém se o disfarçado não diminui o valor, como ocupais, meu Senhor, um lugar tão limitado? de maior porém penhado nos dais advertências boas; mas convencendo as coroas, mostrais ao peito arrogante que esse lugar é bastante, Pois inclue três pessoas. A maravilha maior, que causa o vosso portento, é, que estais no Sacramento todo em partes por amor: porém se o maior valor ao mais humilde se deve, e so quem menos se atreve, esse voz goza, e vos prende, com razão vos compreende A partícula mais breve. MOTE Ora quereis doce Esposo, quereis, luz dos meus sentidos, que fiquemos sempre unidos em um vínculo amoroso? Agora, Senhor, espero, que consintais, no que digo; quereis vós ficar comigo,

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que eu partir convosco quero? que o permitais considero fazendo-me a mim ditoso, pois vos prezais de amoroso: já quero as entranhas dar-vos, e vede se assim tratar-vos, Ora quereis, doce Esposo. Já, Senhor, seguir-vos posso, pois vosso amor me rendeu, ser todo vosso, e não meu, nada meu, e todo vosso: permiti como Pai nosso, não andemos divididos, mas antes que muito unidos estejamos entre nós, porque eu já quero, o que vós Quereis, luz dos meus sentidos. Façamos, Senhor, um laço entre nós tão apertado, que de vós mais apartado não possa mudar um passo: porque com este embaraço andemos tão prevenidos, que não ousem meus sentidos sair de vossos cuidados, e de tal sorte ajustados, Que fiquemos sempre unidos. Seja pois este querer-nos de tal sorte requintado, que fique todo admirado, quem assim chegar a ver-nos: onde possa conhecer-nos o mundo de curioso me inveje pelo ditoso, vendo, que comigo amante vos ajustais mui constante em um vínculo amoroso MOTE Levantai minha humildade humilhai vossa grandeza, porque em vós seja fineza, o que em mim felicidade. Não é minha voz ousada a pedir-vos mas prossigo, que quoirais estar comigo, inda que, Senhor, sou nada: e se minha alma ilustrada quereis, que fique em verdade, pois que sem dificuldade me podeis engrandecer, ao auge do vosso ser Levantai minha humildade. Tenho, Senhor, no sentido para duvidar de ousado, que mal pode o desairado pertender o esclarecido: de minhas culpas tolhido na abominável torpeza, vendo em vós tanta beleza, mal posso, Senhor, chegar-vos, e para poder lograr-vos Humilhai vossa grandeza.

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Fazei por mim, meu Senhor, tudo quanto possa ser, e pois tendes tal poder me podeis dar vosso amor: uni o vosso valor com a minha singeleza, e fique a vossa grandeza unida, Senhor, comigo; fazei isto, que vos digo, Porque em vós seja fineza. Vosso corpo por inteiro introduzi no meu peito, porque assim ficarei feito um sacrário verdadeiro: ostentai, manso cordeiro, com a minha indignidade vossa grande Majestade, suposto que o não mereça, porque traça em vós pareça O que em mim felicidade. MOTE Uni meu sujeito indigno a esse objeto soberano, fareis do divino humano, fareis do humano divino. Mostrai, Senhor, a grandeza de tão imenso poder, unindo este baixo ser a tão suprema beleza: uni, Senhor, com firmeza a este barro nada fino o vosso ser tão divino, ligai-vos comigo amante, convosco em laço constante Uni meu sujeito indigno. Fazei, Senhor, com que fique desta união tal memória, que tão peregrina história a vosso amor se dedique: justo será, que publique em seu pergaminho lhano vossa glória o peito humano, e que o mundo suspendido vejo um pecador unido A esse objeto soberano. Como da vossa grandeza não há mais onde subir, será realce o vestir as túnicas da vileza: muito o vosso amor se preza de abater o soberano; serei eu o Publicano indigno do vosso amor: vinde a meu peito, Senhor, Fareis do divino humano. Fareis humanado em mim créditos à divindade, porque o vosso incêndio há de transformar-me em serafim: fareis deste barro enfim frágua de incêndio mais digno, fareis do grosseiro o fino,

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que isso é glória do saber e por timbre do poder Fareis do humano divino. MOTE Ai quem tal bem merecera! que de vós não se apartara! ai quem melhor vos amara! ai quem só em vós vivera! Ai quem bem considerara na glória só de vos ver, que abrasado em seu querer salamandra vos buscara! ai quem tanto vos amara, que tudo por vós perdera! ai quem por vós padecera! ai quem já pudera ver-vos! ai quem soubera queter-vos! Ai quem tal bem merecera! Quem bem convosco se unira, meu Senhor, e por tal arte, que juntos em qualquer parte um, e outro amor se vira! quem tanto bem conseguira, e quem tanto vos amara, que um instante não deixara de assistir-vos cuidadoso! e quem fora tão ditoso Que de vós não se apartara! Ai quem soubera adorar-vos de tal sorte, meu Senhor, que deixara o próprio amor nas pertendências de amar-vos! quem, a alma querendo dar-vos, o coração não deixara, que desse modo lograra a glória, Senhor, de ver-vos! ai quem soubera querer-vos! Ai quem melhor vos amara! Quem morto se imaginara nas glórias da humana vida! vida em bonanças perdida, vida, que a morte prepara: ai quem tão só vos buscara, que para o mundo morrera! quem por ganhar-vos perdera todas as glórias do mundo! ai quem morrera ao imundo! Ai quem só em vós vivera! MOTE Ai quem soubera querer-vos! ai quem soubera agradar-vos! ai quem soubera explicar-vos! quanto anela o bem de ver-vos. Quem fora tão fino amante, que mostrara a seu objeto

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bem nas entranhas do afeto prendas do amor palpitante: quem nessa pira flamante purificara o temer-vos! ai quem temera ofender-vos só por amor de agradar-vos! ai quem soubera pagar-vos! Ai quem soubera querer-vos! Quem submergido na pena prantos a mares vertera, que outro Pedro parecera, ou qual outra Madalena! mas se contudo é pequena para em justiça obrigar-vos ai quem no rumo de amar-vos, que de outro amor me desterra, fora cos olhos na terra! Ai quem soubera agradar-vos! Se a vossa divina mão, amantíssimo Pai nosso, (como a de Tomé o vosso) palpara o meu coração: ai que delícias então sentira a razão de amar-vos! ai quem pudera mostrar-vos o fino do meu amor! e as circunstâncias da dor Ai quem soubera explicar-vos! Entrai, Senhor, no meu peito, onde ao ver-vos retratado causa sereis, meu amado, inseparável do efeito: entrai, que sois bem aceito, pelo que sei já querer-vos, e se dentro chego a ter-vos desta minha indignidade haveis de ver na verdade, Quanto anela o bem de ver-vos. MOTE Mas se sois lince divino, que o mais oculto estais vendo: se estais, luz minha, sabendo o mesmo, que eu imagino. Bem sei, meu amado objeto, fazendo um breve conceito, que penetrais do meu peito o mais oculto, e secreto: bem vê meu constante afeto da vossa potência o fino, porque neste vidro indigno raiando desse Oriente, se sois sol, não só persente, Mas se sois lince divino. Deixo à parte haver gerado vosso justo entendimento os astros, o firmamento, e todo o demais criado: e fico como elevado no poder, a que me rendo, admirando: porém vendo vossa grandeza, e poder,

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quando chego a comprender, Que o mais oculto estais vendo. Quando isento o pensamento de toda a minha maldade, vós lá dessa imensidade vedes também meu intento: se um oculto movimento patente, e claro estais vendo, fico por fé conhecendo desse poder penetrante, que não obsta estar distante, Se estais, luz minha, sabendo. E posto encubrais o rosto no acidental Sacramento, mui bem vedes meu intento, pois a tudo estais exposto: muda a língua, e fixo o gosto em vós, meu lince divino, já reconheço, que o fino deste arnor penetrareis, porque, Senhor, bem sabeis O mesmo, que eu imagino. MOTE Que importa, que meus cuidados não sejam bem referidos, se para serem sabidos não dependem de explicados. Se todo a vós me dedico, quando todo a mim vos dais, porque vós em mim ficais, eu também em vós me fico: vosso querer justifico, tendo em vós assegurados afetos tão requintados; e se amor é compaixão, a culpa, meu coração, que importa? que? meus cuidados. Deus amado, e Deus amante, oh quem trouxera ajustados seus amorosos cuidados, que sem vós nem um instante! mas pois que o mundo inconstante perturba amantes sentidos, valham ardentes gemidos de afetos interiores pelo instante, em que os amores não sejam bem referidos. Fazei, que eu logre a vitória de uns atrevidos cuidados, que quando quero explicados perturbam minha memória: oh se me alcançara a glória de ter estes atrevidos na confissão oprimidos, onde não posso explicar, se os conduzo a castigar, Se para serem sabidos. Sempre nesta explicação de meus cuidados secretos quero mostrar uns afetos

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de anelante coração: vaidosa demonstração de amores mal informados que repetir meus cuidados é nescedade de amor, quando convosco, Senhor, Não dependem de explicados. MOTE Assim pois vós sabeis tudo ó diviníssimo objeto, valha-se só meu afeto de estilo, que fala mudo. Nada, meu Senhor, vos digo, nada quisera dizer-vos, porque os atos de querer-vos, têm pelas vozes perigo: tanto, Senhor, que comigo hei de acabar de ser mudo, e de tal maneira rudo, que quando me perguntares responderei (se escutares) Assim, pois vós sabeis tudo. Porém calar-me não quero, quero convosco explicar-me, vede, se quereis levar-me, onde louvar-vos espero: porque se bem considero distante o golpe secreto, levando-me vós o afeto, de que servem meus sentidos prostrados, e desunidos, Ó diviníssimo objeto Convosco meu ser se abraça, e não pareçam delírios procurar cândidos lírios da vossa divina graça: pois neles a alma se enlaça, e convosco, amado objeto, diz, que quer ir em secreto purificar seu valor: aqui do vosso favor Valha-se só meu afeto. Finalmente os meus cuidados ordenai, Amor, de sorte, que aos círculos de seu norte correspondam empenhados: meus sentidos desvelados com excesso sobreagudo vos venerem mais que tudo em finíssimos extremos: porém, meu Senhor, mudemos De estilo, que fala mudo. IV - Pessoas Beneméritas Gregório de Matos A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL,QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA

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A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683. A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS. NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE. CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS. SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA. GLOSA AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM. CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS. AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO. ESTRIBILHO A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER MULUM ABNER." EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV. AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR HOMENS DE BEM A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA. AO MESMO ASSUMPTO. AO MESMO ASSUMPTO. DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO. SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR. A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE. A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR. SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES. A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS,

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QUE TEVE PARA SE RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO. AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS. A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA LISBOA. AO MESMO ASSUMPTO. AO MESMO ASSUMPTO. AO MESMO ASSUMPTO. AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO EM DIA DE REYS OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINÁRIA. EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO. A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR,IMPETRANDO LICENÇA PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO ALARDE. OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA DE SOLDADO. AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDAR-SE DE SUA HONRADASUPPLICA SOBRE A MERCÉ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDICULOCHAMADO O FARIA, POR QUEM NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA". TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA. ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA.E NO DIA, EM QUE O GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO. A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO. A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA. AO MESMO ASSUMPTO. GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE SER DELLE FAVORECIDO NA MERCÉ ORDINARIA. CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ

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FERREYRA DE NORONHA. AOS MESMOS AMO, E CRIADO. PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO. REPETE A MESMA SATYRA. AO MESMO ASSUMPTO. DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO: DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO GOVERNADOR SATYRIZADO. APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ. DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZER-SE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO. RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA. A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO. AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO DEPOIS. LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO. RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO. CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS CONSOANTES. AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO DE HUMA GRAVE DOENÇA. 2 - PESSOAS BENEMÉRITAS ...pessoas beneméritas... Manuel Pereira Rabelo, licenciado Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei A EL REY D. PEDRO II COM UM ASTROLABIO DE TOMAR O SOL, QUE MANDOU O Pe. VALENTIM STANCEL DEDICADO AO RENASCIDO MONARCA. Este, Senhor, que fiz leve instrumento Para pesar o sol a qualquer hora, Dedico a aquele Sol, a cuja aurora

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Já destinam dous mundos rendimento. Desta minha humildade, e desalento, Que a sua quarta esfera não ignora, subindo a oitavo céu, pertende agora A estrela achar no vosso firmamento. Eu, que outro sol no seu zenith pondero Aos do Nascido Soberanos Raios, Pesando-me eu a mim me desespero. Mas vós, Águia Real, esses ensaios Entre os vossos levai, pois considero, Que nunca em tanta sombra houve desmaios. A MORTE DA AUGUSTA SENHORA RAINHA D. MARIA, FRANCISCA, IZABEL DE SABOYA, QUE FALLECEO EM 1683. Hoje pó, ontem Deidade soberana, Ontem sol, hoje sombra, ó Senadores, Lises imperiais enfim são flores, Quem outra cousa crê, muito se engana. Nas cinzas, que essa urna guarda ufana, Vejo, que os aromáticos licores são de seu mortal ser descobridores, Porque, o que a arte esconde, o juízo alhana. A Real Capitânia submergida! Olhos à gávea, ó tu Naveta ousada, Que ao mar te engolfas de ambição vencida: Pois em terra a Real está encalhada, Alerta, altos Baixéis, porque anda a vida Da mortal tempestade ameaçada. A SERENISSIMA INFANTA DE PORTUGAL D. IZABEL, LUIZA, JOSEPHA NASCENDO EM DIA DE REYS. Nasces, Infanta bela, e com ventura Tão desigual a toda a gentileza, Que vencendo o poder da natureza, Venturosa fizeste à formosura. Com tal estrela sobe a tal altura A formosura posta em tanta alteza, Que por nasceres pasmo da beleza, Da pensão de formosa estás segura. Nasceste Filha enfim da bela Aurora Com graça singular, ventura clara,

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Com estrela nasceste, ó feliz hora! Nascer bela, e feliz é cousa rara: Mas em ti Portugal venera agora Uma estrela na dita, um sol na cara. NA MORTE DA MESMA SENHORA RATIFICA O POETA AS VENTURAS, QUE PROMETTE O SONETO ANTECEDENTE. Bem disse eu logo, que éreis venturosa Quando nascestes, com nascer tão bela, E me lembra dizer já com cautela, Cousa rara é ser bela, e ser ditosa. O nascer com estrela, e ser formosa Raro prodígio é, que mais se anela; Mas ser na terra flor, nos céus estrela, Só em vós foi ventura prodigiosa. Fostes, e sois estrela enfim do Norte, Do céu girando o Norte mui segura, Girando sempre a tão felice corte. Hoje lograis mais bela formosura, Possuindo na glória dita, e sorte, Que em ser do Céu consiste o ter ventura. CONTINUA A MESMA RATIFICAÇÃO NA ESTRELLA DOS MAGOS POR HAVER NASCIDO ESTA SENHORA EM DIA DE REYS. Nascestes bela, e fostes entendida Uniu-se em vós saber, e formosura: Não se pode lograr tanta ventura, Em quem com tal estrela foi nascida. Quem viu co'a formosura a sorte unida, Que julgasse essa vida por segura? Muito esperou por vós a sepultura, Que, em quem é tão feliz, não dura a vida. Quem dissera no vosso nascimento, Que em tal estrela haviam tais enganos, Para ser maior hoje o sentimento! Porém nestes prodígios soberanos, Tendo dos Magos vós o entendimento, Não podiam ser muitos vossos anos. SENTIMENTOS D'EL REY D. PEDRO II À MORTE DESTA SERENISSIMA SENHORA SUA FILHA PRIMOGENITA.

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Se a dar-te vida a minha dor bastara, Filha Isabel, de minha dor morrera, E porque minha dor tudo excedera, Gêneros novos de sentir buscara. Se uma vida se dera, ou se emprestara, A metade da minha te ofrecera, Ou toda, porque inveja não tivera Outra a metade, que órfã me ficara. E se a minha alma enfim tua agonia Substituir pudera com a sua, Tua vida animando a cinza fria: Inda que a arrojo o mundo o atribua, Não só a vida, a alma te daria Por melhorá-la com fazê-la tua. GLOSA Filha minha Isabel, alma ditosa, Que do corpo as prisões desemparaste, E qual cândida flor, ou fresca rosa De teus anos a flor em flor cortaste: De minha dor a mágoa saudosa, Que por herança d’alma me deixaste, Deves crer, que até agora não durara, Se a dar-te vida a minha dor bastara. Não durara até agora a minha mágoa, Se fora ela bastante a dar-te vida, Porque, vivendo tu, dos olhos a água Se enxugara em dous rostos reprimida: E sendo o peito humano a própria frágua, Onde a dor em licores derretida Corre a desafogar: se não correra, Filha Isabel, de minha dor morrera. Morrera, Filha minha, e acabara De um doce mal, formosa enfermidade: Todo o poder do mundo me invejara, Pois falta a seu poder esta verdade: Com minha morte a vida se trocara, Da maior, e mais alta majestade Enjeitara tudo, porque nada era, E porque a minha dor tudo excedera. Ficara tão ufano de seguir-te, Vivo por te chorar, morto por ver-te, Que se pudera crer, que por senir-te A ocasião estimara de perder-te: E se nesta estranheza de sentir-te Não chegara um aplauso a merecer-te,

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De uma a outra estranheza me passara, Gêneros novos de sentir buscara. Sangue ondeara a margem deste rio, A rosa adoecera em suas cores, Da Aurora carmesirn fora o rocio, Não recendera o ambar entre as flores: Fora da natureza um desvario A ordem natural de seus primores: Mas nada a minha dor necessitara, Se uma vida se dera, ou se emprestara. Se pudera emprestar-te a minha vida, Se escusara então meu sentimento: Mas ai! que nem o dá-la por perdida Remédio pode ser do meu tormento: E já, que não é cousa permitida Celebrar um contrato tão violento, E dar a vida enfim se não tolera, A metade da minha te ofrecera. E pois a natureza é tão escassa, Que na esfera da sua potestade Não cabe por indulto, nem por graça Uma vida partir pela metade: E inda que o vença amor, indústria, ou traça, Me resta outra maior dificuldade, De que se hão de invejar, metade dera, Ou toda, porque inveja não tivera. Se a metade da vida, que te ofreço, Inveja há de causar, à com que fico, E sobre dar-lhe inveja à que despeço, Que saudades Ihe dê me certifico: Para livrar-me de um, e outro tropeço, Com que nesta partida me complico, Sobre a tua metade te largara A outra metade, que órfã me ficara. Dera-te enfim a minha vida toda, Que o mais fora desdouro da firmeza, Que sempre, quem bem ama, se acomoda Fazer a vida altar de uma fineza: Dar tudo nunca a amor desacomoda, Dera-te a vida, e alma nesta empresa, Se a minha vida a morte te alivia, E se a minha alma enfim tua agonia. Ásia filha maior do mar profundo, A África do mar soberania, Europa exemplar luz de todo o mundo E a América do ouro monarquia, veriam, com quão ledo, e quão jucundo Rosto por ti minha alma despedia, Se o calor da minha alma à vida tua Substituir pudera com a sua.

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O Rouxinol, que canta docemente À vista da consorte, que o namora, A Rola triste, que ao esposo ausente De dia busca, se de noite o chora: No ar sutil, na fonte transparente, Vendo o fino de uma alma, que te adora, Pasmariam de ver, como supria Tua vida, animando a cinza fria. A inveja, que do ódio se alimenta, A detração, que como espada corta, A calúnia, que a todos ensangüenta, E a aversão, que os áspides aborta: Todos a iníquia mão, língua cruenta Mostrariam pasmada, obtusa, absorta; Eu só perdera a vida pela tua, Inda que a arrojo o mundo o atribua. Pasme de assombro, ou da fineza a terra, Trema do caso, ou da estranheza o monte, De invejosas as aves se dêem guerra De corrido se mude o Horizonte: Co'as nuvens indignadas choque a serra, Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte, Que eu firme nesta minha fantesia Não só a vida, a alma te daria. Dá-la-ia não só por imitar-te, Se cabe em minha dor tão alta sorte, Senão por despojar-me, e despojar-te A mim do sentimento, a ti da morte: Não só daria a alma por mostrar-te, Que não tenho outro alívio em mal tão forte: Senão (pois perde tanto em ser tão sua) Por melhorá-la com fazê-la tua. AO CONDE DE ERICEYRA D. LUIZ DE MENEZES PEDINDO LOUVORES AO POETA NÃO LHE ACHANDO ELLE PRESTIMO ALGUM. Um soneto começo em vosso gabo; Contemos esta regra por primeira, Já lá vão duas, e esta é a terceira, Já este quartetinho está no cabo. Na quinta torce agora a porca o rabo: A sexta vá também desta maneira, na sétima entro já com grã canseira, E saio dos quartetos muito brabo. Agora nos tercetos que direi? Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais, Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei. Nesta vida um soneto já ditei, Se desta agora escapo, nunca mais; Louvado seja Deus, que o acabei. CENSURA QUE FAZ O POETA DESTE TAL CONDE NA SUA DESASTRADA MORTE, LANÇANDO-SE DA JANELLA DO SEU JARDIM, ONDE ACABOU MISERAVELMENTE POR ALTOS JUIZOS DE DEOS.

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Tanta virtude excelente de animoso, e de alentado, de valeroso soldado, e de cortesão valente, viu o mundo, e soube a gente, que inda que em santo podia transformar-se a Senhoria, o Conde o não conseguiu, porque de noite caiu, e o Santo cai no seu dia. Se o Conde caiu de noite, como o teremos por Santo, quando a queda um tanto, ou quanto, teve do divino açoite: quis Deus, que o Conde se afoite, porque visse o bom Soldado, que o Conde de puro honrado quis, que o visse a própria terra, quanto arrojado na guerra, na paz tão precipitado. Ícaro da nossa guerra ares corta o Conde só, Ícaro caiu no Pó, e o Conde caiu na terra: se, porque o rio o enterra, o nome lhe ficou dado de Ícaro ter sepultado: assim porque a terra dura deu ao Conde sepultura, ficou a terra um condado. De cera, e pluma se val Ícaro para viver, e o Conde para morrer valeu-se do natural: quanto a força artificial da natureza é sobrada fica a do Conde adiantada, porque Ícaro quando bóia faz tragédia de tramóia, e o Conde de capa, e espada. Tinha o Conde de morrer; todo o mortal nisto pára, e se ele se não matara, quem lho havia de fazer? fez bem o Conde a meu ver, quando ao jardim se arrojou, e entre as flores expirou: vento é a vida em rigor, e como o Conde era flor, entre as flores acabou. Se ignorou alguns sentidos, porque tanto mal se urdiu, era valido, e caiu, que o cair é dos validos: tão certos são, e sabidos no monte, no lar, na praça estes reveses da graça,

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que é já dos Palácios lei, que quem da graça d’EI-Rei cai, cai da sua desgraça. AO MESMO ASSUMPTO E PELO MESMO CASO. Nesse precipício, Conde, fostes Ícaro segundo, bem que a Dédalo no mundo vossa fama corresponde: em parte caístes, onde como Ícaro morrestes, mas a Dédalo excedestes nesses labirintos tristes, em fazer no que caístes, e em cair, no que fizestes. Caiu o Conde, e se diz, que foi por um caso atroz, porém já corre outra voz, que a esta se contradiz: que foram uns frenesis do juízo descortês: mas eu digo desta vez ouvindo do baque o truz, que o juízo ao Conde induz ter caído, no que fez. ESTRIBILHO Aqui jaz, em que lhe pes, quem tudo fez com má sorte, e só na hora da morte caiu naquilo, que fez. A MORTE DO ILLUSTRISSIMO MARQUEZ DE MARIALVA. GENERAL DAS ARMAS DE PORTUGAL SOBRE AS PALAVRAS DA ESCRIPTURA "PLANDITE ANTE EXEQUIAS ABNER; FIPSE FLEVIT DAVID SUPER TUMULUM ABNER." Quando a morte de Abner David sentia, Mandou a seus vassalos, que chorassem, E que em lágrimas todos publicassem Quanto o Reino Ihe deve, e o Rei devia. Cada qual seu tormento repetia, Sem querer, que os dos outros o igualassem E todos procuravam, que mostrassem As lágrimas dilúvio, a dor porfia. Pois se a morte de Abner se sente tanto, Só por ser General valente, e forte, Que move o Reino, e Rei a tanto pranto: Lamente Portugal, e sinta a Corte A morte de Marialva, porque espanto Foi do mundo, e o pudera ser da Morte.

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EPITAFIO AO CORAÇÃO DESTE MESMO GENERAL ENTERRADO AOS PÉS D'EL REY D. JOÃO IV. Aqui jaz o coração Do mais valente Anibal, que restaurou Portugal com a espada de co’a razão: aos pés do Rei quarto João lhe mandaram dar jazigo, para que a todo o perigo os dous unidos por lei achasse o vassalo ao Rei, e tivesse o Rei o amigo. AO MESMO ASSUMPTO E PELOS MESMOS CONSOANTES Aqui jaz o coração do vassalo mais leal, a quem deve Portugal o quarto Rei Dom João: e assim com justa razão lhe dão a seus pés jazigo, porque a todo o perigo unidos os dous por lei achasse a lealdade o Rei, tivesse o vassalo amigo. AO MESMO MARQUEZ SENDO ENTERRADO EM TREZ PARTES. O CORPO EM CATANHÉDE; O CORAÇÃO EM S. VICENTE DE FORA; E OS INTESTINOS EM SAM JOSÉ DE RIBA MAR. Em três partes enterrado está o corpo do Marquês de Marialva: porque em dez mil seu nome é venerado: e foi destino acertado, que em tanta parte estivesse, para que o mundo soubesse, que este valeroso Marte morto assiste em qualquer parte, como se ainda vivesse. 3 - HOMENS DE BEM ... homem de bem... Manuel Pereira Rabelo, licenciado O roubo, a injustiça, a tirania. A MORTE DO GOVERNADOR MATHIAS DA CUNHA. Ó caso o mais fatal da triste sorte! Ó terrível pesar! ó dor imensa! Quem viu, que em breves dias de doença Acabasse valor, que era tão forte! Quem viu prostrar-se a gala de Mavorte, Que hoje em cinza se ve à morte apensa!

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Que como se prostrou, logo a licença Concedeu livremente ousada à morte. Já se vê o valor, que esclarecido Foi, em urnas de pedra sepultado Do sujeito mais grave, e entendido. À Parca rigorosa sujeitado, Acabado já, e em cinzas consumido o esforço, que se viu mais alentado. AO MESMO ASSUMPTO. Teu alto esforço, e valentia forte Tanto a outro nenhum valor iguala, Que teve o céu cobiça de lográ-lo, Que teve inveja de vencê-la a morte. O céu veio a lográ-la, mas por sorte, Que por poder não pôde conquistá-la; A morte por haver de contrastá-la Vigor de lei tomou, e deu-lhe o corte. Prêmios, que mereceste, e nunca viste, Todos com teu valor os desprezaste, E com os merecer lhe resististe. O cargo, que na vida não lograste, Esse o mofino é, órfão, e triste, Pois te não falta a ti, tu lhe faltaste. AO MESMO ASSUMPTO. Quem há de alimentar de luz ao dia? Quem de esplendor ilustrará a Nobreza? Quem há de dar lições de gentileza A toda a gentileza da Bahia? Já feneceu do mundo a galhardia, Melancólica jaz a natureza, Vendo em pó reduzida a fortaleza, E em cinzas desatada a fidalguia. O Marte (digo), que ao combate expunha O peito sem temor, que ao mundo assombra, Sendo da paz terror, da guerra espanto. Foi este o Senhor Matias da Cunha, Que hoje nos dá tornado em fria sombra Ao discurso pesar, aos olhos pranto. DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO. Oh não te espantes não, Dom Antonio, Que se atreva a Bahia

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Com oprimida voz, com plectro esguio Cantar ao mundo teu rico feitio, Que é já velho em Poetas elegantes O cair em torpezas semelhantes. Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito, Lucano do Mosquito, Das Rãs Homero, e destes não desprezo, Que escreveram matérias de mais peso Do que eu, que canto cousa mais delgada Mais chata, mais sutil, mais esmagada. Quando desembarcaste da fragata, Meu Dom Braço de Prata, Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua Mandava a Inquisição alguma estátua Vendo tão espremida salvajola Visão de palha sobre um Mariola. O rosto de azarcão afogueado, E em partes mal untado, Tão cheio o corpanzil de godolhões, Que o julguei por um saco de melões; Vi-te o braço pendente da garganta, E nunca prata vi com liga tanta. O bigode fanado feito ao ferro Está ali num desterro, E cada pêlo em solidão tão rara, Que parece ermitão da sua cara: Da cabeleira pois afirmam cegos, Que a mandaste comprar no arco dos pregos. Olhos cagões, que cagam sempre à porta, Me tem esta alma torta, Principalmente vendo-lhe as vidraças No grosseiro caixilho das couraças: Cangalhas, que formaram luminosas Sobre arcos de pipa duas ventosas. De muito cego, e não de malquerer A ninguém podes ver; Tão cego és, que não vês teu prejuízo Sendo cousa, que se olha com juízo: Tu és mais cego, que eu, que te sussurro, Que em te olhando, não vejo mais que um burro. Chato o nariz de cocras sempre posto: Te cobre todo o rosto, De gatinhas buscando algum jazigo Adonde o desconheçam por embigo: Até que se esconde, onde mal o vejo Por fugir do fedor do teu bocejo. Faz-lhe tal vizinhança a tua boca, Que com razão não pouca O nariz se recolhe para o centro Mudado para os baixos lá de dentro: Surge outra vez, e vendo a bafarada Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.

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Pernas, e pés defendem tua cara: Valha-te; e quem cuidara, Tomando-te a medida das cavernas Se movesse tal corpo com tais pernas! Cuidei, que eras rocim das alpujarras, E já frisão te digo pelas garras. Um casaquim trazias sobre o couro, Qual odre, a quem o Touro Uma, e outra cornada deu traidora, E lhe deitou de todo o vento fora; Tal vinha o teu vestido de enrugado, Que o tive por um odre esfuracado. O que te vir ser todo rabadilha Dirá que te perfilha Uma quaresma (chato percevejo) Por Arenque de fumo, ou por Badejo: Sem carne, e osso, quem há ali, que creia, Senão que és descendente de Lampreia. Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre, Que te temo um desastre, E é, que por sovela, ou por agulha Arme sobre levar-te alguma bulha: Porque depositando-te à justiça Será num agulheiro, ou em cortiça. Na esquerda mão trazias a bengala ou por força, ou por gala: No sovaco por vezes a metias, Só por fazer enfim descortesias, Tirando ao povo, quando te destapas, Entonces o chapéu, agora as capas. Fundia-se a cidade em carcajadas, Vendo as duas entradas, Que fizeste do Mar a Santo Inácio, E depois do colégio a teu palácio: O Rabo erguido em cortesias mudas, Como quem pelo cu tomava ajudas. Ao teu palácio te acolheste, e logo Casa armaste de jogo, Ordenando as merendas por tal jeito, Que a cada jogador cabe um confeito: Dos Tafuis um confeito era um bocado, Sendo tu pela cara o enforcado. Depois deste em fazer tanta parvoíce, Que inda que o povo risse Ao princípio, cresceu depois a tanto, Que chegou a chorar com triste pranto: Chora-te o nu de um roubador de falso, E vendo-te eu direito, me descalço. Xinga-te o negro, o branco te pragueja, E a ti nada te aleija, E por teu sensabor, e pouca graça És fábula do lar, riso da praça, Té que a bala, que o braço te levara, Venha segunda vez levar-te a cara.

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SUBTILEZA COM QUE O POETA SATYRIZA À ESTE GOVERNADOR. Tempo, que tudo trasfegas, fazendo aos peludos calvos, e pelos tornar mais alvos até os bigodes esfregas: todas as caras congregas, e a cada uma pões mudas, tudo acabas, nada ajudas, ao rico pões em pobreza, ao pobre dás a riqueza, só para mim te não mudas. Tu tens dado em mal querer-me, pois vejo, que dá em faltar-te tempo só para mudar-te, s e é para favorecer-me: por conservar-me, e manter-me no meu infeliz estado, até em mudar-te hás faltado, e estás tão constante agora, que para minha melhora de mudanças te hás mudado. Tu, que esmaltas, e prateias tanta gadelha dourada, e tanta face encarnada descoras, turbas, e afeias: que sejas pincel, não creias, senão dias já passados; mas se esmaltes prateados branqueiam tantos cabelos, como, branqueando pêlos, não me branqueias cruzados? Se corres tão apressado, como paraste comigo? corre outra vez, inimigo, que o teu curso é meu sagrado: corre para vir mudado, não pares por mal de um triste: porque, se pobre me viste, paraste há tantas auroras, bem de tão infaustas horas o teu relógio consiste. O certo é, seres um caco, um ladrão da mocidade, por isso nesta cidade corre um tempo tão velhaco: farinha, açúcar, tabaco no teu tempo não se alcança, e por tua intemperança te culpa o Brasil inteiro, porque sempre és o primeiro móvel de qualquer mudança. Não há já, quem te suporte; e quem armado te vê de fouce, e relógio, crê, que és o percussor da morte: vens adiante de sorte,

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e com tão fino artifício, que à morte forras o ofício; pois ao tempo de morrer, não tendo já que fazer, perde a morte o exercício. Se o tempo consta de dias, que revolve o céu opaco, como tu, tempo velhaco, constas de velhacarias? não temas, que as carestias, que de ti se hão de escrever, te darão a aborrecer tanto as futuras idades, que, ouvindo as tuas maldades, a cara te hão de torcer. Se, porque penas me dês, paras cruel, e inumano, o céu santo, e soberano te fará mover os pés: esse azul móvel, que vês, te fará ser tão corrente, que não parando entre a gente, preveja a Bahia inteira, que há de correr a carreira com pregão de delinqüente. A PRIZÃO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR À SEU CREADO O BRAÇO FORTE. Preso entre quatro paredes me tem Sua Senhoria por golotão de despachos, por fundidor de mentiras. Dizem, que sou um velhaco, e mentem por vida minha, que o velhaco era o Governo, e eu sou a velhacaria. Quem pensara, e quem dissera, quem cuidara, e quem diria, que um braço de prata velha pouca prata, e muita liga! Tanto mais que o Braço Forte fosse forte, que poria um cabo de calabouço, e um soldado de golilha! Porém eu de que me espanto, se nesta terra maldita pode uma onça de prata mais que dez onças de alquímia. Quem me chama de ladrão, erra o trincho à minha vida, fui assassino de furtos, mandavam-me, obedecia. Despachavam-me a furtar; eu furtava, e abrangia, e são boas testemunhas inventários, e partilhas. Eu era o ninho de guincho, que sustentava, e mantinha com suor das minhas unhas

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mais de dez aves rapinhas. O Povo era, quem comprava, o General, quem vendia, eu triste era o corretor de tão torpes mercancias. Vim depois a enfadar, que sempre no mundo fica aborrecido o traidor, e a traição muito bem vista. Plantar de fora o ladrão, quando a ladroíce fica, será limpeza de mãos, mas de mãos mui pouco limpas. Eles cobraram o seu dinheiro, açúcar, farinha, até a mim me embolsaram nesta hedionda enxovia. Se foi bem feito, ou mal feito, o sabe toda a Bahia, mas se a traição ma fizeram, com eles a traição fica. Eu sou sempre o Braço Forte, e nesta prisão me anima, que se é casa de pecados, os meus foram ninharias. Todo este mundo é prisão, todo penas, e agonias, até o dinheiro está preso em um saco, que o oprima. A pipa é prisão do vinho, e da água fugitiva (sendo tão leve, ligeira) é prisão qualquer quartinha. Os muros de pedra, e cal são prisão de qualquer vila, d'alma é prisão o corpo, do corpo é qualquer almilha. A casca é prisão das fruitas, da rosa é prisão a espinha, o mar é prisão da terra, a terra é prisão das minas. É cárcere do ar um odre, do fogo é qualquer pedrinha, e até um céu de outro céu é uma prisão cristalina. Na formosura, e donaire de uma muchacha divina está presa a liberdade, e na paz a valentia. Pois se todos estão presos, que me cansa, ou me fadiga, vendo-me em casa d'EI-Rei junto à Sua Senhoria? Chovam prisões sobre mim, pois foi tal minha mofina, que, a quem dei cadeias d'ouro, de ferro mas gratifica. A DESPEDIDA DO MAO GOVERNO QUE FEZ ESTE GOVERNADOR. Senhor Antão de Sousa de Meneses,

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Quem sobe a alto lugar, que não merece, Homem sobe, asno vai, burro parece, Que o subir é desgraça muitas vezes. A fortunilha autora de entremezes Transpõe em burro o Herói, que indigno cresce Desanda a roda, e logo o homem desce, Que é discreta a fortuna em seus reveses. Homem (sei eu) que foi Vossenhoria, Quando o pisava da fortuna a Roda, Burro foi ao subir tão alto clima. Pois vá descendo do alto, onde jazia, Verá, quanto melhor se lhe acomoda Ser home em baixo, do que burro em cima. SUCCEDE A ESTE GOVERNADOR O MARQUEZ DAS MINAS COM SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DESFAZENDO TODAS AS SUAS OBRAS, E MANDANDO VIR OS PRINCIPAES DA BAHIA DO DESTERRO, EM QUE ANDAVÃO, PELA MORTE, QUE OUTROS DERAM AO ALCAYDE MÔR FRANCISCO TELLES. MOTE De flores, e pedras finas floresce, e enriquece o Estado, floresce sim pelo Prado, e enriquece pelas Minas: As Aves, que peregrinas aos montes se retiraram, nesta manhã já cantaram com tão doce melodia, que a noite se tornou dia, porque as penas se acabaram. Já da Primavera entrou a alegre serenidade, com que toda a tempestade do triste inverno acabou: já Saturno declinou nas operações malignas, com influências benignas Júpiter predominante nos promete ano abundante De flores, e pedras finas. Se destes aspectos tais bem se calcula a figura, teremos grande fartura, não há de haver fome mais: mostras temos, e sinais de um tempo muito abastado: porque bem considerado dele tem o próprio efeito; já vemos, que a seu respeito Floresce, e enriquece o Estado.

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Para ser enriquecido este Estado, e florescente, temos a causa patente no Planeta referido: nem se equivoca o sentido no efeito aqui declarado: porque sendo bem notado o estado, como parece, se pelo mais não floresce, Floresce sim pelo Prado. Pelo Prado flor a flor se vai a terra esmaltando, com que o clima está mostrando temperamento melhor: do Luminar superior por tais influências dignas sendo as pedras, e boninas da terra únicos primores pois se esmalta pelas flores, E enriquece pelas Minas. Na terra já se exprimentam virações tão temperadas, que as aves determinadas tornar aos ninhos intentam: já não sentem, nem lamentam tempestuosas ruínas, pois com salvas matutinas se mostram tão prazenteiras, que mais parecem caseiras As aves, que peregrinas. Sua peregrinação influxo foi de Saturno, Planeta sempre noturno, e muito importuno então: todas nessa conjunção seus doces ninhos deixaram, e tanto se recearam do nocivo temporal, que escolhendo o menor mal, Aos montes se retiraram. Porém tanto que sentiram haver no tempo mudança, sem receio, e sem tardança aos ninhos se reduziram: outros ares advertiram, outra clemência notaram, com que alegres publicaram dos astros os movimentos, e com festivos acentos Nesta manhã já cantaram. Cantaram para mostrar com repetidas cadências singulares excelências de um Planeta singular: tal doçura no cantar não se ouviu nesta Bahia, ouvindo-se na harmonia modulações tão suaves, que nunca cantaram aves

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com tão doce melodia. Cada qual com voz sonora nos mutetes, que cantavam, por mil modos explicavam de todo estado a melhora: cada instante, e cada hora a música mais se ouvia; no Prado resplandecia por modo maravilhoso um lustre tão luminoso que a noite se tornou dia. Entre as aves modulantes, que este nosso País tem todas cantavam o bem, de que são participantes: dos males, que foram dantes, todas também se queixaram; assim que todas mostraram com alegrias notórias, que começaram as glórias, Porque as penas se acabaram. A SEU FILHO O CONDE DO PRADO, DE QUEM ERA O POETA BEM VISTO, ESTANDO RETIRADO NA PRAYA GRANDE, LHE DÁ CONTA DOS MOTIVOS, QUE TEVE PARA SE RETIRAR DA CIDADE, E AS GLORIAS, QUE PARTICIPA NO RETIRO. Daqui desta Praia grande, Onde à cidade fugindo, conventual das areias entre os mariscos habito: A vós, meu Conde do Prado, a vós, meu Príncipe invicto, Ilustríssimo Mecenas de um Poeta tão indigno. Enfermo de vossa ausência quero curar por escrito sentimentos, e saudades, lágrimas, penas, suspiros. Quero curar-me convosco, porque é discreto aforismo, que a causa das saudades se empenhe para os alívios. Ausentei-me da Cidade, porque esse Povo maldito me pôs em guerra com todos, e aqui vivo em paz comigo. Aqui os dias me não passam, porque o tempo fugitivo, por ver minha solidão, pára em meio do caminho. Graças a Deus, que não vejo neste tão doce retiro hipócritas embusteiros, velhacos entremetidos. Não me entram nesta palhoça visitadores prolixos, políticos enfadonhos, cerimoniosos vadios.

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Uns néscios, que não dão nada, senão enfado infinito, e querem tirar-me o tempo, que me outorga Jesu Cristo. Visita-me o lavrador sincero, simples, e liso, que entra co'a boca fechada, e sai co queixo caído. En amanhecendo Deus, acordo, e dou de focinhos co sol sacristão dos céus toca aqui, toca ali signos. Dou na varanda um passeio, ouço cantar passarinhos docemente, ao que eu entendo, exceto a letra, e o tonilho. Vou-me logo para a praia, e vendo os alvos seixinhos, de quem as ondas murmuram por mui brancos, e mui limpos: os tomo em minha desgraça por exemplo expresso, e vivo, pois ou por limpo, ou por branco fui na Bahia mofino. Queimada veja eu a terra, onde o torpe idiotismo chama aos entendidos néscios, aos néscios chama entendidos. Queimada veja eu a terra onde em casa, e nos corrilhos os asnos me chamam d'asno, parece cousa de riso. eu sei um clérigo zote parente em grau conhecido destes, que não sabem musa, mau grego, e pior latino: Famoso em cartas, e dados mais que um ladrão de caminhos, regatão de piaçavas, e grande atravessa-milhos: Ambicioso, avarento, das próprias negras arnigo só por fazer a gaudere, o que aos outros custa jimbo. Que se acaso em mim lhe falam, torcendo logo o focinho, ninguém me fale nesse asno, responde com todo o siso. Pois agora (pergunto eu) se Job fora ainda vivo sofrera tanto ao diabo, como eu sofro este percito? Também sei, que um certo Beca no pretório presidindo, onde é salvage em cadeira, me pôs asno de banquinho. Por sinal que eu respondi, a quem me trouxe este aviso, se fosse asno, como eu sou, que mal fora a esse Ministro. Eu era lá em Portugal sábio, discreto, e entendido, Poeta melhor, que alguns, douto como os meus vizinhos.

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Chegando a esta cidade, logo não fui nada disto: porque o direito entre o torto parece, que anda torcido. Sou um herege, um asnote, mau cristão, pior ministro, mal entendido entre todos, de nenhum bem entendido. Tudo consiste em ventura, que eu sei de muitos delitos mais graves que os meus alguns, porém todos sem castigo. Mas não consiste em ventura, e se o disse, eu me desdigo; pois consiste na ignorância de Idiotas tão supinos. De noite vou tomar fresco, e vejo em seu epiciclo a lua desfeita em quartos como ladrão de caminhos. O que passo as mais das noites, não sei, e somente afirmo, que a noite mais negra, escura em claro a passo dormindo. Faço versos mal limados a uma Moça como um brinco, que ontem foi alvo dos olhos, hoje é negro dos sentidos. Esta é a vida, que passo, e no descanso, em que vivo, me rio dos Reis de Espanha em seu célebre retiro. Se, a quem vive em solidão, chamou beato um gentio, espero em Deus, que hei de ser por beato inda benquisto. Mas aqui, e em toda a parte estou tão oferecido às cousas do vosso gosto, como de vosso serviço. AO CONDE DO PRADO EMBARCANDO-SE PARA PORTUGAL EM COMPANHIA DE SEU PAY, DEPOlS DE TER ACABADO O TEMPO DE SEU GOVERNO LHE FAZ O POETA ESTAS SAUDOSAS DESPEDIDAS. Generoso Dom Francisco, mais que Conde Rei do prado, porque se a Rosa é Rainha, rei sois vóis, pois sois o Cravo. Majestoso ramilhete por cuja causa logramos trinta e seis meses de flores, que um mês fizeram de Maio. Luminar esclarecido, em quem tanto estão brilhando as luzidas excelências desses ascendentes Astros. Ouvi de meus sentimentos a voz, inda que o reparo note, que para a matéria o instrumento é mui baixo.

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Ouvi meus saudosos tonos, que é bem, Senhor Soberano, que, quem deu assunto à solfa, se digne de ouvir os cantos. Neste papel ponde os olhos, pois já quisestes dignar-vos de verdes da minha Musa noutro tempo outro traslado. Naquele tempo, então digo, quando escapei são, e salvo por vosso bom patrocínio de mil testemunhos falsos. Quando viu toda a Bahia no decurso de três anos sempre em flor vosso carinho, nunca murcho o vosso agrado Aqui mil órgãos quisera, para que com mil meatos sempre ferisse os encômios, onde soam os aplausos. Mas inda assim não podiam entender-se os vôos tanto, que não ficassem sucintos para elogios tão altos. Aquele ligeiro monstro, que nas presunções de alado pelas plumas marca os vôos, pelos vôos mede os passos. Só pode com nova tuba referir em pregões altos os timbres da vossa pompa, as prendas do vosso garbo. Referirá, Senhor Conde, que sempre os feitos preclaros têm por doação dos tempos da Fama os maiores brados. Esta vai com grande empenho desta Praça, para dar-vos sobre as aras do meu trono da memória os holocaustos. Digo, que vai desta Praça, onde em público teatro vemos do melhor governo os mais heróicos ensaios. Do Mestre as prerrogativas toquei em hino mais amplo por ver-se nas lições suas da pena o primeiro aparo. Aqui dos seus documentos nada digo, nada trato, que pois o assunto é só vosso, só convosco agora falo. Só convosco, porque o gênio, que é para pouco trabalho, mal pode ser juntamente Jardineiro, e Lapidário. Tanto que vos embarcastes, logo então fiquei notando, que na falta do presente se conhece o bem passado. Por vossa ausência às escuras fica a terra, e não me espanto,

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de que quando o sol se ausenta, se ausente da Luz os raios. A vista dos nossos olhos éreis; com que fica claro, pois, meu Senhor, vos perdemos, que sem vós cegos ficamos. A vossa falta sentimos geralmente neste estado, que sentir-se a grande perda efeito é muito ordinário. Sente o grande, que não tem o Prado alegre em Palácio, o gentil Cravo na rua, a Flor brilhante no Campo. Sente igualmente o pequeno não ter em seus desamparos abrigo para a tormenta e tábua para o naufrágio. Eu sinto, e sentimos todos, que fosse tão breve o prazo dos objetos para a vista, da vista para os regalos. Mas não podia o triênio, sendo um bem dos bens humanos, deixar de incluir o logro nos termos de momentâneo. Nesta suposição nossa concorrem motivos vários uns por parte dos alívios, outros em favor dos prazos. Mas prevalecem as penas, que os corações magoados, quando a dor mais dissimulam, então estão mais penando. Não permita vossa ausência, no sentimento intervalos, que no mal sempre contino nunca desconsolos faltam. Vossa saudade gememos nossa solidão choramos se na solidão chorosos, na saudade solitários. Nesta assistência tão breve nos mostrou o desengano não ser para pecadores o comércio de tal Anjo. A MORTE DESTE CONDE SUCCEDIDA NO MAR QUANDO SE RETIRAVA PARA LISBOA. Do Prado mais ameno a flor mais pura, Que em fragrâncias o alento há desatado, Hoje a fortuna insípida há roubado A pompa, o ser, a gala, a formosura. Flor foste, ó Conde, a quem a desventura Por decreto fatal do iníquio fado Quis dar-te como flor do melhor Prado Tumba no mar, nas águas sepultura.

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Porque menos decente o monumento Poderias achar no infeliz caso De ver extinto tanto luzimento. Por magnânimo herói no final prazo Somente na extensão desse elemento Terias como sol decente ocaso. AO MESMO ASSUMPTO. Em essa de cristal campanha errante Da morte um peito ilustre foi vencido, Mágoa, que o mar chorava fementido Com lágrimas de neve, ou de diamante. Neste teatro horrível, e inconstante Aos rigores do tempo pôs rendido A sua pompa o Prado mais florido, Fim a seu curso o sol mais rutilante. Como Prado em tormentas inundado, Como sol, que apressado a esfera corre, Teve o seu fim nas águas destinado. Por que se bem se adverte, ou se discorre, Se o mar inunda, se sepulta o prado, E se fenece o sol, nas ondas morre. AO MESMO ASSUMPTO. No Reino de Netuno submergido Nos campos de Anfitrite sepultado Tem a Sorte a mais bela Flor, que o Prado Em sua amenidade há produzido. Os realces ilustres tem perdido, porque a Parca os alentos lhe há roubado, cuja memória os mares têm chorado, cuja lembrança as águas têm sentido. Mas se de flor, ó Conde a preminência Gozavas em teu florido viver, Que muito não tivesses existência! Pois a flor, que mais pompa vem a ter Se pondera em uma hora sem falência Sujeita à pensão fera de morrer. AO MESMO ASSUMPTO. Nasce el sol de los astros presidente Principe en las espheras conocido, Y aunque el dia le mira el mas luzido, La noche se le atreve irreverente.

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Sirve le de sepulchro transparente El mar, pension fatal de haver nascido, Pues el que en todo un ciclo nó ha cabido, Le viene a ser el mar urna decente. Sol fuiste, Conde ilustre, en la nobleza, A quien la triste noche se le atreve, Pues es el morir del sol naturaleza. Hallaste como el sol tumba de nieve, Pues siendo corto el sol à tu grandeza, Solo à tal sol tal urna se le deve. AO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ GLZ. DA CAMARA COUTINHO EM DIA DE REYS OBSEQUEA O POETA PEDINDOLHE EM NOME DE HUM AMIGO HUMA DAQUELLAS ESMOLLAS, QUE SUA MAGESTADE CONSIGNA DO REAL THESOURO CADA HUM ANNO PARA OS HOMENS DE BEM, A QUE CHAMÃO MERCÉ ORDINARIA. Num dia próprio a liberalidades, No qual o Rei dos Reis aos Reis aceita, Não é muito, que quem Rei vos respeita, Vos troque a Senhoria em majestades. Obriga-me a pedir calamidades A que o meu fado triste me sujeita, Obriga-vos a dar a mão perfeita, Com que sabeis matar necessidades. Chegaram hoje os Reis do diversório A tributar incenso, mirra, e ouro, Fazendo do presépio um oratório: Se guiou aos três Reis Planeta Louro, Guie-me a minha estrela o peditório, Com que na vossa mão ache um tesouro. EMPENHA O POETA PARA CONSEGUIR ESTA MERCÉ AO CAPITÃO DA GUARDA LUIZ FERREYRA DE NORONHA SEU PARTICULAR CRIADO. Senhor: se quem vem, não tarda, vim eu em boa ocasião, pois da Guarda o capitão é Anjo da minha guarda: vossa presença galharda, vossa dócil natureza bem mostram, que sois na empresa da minha fortuna imensa capitão pela defensa Anjo pela gentileza. Obrigado a tão bom trato, que em mim é lance infalível, o desempenho impossível temo, que me faça ingrato: mas como já me precato de tão previsto desar, que eu não basto a desviar, sirva de escusa, ou perdão, que não falta à gratidão,

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quem se peja de faltar. Na Corte em era oportuna vistes a minha abastança, hoje vereis a mudança da minha infausta fortuna: de estrela tão importuna dera uma justa querela, porque hajais de corrige-la: mas no mundo é já patente, que como sábio, e prudente dominastes minha estrela. Mudei-me de ponto a ponto de Portugal ao Brasil, lá deixo infortúnios mil, acho cá ditas sem conto: co’as ditas é, que de ponto a desgraça lá passada, e a graça considerada está em vós, meu capitão, que a dita está na eleição da sombra, a que está chegada. A PEDITORIO DOS PRETOS DE NOSSA SENHORA DO ROSARIO FEZ O POETA O SEGUINTE MEMORIAL PARA O MESMO GOVERNADOR, IMPETRANDO LICENÇA PARA SAIREM MASCARADOS À HUMA OSTENTAÇÃO MILITAR, A QUE CHAMAVÃO ALARDE. Senhor: Os Negros Juízes da Senhora do Rosário fazem por uso ordinário alarde nestes Países: como são tão infelizes, que por seus negros pecados andam sempre emascarados contra a lei da policia, ante Vossa Senhoria pedem licença prostrados. A um General Capitão suplica a Irmandade preta, que não irão de careta, mas descarados irão: todo o negregado Irmão desta Irmandade bendita pede, que se lhe permita ir ao alarde enfrascados, não de pólvora atacados, calcados de jeribita. OUTRO MEMORIAL POR HUM SEU SOBRINHO, QUE DESEJAVA SENTAR PRAÇA DE SOLDADO. Senhor: deste meu Sobrinho afirmou um Padre tolo, que é furado do miolo, sendo o tal Padre o tolinho: não é doudo, nem doudinho, falando na realidade, mas se hei de dizer verdade, e nada hei de encobrir,

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anda morto por servir aqui Sua Majestade. Pode Vossa Senhoria, se nisto acertar deseja, permitir, que o Moço seja soldado de Infantaria: e se alcançar algum dia, que falei afeiçoado, eu me dou por condenado, e sem recurso nenhum a servir sem soldo algum em lugar deste Soldado. AO MESMO GOVERNADOR SUBTILMENTE REMOQUEIA O POETA AO DESCUIDAR-SE DE SUA HONRADA SUPPLICA SOBRE A MERCÊ ORDINÁRIA, LEMBRANDOLHE, QUE Á DERA A HUM SOLDADO RIDÍCULO CHAMADO O FARIA, POR QUEM NAQUELLE TEMPO CANTAVÃO OS CHULOS "A MULHER DO FARIA VAY PARA ANGOLLA". Sei eu, Senhor, que Vossa Senhoria Mandou dar ao Faria um bom vestido, Sendo, que mais o tinha merecido A mulher do mesmíssimo Faria Provo: todo o prazer, gosto, e alegria, Que se tem do Faria deduzido, O deu sempre a Mulher, nunca o Marido. Que ela ia pra Angola, e ele não ia. Assim que se a Mulher vai para Angola, E ele fica na infame lupanária, Sua ausência cruel pondo à viola: Tiro por conseqüência temerária, Que à Mulher se lhe deve dar a esmola, Que em crítico se diz mercê ordinária. TORNA O POETA A INVOCAR LUIZ FERREYRA DE NORONHA. Se da Guarda pareceis Anjo sobre capitão, não é novidade não, que de males nos livreis: dobrado ofício fazeis em qualquer nossa aflição, pois com nobre coração nos livrais amante interno, se como Anjo do inferno, do mais como capitão. ATHE AQUI NÃO ERA AINDA VINDA A MERCÉ ORDINÁRIA. E NO DIA, EM QUE O GOVERNADOR FEZ ANNOS LHE MANDOU O SEGUINTE SONETO. Quem, Senhor, celebrando a vossa idade, Os anos com prazer vos vai contando, Parece, que vos vai aproximando

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Para lograr tal dia a vossa herdade. Se a conta vos chegara a eternidade, Contente vo-la iria numerando, Mas dá-me desprazer a conta, quando Temo a raia tocar da mortandade. Com olhos sempre postos na Ordinária Vos dou os parabéns sem falso engano De ver-vos contrastando a sorte vária. Mas se por fim me dais o desengano (que em vós seria cousa extraordinária) Direi, que em tal dia fará um ano. A D. JOÃO DALENCASTRE VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA, ASSISTINDO NO MESMO PALACIO, QUEIXANDO-SE, DE QUE O POETA O NÃO VISITASSE, E PEDINDOLHE HUMA SATYRA POR OBSEQUIO. A quem não dá aos fiéis perdão, se lhe há de outorgar, eu hoje vos hei de dar, pedindo me perdoeis: dou-vos, o que mais quereis, e o que pedis por favor, que quando chega um Senhor a pedir, por não mandar, mal lhe podia eu faltar cuma sátira em louvor. Não fui beijar-vos a mão, e dar-vos a bem chegada, porque nessa alta morada nunca tive introdução: até agora a indignação não quis tão altivo trato, mas hoje é quase distrato, porque em todo mundo inteiro de fidalgo, e de escudeiro são brincos de cão com gato. Os Fidalgos, e os Senhores faltos de jurisdição fazem tudo, e tudo dão a amigos, e servidores: os que jogam de maiores por sangue, e não por poder fazem jogo de entreter: porque o sangue desigual sempre brota ao natural, e o mando bota a perder. Perdoai a digressão, porque esta prolixidade é boa luz da verdade, e escusa a sátira então: quando se ofreça ocasião, meu Senhor, de que eu vos veja (na Igreja, ou na rua seja) hei de prender-vos os pés,

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e estai certo, que essa vez vos não valerá a Igreja. Estou na minha quintinha, que é chácara soberana, ora comendo a banana, jogando ora a laranjinha: nem vizinho, nem vizinha tenho, porque sempre cansa quem vê tudo, e nada alcança, e na cidade são raros os olhos, que não são claros, se olhos são de vizinhança. Mas inda que desterrado me tem o fado, e a sorte por um Juiz de má morte, de quem não tenho apelado: é hoje, que sois chegado, Senhor, o tempo, em que apele; fazei, que El-Rei o desvele pagar o serviço meu, pois é bizarro, e só eu não vim muito pago dele. A JOÃO PLZ. DA CAMARA COUTINHO FILHO DO MESMO GOVERNADOR TOMANDO POSSE DE HUMA GINETA EM DIA DE S. JOÃO BAPTISTA, E LHE ASSISTIO DE SARGENTO D. JOÃO DE LANCASTRO SEU THIO VINDO DO GOVERNO DE ANGOLLA. No culto, que a terra dava, equivocava-se a vista, se celebrava o Batista, se ao Coutinho festejava: um e outro João estava arrojando à sua planta tanto aplauso, e festa tanta: mas viu-se, que ao mesmo dia, em que o Batista caía, o Coutinho se levanta. Viu-se, que um João Batista na terça-feira caíra, e que outro João subira a imperar esta conquista: mas não se enganou a vista por desacerto, ou desgraça, antes com divina traça se notou, e se advertiu, que se um com graça caiu, outro nos caiu em graça. Braba ocorrência se achou no martirológio então, o dia era de um João, e outro João lhe levou: toda a cidade assentou por razão, se por carinho ser mais acerto, e alinho preferir entre dous grandes como um Silva a um Fernandes a um Batista um Coutinho.

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Mais ocorrências se leram, porque pasmasse a Bahia, dous num dia há cada dia, mas três nunca concorreram: três de um nome então vieram, e qual mais para aplaudido, e assim confuso, e sentido ficou com tão nova traça restaurada a nossa Praça e o Calendário aturdido. Se de um só João no dia se abalava a cristandade, por três de tal qualidade quem se não abalaria! tudo quanto então se via, se via com grande abalo, um mar de fogo a cavalo, a pé um Etna de flores, e por ver tantos primores o Céu dava tanto estalo. A ver o grande Alencastro quem não fez do aperto graça: se saiu o sol à praça fazer praça a tanto Astro? o bronze pois, e alabastro por solenizar a glória consentirão, que esta história fique por mais segurança nos arquivos da lembrança nos volumes da memória. AO MESMO ASSUMPTO. Entre aplausos gentis com luz preclara Resplandece do sol a monarquia, E o Príncipe da Luz, que o céu regia Estático a carroça ardente pára. E com razão: pois vê, se bem repara, outro novo Faetonte neste dia, E sente arder o mundo, como ardia, Quando ao filho o governo delegara. Pare pois, e repare, que o decreta Astréia, porque aprenda no alto pólo Ditames de luzir deste Planeta. Sua fama andará de pólo a pólo, Pois o Jove, que empunha uma gineta, Faetonte é na luz, no garbo Apolo. GENEALOGIA QUE O POETA FAZ DO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DESABAFANDO EM QUEYXAS DO MUYTO, QUE AGUARDAVA NA ESPERANÇA DE SER DELLE FAVORECIDO NA MERCÊ ODRINÁRIA. Veio ao Espírito Santo da Ilha da Madeira Alz. um Escudeiro Gonçalves

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mais pobretão, que outro tanto: e topando a cada canto as Tapuias do lugar havendo uma de tomar para a bainha da espada, tomou Vitória agradada, que então lhe soube agradar. A tal era uma Tapuia grossa como uma jibóia, que roncava de tipóia, e manducava de cuia: tocando ela a Aleluia, tirava ele a culumbrina com tal estrago, e ruína, que chegando a conjuncão lhe encaixou a opilação por entre as vias da urina. Pariu a seu tempo um cuco, um monstro (digo) inumano, que no bico era tucano e no sangue mamaluco: mas não tendo bazaruco, com que faça o batizado lhe assistiu sem ser rogado um troço de fidalguia pedestre cavalaria toda de beiço furado. O Cura, que não curou de buscar no Calendário nome de Santo ordinário, por Antônio o batizou: tanto o colonim mamou, e tais forças tomou, que antes de se pôr de pé, e antes de estar já de vez, não falava o português, mas dizia o seu cobé. Cansado de ver a Avoa co'as cuias à dependura, tratou de buscar ventura, e embarcou numa canoa: vindo aportar a Lisboa, presumiu de fidalguia, cuidou, que era outra Bahia, onde basta a presunção para fazer-se a um cristão muchíssima cortesia. Casou com uma rascoa, que por ele ardia em chamas, e era criada das Damas da Rainha de Lisboa: era uma grande pessoa, porque tinha um cartapácio, onde estudava de espácio todo o primor cortesão, que até um sujo esfregão cheira a primor em Palácio. Nasceu deste matrimônio

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um Anjo, digo, um Marmanjo, que era no simples um Anjo, e no maligno um demônio: deram-lhe por nome Antônio; oh se o Santo tal cuidara! creio eu, que se irritara o grande Português tanto, que deixara de ser Santo, e o nome lhe não sujara. Este pois por exaltar-se veio reger a Bahia: que bom governo faria, quem não sabe governar-se! se ele quisera enforcar-se pelos que enforcar fazia, que bom dia nos daria! mas ele tão mal se salva, que quando dava a mão alva então tomava o bom dia. O Ministro há de ser são, justo, e não desobrigado, há de ter ódio ao pecado, e ao pecador compaixão: que se tem má propensão, faz justiça, mas com vício, e se maior malefício tem, e pode condenar-me, livre-me Deus de julgar-me oficial do meu ofício. Que, porque furto, o que coma, me enforquem, pode passar, mas que me mande enforcar a bengala de um Sodoma! quem sofrerá, que Mafoma me queime por mau cristão, vendo, que Mafoma é cão, velhaco, e de suja alparca, e o mais torpe heresiarca, que houve entre os filhos de Adão. Quem na terra sofreria, que o fedor de um ataúde com bioco de virtude disfarçasse a Sodomia? e de feito em cada dia desse ao povo um enforcado, e que de puro malvado desse esse dia um banquete, e alegrasse o seu bofete com bom vinho, e bom bocado? O bem, que os mais bens encerra, e as glórias todas contém, é reinar, quem reina bem, pois figura a Deus na terra: eu cuido, que o mundo erra nesta alta reputação, que se o Rei erra uma ação, paga a seu alto atributo um tristíssimo tributo, e misérrima pensão.

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O Príncipe soberano bom cristão temente a Deus, se o não socorrem aos céus, pensões paga ao ser humano: está sujeito ao tirano, que adulando ambicioso é áspide venenoso, que achacando-lhe os sentidos, turbado o deixa de ouvidos, de olhos o deixa ludoso. Se fosse El-Rei informado, de quem o Tucano era, nunca à Bahia viera governar um povo honrado: mas foi El-Rei enganado, e eu com o povo o paguei, que é já costume, e já lei dos reinos sem intervalo, que pague o triste vassalo os desacertos de um Rei. Pagamos, que um figurilha corcova de canastrão com nariz de rebecão em cara de bandurrilha, descompusesse a quadrilha dos homens mais bem nascidos, e que dos mal procedidos tal estimação fizesse, que honras, e postos lhes desse por lhe encherem os ouvidos. Pagamos ver esta Hiena, que com a voz nos engana, pois fala como putana, e como fera condena: que uma terra tão amena, tão fértil, e fão fecunda a tornasse tão imunda falta de saúde, e pão; mas foi força, que tal mão peste, e fome nos infunda. Pagamos que um homem bronco racional como um calhau, mamaluco em quarto grau, e maligno desde o tronco: apenas se dá um ronco, em briga apenas se fala, quando os sargentos a escala prendem com descortesia aos honrados na enxovia, todo o patifão na sala. Pagamos, que um Sodomita, porque o seu vício dissesse, todo o homem aborrecesse, que com mulheres coabita: e porque ninguém lhe quita ser um vigário-geral com pretexto paternal, aos filhos, e aos criados tenha sempre aferrolhados

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para o pecado mortal. Pagamos, que o tal jumento isento de mãos guadunhas não furtasse pelas unhas, senão por consentimento: e que os quatro vezes cento, que se vieram trazer ao seu capitão mulher, porque o pão suba mais dez, não foi furto, que ele fez, mas deu jeito a se fazer. Pagamos ver o Prelado, que se peca, é de prudente, dos serventes de um agente descortesmente ultrajado: o sobrinho amortalhado com tão fidalgos brasões pela Puta dos calções, que fiado em ser valido fez do sangue esclarecido tão lastimosos borrões. Pagamos com dor interna, que nos passos da Paixão tão devoto é da prisão, que quer levar a lenterna: se entende, que a glória eterna prendendo há de merecer, fora melhor entender, que o céu lhe dá mais ganhado, não dormir-se co criado, que desvelar-se em prender. Pagamos vê-lo esperar, e estar com expectativas de ser Conde das Maldivas por serviços de enforcar: e como mandou tirar um rol dos quatro maraus, que enforcou por vaganaus, cuidei (assim Deus me valha) que entre os Condes da baralha fosse ele o Conde de paus. Porém Sua Majestade, Qual Príncipe Soberano, que não se indigna de humano sem dano da dignidade: conhecida esta verdade, que é verdade conhecida, fará justiça cumprida, para que se lhe agradeça, que o mau na própria cabeça traga a justiça aprendida. E porque nós de antemão a seus favores mostremos, quanto lhos agradecemos, lhe agradecemos D. João: era justo, era razão, conforme o direito e lei, quando o Rei dá Juiz a Grei, outro em seu lugar dispor,

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que seja o Governador tão fidalgo como El-Rei. CONTINUA O POETA SATYRIZANDO-O COM O SEO CRIADO LUIZ FERREYRA DE NORONHA. Estas as novas são de Antônio Luí= No que passa sobre um gato de algá=, Que algália tira com colher de Itá= . que coze e corcoja em fonte Rabi= . Se lhe escalda ou não a serventi= Isto tem já provado o mesmo ga= Porque passando os rios de cuá= O caso tocou logo a Inquisi= Há cousa mais tremenda e mais atró=, Que em terra, onde há tanta fartu=, E haja que por um cu enjeite um có= ? E que por mau gosto seja um pu= ? Eu me benzo, e arrenego do demô= E do pecado, que é contra a natu= . AOS MESMOS AMO, E CRIADO. Que aguarde Luís Ferreira de Norô= Tão grande pespegar pelo besbê=! Para o Puto, que aguarda tal pespê=, E faz servir seu cu de cocó= . Subverteu-se a cidade de Sodô= Pelo muito, que andou de caranguê=: A Palácio também cteio, sucé= O mesmo, que à cidade de Gomô=. Que desse em pescador Antônio Luí= ? Nefando gosto tem o seu cará=, Em não querer topar ponta de cri= . Pois tanto se narnora do pescá=, A cuama se vá pescar lombri=, E em castigo de Deus morra queimá=. PROSSEGUE O MESMO ASSUMPTO. No beco do cagalhão, no de espera-me rapaz, no de cata que farás e em quebra-cus o acharam, que tirando ao come-em-vão que era esperador de cus, lhe arrebentou o arcabuz no beco de lava-rabos, onde lhe cantam diabos três ofícios de catruz.

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Tomem pois exemplo aqui o Tucano e o Ferreira, pois lhos diz esta caveira, aprended, flores, de mi: mais aqui, ou mais ali sempre os demônios são artos sempre bichos, e lagartos, e dar-lhe-ão sobre beijus, a comer sempre cuscuz, a ver se se dão por fartos. REPETE A MESMA SATYRA. Quem aguarda a luxúria do Tucano Também pode esperar a do Lagarto, Se acaso conceber, verá no parto A substância que leva do tutano. Estes, que se debreiam mano a mano, Disciplinar-se-ão de quarto em quarto, E o que de mais sustância estiver farto, A via busque, que o negócio é cano. Conheça a Inquisição estas verdades, E como é certo, o que o soneto diz, Paguem-se em vivo fogo estas maldades, Ardendo morram já como Solis, E como arderam já duas cidades, Ardam Luís Ferreira, e Antônio Luís. AO MESMO ASSUMPTO. MOTE Quem sai a mijar de Beja por fora de Vidigueira Dá c'o piçalho em Ferreira. Senhora velha roupeira pois todo Alentejo andou não me dirá, quanto achou, que vai de Beja a Ferreira: porque outra velha embusteira, com profia, e com inveja, não quer que uma légua seja, e por palmos de cará diz, que só um palmo achará quem sai a mijar de Beja. Isto a velha quer, que seja, e do seu querer colijo, que vai a beber do mijo, quem sai a mijar de Beja: porém quem saber deseja a conclusão verdadeira, deste caminho, ou carreira, pelos passos do pismão quer saber, que passos vão

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por fora da Vidigueira. Porque parvoíce fora não ver entre boca, e centro, que uma cousa é mijar dentro outra cousa andar por fora: e assim vós, minha Senhora velha, que nesta carreira já sois useira, e vezeira desmenti da velha a inveja, pois diz, que quem sai de Beja, dá co piçalho em Ferreira. DIZ MAIS COM O MESMO DESENFADO: Sal, cal, e alho caiam no teu maldito caralho. Amém. O fogo de Sodoma e de Gomorra em cinza te reduzam essa porra. Amém Tudo em fogo arda, Tu, e teus filhos, e o Capitão da Guarda. DEDICATORIA ESTRAVAGANTE QUE O POETA PAZ DESTAS OBRAS AO MESMO GOVERNADOR SATYRIZADO. Desta vez acabo a obra, porque é este o quarto tomo das ações de um Sodomita, dos progressos de um fanchono. Esta é a dedicatória, e bem que preverto o modo, a ordem preposterando dos prólogos, os prológios. Não vai esta na dianteira, antes no traseiro a ponho, por ser traseiro o Senhor, a quem dedico os meus tomos. A vós, meu Antônio Luís, a vós, meu Nausau ausônio, assinalado do naso pela natura do rosto: A vós, merda dos fidalgos, a vós, escória dos Godos, Filho do Espírito Santo, E bisneto de um caboclo: A vós, fanchono beato, Sodomita com bioco, e finíssimo rabi sem nascerdes cristão-novo: A vós, cabra dos colchões, que estoqueando-lhe os lombos, sois fisgador de lombrigas nas alagoas do olho: A vós, vaca sempiterna cosida, assada, e de molho, Boi sempre, Galinha nunca in secula seculorum: A vós, ó perfumador

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do vosso pagem cheiroso, para vós algália sempre, para vós sempre mondongo: A vós, ó enforcador, e por testemunhas tomo os Irmãos da Santa Casa, que lhes carregam os ossos: Pois no dia dos Finados, quando desenterram mortos também murmuram de vós pela grã carga dos ombros: A vós, ilustre Tucano, mal direito, e bem giboso, pernas de rolo de pau, antes de o levar ao torno: A vós: basta tanto vós, porque este insensato Povo vendo, que por vós vos trato, cuidará, que sois meu moço: A vós dedico, e consagro os meus volumes, e tomos, defendei-os, se quiserdes, e se não, vai nisso pouco. APOLOGIA CAVILLOSA EM DEFENÇA DO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ. Agora saio eu a campo por vós, meu Antônio Luís, que já fede tanto verso, e enfada tanto pasquim! Que vos quer esta canalha tropel de vilões ruins, tanto Poeta sendeiro, tanto trovador rocim? Se fizestes mau governo, que é certo, que foi ruim, eles, que o façam pior, que eu lhe dou das quatro mil. Entorcastes muita gente? mente, quem tal coisa diz: Gabriel os enforcava, que eu com estes olhos vi. É verdade, que gostáveis vós muito de vê-los ir, sois amigo de enforcados, ter-lhes ódio, isso fora ruim. Cada qual gosta, o que gosta, uns carneiro outros perdiz, vós um quarto de enforcado, e eu de um quarto do pernil. Em gostos não há disputa dai ao demo o povo vil, que até nos gostos se mete a ser dos gostos juiz.

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O querer não tem razão, que a vontade é mui sutil, e assim por onde quer entra, e talvez não quer sair. Cada um quer, o que quer, não há nisto, que arguir, fez Deus as vontades livres, prendê-las é frenesi. Sois amigo de enforcados, quem vo-lo pode impedir? oxalá fôreis amigo levar o mesmo fim. Ora vamos a farinha, foi pouca, cara, e ruim: mas vós não sois sol, nem chuva, para haver de a produzir. Eu confesso, que houve fome, governando vós aqui, sois mofino, e por contágio ficou mofino o Brasil. Ser mofino não é culpa, a fortuna o quer assim: quem é mofino consigo, cos mais há de ser feliz? Não vos mandou governar El-Rei farinhas aqui, as carnes, nem os pescados, porém a forca isso sim. Valha o diabo a vossa alma cabelos de colomim, mandou-vos El-Rei acaso desgovernar os quadris? Mandou-vos acaso El-Rei com as fêmeas não dormir, senão com vosso criado, que é bomba dos vossos rins? No mais vos levanta falsos todo este povo civil, mas isto do vosso corpo vo-lo levanta o Luís. Mandou-vos El-Rei acaso a Sodoma, ou ao Brasil? Se não viveis em Judá, quem vos meteu a Rabi? Mandou-vos El-Rei que fosse vosso pajem meretriz, madrasta de vossos filhos, como dizem por aí? Ora ide-vos co diabo, que ja não quero acudir por um Tucano, um Fanchono, um Sodoma, um vilão ruim. DESCANTA O POETA AGORA A DESPEDIDA DESTE GOVERNADOR EM METAPHORA DE CHULARIAS, QUE SE UZAVAM NAQUELLE TEMPO. POR DIZER-SE VINHA RENDÊLLO D. JOÃO DE ALENCASTRE SEU CUNHADO.

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Bangüê, que será de ti em vindo o Governador, que manda El-Rei meu Senhor para te botar daqui? que será de ti, maldi- to, que assaz a ti te toca por neto de curiboca e porque este teu pepino no que é vaso feminino jamais toca, nem emboca. Que será de ti, Bangüê, quando o sucessor vier, que hás de perder a mulher, que é fêmea de cutilque? e se teu criado é, que o podes também levar, não te há de sofrer o mar, nem suas ondas sagradas, antes por essas porradas a porra te há de salgar. RETRATO QUE FAZ ESTRAVAGANTEMENTE O POETA, AO MESMO GOVERNADOR ANTONIO LUIZ DA CAMARA NA SUA DESPEDIDA. Vá de retrato por consoantes, que e eu sou Timantes de um nariz de tucano pés de Pato. Pelo cabelo começo a obra, que o tempo sobra para pintar a giba do camelo. Causa-me engulho o pêlo untado, que de molhado parece, que sai sempre de mergulho. Não pinto as faltas dos olhos baios, que versos raios nunca foram, senão a cousas altas. Mas a fachada da sobrancelha se me assemelha a uma negra vassoura esparramada. Nariz de embono com tal sacada, que entra na escada duas horas primeiro que seu dono. Nariz, que fala longe do rosto, pois na Sé posto na Praça manda pôr

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a guarda em ala. Membro de olfatos, mas tão quadrado, que um Rei coroado o pode ter por copa de cem pratos. Tão temerário é o tal nariz, que por um triz não ficou cantareira de um armário. Você perdoe, nariz nefando, que eu vou cortando, e inda fica nariz, em que se assoe. Ao pé da altura no naso oiteiro, tem o sendeiro, o que boca nasceu, e é rasgadura. Na gargantona membro do gosto está composto o órgão mais sutil da voz fanchona. Vamos à giba: mas eu que intento, se não sou vento para poder trepar lá tanto arriba? Sempre eu insisto, que no horizonte deste alto monte foi tentar o diabo A Jesu Cristo. Chamam-lhe autores, por falar fresco dorso burlesco, no qual fabricaverunt peccatores. E havendo apostas, se é homem, ou fera, se assentou, que era um caracol, que traz a casa às costas. De grande a riba, tanto se entona, que já blasona, que enjeitou ser canastra por ser giba. Ó pico alçado, quem lá subira, para que vira, se és Etna abrasador se Alpe nevado! Cousa pintada sempre uma cousa,

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pois onde pousa, sempre o vêem de bastão sempre de espada. Dos santos passos na bruta cinta uma cruz pinta a espada o pau da cruz, e eles os braços. Vamos voltando para a dianteira, que na traseira o cu vejo açoutado por nefando. Se bem se infere outro fracasso, porque em tal caso só se açouta, quem canta o miserere. Pois que seria, que eu vi vergões?; serão chupões, que o bruxo do Ferreira lhe daria. Seguem-se as pernas, sigam-se embora, porque eu por ora não me quero embarcar em tais cavernas. Se bem, que assento nos meus miolos que são dous rolos de tabaco já podre, e fedorento. Os pés são figas a mor grandeza, por cuja empresa tomaram tantos pés tantas cantigas. Velha coitada suja figura, na arquitetura da popa de Nau nova está entalhada. Boa viagem senhor Tucano, que para o ano vos espera a Bahia entre a bagagem. A D. JOÃO D'ALENCASTRE TOMANDO POSSE DO SEO GOVERNO OBSEQUEA O POETA COM AS QUEYXAS DO SEU ANTECESSOR, E CUNHADO. Quando Deus redimiu da tirania da mão do Faraó endurecido o Povo Hebreu amado, e esclarecido. Páscoa ficou de redenção o dia.

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Páscoa de flores, dia de alegria Àquele Povo foi tão afligido O dia, em que por Deus foi redimido; Ergo sois vós, Senhor, Deus da Bahia. Pois mandado pela alta Majestade Nos remiu de tão triste cativeiro, Nos livrou de tão vil calamidade. Quem pode ser senão um verdadeiro Deus, que veio estirpar desta cidade O Faraó do Povo Brasileiro. AO MESMO GOVERNADOR CHEGANDOLHE A NOVA DA MORTE DE SUA SOGRA, A QUEM DEYXOU CONVALECIDA DA MESMA ENFERMIDADE, DE QUE MORREO DEPOIS. Alto Príncipe, a quem a Parca bruta Aos estragos negando-se de horrível, Quando acredita assombro no inflexível, Em rendimento a vossos pés tributa. Tímida a vossa vista se reputa, E o mostra nesta ação quase visível, Onde em vós o pesar, sendo possível, Reverente o rigor não executa. Pouco faz a Bahia, se venera Humilde, e grata a vossa presidência, Se inda a morte convosco não é fera Porque admirando em vós tanta excelência Para dar-vos um golpe, astuta espera (Por temer-vos, Senhor) a vossa ausência. LOUVA O SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA RAVASCO A HUM SUGEYTO, QUE FOY À COSTA DA MINA E LÁ FEZ HUMA ILLUSTRE ACÇÃO. Vindes da Mina, e só trazeis a fama, De que vosso valor fez alta empresa, Que não consiste a glória na riqueza No seu desprezo sim, que honra se chama. O vosso zelo, que ambição se inflama, Do serviço fiel de Sua Alteza Lhe deu prudente aquela Fortaleza, Que é padrão imortal, que vos aclama. Quanto co'a espada, e co juízo obrastes, Quanto na África, e Europa merecestes, São ações, que convosco competistes. Não vos queixeis do pouco, que alcançastes,

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Pois na glória, em que a todos excedestes, Dificultais o prêmio, ao que servistes. RESPONDE O POETA A BERNARDO VIEYRA RAVASCO PELOS MESMOS CONSOANTES POR AQUELLA PESSOA A QUEM SE FEZ O OBSEQUIO. Hoje é melhor ter mina, que ter fama, Que no tesouro se acha a nobre empresa, Porque onde se idolatra só riqueza, A glória dos progressos nada clama. Ambicioso e avarento mais se inflama Pertendendo subir a nova alteza, E fragando nos bens a fortaleza, Quer estragar a honra, que se aclama. Mas vós, que a acreditar-me tanto obrastes, Fiado, no que, é certo, merecestes, Em mérito, a que sempre competistes: A mim me dais a glória, que alcançastes, Que como vós em tudo me excedestes, Té para me abonar hoje servistes. CONTINUA BERNARDO VIEYRA RAVASCO NO SEU PROPOSITO PELOS MESMOS CONSOANTES. Nos assuntos, que dais à vossa fama, Têm as invejas mais ardente empresa, Pois se a glória do nome é mor grandeza, No vosso acende mais ativa a chama A emulação, que sempre assim se inflama, O seu incêndio exala à suma alteza, Mas esse incêndio em rara fortaleza Salamandra vos faz, Fênix aclama. Quanto nas armas valeroso obrastes, Nas invejas prudente merecestes, Triunfando sempre nunca competistes. Mas outra maior glória inda alcançastes; Não há Musa, que conte, o que excedestes, Nem grandeza, que pague, o que servistes. AO MESMO SECRETARIO DE ESTADO BERNARDO VIEYRA PEDINDO HUMAS OITAVAS AO POETA, EM TEMPO, EM QUE FAZIA ANNOS CONVALESCENDO DE HUMA GRAVE DOENÇA. Oitavas canto agora por preceito, Sem que na oitava possa diligente Louvar as excelências de um sujeito, Que pode ser em tudo o melhor Lente: Mas como em mim não pode ser perfeito O canto, ficará menos cadente A música de Apolo, e de Talia, Que não há cantar bem sem melodia.

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Se do tempo perfeito o meu compasso A compasso cantara neste canto, Não faltara à garganta agora o passo, E em passos de garganta fora espanto: Porém se em canto nunca da mão passo Como posso afinar no canto tanto, Que me atreva a cantar vossa ciência, Sem que falte ao compasso na cadência. Canora a voz tomara, e tão suave, Que em passos largos, e ecos repetidos Sonora requintasse aquela clave, Em que fossem meus ecos esparcidos: Porém se o vosso nome o canto grave Eleva suspendendo os mais sentidos, Com a voz, que formar o meu alento Chegar posso tarnbém ao Firmamento. Discutindo esse globo de ciências No mapa desta esfera Americana, Acho um todo formado de excelências Maravilha fatal em forma humana: De modo se une, e formam as essências Que o natural as graças vos germana: Mas que muito se vós no largo mundo Sois da graça, e ciências tão fecundo. Se emulações tiraram Luzimentos, Que soube a natureza vincular-vos, Apolo não perdera os pensamentos, Temendo-se na empresa de louvar-vos: Suspende a admiração os vãos intentos Ao discurso, que emprende realçar-vos, Que a Musa enfraquecida, a pena leve Nunca diz, o que sente, no que escreve. Deixem-se os Gregos já do seu Eliano, Condenam a silêncio um Xenofonte, Não louve Alexandria Herodiano, Que na Bahia tem Timocreonte: O qual pode ensinar Quintiliano, Camões, Terêncio, Ênio, Anacreonte, Platões, Anaximandros, e Musés, Acusilaus, Priscianos, e a Timéus. Nos anos climatéricos glorioso Vosso nome será tão dilatado, Que suba, onde o decrépito invejoso O veja nas estrelas colocado: Sereis novo Planeta luminoso, E Sol em nova esfera sublimado, Que, a quem o mundo singular aclama, Só descansa no céu com ele a fama. Separar vossas partes, e Louvores Absurdo fora certo, e averiguado, Que à grandeza dos orbes superiores Ninguém pode pôr termo limitado: Receba o infinito por maiores, Quem foi por singular ao mundo dado, Com que as partes publica deste modo, Quem de todo admirado admira o todo.

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Cesse pois em louvar-vos minha pena, Que impossível será, que sem engano Presuma, que fazendo esta novena Vos possa ponderar em todo um ano: Este novo, e felice, que hoje ordena O Céu, lograi, Senhor, sem tanto dano, Porque sejam em vós os mais gloriosos Aqueles, que vos faltam de invejosos. F I M