Meditação

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[Chogyam Trungpa Rinpoche; trecho da introdução ao Além do materialismo espiritual] De acordo com a tradição budista, o caminho espiritual é o processo de atravessar e superar a nossa confusão, de descobrir o estado desperto da mente. Quando esse estado desperto da mente se encontra tomado pelo ego e pela paranoia que o acompanha, assume o caráter de um instinto subliminar. Dessa forma, não se trata de construir o estado desperto da mente, mas sim de extinguir as confusões que o obstruem. No processo de consumir as confusões, descobrimos a iluminação. Se o processo fosse outro, o estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e efeito e, assim, passível de dissolução. Tudo o que é criado, mais cedo ou mais tarde, tem que morrer. Se a iluminação fosse criada dessa maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se, provocando um retorno ao estado de confusão. A iluminação é permanente porque não a produzimos apenas a descobrimos. Na tradição budista, a analogia do Sol que surge por trás das nuvens é frequentemente empregada para explicar a descoberta da iluminação. Na prática de meditação, removemos a confusão do ego a fim de vislumbrar o estado desperto. A ausência da ignorância, da sensação de opressão, da paranoia, descortinam uma visão fantástica da vida. Descobrimos um modo diferente de ser. O cerne da confusão é o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contínuo e sólido. Quando ocorre um pensamento, uma emoção ou um evento, há o sentido de que alguém tem consciência do que está acontecendo. Você sente que você está lendo estas palavras. Esse senso de eu, na realidade, é um evento transitório e descontínuo que, em nossa confusão, parece perfeitamente estável e contínuo. Como tomamos por real a nossa visão confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu sólido. Tentamos alimentá-lo com prazeres e escudá-lo contra a dor. Continuamente, a experiência ameaça revelar-nos a nossa transitoriedade, de modo que estamos sempre lutando para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condição. Poderíamos perguntar: "Mas, se a nossa verdadeira condição é um estado desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar tomar consciência disso?" Por estarmos tão imersos em nossa visão de mundo confusa, nós a consideramos real, o único mundo possível. Essa luta por manter o senso de um eu sólido e contínuo é obra do ego. O ego, contudo, não é completamente bem-sucedido em sua tentativa de nos defender do sofrimento. É a insatisfação que vem junto com a luta do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, como sempre existem hiatos na consciência que temos de nós mesmos, torna-se possível algum discernimento. Uma interessante metáfora empregada no budismo tibetano para descrever o funcionamento do ego é a dos três senhores do materialismo: o senhor da forma, o senhor da fala e o senhor da mente. Na discussão que se segue sobre os três senhores, as palavras “materialismo” e “neurótico” dizem respeito à ação do ego. O senhor da forma refere-se à perseguição neurótica por conforto físico, segurança e prazer. Nossa sociedade, altamente organizada e tecnológica, reflete nossa preocupação em manipular o ambiente físico de modo a nos salvaguardar das irritações provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisíveis da vida. Elevadores acionados por botões de comando, carne empacotada, ar condicionado, vaso sanitário com descarga, velórios particulares, planos de aposentadoria, produção em massa, satélites meteorológicos, máquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove às cinco, televisão tudo são tentativas de criar um mundo controlável, seguro, previsível e prazeroso.

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Meditação

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  • [Chogyam Trungpa Rinpoche; trecho da introduo ao Alm do materialismo espiritual]

    De acordo com a tradio budista, o caminho espiritual o processo de atravessar e superar a nossa confuso, de descobrir o estado desperto da mente. Quando esse estado desperto da mente se encontra tomado pelo ego e pela paranoia que o acompanha, assume o carter de um instinto subliminar. Dessa forma, no se trata de construir o estado desperto da mente, mas sim de extinguir as confuses que o obstruem. No processo de consumir as confuses, descobrimos a iluminao. Se o processo fosse outro, o estado desperto da mente seria um produto dependente de causa e efeito e, assim, passvel de dissoluo. Tudo o que criado, mais cedo ou mais tarde, tem que morrer. Se a iluminao fosse criada dessa maneira, haveria sempre a possibilidade de o ego reafirmar-se, provocando um retorno ao estado de confuso. A iluminao permanente porque no a produzimos apenas a descobrimos. Na tradio budista, a analogia do Sol que surge por trs das nuvens frequentemente empregada para explicar a descoberta da iluminao. Na prtica de meditao, removemos a confuso do ego a fim de vislumbrar o estado desperto. A ausncia da ignorncia, da sensao de opresso, da paranoia, descortinam uma viso fantstica da vida. Descobrimos um modo diferente de ser.

    O cerne da confuso o fato de o homem ter um senso de ego que lhe parece contnuo e slido. Quando ocorre um pensamento, uma emoo ou um evento, h o sentido de que algum tem conscincia do que est acontecendo. Voc sente que voc est lendo estas palavras. Esse senso de eu, na realidade, um evento transitrio e descontnuo que, em nossa confuso, parece perfeitamente estvel e contnuo. Como tomamos por real a nossa viso confusa, lutamos para manter e incrementar esse eu slido. Tentamos aliment-lo com prazeres e escud-lo contra a dor. Continuamente, a experincia ameaa revelar-nos a nossa transitoriedade, de modo que estamos sempre lutando para encobrir qualquer possibilidade de descoberta da nossa verdadeira condio. Poderamos perguntar: "Mas, se a nossa verdadeira condio um estado desperto, por que nos ocupamos tanto em evitar tomar conscincia disso?" Por estarmos to imersos em nossa viso de mundo confusa, ns a consideramos real, o nico mundo possvel. Essa luta por manter o senso de um eu slido e contnuo obra do ego.

    O ego, contudo, no completamente bem-sucedido em sua tentativa de nos defender do sofrimento. a insatisfao que vem junto com a luta do ego que nos inspira a examinar o que estamos fazendo. E, como sempre existem hiatos na conscincia que temos de ns mesmos, torna-se possvel algum discernimento.

    Uma interessante metfora empregada no budismo tibetano para descrever o funcionamento do ego a dos trs senhores do materialismo: o senhor da forma, o senhor da fala e o senhor da mente. Na discusso que se segue sobre os trs senhores, as palavras materialismo e neurtico dizem respeito ao do ego.

    O senhor da forma refere-se perseguio neurtica por conforto fsico, segurana e prazer. Nossa sociedade, altamente organizada e tecnolgica, reflete nossa preocupao em manipular o ambiente fsico de modo a nos salvaguardar das irritaes provenientes dos aspectos crus, rudes e imprevisveis da vida. Elevadores acionados por botes de comando, carne empacotada, ar condicionado, vaso sanitrio com descarga, velrios particulares, planos de aposentadoria, produo em massa, satlites meteorolgicos, mquinas de terraplenagem, luzes fluorescentes, empregos das nove s cinco, televiso tudo so tentativas de criar um mundo controlvel, seguro, previsvel e prazeroso.

  • O senhor da forma no significa as prprias situaes de vida fisicamente ricas e seguras que criamos. Refere-se, antes, preocupao neurtica que nos impele a cri-las, a tentar controlar a natureza. O ego ambiciona assegurar-se e entreter-se, buscando evitar toda e qualquer irritao. Desse modo, agarramo-nos aos nossos prazeres e propriedades, tememos mudanas ou foramos mudanas, tentamos criar um ninho ou um playground.

    O senhor da fala tem a ver com o emprego do intelecto no relacionamento com o mundo. Adotamos grupos de categorias que servem como alavancas, como meios para manipular fenmenos. Os produtos mais plenamente desenvolvidos dessa tendncia so as ideologias, os sistemas de ideias que racionalizam, justificam e santificam nossas vidas. Nacionalismo, comunismo, existencialismo, cristianismo, budismo todos nos proporcionam identidades, regras de ao, e interpretaes de como e por que as coisas acontecem como acontecem.

    Aqui, novamente, o emprego do intelecto no em si mesmo o senhor da fala. O senhor da fala indica a inclinao do ego em interpretar o que quer que seja ameaador ou irritante de modo a neutralizar a ameaa ou transform-la em algo positivo do ponto de vista do prprio ego. O senhor da fala refere-se ao uso dos conceitos como filtros, que nos impedem de perceber diretamente aquilo que . Os conceitos so levados muito a srio, sendo utilizados como instrumentos para solidificar nosso mundo e ns mesmos. Se existe um mundo no qual possvel dar nome s coisas, ento o eu, como uma das coisas nomeveis, tambm existe. Nosso desejo no deixar espao para dvidas ameaadoras, para a incerteza ou para a confuso.

    O senhor da mente refere-se ao esforo da conscincia em manter-se consciente de si mesma. O senhor da mente impera quando usamos disciplinas espirituais e psicolgicas como forma de conservar a conscincia que temos de ns mesmos, de nos agarrarmos ao senso de eu. Drogas, ioga, oraes, meditao, transes, vrias psicoterapias tudo pode ser usado com essa finalidade.

    O ego capaz de converter tudo para seu prprio uso, inclusive a espiritualidade. Se aprendemos, por exemplo, uma tcnica de meditao particularmente benfica dentro de uma prtica espiritual, a atitude do ego , primeiro, trat-la como um objeto de fascinao e, depois, examin-la. Por fim, visto que o ego slido apenas na aparncia e no pode de fato absorver coisa alguma, ele s capaz de imitar. Em tais circunstncias, ele procura examinar e imitar a prtica da meditao e o modo de vida meditativo. Depois de aprendermos todos os truques e todas as respostas do jogo espiritual, tentamos imitar automaticamente a espiritualidade, j que o envolvimento verdadeiro exigiria uma completa eliminao do ego e a ltima coisa que desejamos fazer renunciar completamente a ele. Entretanto, como no podemos experimentar aquilo que estamos tentando imitar, a nica coisa que fazemos encontrar alguma rea dentro dos limites do ego que parea ser a mesma coisa. O ego traduz tudo com referncia ao seu prprio estado de sade, s suas qualidades intrnsecas. Ele experimenta um sentido de grande realizao e excitao quando consegue criar um modelo desse tipo. Finalmente, criou um feito tangvel, uma confirmao de sua prpria individualidade.

    Se formos bem-sucedidos em manter a conscincia que temos de ns mesmos atravs de tcnicas espirituais, um desenvolvimento espiritual autntico ser altamente improvvel. Nossos hbitos mentais adquirem tal fora que fica difcil penetr-los. Se formos muito longe nisso, podemos at chegar ao desenvolvimento totalmente demonaco da completa egoidade.

    Embora o senhor da mente detenha o maior poder quando se trata de subverter a

  • espiritualidade, os outros dois senhores tambm podem reger a prtica espiritual. O retiro no seio da natureza, o isolamento, a simplicidade, as pessoas tranquilas e elevadas tudo isso podem ser formas de nos proteger da irritao, tudo pode ser expresso do senhor da forma. Ou talvez a religio possa nos fornecer uma racionalizao para criarmos um ninho seguro, um singelo mas confortvel lar, para conseguirmos um companheiro afvel e um emprego estvel e fcil.

    O senhor da fala tambm envolve-se com a prtica espiritual. Ao seguir um caminho espiritual, podemos substituir nossas crenas anteriores por uma nova ideologia religiosa, continuando, porm, a us-la da antiga maneira neurtica. Por mais sublimes que sejam nossas ideias, se as tomarmos com excessiva seriedade e as utilizarmos para manter nosso ego, ainda assim estaremos sendo governados pelo senhor da fala.

    Se examinarmos nossos atos, provavelmente quase todos concordaremos que somos governados por um ou mais dos trs senhores. Mas, poderamos nos perguntar, e da? Isso simplesmente uma descrio da condio humana. Sim, sabemos que a tecnologia no consegue nos pr a salvo de guerras, crimes, doenas, insegurana econmica, trabalho laborioso, velhice e morte. Tampouco nossas ideologias nos resguardam da dvida, incerteza, confuso e desorientao. Nem nossas terapias podem nos proteger da dissoluo dos altos estados de conscincia que viermos temporariamente a alcanar, ou da desiluso e angstia da decorrentes. No entanto, o que mais podemos fazer? Os trs senhores parecem poderosos demais para serem derrubados e no sabemos com o que poderamos substitu-los.

    Perturbado por essas indagaes, o Buda examinou o processo pelo qual os trs senhores governam. Investigou por que nossas mentes os seguem e se no haveria um outro caminho. Descobriu que os trs senhores nos seduzem criando um mito fundamental: o mito de que somos seres concretos. Todavia, o mito, em ltima anlise, falso, uma imensa burla, uma fraude gigantesca, a raiz do nosso sofrimento. Para fazer essa descoberta, ele precisou romper as defesas extremamente complexas erguidas pelos trs senhores, que tinham como objetivo impedir que seus sditos descobrissem o engano fundamental que a origem do seu prprio poder. No poderemos, de maneira alguma, livrar-nos do domnio dos trs senhores a menos que tambm cortemos e atravessemos, camada por camada, suas complexas defesas.

    As defesas dos senhores so criadas a partir do material de nossas mentes. Esse material utilizado pelos senhores de tal modo que seja preservado o mito bsico da solidez. A fim de enxergar por ns mesmos como esse processo funciona, precisamos examinar nossa prpria experincia. Mas como, podemos perguntar, devemos conduzir esse exame? Que mtodo ou instrumento vamos usar? O mtodo descoberto pelo Buda foi a meditao. Ele descobriu que lutar para encontrar respostas no surtia efeito. Era apenas quando havia intervalos na sua luta que lhe surgiam insights. Ele comeou a se dar conta de que existia, dentro de si, uma qualidade s e desperta, que se manifestava apenas na ausncia de luta. Por isso, a prtica da meditao implica deixar ser.

    Uma srie de ideias errneas tem surgido acerca da meditao. Algumas pessoas a consideram um estado mental semelhante a um transe. Outras pensam nela em termos de treinamento, no sentido de ginstica mental. A meditao, contudo, no nenhuma dessas coisas, embora lide com estados mentais neurticos. No difcil nem impossvel lidar com esses estados. Eles tm energia, pressa e um padro especfico. A prtica da meditao implica deixar ser uma tentativa de

  • acompanhar o padro, uma tentativa de acompanhar a energia e a velocidade. Dessa forma, aprendemos a lidar com esses fatores, a nos relacionar com eles no no sentido de faz-los amadurecer como gostaramos, mas no sentido de conhec-los como so e trabalhar com seu padro.

    H uma histria sobre o Buda em que se conta como ele, certa vez, ofereceu ensinamentos a um famoso tocador de ctara que desejava estudar meditao. O msico perguntou: Devo controlar a minha mente ou devo deix-la completamente solta? O Buda respondeu: Visto que voc um grande msico, diga-me como afinaria as cordas de seu instrumento. O msico disse: Eu no as deixaria ficar nem retesadas demais nem frouxas demais. Da mesma forma, acudiu o Buda, na sua prtica de meditao voc no deve impor nada com fora demais sua mente e nem deve permitir que ela fique ao lu. Eis o ensinamento de como deixar a mente ser de um modo bastante aberto, de como sentir o fluxo da energia sem tentar sujeit-lo e sem deixar que ele se descontrole, de como acompanhar o padro de energia da mente. Essa a prtica da meditao.

    Essa prtica se faz necessria porque, geralmente, o padro do nosso pensamento, nosso modo conceitualizado de conduzir a vida, ou manipulativo demais, impondo-se ao mundo, ou completamente desgovernado e sem controle. Por conseguinte, nossa prtica de meditao precisa comear com a camada mais superficial do ego, com os pensamentos discursivos que esto sempre a atravessar-nos a mente, com nossa tagarelice mental. Em seu esforo para iludir-nos, os senhores empregam o pensamento discursivo como sua primeira linha de defesa, como seus pees. Quanto mais geramos pensamentos, mais ocupados nos tornamos mentalmente e mais nos convencemos da nossa existncia. Desse modo, os senhores esto constantemente tentando ativar esses pensamentos, tentando criar uma constante sobreposio de pensamentos, para que nada mais se possa ver alm deles. Na verdadeira meditao, no existe a ambio de suscitar pensamentos e tampouco a ambio de suprimi-los. Permite-se apenas que ocorram espontaneamente e tornem-se a expresso de uma sanidade bsica. Eles tornam-se a expresso da preciso e da clareza do estado desperto da mente.

    Se sua estratgia de estar sempre criando pensamentos sobrepostos falha, ento os senhores despertam emoes para nos distrair. A qualidade excitante, colorida e dramtica das emoes nos prende a ateno como se estivssemos assistindo a um filme envolvente. Na prtica de meditao, no encorajamos as emoes nem as reprimimos. Vendo-as com clareza, deixando que elas sejam como so, no mais permitimos que sirvam como meios para nos entreter e distrair. Dessa maneira, elas se tornam a energia inexaurvel que anima a ao sem ego.

    Na ausncia de pensamentos e emoes, os senhores introduzem uma arma ainda mais poderosa: os conceitos. A rotulao dos fenmenos cria a sensao de um mundo slido e definido de coisas. Um mundo estvel reassegura que somos, igualmente, uma coisa slida e contnua. O mundo existe, e portanto eu, que o percebo, tambm existo. A meditao implica enxergar a transparncia dos conceitos, de maneira que a rotulao j no sirva para solidificar nosso mundo e nossa imagem do eu. A rotulao passa a ser, simplesmente, um ato de discriminao. Os senhores ainda tm outros mecanismos de defesa, mas seria muito complicado discuti-los no presente contexto.

    Mediante o exame de seus prprios pensamentos, emoes, conceitos e demais atividades mentais, o Buda descobriu que no precisamos lutar para provar nossa existncia. No precisamos ficar sujeitos ao jugo dos trs senhores do materialismo. No h necessidade de lutar para sermos livres a ausncia de luta

  • em si mesma liberdade. Esse estado desprovido de ego a realizao da natureza bdica. O processo de transformar o material da mente para que deixe de ser expresso da ambio do ego e passe a ser, por meio da prtica da meditao, expresso da sanidade bsica e da iluminao eis o que poderamos chamar de verdadeiro caminho espiritual.