Melissa-Caderno

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Llansol e Hélia Correia escrevem sobre a gata Melissa, que ambas serviram...

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    A Douradinha Todo o raio de sol provm do escuro. Este nasceu do escuro da barriga de uma me gata que desconhecemos. um raio de sol no feminino. Uma madeixa. O seu nome, Melissa, proporciona outra possibilidade de existncia bastante prxima da levitao. Melissa, abelha,

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    Melissinha, alada. No pensem nela como planta curativa, erva-cidreira dos jardins medicinais porque, ainda que cure muita coisa, transeunte. Nunca poderia ficar presa raiz de onde nasceu. Tendo-lhe sido dado um confortvel lugar para viver, disse ela que o lugar no era tudo. Que melhor que o lugar era o encontro. No lhe faltavam, sendo gata, formas de modelar o mundo a seu favor. Chegou rapidamente a sua casa. Era uma casa cheia de imprudncias, com aberturas para o telhado, andorinhas ousadas ou perdidas, no se sabia bem qual a diferena. Para os jogos da luz, ela dispunha da sua grande coleco de verde: aspidistras, marantas, espar-gos, Filomena do N, com flores azuis, que se gabava de ter vindo do estrangeiro. Tambm havia um longo corredor de cuja vibrao saa msica. Os mveis tinham dentro a ventania dos seus muitos segredos, livros, lobos. Certas janelas no deitavam para a rua, num dos quartos no entrava a luz do dia, o que o tornava

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    extremamente elstico. , sem dvida, aqui, pensou Melissa. E tomou posse da habitao. Nem duvidou de que os humanos lhe serviam. Eram humanos com um grande olhar. Pareciam-se com gatos, no sentido de serem criaturas delicadas mas incapazes de conciliao. Melissinha no tinha sequer que seduzir, o artifcio era um programa desprezvel. Brilhava, como simples madeixa ensolarada, dando-se vagamente conta do carcter muito pouco comum do seu ambiente. Os seus humanos concentravam-se em tarefas ternas e vigorosas. Melissa apreciava o movimento da escrita mais do que a prpria escrita, mas sabia que tudo tinha uma finalidade, o faz-la feliz. Nunca pensou - os gatos no pensam deste modo - que os seus humanos, to habituados ao convvio animal, a observavam cuidadosamente, interpre-tando como quem acaricia. Assim como passava para o telhado, na exaltao da sua natureza, correndo sempre o risco de cair, ela tambm passava para o texto, correndo o risco do

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    encantamento. Como pelas saias da Maria Gabriela, trepou decerto pelo texto acima, fora de unhas e de deciso, sem mais motivo do que o prprio movimento e a pulso de aceder fosse ao que fosse. Um dia o seu humano masculino disse: Vou estar aqui de outra maneira. Desde ento, sobrou leite. Melissinha viu que ele estava em Maria Gabriela, no porque ela o tivesse absorvido mas para comodidade do trabalho que sem o Augusto no seria feito. A Melissa no fez essa experincia chamada perda enquanto a sua humana feminina a olhou e, mais do que a olhar, escreveu com ela. Mais do que tudo nesta histria, era preciso que a Douradinha fosse uma gata feliz. Quando mudou de casa, conheceu a bailarina Emily Duncan. Depois de um protocolo de dois meses, com o cerimonial recomendado, acordaram as duas na hierarquia e nos horrios para a brincadeira. Ligando os dois lugares, o novo e o antigo, estava a mulher que

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    conversava com os gatos e em quem Melissa tinha inteira confiana. Era uma mulher-serva, algum que tinha conhecimento exacto da razo por que viera ao mundo: traduzir. Abrir a sua fresta no porto que separa os falantes de outros bichos. Raiozinho de sol estendeu-se e disse: Ela far o que sempre tem feito. O que eu quiser. Deram-lhe uma Madrinha, depois outras, para que nunca se sentisse s. Mas h um nome no eplogo e esse Jaime. A Douradinha apaixonou--se ferozmente. A mulher-serva dispensvel. Podes ir, diz-lhe Melissa que ocupou o lugar dela na cadeira, na mesa e no colcho. Um dia, o sol vir busc-la. E ns devemos entreg-la com jbilo, pois muito lhe foi dado e nos deu. Habitar, como sempre habitou, no colo de Llansol.

    A mulher-serva, Hlia

  • 6 Os olhos que se lhe abrem de manh saem Rapidamente para o telhado e para os sons Que, imagino, escuta pela abertura das pupilas. Os extremos da rua, onde nunca foi, dizem-lhe, Todavia, que algum passa para ela, Melissa, No para mim, para ela, com o som cadenciado Dos sinos actuais, j modernos. E tropeo. Moderno um termo que me intriga, que briga Comigo, que no se torna compreensvel, Nem no limiar dos sinos. Tomo-o por uma Abstraco indecisa, um prazo que trai um Evento futuro sem, contudo, o espelhar.Em suma, Pouco se distingue das extremidades da rua Onde nunca foi. uma palavra irresponsvel, Sem resposta para o antes, o decurso e o depois. E, quando assim concluo, Melissa moderna, Actualiza, obriga-me a descer rua inquirir De visu o que, desde ento, se alterou.

    Maria Gabriela Llansol O Comeo de um Livro Precioso, 59

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    Melissa por Leonardo Tavares (com quatro anos)

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    Foto de Augusto Joaquim

    Maria Gabriela Llansol MELISSA NOS CADERNOS MANUSCRITOS

    29 de Maro de 1997 / Domingo de Pscoa Hoje, eu falava assim para a minha gata Melissa, que guarda O Texto Catarina, e que, sentada entrada da porta, tinha serenamente os olhos postos em mim enquanto eu saa do banho: Eu tenho dois casacos. Posso estar nua e estar vestida. Tu s podes estar nua. Compre-endes? (1.46, 126-127)

  • 9 1 de Abril de 1997 A gata brincava no corredor, soberana-mente alegre e simples. Uma libido espectacular fazia-se manh completa. Era o luar vesperal? Era o grande criador feminino? Era o luar textual? Era o miar suplicante da gata? De Melissa no texto? (1.46, 137) 13 de Julho de 1997 ... Entre mim e o pequeno animal que se chama Melissa h o pequeno acordo de que somos dois iguais sobre a crusta terrestre. Sobre a celeste, no sei, nem posso imaginar, mas d-me um singular prazer saber que no sei _______ sabendo; eu sou a maior do seu ser mais pequeno; est escrito em seu olhar; assim me ama, e amplifico o seu amor em qualquer circunstncia em que esta vibrao feliz pouse. (1.47, 110-111)

  • 10 18 de Setembro de 1997 ... Melissa brinca com os meus dedos, pensando que pode simplesmente tir-los do lugar e brincar com eles no cho, seme-lhana dos lpis ou borrachas, de que ela gosta tanto, e que rebolam... (1.48, 33)

    Melissa e Tmia, a rapariga que temia a impostura da lngua

  • 11 15 de Dezembro de 1997/ madrugada Melissa a rainha de meus ps. Reflexes suscitadas pela minha gata Melissa: Melissa Sol bichinho, se fosse pessoa, gostaria de ser criana. No uma criana de brincar, mas uma criana autntica, que ensinasse a cotejar os adultos com o seu crescimento constante em torno de fragmentos. Ver-se-ia no tempo, teria corpo no espao a pessoa. Mas eu, dos olhos de um gato ignoro tudo, salvo que os vejo a pupila funda desse eu que se insinua na capacidade verde do todo. Toda eu sou sua ________ do exterior dourado e devastado do dia que amanhece. (1.49, 61-62) 5 de Janeiro de 1998 Sinto que, apesar de mim daquilo que eu sou , h qualquer coisa que cintila em mim______ milenria ligao a um universo. Por

  • 12 isso e por isso, no , o dilogo com a minha gata Melissa -me imprescindvel. (1.49, 133) 23 de Abril de 1998 ... Melissa, recm-operada, vai bordejando a orla do mar e aparece e desaparece aqui e ali. Foi recm-operada, como ocorreu na vida real, e eu, de vez em quando, paran-do de escrever, procuro-a com sobressalto. Ora est deitada, meio desfalecida, e eu pressinto-lhe a costura da barriga, ora j se levantou e corre, ora est ainda a uma maior distncia, mas volta sempre gatinha ou cachorro, ambos dourados e muito pequenos, quela distncia. Eu escrevo, banhada pela paisagem que desfruto da falsia, o horizonte, o mar e a praia que vejo do alto, a pique. Concluo que no devo inquietar-me com Melissa ou Jade, porque os perigos ou so calculados, ou so afastados sempre. (1.50, 148-149)

  • 13 24 de Maio de 1998 No se sabe se Melissa perseguiu uma andorinha que se escondeu por detrs do frigorfico velho, o que guarda lbuns de arte, e alguns livros. Gostei de escrever sobre linhas curvas, vou levantar-me sobre elas, deixar cair a angstia para trs, antes de entrar no percurso ascendente da manh de domingo. (1.51, 29) 23 de Dezembro de 1998 Melissa Jade olha-me com ateno para verificar em que momento deixarei cair o lpis e a minha posio de debruada. No posso deixar

  • 14 de crer que ela, sobre o brao da poltrona, est na escola. Olha sem saber ainda o que o seu olhar pensa. Talvez todos ns sejamos iguais apenas em etapas diferentes sobre a linha da interrogao. Por mim, o lugar onde respiro mais e aprendo melhor Parasceve. E no me admiro que com um gato inteligente e inquiridor suceda o mesmo. Vamos, pois, ver. Ela h-de ir brincar

    Melissa e Emily

  • 15 com a caneta que, por fim, eu hei-de deixar cair. Enrodilha-se o tapete com a brincadeira, e o pensamento envolve-se, um pouco sujo, com o lpis cado no cho, e como qualquer pessoa que se preze, sobrevive... Melissa Jade acabou de sentar-se sobre a minha anca. Para ela, sou tambm uma cadeira. Para os habitantes de Parasceve que acordaram eu sou tambm o carteiro que, depois de tomar o caf, vai sair e recolher-lhes os medronhos ou seja, as cartas no escritas, e nunca vistas, com que sonharam de noite, e eu porei na caixa infinita do correio, em plena luz do dia. (1.53, 6-8) 6 de Fevereiro de 1999 Imagino que Melissa sobe para os nossos corpos e traz a natureza presente, e que a animalidade se envolve connosco e principia a ler, ultrapassando o muro cruzado de espi-nheiros do nosso olhar... (1.53, 106-107)

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    25 de Abril de 1999 ... O crculo do meu eu resplandece, afundando-se, e eu peo-lhe carinho, outro corpo de outro que se funda com o meu. Era o que eu queria, embora a Melissa d sinal do fundo da minha cama, premindo-me o calcanhar; mas ela apenas um pequeno sinal impotente de afecto... (1.54, 41) 9 de Maio de 1999 Contar-vos-ei a histria da andorinha, porque vivo num telhado com vrias janelas e tenho muitas para contar. Hoje vi que a andorinha, entrando aqui, veio levantar o meu voo _____ que estava parado. J estava no corredor, envolta no tapete amarelo, sob a pata cantante da Melissa. Cantante nela________ o seu medo negro. Tinha uma unha presa no relevo do tapete, que foi dif-

  • 17 cil libertar. Inerte, ficou na minha mo, no meu calor, no passeio de cantiga de amigo que dei, para l e para c, atravs dos quartos. Uma ponta do seu corao batia nos meus dedos, e afastado o vu do medo, que renuncia partida, entrou subindo, depois descendo, para de novo reagir ao impulso, pelo vu da manh que se levantava no cu de Sintra. Vu contra vu, por entre uma fresta de humanidade. (1.54, 90-91) 16 de Maro de 2000 ... Pus os culos no estojo de couro malevel. Quero passar pela rua, ouvir a voz do galo que se eleva pela manh, ver Melissa a arquear o dorso, dar uma volta sobre si mesma e continuar a dormir. Escrever o sonho dos gatos, d-los a conhecer (os sonhos). Porque eu tenho a certeza, porque o experimentei, de que o sonho a pedra da realidade, no o seu desmotivo ou contra-figura. [...]

  • 18 Assim vai a luz de erva e realidade recebida por ns. Como no havia mais ningum, Melissa miou uma vez, e disse: men! Depois, miou e disse: O teu filho vem a! Filho? perguntei... (1.58, 149, 162) 17 de Junho de 2000 Ficai connosco na pradaria destes nocturnos [Doze Nocturnos em Teu Nome] que combatem, na experincia, pela sua deciso final. Texto pauta de msica piano voz __ Lugar privado da Melissa: junto das preciosidades que no se vem. (1.59, 81-82) 19 de Maio de 2001 Sobre o telhado a loucura do Sol, das nuvens, das estrelas, por onde passa Melissa, a minha gata. Quase no

  • 19 procura o interior da casa, a no ser para comer e ir beber o fio de gua que resta na banheira. a soma do Vero. a subtraco do Inverno. o estar ao lado do que comunica o telhado, cobertura de humanos e desabrigo feliz do sufocado (ou confinado). Se houver mais estrelas do que papel, porque o Anjo mas indicou. Indecisa entre os dois, subo para esse telhado de que falei. Ou secretria para o papel, ou lugar de onde contemplo, a voar baixo, essas estrelas.

  • 20 Se quiserem cair no papel, fao um embrulho de silncio e arremesso-o madrugada da cidade________ Simultaneamente, preciosa por ter tido esta viso, Melissa mia________ [...] O desenho de escrever o ante-sentido, ou o post-sentido? O telhado o post-casa ou o ante-casa? Vou perguntar aos animais. Melissa responde-me que, se tivesse de escolher entre uma coisa e outra, ficaria angustiada. Por isso, nenhum animal me quer dar resposta, e eu, principiando a ler, avisto o deserto. (1.61, 156-157, 159) 19 de Junho de 2001 Melissa Meiguia Vou-te dar o meu anel Para pres na patinha. Ficam todos a saber Que s a minha gatinha. (1.62, 7)

  • 21 7 de Abril de 2002 [...] Com agudeza, sinto no mundo dos que me rodeiam a sua falta de amor ______ e a sua ausncia egocntrica de cristal. Como resposta um pouco desesperada, ontem atirei a Melissa para fora da minha cama. Mas ela o meu animal do Amor completo. Errei, pois. Devo pedir-lhe perdo [...] Ofreo-te a poesia extrema ______ na nova face destas cartas de amor. Tive uns tempos em que no amava Melissa tanto como a amo agora ou antes. Vi-a hoje enroscada no meio da cozinha, no crculo amachucado do tapete. Um ponto do meu olhar no universo

  • 22 um simples ponto. Mas havia um poo artesiano no lugar em que ela estava. Debrucei-me para ver/crer e no fundo simetricamente oposto havia o mesmo diferente lugar com outra carta de amor. (1.63, 76, 199) 21 de Janeiro de 2003 Melissa, o papel e as pulgas Quem conviver com um gato constata que as pulgas tm uma extraordinria atraco pela folha em branco. Abre-se o caderno. A pulga salta para o alvo exposto; a atraco evidente, mas a sua razo de ser desconhecida. Hiptese: ser o papel sangue? (1.64, 190)

  • 23 21 de Abril / 7-8 de Maio de 2004 A Melissa e eu estamos ss ela acompanha-me, eu penso. [...] Conforma a densidade que adquiriram [a matria e o esprito], assim o mais absorvente permanece. Melissa rente saia. Gabriela do absorvente. [...] ______ as cores no tm importncia a no ser para os olhos. Assim, Melissa no tem importncia a no ser para mim. (1.67, 101, 139, 146)

  • 24 4 de Maro de 2005 Melissa Fidelinha um nome que lhe vai to bem _____ no sei se a mim, se minha gata. s duas________ certamente. (1.70, 148) 26 de Julho de 2005 No regresso de Mourilhe Melissa tem um humano s para si_____ na linha transparente em que se eleva. Patas que se movem lentamente e per-tencem a um animal de sopro esto presentes; as janelas so altas e, por detrs das vidraas, pssaros gorgeiam, mas ela no os ouve ______ e parece surda. Levantam-se, aos seus ouvidos, outros sons que se enrolam por dentro______ prximos dos riachos ensanguentados que correm pelas ruas... (1.71, 105-106)

  • 25 19 de Junho de 2006 Melissa ronrona a seus ps est a solfejar as pulsaes do sangue nos artelhos; um ritmo incomparvel minha voz, no consigo segui-lo no canto. Tual introduz esse compasso sem espera na melodia que invade a pauta, depois o texto, e finalmente demarca uma fronteira ntida entre eles. Homem e animal, separao lcida mas confluncia coral que atravs das nossas pausas eleva o sangue a bebida universal. (1.75, 26)

  • 26 28 de Junho de 2006 Gratuita me traz este fragmento para que eu o converta em texto de cantar sobre Melissa seu animal acolhido por todos sombra deste lar da Saudao. Pego na msica que me fez msico e, porque meus dedos brilham com uma intensidade que percorre a luz das teclas, sento-me ao piano e as vozes acompanham-me de p, num staccato que abre a porta nica do fundo da casa ao silncio_________ noite de silncio entrada do silncio ao acolhimento do silncio Por vezes, o meu animal domstico toma-me por outro animal. quando, noite, nada se v e ele principia o seu sono, afastado de mim, num stio atractivo da casa. Passadas poucas horas e a noite jovem , ouo os seus passos que se deslocam. Ele me procura e, com um sopro de jbilo, sobe para onde me deito e, por se encostar curva dos meus joelhos, pressinto

  • 27 que me toma por um animal maior que o envolve e protege. Assim seja. (1.75, 44-45)

    Melissa por Catarina Galego (com oito anos)

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    Melissa fica entregue Hlia. Maria Gabriela Llansol

    Melissa-capa-cadernoMelissa-CadernoA6